Traduction - Jean Frere - Les Grecs Et Le Dsir de Ltre Complet

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1 OS GREGOS E O DESEJO DO SER: DOS PRÉPLATÔNICOS A ARISTÓTELES 1 Texto de Jean Frère Tradução de Louise Walmsley INTRODUÇÃO GERAL A alma grega é uma alma vibrante. A poesia grega é testemunha disto, assim como inúmeros aspectos da arte clássica. Nenhum filósofo grego ignora este fato. Seria parcial e unilateral ver na filosofia grega apenas uma filosofia da razão e da lei. O ímpeto não é apenas a marca do escândalo do egoísmo. Ele é também um ímpeto sadio: a arte dionisíaca e os heróis homéricos são testemunhas vibrantes disto. A filosofia grega está longe de desprezar esta dualidade de forças ( dynámeis) afetivas da alma humana, por vezes infelizes, por vezes felizes. Descobrir explicações racionalistas do mundo cada vez mais elaboradas não exclui a paciente elaboração da estrutura não racional da alma. Coração 2 , inclinações e desejos 3 não são necessariamente elementos de ordem tirânica, os sentimentos 4 não são apenas de ordem egoísta, nem o prazer de ordem do prazer carnal. Na aproximação do Verdadeiro e do Justo, a razão é fundamental, mas não é o único: a impetuosidade das inclinações funestas se relaciona e se opõe à impetuosidade das inclinações que auxiliam a busca da Verdade, e por isso mesmo a impetuosidade se revela indispensável. Sinal do distanciamento da Verdade, o desejo reconduz à Verdade. Sinal da tentação do mal, o desejo leva à Justiça. Conhecimento e ação não existem sem prazer (hedoné) e tampouco sem pena (lýpe). Os pensadores gregos, no rastro desses mensageiros da verdade que são os poetas (Homero, Hesíodo, Ésquilo), foram, pouco a pouco, esclarecendo esta estrutura da alma em sua profundidade e sua riqueza ambígua. Esta análise psicológica e metafísica da afetividade começa com diversos pré-socráticos, é aprofundada com Platão e ganha precisão com Aristóteles. Para os pitagóricos, Platão e Aristóteles, existe uma “alma irracional” que deve ser combatida pela razão, mas também pode servir de apoio para esta última. Aqui o orgulho dos gregos na razão humana não ignora os seus limites. A alma não é só o nous e o lógos. Elas se lança (ormán, ormé) na direção desta Verdade escondida e desta Justiça que deve ser esclarecida e realizada. E este impulso não acontece sem que a alma se ligue a um “ser afetado” (páskhein) ou uma afecção (páthos). Esta ligação se faz durante o próprio impulso e através de seus resultados. Certamente a dupla páskhein-páthos pode designar uma afetividade ruim, imoral, mesmo patológica; o homem aqui sofre; é a hýbris (desmedida e insolência), e o patético de páthos. Mas, ser 1 FRÉRE, Jean. Les Grecs et Le Désir de L’Être: Des préplatoniciens à Aristote. Paris: Belles Lettres, 1981. 2 Coração: phrén, thymós, kardía, splánkhna, prapídes. Desde os pré-platônicos podemos observar a separação destas noções em relação ao substrato fisiológico. 3 Ormé, epithymía, órexis, éros, póthos. (impulso, desejo, apetite, amor, ardor) Alguns impulsos mais específicos prolongam estes impulsos fundamentais: pístis e elpís. (convicção ou crença, esperança) 4 As felizes “afecções” da alma (páthe) são: hedoné, térpsis, khará, khárma, gethosýne, euphrosýne, euthýmia, eudaimonía. (prazer, deleite, alegria, rejubilo, contentamento, bem estar, boa disposição, felicidade) As afecções designando insatisfação são: pónos, tónos, lýpe, mérimna, phrontís. (pena, fadiga, tensão, tristeza, luto, dor, inquietude, preocupação) Sobre o sentido de páthos, afecção que designa tanto os impulsos da alma quanto os sentimentos, cf. Platão, Górgias 481 c-d; Leis VII 811 c. Para Aristóteles a hedoné tem um status diferenciado, ela é o acabamento de energeîen, deixando assim de participar do grupo de problemas da alma (páthos) que caracteriza outros sentimentos (pena, tristeza, etc). Ela é aísthesis (Pol, 1253 a 14).

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    OS GREGOS E O DESEJO DO SER: DOS PRPLATNICOS A ARISTTELES1

    Texto de Jean Frre

    Traduo de Louise Walmsley

    INTRODUO GERAL

    A alma grega uma alma vibrante. A poesia grega testemunha disto, assim como inmeros

    aspectos da arte clssica. Nenhum filsofo grego ignora este fato. Seria parcial e unilateral ver na filosofia

    grega apenas uma filosofia da razo e da lei. O mpeto no apenas a marca do escndalo do egosmo. Ele

    tambm um mpeto sadio: a arte dionisaca e os heris homricos so testemunhas vibrantes disto. A

    filosofia grega est longe de desprezar esta dualidade de foras (dynmeis) afetivas da alma humana, por

    vezes infelizes, por vezes felizes. Descobrir explicaes racionalistas do mundo cada vez mais elaboradas

    no exclui a paciente elaborao da estrutura no racional da alma. Corao2, inclinaes e desejos3 no so

    necessariamente elementos de ordem tirnica, os sentimentos4 no so apenas de ordem egosta, nem o

    prazer de ordem do prazer carnal. Na aproximao do Verdadeiro e do Justo, a razo fundamental, mas

    no o nico: a impetuosidade das inclinaes funestas se relaciona e se ope impetuosidade das

    inclinaes que auxiliam a busca da Verdade, e por isso mesmo a impetuosidade se revela indispensvel.

    Sinal do distanciamento da Verdade, o desejo reconduz Verdade. Sinal da tentao do mal, o desejo leva

    Justia. Conhecimento e ao no existem sem prazer (hedon) e tampouco sem pena (lpe). Os pensadores

    gregos, no rastro desses mensageiros da verdade que so os poetas (Homero, Hesodo, squilo), foram,

    pouco a pouco, esclarecendo esta estrutura da alma em sua profundidade e sua riqueza ambgua.

    Esta anlise psicolgica e metafsica da afetividade comea com diversos pr-socrticos,

    aprofundada com Plato e ganha preciso com Aristteles. Para os pitagricos, Plato e Aristteles, existe

    uma alma irracional que deve ser combatida pela razo, mas tambm pode servir de apoio para esta

    ltima. Aqui o orgulho dos gregos na razo humana no ignora os seus limites.

    A alma no s o nous e o lgos. Elas se lana (ormn, orm) na direo desta Verdade escondida e

    desta Justia que deve ser esclarecida e realizada. E este impulso no acontece sem que a alma se ligue a um

    ser afetado (pskhein) ou uma afeco (pthos). Esta ligao se faz durante o prprio impulso e atravs de

    seus resultados. Certamente a dupla pskhein-pthos pode designar uma afetividade ruim, imoral, mesmo

    patolgica; o homem aqui sofre; a hbris (desmedida e insolncia), e o pattico de pthos. Mas, ser

    1 FRRE, Jean. Les Grecs et Le Dsir de Ltre: Des prplatoniciens Aristote. Paris: Belles Lettres, 1981. 2 Corao: phrn, thyms, karda, splnkhna, prapdes. Desde os pr-platnicos podemos observar a separao destas noes em relao ao substrato fisiolgico. 3 Orm, epithyma, rexis, ros, pthos. (impulso, desejo, apetite, amor, ardor) Alguns impulsos mais especficos prolongam estes impulsos fundamentais: pstis e elps. (convico ou crena, esperana) 4 As felizes afeces da alma (pthe) so: hedon, trpsis, khar, khrma, gethosne, euphrosne, euthmia, eudaimona. (prazer, deleite, alegria, rejubilo, contentamento, bem estar, boa disposio, felicidade) As afeces designando insatisfao so: pnos, tnos, lpe, mrimna, phronts. (pena, fadiga, tenso, tristeza, luto, dor, inquietude, preocupao) Sobre o sentido de pthos, afeco que designa tanto os impulsos da alma quanto os sentimentos, cf. Plato, Grgias 481 c-d; Leis VII 811 c. Para Aristteles a hedon tem um status diferenciado, ela o acabamento de energeen, deixando assim de participar do grupo de problemas da alma (pthos) que caracteriza outros sentimentos (pena, tristeza, etc). Ela asthesis (Pol, 1253 a 14).

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    afetado por esta dupla no essencialmente kaks pskein tinos (ser afetado por algo feio, mau, vicioso)

    (squilo, Prometeu, 1043). antes eu pskein, experimentar a boa afeco. Isto primeiramente em oposio

    ideia de agir drn (squilo, Coforas, 313), de poien (fazer) (Xenofonte, Ciropdia, 7, 1, 40), de rxai

    (praticar) (Homero, Odissia, 8, 490). Pskein no drn ou poien, mas pode se ligar a drn, poien ou rxai.

    Pskein compreende tanto o prazer (hedon) quanto a pena (lpe). E eu pskein no , necessariamente,

    hedon ou eudaimona (prazer ou felicidade): os termos thyms, pnos e tnos (nimo, fadiga e tenso) so

    significativos, pois expressam ao mesmo tempo o esforo de conquista do Verdadeiro ou do Bem e o

    sofrimento (padecimento) da alma.

    Assim uma reflexo sobre o corao, as inclinaes e as afetividades parece se impor para que se

    possa analisar as faculdades intelectuais e os comportamentos humanos de maneira melhor. Ora, como

    fizeram os filsofos gregos? Sem dvida eles partiram de um vocabulrio afetivo mais ou menos difundido,

    naturalmente disseminado pelos poetas. A poesia grega em suas origens traz uma primeira abertura sobre o

    mpeto, ora feliz, ora infeliz, que caracteriza o homem. Para Homero, se o homem nos5 (inteligncia), ele

    tambm phrn (phrnes), thmos, tor, carda, psukh, prapdes6. (diafragma, nimo, corao, alma,

    mente, afeco) Ao lado da inteligncia que calcula, o homem corao, corao que sente e se

    emociona, corao que se deixa levar (pela boa como pela m causa), corao que pressente e que adivinha

    (face s profecias, aos sinais, verdade). Corao direito, corao sensvel, corao atormentado corao

    terrvel: a poesia homrica faz pensar que a ao e o pensamento humano so fundamentalmente guiados

    pelo mpeto, o que pode ser to bom quanto detestvel. Os temas psicolgicos de Homero se encontram na

    poesia de Hesodo assim como na poesia dos trgicos. Em Homero a psych no compreende o nos. Diante

    do thmos, a alma da vida, a psych o esprito da morte. Para Homero, a psych no alma oferecida

    ao corpo, mas o corpo que perdeu a sua substncia. Em contrapartida, o homem animado pelo thmos que

    ressente, que quer, que cessa com o ltimo suspiro. A psych o sopro de vida que anima o homem em sua

    vida, e sua existncia vaporosa comea no momento da morte. Os movimentos da vontade e dos

    sentimentos j so pensados no modo psquico e s veiculam em episdios isolados as ressonncias

    fisiolgicas: phrn/phrnes, os pulmes, tor, o corao, representam mais frequentemente

    manifestaes da vontade, do sentimento e da intuio do que os rgos do corpo; quanto ao thmos, o

    corao, ele no comporta nada alm do vapor que exala do sangue recm derramado, ainda quente7.

    Esta dualidade presente na poesia, que mostra o mpeto por vezes cego e por vezes sensvel ao justo

    e ao verdadeiro, ser elaborada pouco a pouco na filosofia grega. Antes das anlises realizadas por Plato do

    thmos e do ros, antes das anlises aristotlicas do rexis, vrios pr-socrticos j tinham se empenhado

    em esclarecer alguns aspectos da estrutura afetiva da alma. Sem dvida os filsofos pr-socrticos parecem

    dedicar-se prioritariamente ao estudo da phsis, do Ser e das coisas do mundo. Entretanto, alguns entre eles

    j tinham considerado dar algum tipo de status s potncias obscuras da alma, status estes que sero

    elaborados de maneira mais sistemtica por Plato e Aristteles.

    5 Sem dvida nos-nos no representa sempre a inteligncia para Homero. Ele pode ser o corao (Odissia, VIII, 78; Ilada, I, 363; II, v. 192), o desejo (Ilada XXVI, v. 149) ou mesmo a vista (Ilada, X, v. 226). Contudo, o sentido de inteligncia frequentemente atestado (Odissia, X. v. 240. XX. v. 367, etc). Cf. K. VON FRITZ, Nos et noen in the Homeric Poems, Class. Phil, 40, 1943, p. 79-92 et H. BELINE, Lexicon Homericum, p. 1162. 6 Cf. MAGNIEN, Quelques mots du vocabulaire grec, REG, 1927. p. 117-141. E tambm W. MARG, Der Charakter in der

    Sprache der frhgriechischeb Dichtung, Wurzburg, Triltsch, 1938. 7 B. SNELL e R. ONIANS mantiveram principalmente o aspecto fisiolgico de phrn/phrnes, de thmos, de tor em

    Homero. Mas frequentemente o sentido psicolgico do corao que Homero expressa ao utilizar estes vocbulos. R. ONIANS, Origins of European Thought, Cambridge, 1954, p. 23-89. B. SNELL, Die Entdekung des Geistes, Hambourg, 1946, p. 22-27.

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    Segundo Homero, uma primeira dimenso das inclinaes e das afetividades o corao (thyms),

    na medida em que ele deseja ir em direo ao justo e ao verdadeiro e que ele sente tanto os prazeres

    quanto o sofrimento. Inclinaes nobres, inclinaes duvidosas, alegrias e dores encontram no corao a sua

    origem. Os pr-socrticos retiveram e elaboraram esta dimenso afetiva do homem, dimenso esta que

    Plato, mais tarde, ir atribuir um papel fundamental. O termo est presente desde Parmnides (fragmento

    I, v. 1, DK 28)8. Ele tambm se encontra no fragmento 85 de Herclito. Encontramos este termo em diversos

    momentos da obra de Empdocles; se os fragmentos 128 e 137 o utilizam no sentido de vida, o fragmento

    145 v neste termo o verdadeiro corao. O thyms tem o seu lugar no pensamento de Demcrito

    (fragmento 236 e 298), no pensamento do sofista Antifonte (fragmento 58), na obra de Epicharmus

    (fragmento 53). Todos estes textos nos mostram que o thyms, no sentido de belo impulso, de corao

    sensvel ao Justo e ao Verdadeiro (ou Injustia), j , segundo alguns pr-socrticos, uma disposio

    essencial do homem. Claro que se trata apenas de certa orientao do psiquismo: no se fala ainda de uma

    parte precisa da alma. Mas isto mostra que, atravs da infeliz afetividade, representada normalmente pelo

    thmos/clera, os pensadores pr-socrticos colocaram na esfera da psych, ao lado da razo, outras

    potncias no racionais, e que, no entanto, so indispensveis para que o homem possa se elevar no

    caminho do Verdadeiro e do Justo9.

    Outra dimenso afetiva do psiquismo humano, segundo Homero, o corao (phrn/phrnes): o

    julgamento da conscincia; do sentido do pulmo ou das vsceras passamos ao sentido de corao

    direito10. Aqui nos aproximamos do nos, sem que se trate especificamente do esprito lgico. Na Ilada,

    diante dos bons conselhos de Calchas, Agamnon se levanta. das maiores tristezas. Terrivelmente o seu

    corao (phrnes) se encheu de uma fria negra11. Profeta da infelicidade, jamais anunciastes algo que me

    agradasse. Em toda ocasio o teu corao (fres) encontra felicidade em predizer a infelicidade12. Agamnon

    canta o elogio de Criseida: Eu prefiro a ela que a Climnestra, minha legtima esposa. No, ela no a

    ultrapassa em nada: na estatura ou no porte, no esprito (phrnas) nem na obra (rga)13. Corao, alma,

    mas tambm esprito, eis o que com frequncia o phrn/phrnes homrico, implicando as inclinaes, as

    afetividades e em certa medida, a compreenso intuitiva. No prolongamento da viso de Homero, os pr-

    socrticos deixaro um lugar para o corao enquanto potncia de conhecimento. Evoquemos o fragmento

    114 de Empdocles: , amigos! Eu sei que a verdade se encontra nas palavras, nas palavras que

    pronunciarei. Mas ela muito difcil para os homens, pois o ataque da persuaso sobre o esprito deles ep

    phrna terrvel14. Em seu distanciamento do verdadeiro, o homem, segundo Empdocles, tende a ir na

    direo da verdade qual ele aspira, e isto no acontece sem esforo. O saber, para Empdocles, no se

    constitui apenas da razo.

    Assim, o pensamento filosfico grego, antes de Plato, no se desenvolve sem dar a devida

    importncia, ao lado da razo, parte psquica que implica os poderes afetivos e que se encontra servio

    do saber: o corao (thyms-phrn-phrnes) e os sentimentos que, ao se juntar, intervm na abordagem

    do justo e do verdadeiro. Tanto guerreiro quanto adorador, tal , em via direta, o homem grego, tal o

    artista grego, tal tambm o filsofo grego, desde o incio da reflexo filosfica.

    8 DIELS KRANZ. Die Fragmente des Vorsokratiker. Berlin, 7a edio, 1954. 9 ONIANS se mostra como um intrprete que materializa demais os textos de Homero no que concerne o thmos. 10

    ONIANS aqui ainda se revela como um leitor que materializa demais o sentido de phrn. 11

    HOMERO. Ilada, I, 103 : mneos d mna phrnes amphimelainai pmplant. P. MAZON traduz : terrivelmente as suas entranhas se encheram de uma fria negra. Mas o contexto fisiolgico est longe de excluir a significao psicolgica. 12 Ibid, 106-107. 13

    Ibid, 113-114. 14 Empdocles, fragmento 114.

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    Aquilo que verdadeiro para os filsofos da aurora do pensamento grego, vai ganhar preciso com a

    investigao platnica. Os poderes afetivos da alma a servio do Bem e do Verdadeiro so auxiliares

    indispensveis do nos. Homero fazia frequentemente a oposio entre o psiquismo do nos e o phrn-

    thyms-tor-karda-psych. Mas Plato, alm de Homero, Hesodo, os pr-socrticos e Scrates, faz

    referncia tambm tragdia. Os poetas trgicos, na representao do desencadeamento das paixes,

    divinas e humanas, se mostram sensveis s mltiplas foras afetivas que conduzem o homem. Na Odissia e

    na Ilada, o corao o corao propenso ao retorno ptria original. Na tragdia o corao o corao que

    fica tenso pela liberdade a ser recuperada: h uma nfase prometeica que domina o corao do heri em

    direo justia, seja em squilo com Prometeu diante de Zeus ou com os gregos diante de Xerxes, seja em

    Sfocles com Antgona diante de Creonte, seja em Eurpedes com Media diante de Jaso. Na anlise dos

    ltimos aspectos do mpeto no racional do psiquismo em busca da liberdade a ser recuperada, alguns

    temas trgicos continuam o que Homero, Hesodo, os pr-socrticos e Scrates j tinham comeado a

    perceber.

    A tragdia, assim como a poesia de Homero e Hesodo e as reflexes dos Prplatnicos, est no

    horizonte das anlises platnicas das potncias afetivas da alma.

    Ao aprofundar a estrutura da psych, Plato, na Repblica, considera uma tripartio da alma, que

    parece se opor bipartio dos dilogos anteriores. Esta estrutura tripartida da alma (nos-thyms-

    epithyma) parece importante em todos os livros da Repblica, uma vez que ela constantemente est ligada

    ao conceito de justia. Ora, depois da Repblica, outros dilogos parecem ignorar esta diviso. Portanto a

    tripartio se reencontra no Fedro, verdade, mas sem que o nome de thyms seja mantido. Nos dilogos

    da velhice, vemos de maneira ainda mais clara a tripartio da alma expressa no Timeu, e aqui voltamos a

    encontrar o vocbulo thyms. Assim, o leitor de Plato levado a se perguntar a significao desta parte

    desconcertante da alma, que primeiramente parece estar ausente, em seguida aparece repentinamente,

    para depois desaparecer e reaparecer.

    So inmeros os problemas suscitados pelo enigma do thyms. Inicialmente, bem antes da

    Repblica, esta parte da alma no j est presente na anlise platnica da psych? De outro lado, qual o

    lugar reservado para o thyms depois da Repblica? Estas duas questes constituem um problema de

    evoluo e um problema de coerncia no interior do platonismo. Enfim, qual o papel do thyms na

    concepo platnica do homem? Os tradutores sempre estiveram desconfortveis e acabaram empregando

    cada vez termos diferentes na tentativa de esclarecer esta noo: corao, coragem, clera. O que abrange

    verdadeiramente este poder da alma, que parece por vezes ligado aos desejos mais excessivos, e por vezes

    parece ser uma potncia em combate a servio da razo?

    Aprofundar tal noo em Plato nos leva a colocar novamente o thyms na sua relao com as

    demais potncias que expressam, segundo Plato, o dinamismo da alma. Um estudo sobre a relao entre

    epithyma e thyms em Plato se impe. Se thyms um termo relativamente bastante utilizado por Plato,

    epithyma, o desejo, o ainda mais. Como funciona esta relao? H apenas uma oposio entre o desejo

    egosta-cruel-carnal que a epithyma e a alma como thyms e lgos? Ou ser que no deveramos

    considerar uma dualidade na epithyma, comparvel dualidade do thyms? Como h, diante do thmos

    bestial do tirano, um thyms que se pe a servio da razo, no haveria uma epithyma da verdade diante da

    epithyma do depravado ou do tirano? Em que medida e epithyma da verdade se relaciona com o thyms da

    verdade e da justia?

    E o que poderamos dizer de outra noo da lngua grega que parece naturalmente se aproximar de

    epithyma: o conceito de prothyma, zelo fervoroso? Eis trs vocbulos com o mesmo radical: thyms,

    epithyma e prothyma, que parecem se ligar, se de fato as trs noes podem carregar um aspecto comum

    do dinamismo e correlativamente uma afetividade feliz ou infeliz a servio do Verdadeiro.

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    O estudo do papel do thyms, da epithyma e da prothyma em Plato nos leva a considerar se as

    inclinaes e a atividade prazerosa ou dolorosa que se ligam no se apresentariam ainda sob outros

    aspectos essenciais para uma abordagem do Belo e do Verdadeiro. Nesta rea, as anlises do Banquete e do

    Fedro so fundamentais. O Banquete relaciona reiteradamente epithyma e ros. Um estudo sobre as

    inclinaes e a afetividade na obra de Plato deve se elucidar nas relaes dos conceitos de epithyma, de

    thyms e de ros, pois estes so os movimentos que conduzem os seres humanos na busca do Belo. O ros

    do Banquete seria apenas um episdio na anlise platnica das inclinaes? Ou haveria uma relao

    fundamental, desde antes do Banquete, que relaciona a epithyma e o ros como inclinaes naturalmente

    inscritas j na natureza do animal, e principalmente caracterstica da natureza humana? Estudar em Plato o

    que estas inclinaes e a afetividade trazem de slido na abordagem das Realidades eternas passa por este

    questionamento acerca do que religa thyms, epithyma e ros.

    A reflexo sobre ros conduz a estudar mana. No Banquete, como no Fedro, face mana do

    homem doente, h a mana dos homens inspirados: profetas, poetas ou filsofos deliram algo de divino.

    Uma vez mais, o afetivo est a servio do racional. Desejar contemplar o Belo em si, estar perdidamente

    perturbado diante do Belo em si, desejar se projetar em belas realizaes, em todas as dimenses capitais

    da psych, e sem dvida to capitais quanto a prpria razo.

    Do thyms, da epithyma e do ros concebidos como poderes afetivos da alma conquista do

    Verdadeiro, do Belo e o Justo, devemos passar por certo nmero de especificaes destes termos. Segundo

    Plato, as inclinaes e a afetividade se diversificam inicialmente no nvel das qualidades correspondentes

    da psych ou no nvel das operaes que se unem: thyms se liga a thymoeids (corajoso, irascvel), a t

    thymoeids (temperamento fervilhante, temperamento irascvel) ; epithyma se liga a desejar

    (epithymen), a desejoso (epithymets e epithymetiks); prothyma se liga a prothymesthai; ros se liga a

    ern (amar), a erasts (amante). Um grande nmero de vocbulos marcam indiretamente, em sua dupla

    orientao, a presena por vezes rgida e por vezes frgil das inclinaes e da afetividade na psych.

    Mas ainda h muito mais. Muitas outras orientaes da psych so ainda a marca desta presena

    capital de uma boa afetividade a servio do Verdadeiro no homem. H a epimleia15, a aplicao (cuidado)

    (composta de ep, que expressa a inclinao em direo a algo e de mlein que significa levar a srio). H

    spoud, o zelo (spoudaos: zelado; spouddzein: ter zelo por)16. As duas atividades podem ser associadas17.

    Bastante saliente nesta rea do desejo e da aspirao a metfora, to frequente, da alimentao: o sbio

    se nutre de verdade18. Entre as formas mais caractersticas da afetividade a servio do racional encontramos

    o sentimento de esperana (elps), dominante no Fdon, e o arrependimento (pthos), dominante no Fedro.

    Por toda a obra de Plato, as inclinaes e os sentimentos que formam o homem constituem, alm da razo,

    um aspecto capital da alma humana.

    H, por outro lado, aspectos de tendncias e afetividade que poderiam parecer associados ao

    impuro, mas que, no entanto, fazem parte da sanidade mesma da alma. Consideremos a clera (orgu)

    enquanto reao afetiva. A clera poderia parecer apenas uma m afetividade. Mas este apenas um dos

    seus aspectos. A anedota de Lencio, filho de Aglaios, no livro IV da Repblica19, um testemunho da bela

    orgu. Ele possui uma alma forte, autenticamente corajosa, ele sabe se repreender ou pode se repreender.

    15 PLATO, Fdon, 107 b-c. Mas devemos, diz Scrates, considerar tambm o seguinte: se a alma for imortal, exigir cuidados de nossa parte (epimeleas de detai) no apenas nesta poro de tempo que denominamos vida, mas pela totalidade do tempo 16

    Fedro, 248 b. 17 Leis, V, 740 d. 18

    Fdon, 84 a. 19 Repblica, IV, 439 e.

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    A clera a servio da justia uma clera s e bela. Scrates no se isenta da ira cruel, no mais do que do

    sentimento de desprezo em relao injustia. As inclinaes e as afetividades agressivas podem se

    expressar nas metforas guerreiras. Combater pela verdade e pela justia20. Tomar nas prprias mos a

    busca do verdadeiro21. Aqui, ao lado da energia das inclinaes, que desejam, ns encontramos a energia

    das inclinaes que lutam e a potncia do sentimento que mistura. O sbio platnico no nada mais do

    que um puro dialtico.

    Este corao, que conduz a paixo do justo e do verdadeiro, vibra constantemente. Se no fosse a

    profunda ligao que existe entre a psych e o sma, como poderamos entender este corao? A alma que

    se desperta para a verdade continua sendo uma alma modelada pela matria. este ponto que algumas

    anlises psico-biolgicas do Timeu viro especificar: quando o thyms da Repblica reaparecer, Plato far a

    correspondncia, no nvel corporal, com a carda. Em 70 a-b, Plato afirma que: A parte da alma que

    participa da coragem e do ardor guerreiro, aquela que deseja a vitria, foi alojada perto da cabea, entre o

    diafragma e o pescoo. Isso para que esta parte da alma possa escutar a razo e, segundo ela, conter pela

    fora os desejos... Quanto ao corao, n de vasos e fonte do sangue que circula rapidamente em todos os

    membros, este foi colocado, por assim dizer, no posto de sentinela.22 Para Plato, h uma unio entre alma

    e corpo, unio esta que responsvel pelos limites da condio humana. Entre desejos impuros e razo, h

    uma bela energia nesta ligao corpo-alma que, longe de importunar a alma, acaba por ajud-la e apoi-la. O

    nobre thyms se enraza em uma nobre carda. Para Plato, a razo no homem no nunca a razo pura. O

    desejo de escapar e a energia contra a impureza so to essenciais quanto a razo.

    Ultrapassemos a interpretao demasiadamente e exclusivamente intelectualista da obra de Plato.

    Filosofia da energia, filosofia do sentimento, filosofia do corao tanto quanto filosofia da razo, isto o que

    nos parece que deve ser reconhecido como pensamento platnico. Negligenciar em Plato as inclinaes,

    assim como a afetividades a servio do Verdadeiro, do Belo e do Bem, nos levaria a desprezar uma das

    orientaes essenciais do prprio platonismo.

    O que verdadeiro para os gregos da aurora e do pensamento clssico, o que verdadeiro para

    Plato, continua sendo verdadeiro depois de Plato? As inclinaes e afetividades, em sua orientao tanto

    infeliz quanto feliz, em sua profunda impetuosidade, continuaro no centro das anlises filosficas da alma

    depois de Plato?

    Para Aristteles como para Plato, necessrio elaborar uma psicologia da afetividade. O mpeto da

    alma no apenas o mpeto perigoso, mas ainda o mpeto a servio do verdadeiro e do justo.

    Nas ticas, na Poltica, na Retrica, no Tratado da Alma, na Metafsica, a questo da tendncia e da

    afetividade na abordagem do verdadeiro saber e na economia da vida justa no seio das cidades justa se

    mostra como uma preocupao essencial. Neste estudo, um novo conceito torna-se proeminente: o

    conceito de rexis, de desejo, na sua relao com o thyms (paixo), com a epithyma (apetite), com o

    bolesis (desejo, vontade) e com a proaresis (escolha). O termo rexis pouco utilizado antes de Aristteles:

    nem na lngua grega em geral nem na lngua dos filsofos com exceo de Demcrito o termo no parece

    ter um papel importante. A que questo responde esta nova denominao? A que responde esta nova

    estruturao da natureza da psych? Por que desvalorizar o thyms, ros, pthos e valorizar o rexis? Assim,

    a filosofia de Aristteles se mostra, mas de uma maneira nova, atenta tanto importncia do dinamismo da

    alma quanto ao rigor da razo. O termo central rexis parece mostrar o quanto os desejos, sentimentos de

    prazer e de dor que se misturam, so essenciais na abordagem das solues para as questes fundamentais

    20 Apologia de Scrates, 32 a. 21

    Gorgias, 502 b. Sofista, 239 c. 22 Timeu, 70 a-b.

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    da moral e da metafsica. Alm disso, o desejo enquanto movimento se inscreve como um dos aspectos

    essenciais que explicitam as noes metafsicas de potncia e ato. Filosofia lgica, a filosofia de Aristteles

    se abre na direo do dinamismo que leva o ser vivo a se realizar e que conduz o homem, com o prazer e a

    dor que se relacionam, na direo do verdadeiro e do justo. Uma vez mais na filosofia grega a razo se alia a

    algo diferente da prpria razo. Uma vez mais, as inclinaes e as afetividades da alma parecem ser to

    fundamentais quanto a razo, para o homem, na realizao de sua prpria natureza. Filosofia do vigor tanto

    quanto do rigor, este parece ser o pensamento de Aristteles.

    Com os pr-socrticos, Scrates, Plato e Aristteles, a filosofia grega elabora pouco a pouco a

    essncia da alma; os seus poderes afetivos (phrn-thyms-epithyma-ros-rexis) se mostram como sendo

    essenciais na conquista do justo e do verdadeiro. A alma no , para eles, uma simples oposio entre a

    razo admirada e as faculdades no lgicas, cuja manifestao se ligaria hbris. De Nietzsche a Heidegger,

    de Rohde Dodds23, vrios intrpretes do pensamento grego j tentaram mostrar como os filsofos gregos

    penetraram continuadamente a profundidade da alma. Para isto eles dependeram da poesia, da tragdia, da

    medicina, assim como das religies misteriosas. Tentemos aqui encontrar este lento caminho no

    aprofundamento da natureza afetiva da alma pelos gregos, desde os pr-socrticos at Aristteles. Os

    desejos no foram para estes pensadores desejos vos, que nos afastam da sabedoria e do Ser. H uma

    ambiguidade nas inclinaes que permite aos filsofos a valorizao de um certo nmero de tendncias da

    alma. Ns nos esforaremos para seguir, dos pr-socrticos a Aristteles, a lenta elaborao do que implica a

    noite da alma. Assim, esperamos explicitar todo um aspecto da perspectiva grega sobre o conhecimento, por

    vezes vislumbrado, mas rapidamente abandonado pelos intrpretes mais cuidadosos em orientar o

    pensamento grego na direo de um conhecimento racional do mundo.

    23 F. Nietzsche considerou o problema de uma afetividade s episodicamente e mais intuitivamente do que de maneira elaborada. Cf. La naissance de la philosophie lpoque de la tragdie grecque, captulo VII, Herclito. E. Rhode considerou mais a psych em relao vida humana aps a morte do que em relao a nossa vida mesma: Psych, Payot, trad. A. Reymond, 1952. M. Heidegger nos seus ensaios filolgicos e metafsicos sobre a verdade abordou momentaneamente o impulso no racional da alma em direo ao lgos no seu estudo sobre as implicaes de omologen em Herclito (Essais et confrences, trad. A. Prau, Paris, Gallimard, 1958, p. 262). E. R. Dodds principalmente atento aos aspectos arcaicos da afetividade subsistente na poesia e filosofia gregas: Les grecs et lirrationnel, trad. M. Gibson, Paris, Aubier, 1965. Nosso propsito aqui o de abordar o conjunto de textos filosficos que, desde os pr-platnicos at Aristteles, em sua relao com a poesia, identificam o bom mpeto do homem a servio do verdadeiro e do justo, assim como os sentimentos de satisfao que da advm.