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Tradução Guilherme Miranda

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Tradução Guilherme Miranda

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título original Sadie Walker is Stranded© 2010 by Madeleine Roux © 2016 Vergara & Riba Editoras S.A.

edição Fabrício Valério e Flavia Lago editora-assistente Marcia Alvespreparação Marina Constantinorevisão Raquel Nakasonedireção de arte Ana Soltdiagramação Juliana Pellegriniprojeto gráfico Juliana Pellegrini arte de capa Brian Allen

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Roux, MadeleineSadie contra os zumbis / Madeleine Roux; tradução Guilherme Miranda.– São Paulo: Vergara & Riba Editoras, 2015. – (Coleçãozumbissaga)

Título original: Sadie Walker is stranded

ISBN 978-85-7683-952-1

1. Ficção juvenil 2. - Ficção I. Título. II. Série.

15-10596 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866vreditoras.com.br | [email protected]

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“Você vai voltar para o lugar de onde veio.”– William Golding, O senhor das moscas

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– Não posso fazer isso.– Mas Jason…– Simplesmente não tem público. Ninguém vai querer ler, en-

tão ninguém vai publicar, muito menos, muito menos eu. Desculpa, Sadie, mas não vai rolar. As imagens são incríveis, acho que as me-lhores que você já desenhou, mas é muito cedo. Cedo demais.

– Você disse que as coisas estavam mudando – argumentei, com a voz um pouco chorosa. – A gente podia publicar uma edição curta, só para fazer um barulho. Talvez ver se chama alguma atenção…

– Não vai chamar. É uma perda do meu tempo e, sinto muito, mas do seu também.

Jason era um gênio, um mão de vaca e, às vezes, um idiota. Igual à maioria das pessoas bem-sucedidas. Mas achei que ele iria topar, achei mesmo. Meus desenhos estavam espalhados na frente dele, pai-néis e páginas inteiras com balões de diálogo vazios onde entrariam as palavras. Bom, de acordo com a última decisão de Jason, vamos corrigir para: onde nunca entrariam as palavras. Com seu sinal verde, esse teria sido o trabalho de outra pessoa, de um escritor. Já eu? Eu sou apenas Sadie Walker, ilustradora. Eu cuido da arte – da arte que vinha “cedo demais” e que, aparentemente, ninguém queria ver.

Pelo menos Jason tinha dado uma boa olhada nas páginas. Ele tentou. Seus dedos estavam manchados de grafite quando soltou

UM

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os desenhos e passou a mão no cabelo grisalho que começava a rarear. Com uma risadinha entre suspiros, juntei as páginas e as enfiei na minha pasta. Não sei direito o que estava esperando. Afinal, a vida não vinha sendo uma série de triunfos nos últimos tempos. Conseguir comer e não ficar com cheiro de esgoto já eram uma grande realização.

Eu me virei para sair, com o canto de um dos meus desenhos para fora da pasta: um machado sujo de sangue me espiando feito um olho albino que pisca.

– Bom, obrigada mesmo assim – eu disse. – Talvez ano que vem.– Acho que não, hein.O apartamento de Jason, seu “estúdio”, ficava no extremo oeste

do que havia sobrado da Colina do Capitólio, numa casa aconche-gante e dilapidada de arenito vermelho no lado leste da avenida Melrose. Todo o lugar fedia a carne moída por causa do restaurante abandonado no andar de baixo. Ele falou algo que não entendi enquanto fechava a porta e descia o corredor estreito até as escadas que davam para a despensa do restaurante. Ela estava vazia agora, bolorenta e suja, com manchas de café e ketchup de meses atrás. Ninguém comia lá desde setembro, quando começou a Epidemia. As cadeiras, mesas e fritadeiras ainda estavam reviradas desde o início da confusão, e as portas da cozinha continuavam abertas, mos-trando as prateleiras e bancadas bagunçadas e saqueadas atrás delas.

Com o portfólio de desenhos junto ao peito, voltei para a rua. O vento forte soprou alguns panfletos, que desceram rolando pela Melrose; estava frio para abril, mas nada insuportável. Março foi muito pior, mais frio, e a comida tinha menos gordura, deixando toda gota de sangue nas veias mais lenta. Nada como a fome para agravar o frio. Havia duas linhas de ônibus funcionando agora e os panfletos diziam que poderia haver três até o fim do mês. Como saber? Duas eram tudo que tínhamos e mesmo isso parecia um luxo.

Saindo do estúdio de Jason, refleti sobre a minha sorte de ainda

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ter algo, mesmo que pequeno, para me lembrar do que eu era an-tigamente. “Ilustradora” não significava muito agora. Minha ami-ga Andrea zombava que eu levava minha antiga profissão a sério demais, que a única profissão que importava agora era a de sobre-vivente. Mas eu ficaria louca, completamente maluca, sem aquelas páginas, mesmo se sobreviver fosse a única coisa pela qual valesse a pena lutar.

De onde eu estava, a vista da costa era praticamente aberta. O Obelisco Espacial, obviamente, ainda estava de pé, triste e abando-nado contra o céu azul-escuro, e era um dos poucos arranha-céus que não tinha sido derrubado. Mas quarteirões inteiros da cida-de haviam desaparecido, incendiados em meio ao pânico ou de-molidos depois para dar lugar a hortas e currais. Antigamente, as ruas tinham cheiro de chuva e minhocas, com um vento ocasional que trazia o cheiro do café ou das rosquinhas de alguma loja. Agora, o aroma era mais de Tombstone: A justiça está chegando do que de Sintonia de amor, um cheiro de terra, esterco e decomposição apagado pelo cheiro de chuva limpa.

A essa hora da madrugada – quatro em ponto, para ser exata –, Seattle tinha um tom sinistro de púrpura matinal, feito um rubor en-vergonhado, e era fácil ver por quê. Em meio ao caos, as cidades gran-des foram as que mais sofreram. Era tanta gente, tantas coisas para destruir e queimar, que era inevitável que as consequências fossem mais devastadoras aqui. Do lugar onde eu estava, a quilômetros da costa, ainda dava para ver o cruzeiro Golden Princess no porto, se-miafundado, como uma minicidade mergulhando lentamente para a morte, uma Atlântida de ouro branco. O boato na época era que todos a bordo do cruzeiro haviam morrido e, além disso, que al-guém a bordo era o portador, o transmissor morto-vivo que espa-lhou a Epidemia para Seattle.

Olhando para ele agora, com todas as janelas quebradas e a popa em ruínas, parecia uma maquete de um filme, um Titanic represen-tado numa escala menor e modernizada.

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A essa hora, os ônibus tinham começado a passar, mas fui a pé mesmo assim. De carro, daria um trajeto de uns três minutos até o mercado, só que ninguém dirigia mais. Toda a pouca gaso-lina ia para os ônibus. Com o vento forte contra o corpo, segurei a pasta e meus desenhos mais perto do peito. Eles eram valiosos – pelo menos para mim –, um plano detalhado, um projeto a que eu estava me dedicando havia meses. Enfiei o canto da página com o machado de volta na pasta e enrolei o cachecol em volta do pesco-ço, preparando-me para os quase dois quilômetros de caminhada até o mercado. As filas já estariam enormes, mas eu tinha um so-brinho faminto esperando no apartamento, ainda adormecido se houvesse alguma justiça no mundo. Eu não tinha como ter certeza se havia.

Alguns meses antes, uma caminhada tranquila pela cidade até o mercado teria sido impossível. Na época, o pânico da Epidemia ain-da estava a pleno vapor. As calçadas agora vazias e sujas estavam co-bertas por cadáveres em decomposição, alguns só esperando para se levantar e ter sua segunda chance. Havia muitos vira-latas também, alguns dos quais tinham sido mordidos, mas o vírus parecia afetar os animais de forma diferente. Imagino que seus corpos não conse-guissem lidar com ele como o nosso lidava. Um cachorro mordido seria uma ameaça por algumas horas e, depois, tombava no chão. Algumas partes da cidade ficaram parecendo o aterro da Cruella de Vil.

Infelizmente, a caminhada até o mercado me deu tempo de sobra para pensar sobre a reação indiferente de Jason ao meu trabalho. Ele não era um desconhecido para mim, e eu vivia aparecendo lá com de-senhos novos para ele avaliar. Meses antes, que mais pareciam qua-renta milhões de anos atrás, Jason tinha sido meu chefe, meu editor. Ele era o único que restava no prelo e, nos dias de hoje, um dos três únicos prelos na cidade. E, quando falo em prelo, estou falando literal-mente de um prelo de aço do século XIX. Tudo que ele produzia agora era à mão, meticulosamente colocando tinta nos tipos e imprimindo, e todas as ilustrações eram feitas por esta que vos fala. A eletricidade

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ainda era precária, por isso era mais seguro simplesmente usar o prelo antigo. Normalmente, fazíamos o que sempre tínhamos feito: livrinhos infantis exóticos que falavam sobre esquilos e lontras com vontade de aventura. Ainda existiam criancinhas no mundo e elas ainda precisa-vam de entretenimento.

Mas Jason tinha uma regra, que era a regra que tentei quebrar hoje: nada pesado.

Pelo menos por um tempo, fez sentido nos concentrarmos em temas positivos. Quando a mãe, o pai, a irmã ou o irmão do leitor ti-nha sido comido por um vizinho ou morrido num incêndio, era bom ter uma historinha escapista sobre uma anêmona-do-mar astuta e sagaz vencendo um tubarão com a inteligência. Mas eu tinha espe-ranças de que Jason estivesse disposto a tentar algo novo e ousado. Por isso, embora meu sobrinho, Shane, continuasse a me ajudar a criar histórias bonitinhas para vender para os pais em troca de roupas ou verduras, eu estava levando uma espécie de vida dupla, desenhando o que realmente queria desenhar.

Senti um calafrio de decepção, seguido por um tremor no lábio. Eu tinha levado meses de noites em claro para terminar os pai-néis, debruçada sobre uma fileira de velas, destruindo o que havia sobrado da minha visão para desenhar e pintar uma história em quadrinhos voltada para o público adulto. Eu achava que a história poderia dar esperança num sentido diferente. Mas talvez Jason ti-vesse razão. Era cedo demais – cedo demais para contar histórias sobre a luta contra os mortos-vivos, sobre a dor da perda e a dor maior de ser traído pelos vivos.

Enquanto eu descia a avenida Boren, a cidade ia ganhando vida devagar. As lamparinas atrás das janelas emitiam luzes baixas e alaranjadas enquanto homens e mulheres de galochas e luvas sem dedos saíam de casa para cuidar das hortas comunitárias. Era um trabalho árduo manter uma horta de inverno, e era o tipo de serviço que obrigava as pessoas a sair da cama em horários cruéis para es-palhar fertilizantes ou consertar canteiros erguidos para beterrabas

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e repolhos. Descuidos demais ou atrasos demais significavam que alguém passaria fome.

Sobre as hortas, afixados nos postes e janelas, ficavam placas de madeira e pichações. eles não são seus parentes se estiverem infectados, dizia uma. faça a coisa certa: avise as autoridades, e ou-tra: obedeça o toque de recolher.

Um panfleto de rua rolou pela calçada na minha direção, es-tacionando no meu tornozelo. Parei e me agachei para pegá-lo. O folheto, como sempre, era chamativo: um papel verde vivo com a fonte preta em negrito, como um panfleto de uma boate de strip-tease. Impossível não ver. Li enquanto caminhava, para saber das últimas notícias. Havia programas de rádio e até alguns de televi-são, mas eu e Shane não estávamos entre os que podiam pagar por eles. A maioria dos cidadãos dependia dos panfletos de rua para re-ceber as notícias, e os prelos que os confeccionavam se orgulhavam imensamente de seu trabalho. Era um jornalismo à moda antiga. Nada de aniversário de celebridades ou overdose de atrizes, nada de presidente de empresa enganando seus funcionários honestos, apenas fatos: previsão do tempo para a agricultura, locais onde al-guém estava doando roupas ou comida…

E, claro, havia sempre pelo menos uma matéria sobre os ma-níacos do povoamento. Eles preferiam o termo “repovs”, ou “re-povoacionistas”: eram um tipo de grupo religioso ou social (alguns chamavam de seita) que sentia um chamado divino para repovoar a cidade e – imagino que em suas mentes perturbadas – o mundo. O panfleto fez a gentileza de se referir a eles como repovs, mas todos que eu conhecia os chamavam apenas de coelhos, porque tudo que eles pareciam querer era se fechar em alguma toca e trepar, trepar, trepar. E, durante meses, foi exatamente o que fizeram, até o con-selho eleito pela cidade ceder à pressão pública e mandar que eles parassem com aquilo. Os coelhos gostavam de se vangloriar do nú-mero de mulheres grávidas que tinham. Então, a cidade criou co-ragem e falou que esses bebês causariam um grande prejuízo aos

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cofres públicos. Agora, os coelhos não se sentiam bem tratados e estavam ameaçando partir, levando consigo uma mão de obra muito necessária para a cidade, para nós.

Eu ainda estava lendo o panfleto quando cheguei ao Pike Place. A descida do morro para o mercado de peixe estava escorregadia por causa da chuva nevoenta e quase saí voando para dar de cara com a fila que esperava por comida. Não era nem cinco da madrugada e a fila já se estendia até a Primeira Avenida. Mas tudo bem, eu es-tava esperando por isso. Com uma sacola grande num braço e meu portfólio cheio de desenhos no outro, parei bem perto do estranho à minha frente. Não dava para reconhecer ninguém debaixo dos agasalhos, gorros e cachecóis. Mesmo sendo abril, um vento ge-lado subia da costa àquela hora da madrugada. Devíamos parecer uma multidão de estivadores, relojoeiros e engraxates, um lúgubre cartão postal dickensiano de pessoas famintas sofrendo para ganhar a vida. Mas não era 1855, era 2010. E não estávamos nos recuperando de uma epidemia de cólera, mas da Epidemia.

Desde a Epidemia, porém, as coisas tinham se estabilizado. Estabilizado. Era a palavra que os panfletos de rua gostavam de usar: “A situação foi estabilizada”. O medo era de que a partida dos coelhos perturbaria esse equilíbrio. Se eles ficassem, foderiam com tudo e, se partissem, também seriam um problema. Essas pessoas atraíam hostilidade e agressividade como um cadáver atrai larvas. Eu não conseguia entender. Será que eles não podiam parar um pouquinho? Haveria tempo para fazer filhos, e eu não entendia o porquê de tanta pressa.

– Estabilizada o caralho.O homem que tinha entrado na fila atrás de mim havia lido o

panfleto por sobre meu ombro. Ele tinha um forte sotaque polonês. Abri um sorriso fraco.

– Poderia ser melhor – eu disse, dando de ombros –, poderia ser pior.

Talvez fosse verdade, pelo menos em Seattle, que quase não era

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mais chamada por esse nome. Em setembro do ano anterior, quan-do a Epidemia começara, um grupo de bombeiros decidiu assumir o comando. Só havia uma forma de salvar a cidade, pensaram eles: manter os vivos dentro e os mortos-vivos fora. Eles fecharam a cidade, recrutaram o maior número possível de voluntários e, com uma quantidade incalculável de sacos de areia e blocos de cimento, transformaram Seattle no que é hoje, a Cidadela. O canal ainda está aberto, uma escassa frota de barcos continua entrando e saindo, mas por terra só existe uma rota para dentro e para fora, e ela é protegida o ano inteiro, dia e noite. Em dezembro, o fechamento da cidade foi concluído e, lá pelo começo de fevereiro, os panfletos de rua declararam que os últimos mortos-vivos tinham sido retirados, de uma vez por todas, se tudo desse certo. Ninguém sabia dizer quais eram os planos para a terrível terra de ninguém do lado de fora da cidade. No entanto, Seattle – a Cidadela – tinha se tornado um abri-go, um enorme campo de refugiados lutando para sobreviver.

Olhei para o homem à minha frente – imaginei que fosse um ho-mem, mas, sob a blusa grossa com capuz, ele poderia ser um mane-quim fortemente agasalhado – enquanto ele batia os pés no chão para fazer o sangue correr pelas pernas. Não consegui deixar de me per-guntar de onde ele tinha vindo, onde vivia agora. Ele abafou a tosse na dobra do cotovelo. Todo mundo tossia. A gente se acostumava.

Na primeira terça-feira de todo mês, uma caravana de cami-nhões se enfileirava diante dos portões da única entrada da cidade. Ruidosamente, vinham até o velho Pike Place Fish Market, que agora era apenas um mercado de comidas e vegetais, e descarre-gavam qualquer produto que tinham conseguido cultivar. As frutas e as verduras eram separadas e transportadas para baias diferentes. As filas nas terças começavam a se formar às quatro ou cinco da manhã, subindo até atravessar a avenida de paralelepípedos que dava para o mercado – eram centenas, milhares de pessoas amontoa-das sob a luz rosa da alvorada, com sacos e cestas enfiados embaixo do braço.

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Também havia peixes – não aqueles peixes grandes e gordos que comíamos nos bons tempos, mas peixe é tudo peixe. Eles vinham em sacos de papel pardo, leves e com um forte cheiro de mar – eperlano, perca-do-mar e, se tivéssemos sorte, salmão, cortados e ressecados em tiras finas. Uma ou duas tiras podiam dar gosto numa panela grande de sopa de repolho e alimentar seis ou oito pessoas. Fazíamos esses pacotes de peixe seco durar o mês inteiro. A multidão estava ficando mais barulhenta e desorganizada, conforme todos na fila se remexiam nervosos, querendo ir embora e começar o dia.

– Coelhos de merda. Eles já deram o fora da Cidadela?Levei um susto, quase derrubando o panfleto de rua. Era Carl,

meu namorado. Ele me abraçou e foi bom receber aquele calor humano. Era difícil retribuir o abraço segurando tanta coisa nas mãos, mas dei um jeito. Era bom vê-lo. Eu me senti um pouco ali-viada pela companhia, um rosto conhecido entre uma multidão de estranhos que tossiam sem parar. Carl, meu namorado. Carl, meu namorado que devia estar cuidando do Shane. Virei para ele.

– O que você está fazendo aqui? Cadê o Shane?– Calma! Shane está com uns amigos meus.– Que amigos?Carl ergueu os ombros finos até as orelhas, feito um par de asas

esqueléticas.– Dave e Jill – ele disse. – Eles são legais. Trabalham nas Hortas

Queen.– Não quero saber onde eles trabalham, Carl, nem conheço esses

dois. Você não pode deixar Shane com estranhos, ele não é um liquidificador!

Shane é tímido, quietinho. Ele não gosta de estranhos. Mal me suporta, mesmo sendo sangue do seu sangue.

Carl soltou um suspiro dramático, revirando os olhos fundos e castanhos por quase trezentos e sessenta graus. Com o panfleto do-brado, bati forte no seu ombro. No verso do papel havia uma lista de nomes de pessoas desaparecidas. Eu estava prestes a bater em Carl

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de novo quando um caminhão de bombeiros passou ruidosamente, com três homens de pesados uniformes de borracha na escada de mão. Eles estavam correndo muito rápido para esta parte da cidade.

Era difícil ficar parada sabendo que Shane estava sendo cuidado por estranhos. Confiança é uma mercadoria hoje em dia, uma que anda em falta para mim. Eu gosto do Carl, mas ele tem tanto jeito para ser pai quanto um pepino-do-mar. Olhei para trás na dire-ção do aclive, onde ficava o apartamento, no primeiro andar de um predinho atarracado em Bell. Voltando a olhar para o mercado, vi que os agricultores tinham trazido as caixas para fora e a fila esta-va avançando depressa, as pessoas ansiosas para enfiar seus pa-péis de racionamento nas mãos dos lavradores. O começo da fila desapareceu nas sombras do mercado de peixes, com a estátua do porco de cobre rodeada por pessoas famintas, e o inconfundível le-treiro do mercado torto, forçando as dobradiças como um boi pu-xando um arado. Eu me senti subitamente claustrofóbica, sem ar.

– Toma – eu disse, jogando a sacola em cima de Carl. – Fica e pega a comida. Eu vou cuidar do Shane.

– Ele vai ficar bem.– É bom que fique mesmo.Os papéis de racionamento estavam no meu bolso. Com uma

caligrafia torta, afirmavam que eu e Shane, compondo uma família, tínhamos direito a duas sacolas de verduras e frutas sortidas e um pacote de peixe seco. Isso era em troca dos repolhos e beterrabas que nossa horta familiar contribuía para o estoque de alimentos da cidade. Meus livros infantis desenhados à mão não contavam ofi-cialmente, claro, mas ajudavam a conseguir remédios e cobertores em situações de emergência.

– Usa os meus papéis e os seus também – acrescentei. – Vai dar mais que o suficiente para o mês.

Shane e eu não precisávamos de muito e, juntando com as rações de Carl, comíamos muito bem. Eu me virei para ir e Carl me pegou pelo antebraço.

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– Eu falei que são meus amigos. Qual é o problema?– Faz o favor de pegar os alimentos?Eu não queria brigar com ele, não agora, não quando o coitado

do Shane devia estar deitado em posição fetal, convencido de que tinha sido abandonado de novo. Shane é o filho de oito anos da minha irmã Kat. Kat e o marido estavam num ônibus quando a Epidemia atingiu o centro da cidade. Eles nunca voltaram para casa e, voilà, como se eu tivesse ganhado um game show bizarro, virei mãe de um nerdinho calado com cachos cor do sol e um sorri-so raro com uma falha entre os dentes.

Mais gente aparecia na rua enquanto eu subia a Primeira Avenida a meio galope. Grandes fachadas incendiadas escureciam os dois lados da avenida; um strip club abandonado com as janelas sujas parecia ter sido atacado por uma equipe de demolição que ficou louca lá dentro. O mercado central ainda funcionava como mercearia, mas só para coisas básicas agora – cobertores, roupas, comidas e algumas poucas preciosidades, como livros e vinhos. A Epidemia nos atingiu em setembro. No começo de novembro, álcool e livros eram uma raridade. Continuavam sendo, mas, agora, pelo menos, pessoas como Jason e alguns outros estavam produzindo obras novas, novos livros e histórias em quadrinhos.

Virei à direita, subindo o morro mais acentuado, para longe da costa, na direção do prédio. Quase tudo muda, mas algumas coisas não. As Montanhas Olímpicas se assomavam sobre a Cidadela, surgindo por sobre a névoa, sentinelas estoicas e silenciosas que, todos os dias, conseguiam me lembrar de que resistir era possí-vel. Outras coisas, coisas menos majestosas, continuavam iguais. Como os péssimos mercados ruins vinte e quatro horas dessa parte da cidade e as casas noturnas. Não havia nada para ser vendido lá hoje em dia exceto sexo, com peles marcadas de pústulas e a série de doenças pitorescas que os acompanhavam.

Sentindo o cheiro de encrenca, meu corpo todo acelerou o passo. Um pensamento desagradável passou pela minha cabeça: Carl não

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tinha amigos, ele tinha clientes. Ele trabalhava principalmente com facas, tranqueiras de defesa pessoal, e tinha um talento para encon-trar resquícios do exército por toda a cidade. Carl guardava as facas em outro lugar, mas as únicas pessoas com quem eu o via andando eram de alguma forma ligadas ao seu negócio. Eu não gostava desse trabalho, mas servia para trazer mais comida, muito mais, e disso eu não podia reclamar.

Belltown, que agora tiravam sarro chamando de Betê-town, abrigava quarteirões inteiros que tinham sido derrubados para se-rem dedicados ao cultivo dos legumes roxos e nodosos. Era algo bom de cultivar quando se tinha banqueiros e massoterapeutas cuidando das hortas; beterrabas são substanciosas e difíceis de es-tragar. Havia um outro motivo mais preocupante para esse apelido: essa é uma região violenta onde acontece muita pancadaria, e Betê--town quase rima com sua outra especialidade, “desce o pau”.

Por sorte, mesmo com os marginais da cidade à solta, eu estava segura. As pessoas conheciam Carl nessa região e, por consequên-cia, me conheciam. Ninguém puxava briga com um cara especiali-zado em facas, nem mexia com a namorada dele. Carl era melhor do que um spray de pimenta e saía mais barato do que uma arma.

Um calor irritante começou a emanar da parte de trás do ca-checol. Eu devia ter esperado para sair do apartamento e deixado Shane com a sra. Trieu no andar de baixo. Ela só abria a creche de-pois das dez, quando já tinha cuidado da sua enorme horta e feito a comida e lavado a roupa do dia. A sra. Trieu cobrava preços exorbi-tantes, mesmo para os padrões pós-Epidemia, mas era uma exímia atiradora com sua Luger e fazia a melhor comida vietnamita num raio de dez quarteirões, então todo mundo aceitava. Seu histórico de tiros perfeitos e seu phở delicioso eram prova disso.

Nosso prédio ocupava a metade oeste de um quarteirão, enquan-to a metade leste era reservada às hortas. A fachada de tijolinhos vermelhos estava em mau estado, com os suportes inacabados do telhado sobressaindo e lançando sombras esguias sobre as janelas

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e a porta de entrada. A hera havia brotado pela calçada danificada, cobrindo a entrada do prédio com uma película gangrenosa de musgo. Alguém havia pegado um Buick velho e o transformado em arte moderna no cruzamento, abrindo a capota e pregando decora-ções de quintal nele. Um corvo gordo e lustroso estava empoleirado na capota curva do carro. Com suas asas pretas e lustrosas, ligeira-mente iridescentes, os corvos são o melhor amigo dos ilustradores; eles são simples de desenhar, são bonitos e dão uma dose instantâ-nea de gravidade a qualquer quadrinho.

Atrapalhando-me com as chaves, abri a porta da frente e atraves-sei o saguão cor de areia vazio, passei pelo corredor e subi a escada dos fundos correndo. Nosso apartamento ficava bem no topo das escadas, logo depois de um batente finíssimo, que permitia ouvir os vizinhos subindo e descendo dia e noite. A porta do nosso aparta-mento estava fechada, um bom sinal, mas o frio na minha barriga não diminuiu. Lá dentro estava escuro. Pela janela, dava para ver os tons rosados da manhã, com o sol surgindo vermelho vivo feito uma gema de ovo de trás das nuvens.

Deixei o portfólio cair com estrépito no assoalho de madeira.– Shane?Ele nunca me recebia na porta. Pelo contrário, costumava se es-

conder em algum lugar, fosse atrás do colchão ou dentro do armá-rio da cozinha, ao lado do arroz.

– Shane? Não estou de brincadeira. Vem aqui.Ouvi um tinido baixo, como o de um sino distante. À direita,

ficava a pequena cozinha do apartamento. Mesmo na penumbra, deu para ver a porta do armário aberta por um centímetro. Segurei o canto dela e a abri com tudo.

– Shane! Ai, meu Deus, Shane. – Eu o puxei para fora do armá-rio, tirando os grãos de arroz de seu ombro pequenino e o trazendo para os meus braços. Ele não reclamou, o que achei estranho, e co-locou o nariz bem na curva do meu pescoço.

– Eles vão voltar? – ele perguntou baixinho. Estava segurando

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seu bichinho de pelúcia favorito, o Urso Rosa. Na verdade, era um porco fofinho, mas eu não tinha coragem de explicar a diferença. O Urso Rosa era o astro de muitas de nossas aventuras ilustradas.

– Quem vai voltar? – perguntei. – Os amigos do Carl?– Eles não são amigos – ele murmurou.Eu o afastei, tirando os cachos loiros de sua testa, à procura de

machucados, sinais de ferimento ou violência. Ele franziu o rosto e tentou desviar das minhas mãos, que o apalpavam agitadamente.

– Eles te machucaram? – perguntei.– Eles não são amigos – Shane repetiu.Uma sombra trêmula passou sobre o rosto dele e ouvi uma ins-

piração rápida atrás de nós. Mas não tive tempo para reagir, não com uma criança nos braços e com o meu coração começando a desacelerar. Alguma coisa dura e pontuda acertou o topo da mi-nha cabeça. Senti Shane se soltando; meu corpo tombou para a frente e o chão veio na minha direção como uma forte maré que sobe. Mas não parou por aí.

– Bate nela de novo.Era a voz de Carl. Carl falando, meu Carl, mandando alguém me

bater. O cabelo loiro-claro de Shane passou voando na minha frente. Virei e saí tropeçando da cozinha, passando aos empurrões pelo es-tranho indistinto que havia me acertado. Um fio de tinta preta caía sobre a minha visão, pingando feito uma cortina líquida. Mas conse-gui pensar o bastante para esticar os braços, à procura cega do meu sobrinho. Ele gritou. Shane nunca gritava – ele reclamava de vez em quando, do seu jeitinho miúdo de criança, mas nunca levantava a voz acima de um murmúrio pensativo. Devia ter sangue na minha cara. Sangue o faria gritar.

Carl estava parado no corredor, com o corpo alto e magro emol-durado pelo batente da porta aberta. Fui tropeçando na sua dire-ção, piscando sem parar, e minhas pernas vacilaram bem a tempo de me jogar para a frente. Eu e Carl saímos rolando pelo corredor.

– Bate nela de novo. Pelo amor de Deus. Rápido!

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Ele deu com força na parede e perdeu o ar dos pulmões com um grunhido; meus punhos se cerraram e pressionaram seu peito. Eu o peguei pela gola do casaco, dei um chacoalhão nele e depois empur-rei. Mas a gravidade e a dor na minha cabeça venceram, e tombei para a frente de novo; meu peso lançou nossos corpos na direção da escadaria e do amplo arco aberto de madeira fina. Nada nos deteve. A escada estava ali de repente, num mergulho vertical, mais íngre-me do que eu me lembrava. Carl caiu na frente, com meu corpo em cima dele, e senti todas as pancadas duras contra sua espinha enquanto descíamos rolando. Eu estava enjoada, prestes a vomitar. Tudo girou até finalmente chegarmos ao pé da escada e o pescoço de Carl, levado pelo peso do meu corpo, bater contra o rodapé. A última coisa que ouvi foi um som, um ruído biológico inconfundível de vértebras contra a madeira.

E depois nada além de uma sensação de um puxão no fundo do meu peito, como se eu estivesse sendo arrastada, como se estivesse me afogando.

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