TRADUZIR O OUTRO ORIENTAL - Repositório da Universidade...
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS
TRADUZIR O OUTRO ORIENTAL
A CONFIGURAO DA FIGURA FEMININA NA LITERATURA
PORTUGUESA FINISSECULAR
(ANTNIO FEIJ E WENCESLAU DE MORAES)
Marta Pacheco Pinto
DOUTORAMENTO EM TRADUO
ESPECIALIDADE EM HISTRIA DA TRADUO
2013
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS
TRADUZIR O OUTRO ORIENTAL
A CONFIGURAO DA FIGURA FEMININA NA LITERATURA
PORTUGUESA FINISSECULAR
(ANTNIO FEIJ E WENCESLAU DE MORAES)
Marta Pacheco Pinto
Tese orientada pelo Prof. Doutor Joo Ferreira Duarte e
pela Prof. Doutora Helena Carvalho Buescu, especialmente para a obteno do
grau de doutor em Traduo, especialidade em Histria da Traduo
2013
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Pavilho de porcelana (100 cm x 120 cm) por Rogrio Silva.
Grafite s/ papel, 2009.
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3
RESUMO
O presente estudo incide sobre a configurao literria da mulher extremo-oriental na
obra de dois autores portugueses finisseculares, nomeadamente na recolha de poesias
traduzidas que compe Cancioneiro chinez (1890, 1903) de Antnio Feij (1859-1917) e
nos ttulos publicados em livro de Wenceslau de Moraes (1854-1929). O nosso ponto de
partida consiste na inscrio do corpus seleccionado numa prtica discursiva j analisada
em estudos crticos sobre o Oriente islmico no mbito do orientalismo literrio de tradi-
o anglo-francesa: a retrica orientalista de feminizao do Oriente. No nosso estudo,
que articulamos com o postulado de Edward Said (1978), a geografia literria em foco
o Extremo Oriente (China e Japo), situada no final do sculo XIX e princpios do scu-
lo XX. As marcas orientalistas que lemos no corpus identificado convergem na feminiza-
o desse Oriente, que entendemos como parte integrante de um fenmeno de traduo
cultural. O corpus exemplifica, com base em diferentes modos de relacionamento com o
Extremo Oriente, uma apreenso esttica dessa geocultura atravs da figura feminina,
que estabelece uma relao de contiguidade com o espao que representa e simboliza, e
em que est implicada a ideia europeia de Oriente, de diferena de gnero e de corpo
feminino. A articulao da nossa anlise far-se-, portanto, por meio de trs expresses-
-chave: orientalismo, traduo cultural e feminizao do Extremo Oriente. Formalmente,
a dissertao divide-se em duas partes distintas, uma terico-conceptual, em que expla-
namos cada expresso-chave, e outra de anlise do corpus literrio, em que exploramos
redes imagticas e metafricas e as suas implicaes esttico-ideolgicas para a com-
preenso das assimetrias e ambiguidades que ligam o Portugal de fim-de-sculo sia
Oriental. Esperamos que a nossa anlise da esteticizao literria do Extremo Oriente
contribua para o entendimento do fenmeno finissecular do orientalismo literrio, que
assenta num processo de traduo cultural.
Palavras-chave: orientalismo, traduo cultural, feminizao, Extremo Oriente, alteridade,
exotismo, Antnio Feij, Wenceslau de Moraes
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4
ABSTRACT
This study focuses on the literary configuration of the Far East woman in the work of two
turn-of-the-century Portuguese authors, namely in the collection of translated poems
titled Cancioneiro chinez (1890, 1903) by Antnio Feij (1859-1917) and the books pub-
lished by Wenceslau de Moraes (1854-1929). Our point of departure consists of inscrib-
ing the selected corpus within a discursive practice that has already been analyzed in crit-
ical studies on the Islamic Orient in the context of the Anglo-French tradition of literary
Orientalism: the orientalist rhetoric of feminization of the Orient. Drawing on Edward
Saids 1978 legacy, our study concentrates on the literary geography of the Far East
(China and Japan) at the end of the nineteenth century and beginning of the twentieth
century. The orientalist characteristics identified in the aforementioned corpus converge
in the feminization of that Orient, which we understand as an integral part of the phe-
nomenon of cultural translation. Based on different relational modes with the Far East,
the corpus illustrates an aesthetic apprehension of that geoculture through the female
figure. This figure establishes a relationship of continuity with the space she represents
and symbolizes, in which the European idea of the Orient, of gender difference, and of
female body is implied. The analysis is organized around three key phrases: orientalism,
cultural translation and feminization of the Orient. Formally, the dissertation is divided
into two distinct parts: one theoretical-conceptual, which elaborates on each of those key
phrases, and a second one, which provides our analysis of the literary corpus. This analy-
sis explores imagery and metaphorical networks and their aesthetic-ideological implica-
tions for the understanding of the asymmetries and ambiguities linking turn-of-the-
century Portugal to the Far East. We expect our analysis of the literary aestheticization of
the Far East to contribute to a broader understanding of the turn-of-the-century phe-
nomenon of literary Orientalism, which relies on a process of cultural translation.
Keywords: orientalism, cultural translation, feminization, Far East, otherness, exoticism,
Antnio Feij, Wenceslau de Moraes
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Agradecimentos
O trabalho de dissertao que aqui se apresenta fruto de um esforo colectivo, pelo que
no teria sido possvel sem o apoio de diversas pessoas e instituies, a quem queremos
deixar aqui expresso o nosso sincero agradecimento e gratido.
As primeiras palavras de reconhecido apreo dirijo-as aos orientadores deste pro-
jecto, o Prof. Doutor Joo Ferreira Duarte e a Prof. Doutora Helena Carvalho Buescu,
que me guiaram no meu caminho para Oriente. A eles agradeo o apoio constante, as
leituras atentas e cuidadas, os comentrios e as crticas sempre pertinentes, a exigncia de
propriedade semntica e de rigor cientfico que ajudaram este trabalho a ganhar forma e
substncia; a eles agradeo a amizade, a pacincia e a confiana depositada em mim e
neste trabalho.
Quero agradecer Prof. Doutora Ana Paula Laborinho (Universidade de Lisboa)
pelas inmeras oportunidades de dilogo, em particular durante o seminrio de ps-
-graduao Vises do Oriente: medos e sedues, que me foi permitido frequentar e
evitou que eu imergisse nas areias movedias do Oriente, e no mbito do projecto de
investigao Orientalismo portugus: textos e contextos (1850-1950). Agradeo-a pelo
empenho em me integrar nos principais circuitos e crculos de debate em torno da relao
de Portugal com as coisas orientais. Pela possibilidade de acesso privilegiado primeira
verso manuscrita de Relance da alma japoneza, de Wenceslau de Moraes, e pelos cont-
nuos gestos de amizade e apoio.
Palavras de sincera gratido so devidas ao Prof. Doutor Jos Cndido Martins
(Universidade Catlica Portuguesa) pelo modo exemplar como se prontificou a receber-
-me, a mim e minha famlia, em sua casa em Braga. Quero agradecer a sua amizade e,
acima de tudo, o seu esprito solidrio, representativo do que a comunidade acadmica
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procura ser, um espao de partilha e de intercmbio. Agradeo em particular a oportuni-
dade que me proporcionou de conhecer, consultar e registar fotograficamente o seu valio-
so arquivo pessoal sobre o poeta Antnio Feij e a sua obra.
Agradeo ao Prof. Doutor K. David Jackson (Universidade de Yale) as tertlias, a
amizade e o entusiasmo com que partilhou comigo a sua orientalidade e as suas reflexes
em torno, sobretudo, das musas que inspiraram Wenceslau de Moraes.
Quero tambm agradecer Prof. Doutora Kioko Koiso (Universidade de Lisboa),
por me ter proporcionado a descoberta da lngua japonesa e pelo desejo que gerou em
mim de aprofundar o conhecimento dessa lngua, literatura e cultura, bem como pela
simpatia com que me facultou materiais audiovisuais sobre Wenceslau de Moraes e a sua
vida na vila de Tokushima. Ainda uma palavra de apreo Prof. Doutora Paula Moro
(Universidade de Lisboa), pela partilha de uma paixo documentada sobre Salom, e
Prof. Doutora Ana Maria Martinho (Universidade da Califrnia), pois sem a sua ajuda
no me teria sido possvel realizar pesquisa bibliogrfica em Berkeley, pesquisa essa que
muito me auxiliou a fundamentar a tese que aqui defendemos.
Das companheiras na labuta diria pela realizao de um projecto aparentemente
sem fim vista, sobretudo sem o fim brilhante ingenuamente ambicionado no incio da
aventura, e na luta contra a incomodativa sensao de angstia, as minhas mais do que
palavras de amizade e profundo reconhecimento dirigem-se Doutora Rita Bueno Maia
e Dra. Ana Catarina Almeida. Rita, por acreditar neste trabalho, pela companhia
picaresca e constante, estivesse sol ou a chover, fosse dia ou noite, por partilhar, viver e
sofrer os mesmos dramas, medos e desnimos, pela leitura, reviso e discusso de partes
desta dissertao. Catarina, que me acompanhou sobretudo no incio e no final deste
percurso, um sincero obrigada: pela pacincia e pela amizade verdadeira, por estar sem-
pre disponvel para ouvir, aconselhar e resolver o caos em que aqueles que fazem um
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percurso similar tantas vezes mergulham e, sobretudo, pela leitura integral deste trabalho
e pelo esforo faranico no sentido de cortar os blocos de pedra desta pirmide.
Quero ainda agradecer ao Ricardo Simes, que testemunhou e apoiou o incio atri-
bulado desta aventura e cujas misses detectivescas em busca de primeiras edies foram
valiosas para a concretizao deste projecto. Uma palavra especial Susana Arajo e
Ariadne Nunes, que leram e comentaram partes deste trabalho, bem como pela com-
preenso face s minhas faltas nos projectos em que trabalhamos lado a lado. Assinalo
ainda a ajuda preciosa da Catarina Nunes de Almeida, que na recta final me acudiu com
os seus prstimos bibliotecrios, assim como a da Paula Mateus, que partilhou comigo o
seu entusiasmo pela obra do Embaixador Armando Martins Janeira e que foi importante
no incio deste percurso. Muitas mais palavras de reconhecimento deveriam ficar aqui
explicitadas, mas a lista de amigos que me apoiaram e contriburam para o meu bem-
-estar e sanidade mental durante o perodo de execuo deste projecto longa. A todos
eles muito obrigada.
Do ncleo familiar, quero expressar um agradecimento especial aos meus patroci-
nadores aos meus pais, sobretudo a eles, ao meu irmo e minha av, no s pelo cons-
tante apoio psicolgico, pelo afecto incondicional, pelo incentivo e pela estabilidade
necessria elaborao de um projecto deste flego, mas tambm pela compreenso face
aos silncios e s ausncias. Uma palavra final e saudosa ao meu av Lus Pacheco, que
cedo partiu para um outro Oriente e que, sem o saber, esteve sempre presente na minha
viagem e ajudou a marcar a sua cadncia pelos valores que me transmitiu, em particular a
perseverana, a humildade e a honestidade.
A nvel institucional, este trabalho no teria sido possvel sem o apoio da Fundao
para a Cincia e Tecnologia e do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de
Lisboa. Quero ainda agradecer Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de
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Lisboa, tornada em local de trabalho permanente e pela facilidade concedida no acesso a
materiais em mau estado de conservao, Biblioteca Municipal de Ponte de Lima e ao
Arquivo Municipal da mesma cidade, pela simpatia com que me receberam e disponibili-
zaram a consulta e utilizao do esplio de Antnio Feij.
No posso deixar de louvar os esforos envidados no sentido de desenvolver e
enriquecer as bibliotecas digitais, que facilitaram o acesso rpido, econmico e cmodo
a muitos dos materiais bibliogrficos usados neste trabalho. So de destacar, nesse sen-
tido, a Hemeroteca Digital (da Hemeroteca Municipal de Lisboa), a Biblioteca Nacional
Digital (da Biblioteca Nacional de Portugal), a Biblioteca Geral Digital (da Universidade
de Coimbra), o Gallica (da Bibliothque nationale de France), o Internet Archive
(www.archive.org) e o Google Books.
Muito obrigada!
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ndice
Guia de leitura ................................................................................................................... 11
Introduo .......................................................................................................................... 17
PARTE 1. O ORIENTE NAS ENCRUZILHADAS DA TRADUO CULTURAL .... 41
1 Figuraes do Oriente ................................................................................................ 43
1.1. Orientalismo: o alcance de uma obra ................................................................ 47
1.2. Citao, representao e simulao da geografia imaginria ........................... 64
1.3. A caminho da sia Oriental: Portugal, da histria s imagens ......................... 79
1.4. Orientalia: uma epidemia na Europa ................................................................ 98
1.5. Notas conclusivas ............................................................................................ 108
2 Nas Encruzilhadas da traduo cultural ................................................................ 111
2.1. Hospitalidade cultural ..................................................................................... 112
2.2. O que a traduo cultural? ............................................................................ 121
2.2.1. Na antropologia ....................................................................................... 122
2.2.2. Nos estudos culturais ............................................................................... 134
2.2.3. Nos estudos de traduo .......................................................................... 144
2.2.4. Em defesa da traduo cultural ............................................................... 151
2.3. O espao extico e a traduo cultural ............................................................ 157
2.4. Notas conclusivas ............................................................................................ 168
3 A Feminizao do Oriente ........................................................................................ 171
3.1. Figuras de um imaginrio transnacional ......................................................... 173
3.1.1. Feminino e nao .................................................................................... 174
3.1.2. Feminino e colnia .................................................................................. 182
3.1.3. Feminino e Oriente .................................................................................. 186
3.2. A fantasmagoria do feminino em Orientalismo .............................................. 195
3.3. Figuras do Oriente ........................................................................................... 203
3.3.1. Salom ..................................................................................................... 205
3.3.2. Turandot .................................................................................................. 225
3.3.3. Imagtica do feminino extremo-oriental ................................................. 235
3.4. Feminizao do Oriente como traduo cultural ............................................ 247
3.5. Notas conclusivas ............................................................................................ 249
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PARTE 2. A DEMANDA DO FEMININO EXTREMO-ORIENTAL EM
ANTNIO FEIJ E WENCESLAU DE MORAES .................................... 255
4 Cancioneiro chinez e o Oriente feminino ................................................................ 257
4.1. Enquadramento da anlise .............................................................................. 258
4.2. Antnio Feij, o poeta e o poeta-tradutor ....................................................... 262
4.2.1. Perfil biobibliogrfico ............................................................................. 262
4.2.2. Le Livre de jade e a rainha do Parnaso .................................................... 269
4.3. Recepo crtica: duas linhas de anlise ......................................................... 279
4.3.1. Poesia parnasiana .................................................................................... 282
4.3.2. Traduo extica ..................................................................................... 296
4.4. Descrio ......................................................................................................... 308
4.4.1. Preliminar ................................................................................................ 309
4.4.2. Macrotextual ............................................................................................ 323
4.4.2.1. Diviso do texto 323
4.4.2.2. Mtrica 334
4.5. Cancioneiro chins 1903: uma nova edio ................................................... 346
4.6. O Oriente seduz-me...: novo modelo de beleza feminina ............................ 355
4.7. Notas conclusivas ............................................................................................ 405
5 Wenceslau de Moraes e o Eros extremo-oriental ................................................... 413
5.1. Enquadramento da anlise .............................................................................. 414
5.2. Wenceslau de Moraes, intrprete cultural do Japo e prosador do extico .... 426
5.2.1. Perfil biobibliogrfico ............................................................................. 426
5.2.2. lbum de exotismos ................................................................................ 443
5.3. A mulher extica do Extremo Oriente ............................................................ 470
5.3.1. Macau e China ......................................................................................... 472
5.3.2. C est o meu Japo! ........................................................................... 479
5.3.2.1. Paraso como metfora 508
5.3.2.2. Reescritas fetichistas 523
5.3.2.3. Feitio indgena contra a mulher moderna 553
5.3.3. Mulher biogrfica .................................................................................... 575
5.4. Notas conclusivas ............................................................................................ 590
Consideraes finais ........................................................................................................ 599
Bibliografia ...................................................................................................................... 619
Anexos ............................................................................................................................. 681 573
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Guia de leitura
A presente dissertao coloca questes estruturais prprias do discurso acadmico e de
uma investigao desta natureza e dimenso que se impe clarificar, nomeadamente no
que respeita ao modo de apresentao e seleco da informao.
Referenciao bibliogrfica
De forma a uniformizar citaes, referncias bibliogrficas e bibliografia final, seguimos,
em geral, o sistema autor-data, em grande proximidade ao estilo de referenciao inter-
nacional The Chicago Manual of Style (16. edio). Dentro do corpo do texto, identifi-
cao do autor e da data da edio citada segue-se a indicao do nmero de pgina, prece-
dido de espao e dois pontos. Na inexistncia de nmero de pgina, usamos as siglas
s.p.; na ausncia de data de publicao, usamos as siglas s.d.. No caso particular da
citao de poemas, dada a extenso dos textos poticos que se citam, de um modo geral
relativamente breves, remetemos apenas para o nmero de pgina, sem especificar o nme-
ro do verso.
Quanto ao uso de maisculas nos ttulos citados, adoptmos, por questes de coe-
rncia, a norma romnica de maiusculizao do primeiro item lexical (substantivos,
adjectivos e verbos) nos ttulos em portugus e em francs. Nos ttulos em lngua inglesa,
maiusculizmos todos os itens lexicais.
Edies usadas
Em termos da bibliografia primria, foi nosso objectivo socorrermo-nos da maior varie-
dade possvel de edies, em funo da relevncia do diferente aparato crtico que cada
edio oferece.
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No que toca ao poeta Antnio Feij, privilegimos primeiras edies ou edies da
obra completa. A sua produo potica pela primeira vez reunida em Poesias completas,
numa edio no-datada, mas que se sabe ser da dcada de 1940, promovida pelos ami-
gos e admiradores de Antnio Feij, com o concurso da Cmara Municipal de Ponte do
Lima, dirigida e revista por Afonso Lopes Vieira e publicada pela Livraria Bertrand. Em
2004, J. Cndido Martins organiza a reedio destas Poesias completas, agora pelas Edi-
es Caixotim e enriquecida com um estudo crtico, e prepara tambm a publicao de
um volume de Poesias dispersas e inditas, que d estampa pela mesma editora em
2005. Relativamente obra em estudo Cancioneiro chinez , citamos sempre a partir
da edio original, a de 1890, ou da segunda edio, a de 1903. No seguimos o texto
fixado na edio de 2004 de Poesias completas, porque no apenas se trata da segunda
edio, mas nela tambm no se inclui a adenda crtica que acompanha a edio de 1903
nem o nome dos poetas chineses antologiados no ndice final. excepo de Cancionei-
ro chinez, as restantes composies poticas so, em geral, citadas a partir das edies
completas de 2004 ou 2005. Recorremos ainda a outras edies, sobretudo em funo da
informao paratextual oferecida, sempre que pertinente para o nosso argumento.
No caso da obra de Wenceslau de Moraes, privilegimos de igual modo edies
mais recentes, sendo que as edies posteriores s dcadas de 1970 e 1980 se baseiam,
em regra, nas edies de Armando Martins Janeira. Nalguns casos, recorremos a edies
originais, ora porque no houve reedies subsequentes como acontece com quase
todos os volumes de Cartas do Japo , ora porque as reedies no apresentam aparato
crtico e/ou exibem uma elevada recorrncia de erros tipogrficos. Usmos ainda a pri-
meira verso manuscrita de Relance da alma japoneza, datada de 1925 mas anterior
primeira edio publicada, em 1926, que cotejamos apenas uma vez com uma edio
mais recente.
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13
Ao longo da nossa reflexo citamos ainda autores e trabalhos acadmicos estran-
geiros. Para estes optmos, embora no de forma exclusiva, por edies traduzidas e rela-
tivamente recentes para o portugus europeu. Na ausncia de tradues ou no caso de as
tradues existentes estarem desactualizadas, citamos directamente a partir do original ou,
no desconhecimento da lngua do original ou na dificuldade de acesso a ele, de tradues
para lngua que dominamos.
Citao da bibliografia primria
De forma a facilitar a leitura desta dissertao, adoptmos algumas estratgias de economia
textual a nvel da citao das obras que compem a bibliografia primria. Optmos, nas
referncias parentticas, em vez de seguir o sistema autor-data, pelo uso de siglas e acr-
nimos referentes aos ttulos das obras que se citam, que abaixo listamos, em substituio do
nome do autor citado, e que so acompanhados da indicao da data de publicao da edi-
o usada e da pgina a partir da qual se cita.
Sempre que citamos a correspondncia privada de Antnio Feij ou de Wenceslau
de Moraes, por uma questo de rigor, inclumos, sempre que possvel, o nmero identifi-
cativo da missiva e a data da sua redaco, para alm da natural indicao do autor, da
data da edio e do nmero da pgina que se citam.
Eis a lista de siglas e acrnimos cuja indicao respeitamos:
Obra de Judith Gautier
Le Livre de jade = LJ
Obras de Antnio Feij
Cancioneiro chins = CC
Cancioneiro chinez = CC
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14
Poesias completas = PC
Poesias dispersas e inditas = PDI
Sol de Inverno = SI
Obras de Wenceslau de Moraes
A Vida japonesa = VJ
Cartas do Japo. Antes da guerra (1902-1904) = CJ
Cartas do Japo. II um anno da guerra (1904-1905) = CJ
Cartas do Japo 2 srie, vol. I (1907-1908) = CJ
Cartas do Japo 2. srie, vol. II (1909-1910) = CJ
Cartas do Japo 2. srie, vol. III (1911-1913) = CJ
Dai-Nippon (o grande Japo) = DN
Ferno Mendes Pinto no Japo = FMPJ
O Bon-Odori em Tokushima = BOT
O Culto do ch = CC
Os Seres no Japo = SJ
-Yon e Ko-Haru = OYKH
Paisagens da China e do Japo = PCJ
Relance da alma japonesa = RAJ
Relance da histria do Japo = RHJ
Traos do Extremo Oriente = TEO
Outras estratgias pontuais de economia textual sero mencionadas no corpo do texto.
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15
Para todas as obras citadas, publicadas e manuscritas, respeitmos sempre a grafia
original, no procedendo em momento algum actualizao ortogrfica. Actualizmos
apenas, tanto no corpo do texto como na bibliografia final, os nomes dos autores que se
citam, bem como o de outras personalidades que mencionamos ao longo do texto. O
nome de Wenceslau de Moraes o nico que no actualizmos, em respeito resistncia
do autor em adoptar a reforma ortogrfica de ento1.
Na romanizao de nomes chineses, quando no se cita directamente a partir de
uma fonte, opta-se pelo sistema hanyu pinyin, que consiste na transcrio fontica ofi-
cialmente adoptada na Repblica Popular da China, desde a aprovao pelo Governo de
Pequim em 1958. Na romanizao de nomes japoneses, seguiu-se o alfabeto latino con-
forme fixado pelo sistema Hepburn, actualmente em uso nos dicionrios japoneses.
Organizao da bibliografia final
A bibliografia final, na qual reunimos as obras citadas no nosso estudo, est dividida em
duas seces apenas: uma de bibliografia primria e outra de bibliografia secundria.
Atendendo natureza interdisciplinar do estudo, que se reflecte na bibliografia consulta-
da, evitmos subcategorizar as referncias bibliogrficas, uma vez que tal estratgia con-
duziria a uma fragmentao e compartimentao temticas incompatveis com a natureza
interdisciplinar do trabalho.
1 Eu c continuo a ser Wenceslau com W, mesmo officialmente [...] e creio que assim continuarei (car-
ta 2 Novembro 1903 Moraes 1998: 97).
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17
Introduo
O mito daquele que se apaixona, sem o saber, pelo seu prprio reflexo, que assume como
sendo um Outro diferente e exterior a si, ficou conhecido como o mito de Narciso, exem-
plarmente plasmado nas Metamorfoses de Ovdio. Narciso procura uma fugitiva ima-
gem?!/O que desejas no existe! O que amas, retirando-te, perd-lo-s!/Essa sombra que
vs o reflexo da tua imagem! Nada tem de seu!/Contigo chega e contigo est. Partiria
contigo, se tu partir pudesses! (Ovdio 2006: III, 420-440). Eis, neste gesto inconsciente
de autocontemplao, a incapacidade de Narciso reconhecer o Outro como sendo o Eu ou,
inversamente, de se reconhecer no Outro. O acto de ver(-se) no aqui sinnimo de
(re)conhecimento, mas antes de distanciamento e alienao, como se uma imagem fosse
em si mesma um sujeito (ou objecto) autnomo, donde a impossibilidade de imagem e
sujeito (ou objecto) coexistirem lado a lado. Em sntese, Narciso procura apropriar-se da
imagem que acredita ser no apenas do Outro mas o Outro e que, na verdade, a sua.
Numa primeira anlise, este episdio parece sugerir uma identidade dupla ou des-
locada em que o Eu sai de si e dele se desliga, para alm de anular a possibilidade de uma
anagnrise em que, apesar do gesto falhado de regressar a si mesmo, mais interessante
constatar como no hesita em conceber-se como Outro, mas um Outro com o qual firma
um elo de empatia instintiva. O corpo como signo simultneo da identidade/alteridade
central a esta narrativa mtica; no , por isso, de estranhar que, como relembra Peter
Brooks (1993: 1), o corpo seja, no mbito da psicanlise, o objecto ou alvo primrio do
narcisismo. Importante tambm verificar como atraco de Narciso subjaz no apenas
uma ideia do esttico, mas sobretudo uma ideia familiar desse esttico. Pretendemos,
desta forma, sugerir que o esttico que Narciso vislumbra no corpo estranho e que o cati-
va reside naquilo que inconscientemente familiar a este sujeito contemplador.
-
18
Noes duais como Eu e Outro, identidade e alteridade, pertena e no-pertena,
familiar e estranho e os mltiplos pares em que estas construes interpretativas podem
desdobrar-se, em particular, no mbito do nosso estudo e como evidenciado pelos ttulo e
subttulo da presente dissertao, Ocidente/Oriente e homem/mulher conotam relaes,
no seu conjunto, assimtricas no que toca ao posicionamento de quem escreve, bem
como ao espao e distncia temporal a partir de onde se escreve.
Podemos globalmente definir a identidade, enquanto patrimnio partilhado de
experincias, prticas e significados de ndole diversa, como um processo cumulativo de
significao social, que se constri continuamente sem nunca estar finalizado. Intrnseca
natureza humana, a identidade sempre dinmica, manifestando-se de forma mais evi-
dente na interaco com o Outro, que pode desempenhar um papel mais activo ou passi-
vo nesse intercmbio (Standaert 2002: 28). semelhana de Narciso, o ser humano no
consegue evitar (no sentido de desejar) o Outro. A identidade assim pensada em termos
relacionais, a partir do Outro, termo e medida de comparao. Ao circunscrever uma sub-
jectividade individual ou colectiva, a identidade pressupe um sentimento de pertena
que adquire sentido sobretudo quando contraposto a um sentimento de no-pertena. E a
no-pertena atesta-se no confronto com o estranho, o estrangeiro, a alteridade. Tal como
a identidade, a alteridade nunca significa de forma autnoma, podendo definir-se como
aquele ou aquilo que se percepciona e se sente como diferente e distante do universo do
Eu. , portanto, em funo do Outro que o sujeito constri e organiza a sua experincia
interior e a do mundo, a sua memria e intimidade, conhece os seus limites, entrev a sua
liberdade, os seus medos e desejos.
Como j problematizado pela chamada imagologia comparatista, a que os contras-
tes apontados so inerentes, e a que voltaremos mais adiante, Eu e Outro estabelecem
uma relao dialctica, que admite uma inverso de papis de acordo com o posiciona-
-
19
mento, tanto no espao como no tempo, de cada actor ou interveniente na situao inter-
comunicativa2. atravs desta atitude relacional e contrastiva que o Eu consegue pensar
a alteridade e pensar-se a si mesmo, ora numa relao de diferena e afastamento, ora
numa relao de semelhana e proximidade ao Outro. Como reala o antroplogo James
Clifford, every version of an other, wherever found, is also the construction of a self
(1986: 23). luz do exposto, o uso que nesta dissertao fazemos do pronome indefinido
(e maiusculizado) Outro visa, enquanto construo cultural e ideolgica abrangente,
sublinhar a ideia de diferena e, ao mesmo tempo, a de um sujeito enunciador que se
posiciona em relao a algo que no faz parte da sua realidade familiar e com o qual pro-
cura entrar em algum tipo de dilogo.
Nestas consideraes preambulares, impe-se assim reconhecer que sobretudo
com base em categorias binrias e na sua intrnseca relacionao que construmos o nos-
so percurso reflexivo sobre como Traduzir o Outro oriental: a configurao da figura
feminina na literatura portuguesa finissecular (Antnio Feij e Wenceslau de Moraes).
Muito embora as oposies Eu/Outro, identidade/alteridade, Ocidente/Oriente,
homem/mulher, activo/passivo sejam, certo, redutoras, esta conformao binria ade-
qua-se ao quadro histrico em foco neste estudo, situado na viragem do sculo XIX para
o sculo XX. As oposies enunciadas conotam a dinmica das relaes interculturais
inscrita no discurso europeu finissecular, tanto na reflexo sobre a realidade extra-
-europeia como na dominao efectiva de um Outro colonial. Apesar de essas categorias,
que no passam de abstraces antropolgicas que tomamos como representativas de um
grupo sociocultural a ser definido, aparentarem ser discursivamente homogneas e estti-
cas porque no fundo resistem mudana, no sentido em que, cumprindo uma funo
2 Estas questes foram analisadas por mile Benveniste atravs da polaridade Eu/Tu ou Eu/Ele, sobretudo
em: 1981. Problmes de linguistique gnrale, tomo I. Paris: Gallimard, sobretudo o captulo XXI (De la
subjectivit dans le langage), 258-266.
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similar da dectica, existem sempre como estruturas que esto implicadas num qualquer
dilogo intercultural , nenhuma semntica, retrica ou referencialmente estvel, e mui-
to menos as usamos para impor ou advogar uma essncia simplista da diferena cultural.
Cientes do modo abusivo com que os estudos culturais, ps-coloniais e de traduo tm,
por vezes, evocado estas categorias, no nosso estudo utilizamo-las como instrumentos
heursticos, facilmente apreensveis, que exigem contextualizao, diferenciao e uma
perspectiva relacional. No so, em nosso entender, meros opostos binrios, mas antes
opostos que se complementam e a que a literatura d livre curso enquanto uma das moda-
lidades mais bvias de reescrita do Outro.
Dos vrios termos em oposio binria , bem entendido, no par Ocidente/Oriente
que, como o ttulo da dissertao indica, o nosso estudo assenta. Embora esse par seja um
binarismo essencializador e totalizante, que etimologicamente se reporta a uma orienta-
o cardeal e localizao geogrfica diferentes, ele vulgariza-se no final do sculo XIX
europeu enquanto designao de uma cartografia dual do mundo, organizado em Europa
ou Ocidente e alm-Europa ou no-Ocidente, sobretudo sia/Oriente. A esse binarismo
subjaz, contudo, a vontade de contactar com o Outro, independentemente da motivao
conducente ao contacto. Essa vontade est bem patente na intensa e diversificada produ-
o literria que a Europa conhece nesse perodo, de que extramos o nosso corpus e da
qual sobressaem textos poticos, romanescos ou ensasticos, bem como narrativas episto-
lares e de viagem que privilegiam como cenrio ou paisagem literria um espao exterior
genericamente designado como Oriente.
Na Antiguidade Clssica, Ocidente e Oriente definiam-se em funo da centralida-
de da civilizao helnica: O primeiro meridiano de referncia no foi o de Greenwich
(em Inglaterra), mas o de Atenas e da estreita franja de terra da Grcia antiga (Droit
2009: 13). Segundo Jean-Marc Moura (1998a: 16), a palavra Oriente tem as suas razes
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no imprio romano que, na tentativa de superao da civilizao grega, opunha o mundo
imperial a uma sia mais vaga e vasta. Como se v e como aprofundaremos, desde cedo
que se impe a evocao do, ou de um, Oriente como parte de um esquema retrico de
valorizao do Ocidente, sem que haja um interesse descomprometido ou real no conhe-
cimento da sua diferena ou no estabelecimento de afinidades com a cultura ocidental.
Os sculos XVIII e XIX so, no seu conjunto, perodos em que o Oriente funciona, mui-
tas vezes, como um artifcio retrico ou ideolgico que surge em contraponto Europa.
No Sculo das Luzes a cultura jesutica serve-se, em geral, da sia Oriental para criticar
a sociedade europeia e, por essa forma, abrir caminho importao de ideias que contri-
bussem para a renovao do sistema de pensamento europeu. No final do sculo XIX,
em continuidade com a tradio romntica, a viagem ao Extremo Oriente vem permitir
ao homem europeu explorar uma multiplicidade de dilogos estticos e artsticos, assim
como alargar horizontes crticos. a esta geografia literria e a este perodo histrico que
o nosso estudo se reporta. Assinalamos, desde j, que a ordem de apresentao dos cap-
tulos na presente dissertao acompanha o afunilamento do espao e da geografia liter-
ria tratados, na medida em que partimos de uma conceptualizao mais genrica da ideia
de Oriente para chegar quele que o nosso espao geocultural de eleio, o Extremo
Oriente, ou melhor, a China e o Japo.
Ao conceber a China e o Japo como parte de uma especificidade histrico-cultural
com a qual Portugal estabeleceu relaes singulares asseguradas quer por um passado
de intensos contactos diplomticos e trocas comerciais, bem documentado nas fontes
histricas, segundo as quais os portugueses tero sido o primeiro povo ocidental com
quem essas culturas asiticas comunicaram, quer pela intermediao colonial de Macau ,
o presente estudo tem por objectivos analisar a representao literria destes crontopos a
partir da configurao da figura feminina que os habita e tomar essa figura, com base na
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ideia europeia de diferena de gnero e nos valores e significados atribudos ao corpo
feminino, como smbolo de um discurso dominante sobre esse Oriente. Importa-nos, por-
tanto, explorar a composio desta paisagem humana em ligao ao argumento, que aqui
sustentamos, de que h uma retrica orientalista finissecular de feminizao do Extremo
Oriente. Defendemos para o corpus seleccionado, que apresentaremos de forma sucinta
mais frente, a existncia de uma percepo preferencial do Extremo Oriente como geo-
grafia feminina; esta atitude textual ou tendncia discursiva, com mltiplas implicaes
estticas, ideolgicas e polticas para as relaes e os cmbios interculturais, que comen-
tamos e perspectivamos enquanto traduo cultural fixada por duas autorias masculinas
da literatura portuguesa finissecular.
Assim sendo, pretende este estudo, como o ttulo salienta, contribuir com novas
perspectivas para a compreenso do dilogo entre a cultura portuguesa e o Extremo
Oriente, situado entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX, e arti-
cul-lo sob o paradigma da traduo cultural. A nossa hiptese de trabalho desdobra-se,
ento, em trs grandes etapas interpretativas: a feminizao do Oriente, a feminizao do
Oriente como parte de uma retrica orientalista e a retrica orientalista de feminizao do
Extremo Oriente como exemplo concreto de traduo cultural. Ressalvamos que estas
etapas interpretativas no correspondem ordenao dos captulos tericos da disserta-
o, que esto organizados de acordo com uma lgica de clarificao dos conceitos que
balizam a nossa discusso e de complexificao do argumento exposto.
Com efeito, estudar a experincia da alteridade, o modo como ela configurada e o
impacto que essa experincia tem no sujeito no em si mesmo um tema de investigao
novo ou inovador. Acreditamos, porm, que a novidade do nosso estudo reside no facto
de, por um lado, e com base num corpus restrito de autores portugueses, tornar visvel
uma arquitectura textual que se constri sobre uma rede de significaes associada ao
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gnero feminino para descrever a experincia de apreenso esttica do Extremo Oriente e,
por outro, considerar essa arquitectura como o culminar de um processo de traduo cul-
tural. Apenas recentemente a academia comeou a dar ateno a este paradigma, no
sendo, por isso, surpreendente a parca reflexo crtica, sobretudo em portugus, sobre o
assunto. Entender a retrica da feminizao do Extremo Oriente como um modo particu-
lar de traduo cultural pelo sistema portugus permitir inferir como a diferena de
gnero utilizada para expressar um contacto desejado, que se revelar de ordem cultural
e em particular esttica, com a China e o Japo. A feminizao do Oriente , por si s,
indicativa da esteticizao dessa geografia, em que a mulher eleita como o elemento
que melhor se presta a ser apreendido e moldado pela subjectividade masculina dos auto-
res do corpus e, por conseguinte, a traduzir a ideia que ambos fazem do Extremo Oriente.
A abrangncia conceptual do termo traduo, ora como exerccio de transfern-
cia de significados entre sistemas lingusticos diferentes, ora como metfora para desig-
nar uma multiplicidade de prticas culturais, convidou emergncia da noo de tradu-
o cultural, que tem vindo a adquirir uma centralidade crescente na construo e
transmisso de conhecimento cultural. Como lembra Maria Tymoczko, a translation
might be conceptualized or categorized as a literary text, a linguistic construction, an
example of cultural interface, a commercial venture, a sign of power, a feminist state-
ment, and even perhaps a revolutionary tactic (2010: 107). Consideramos a traduo
cultural como um dos paradigmas centrais das teorias culturais contemporneas, apesar
da falta de rigor com que a expresso por vezes utilizada. Reconhecemos que o nosso
interesse por este paradigma se fortaleceu com a frequncia, em 2007, de um seminrio
de ps-graduao que visou a anlise de diversas reescritas ps-coloniais de textos can-
nicos ocidentais como sintomticas deste fenmeno (Cultural Translations & Literary
Departures, sob a orientao do Prof. Doutor Akin Adesokan da Universidade de India-
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na). No podemos deixar de mencionar a pesquisa bibliogrfica realizada no decorrer
desse seminrio, de que salientamos o ensaio O Espao extico da traduo cultural de
Ovidio Carbonell (2008: 57-77) e as leituras da procedentes, na sua maioria reunidas em
traduo portuguesa no volume A Cultura entre traduo e etnografia (2008), organiza-
do por Joo Ferreira Duarte, que foi e para ns uma obra de referncia sobre o para-
digma da traduo cultural, no apenas em portugus mas no mbito da prpria disciplina
dos estudos de traduo em geral. Sobre a tendncia retrica para feminizar o Oriente, foi
para ns revelador o ensaio The Orient as Woman in Flauberts Salammb and Voyage
en Orient, de Lisa Lowe (1986: 44-58), a partir do qual comemos a questionar-nos
sobre a presena dessa tendncia diferenciadora no sistema literrio portugus.
A direco do nosso estudo, centrado na recepo e configurao do feminino ex-
tico por dois estetas portugueses que escreveram, em moldes bem distintos, sobre o
Extremo Oriente, permitiu-nos constatar a reduzida literatura crtica que, em geral, existe
sobre a literatura portuguesa, do final do sculo XIX e primeiras dcadas do XX, em arti-
culao directa quer com o fenmeno do orientalismo literrio portugus quer com o di-
logo que ele trava com outros orientalismos europeus finisseculares. Este facto pe em
evidncia a marginalizao deste fenmeno discursivo e do subsistema literrio que o sus-
tenta no mbito alargado da literatura portuguesa. Esta marginalizao -nos mais difcil
de explicar tendo em conta o contacto privilegiado entre Portugal e o Extremo Oriente por
meio de Macau, que serviu, durante sculos, de elo de ligao e mediao entre no ape-
nas Portugal mas a Europa em geral e a sia Oriental. Atravs do nosso corpus procura-
mos, ento, aprofundar o fenmeno do orientalismo literrio portugus, que, como vere-
mos, no sculo XIX mediado por literaturas europeias mais centrais, nomeadamente em
lnguas francesa e inglesa. Visamos, em particular, mostrar que este fenmeno um terre-
no de reflexo e indagao frteis, como comprovam os estudos de Machado 1983 (que
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corresponde primeira tentativa de sistematizao da presena do topos do Oriente na
literatura portuguesa), Lima 1999 e 2003, Ramos 2001 e Almeida 2012.
Estes estudos e outros que, embora de forma difusa, comeam a surgir, sobretudo a
partir da segunda metade do sculo XX, e a questionar directamente o orientalismo liter-
rio portugus so sobretudo de duas ordens: estudos de identificao de afinidades tem-
ticas indissociveis do imaginrio ocidental sobre o Oriente, e tambm da prpria ideia
nacional de Imprio, que teria sido assimilada a estticas literrias finisseculares; ou
estudos casusticos, dos quais se destacam os nomes de Ea de Queirs, Camilo Pessanha,
Antnio Feij e Wenceslau de Moraes. So estes dois ltimos autores que analisamos no
nosso estudo, porque os consideramos dois dos expoentes do entusiasmo pelo Extremo
Oriente no Portugal finissecular.
Por sua vez, os principais estudos que do conta da tendncia para a feminizao
discursiva do Oriente focam, em geral, os orientalismos anglo-saxnico (sobretudo brit-
nico) e francs, privilegiando um escopo temporal compreendido entre os sculos XVIII
e XIX, e tendem a concentrar-se em espaos orientais mais prximos, como o caso da
Turquia, e/ou a explorar a consolidao da retrica orientalista atravs do contributo de
vozes contra-hegemnicas como a da mulher europeia enquanto, tambm ela, produtora
de discursos imperialistas sobre o Outro oriental. Datando sobretudo da dcada de 1990,
esses estudos, na sua maioria desenvolvidos por crticas ou acadmicas feministas e
combinando abordagens ps-coloniais com perspectivas psicanalticas (Pal-Lapinski
2005; Yeenolu 1998; Lewis 2005 [1996]; Emberley 1993; Kabbani 2008 [1986]; Lowe
1986, 1991), justificam esta tendncia articulando sobretudo Oriente e desejo inconscien-
te ou Oriente e sexualidade, com base no contraste entre Ocidente/homem/activo e Orien-
te/mulher/passiva. No nosso estudo, que importa e desenvolve os mesmos argumentos,
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centramo-nos na configurao da mulher extica como objecto de conhecimento e sim-
bolizao esttica do Extremo Oriente.
esta proposta heurstica que pretendemos validar e que esperamos venha a moti-
var investigaes futuras; foram esses trabalhos que nos inspiraram e orientaram no nos-
so estudo, e que nos levaram a pensar o contexto do orientalismo portugus como parti-
cipante nesse discurso europeu de feminizao da geografia oriental. Sublinhamos, neste
sentido, que as obras que compem o nosso corpus nunca antes foram estudadas luz
desta retrica orientalista de feminizao do Oriente e, menos ainda, do fenmeno da
traduo cultural. No podemos, porm, deixar de mencionar as anotaes dispersas,
embora funcionando sobretudo como sustentao de um argumento mais genrico, por
ensastas como Ana Paula Laborinho (por exemplo, 2004b e 1993c) que, especialmente
informadas pelas leituras de Tzvetan Todorov (1989) e Victor Segalen (1978), muito nos
ajudaram na nossa reflexo sobre a possibilidade de acesso ao Extremo Oriente por via
do feminino extico.
Estimulados pela hiptese de trabalho e pelos objectivos expostos, seleccionmos
um corpus literrio, adequado s problematizaes tericas enunciadas, e heterogneo do
ponto de vista genolgico, conquanto limitado a apenas dois autores coetneos, a fim de
analisarmos como o fenmeno discursivo da feminizao do Extremo Oriente se mani-
festa e a identificarmos linhas de reflexo comuns, redes imagticas e outras regularida-
des com implicaes directas para a compreenso da alteridade oriental e, por conseguin-
te, do relacionamento entre Portugal e os espaos geoculturais em questo. A nossa esco-
lha recaiu, deste modo, sobre a lrica traduzida do poeta Antnio Feij (1859-1917), que
em Cancioneiro chinez (1890, 1903) glosou a China clssica, e a prosa de Wenceslau de
Moraes (1854-1929), que comentou Macau, e partir da a China, e votou confessado inte-
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resse ao Japo. Para alm do bvio critrio terico, escolha deste corpus presidiram
outros dois critrios: o periodolgico e o temtico.
Na opinio de lvaro Manuel Machado, o Romantismo portugus foi muito pouco
atrado pelo Oriente. Conclui ele que, como o romantismo europeu em toda a sua com-
plexidade esttico-cultural, incluindo portanto o seu elemento orientalista, s se expandiu
em Portugal com a Gerao de 70, [...] o orientalismo na literatura portuguesa oitocentis-
ta no existiu antes de finais do sculo XIX (Machado 1983: 73). Este perodo coincide
com o que veio a designar-se como movimento nacionalista (1890-1926) (entre outros,
Ramos 1994), desencadeado por uma crise de identidade colectiva e pela instabilidade
poltica e social que se instala ento. Foi dentro deste contexto histrico que o nosso cor-
pus foi produzido, contexto esse que ficaria marcado, em particular, pelo Ultimato Ingls
(1890) e pela instaurao da Primeira Repblica Portuguesa (1910-1926), bem como pelo
fortalecimento do aparelho colonial portugus, que foi concomitante com o intensificar
das deslocaes para Oriente, por parte de um corpo essencialmente diplomtico e consu-
lar ou no mbito das misses da Marinha Portuguesa. Ressalvamos assim que, ao longo
deste estudo, sempre que mencionarmos o orientalismo literrio portugus teremos em
mente um fenmeno literrio que se afirma no final do sculo XIX e balizado sobretudo
pelos dois acontecimentos assinalados.
Optmos de igual modo por uma homologia temtica na seleco do corpus. Pro-
pomos um regresso a Oriente, por um lado, por via de uma intermediao pela literatura
francesa, atravs da traduo de uma chinoiserie literria para portugus por Antnio
Feij, e, por outro, por via do testemunho presencial de Wenceslau de Moraes. No pri-
meiro caso, centramo-nos exclusivamente na obra potica Cancioneiro chinez, que cor-
responde primeira tentativa de traduo em lngua portuguesa de poesia clssica chine-
sa, a partir da colectnea Le Livre de jade (1867), compilada e traduzida para francs por
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Judith Gautier (1845-1917). No segundo caso, analisamos os ttulos publicados em livro
por Wenceslau de Moraes, em que as referncias a uma imagtica feminina esto disper-
sas e as quais aqui compulsamos de modo a compreender os vrios desdobramentos
interpretativos e possveis do feminino extico. Desta forma, exemplificaremos como a
retrica orientalista de feminizao do Oriente supragenolgica por no estar condicio-
nada a tipologias, gneros ou modos literrios.
Tambm a diferente localizao dos autores em relao ao Oriente foi tida em con-
siderao aquando da escolha do corpus. Antnio Feij, poeta e diplomata que viveu
grande parte da sua vida e morreu em Estocolmo, nunca esteve no Extremo Oriente; tra-
duziu a China distncia, a partir do Ocidente. Pelo contrrio, Wenceslau de Moraes,
oficial da Marinha e cnsul de Portugal no Japo, cronista e prosador, distinguiu-se pela
sua localizao privilegiada dentro da geografia da alteridade sobre a qual escreveu.
Atravs destes dois estudos de caso, to distintos entre si, pretendemos tambm verificar
se diferentes modos de contacto determinam diferentes estruturas de apreenso e de
(re)escrita do Extremo Oriente.
Por fim, temos ainda que admitir uma motivao pessoal suscitada pela posio
marginal e pelo olvido a que a obra destes autores tem estado condenada, no apenas no
quadro geral dos estudos em literatura portuguesa, mas tambm nas antologias e histrias
literrias. A este esquecimento junta-se a tendncia, s recentemente contrariada, para
uma abordagem biografista da obra de ambos os autores, comummente designados como
os que morreram de amor, a qual se reflecte na ausncia de um exerccio ensastico e
crtico consolidado e na consequente desactualizao de muitos dos estudos existentes. A
publicao mais recente de grande parte das cartas que constituem o legado epistolar de
Antnio Feij (Feij 2004a, 2004b; Machado 2007) e a edio das suas poesias comple-
tas, dispersas e inditas, por J. Cndido Martins (PC 2004; PDI 2005), beneficiaram bas-
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tante o nosso trabalho de pesquisa, assim como a nossa compreenso do fenmeno tradu-
trio em anlise. De igual modo reconhecemos aqui a nossa dvida para com a obra de
Manuela Leo Ramos (2001), que sem dvida um dos primeiros exerccios srios e
argumentativamente bem sustentados a inscrever Cancioneiro chinez, e tambm a obra
do poeta Camilo Pessanha, na tradio do orientalismo literrio, que a ensasta alinha
com a tese orientalista de Edward Said (2004a [1978]). No que respeita a Wenceslau de
Moraes, sublinhamos as diversas iniciativas (desde exposies a catlogos, obras colecti-
vas e reedies dos seus livros) que se desenvolvem sobretudo a partir das comemora-
es dos 150 anos sobre o nascimento do autor, em 2004, e o contributo, tambm recente,
da Imprensa Nacional para a promoo da sua obra (Laborinho 2004a; FMPJ 2004;
OYKH 2006; Barreiros 2007), bem como o interesse que ela tem gerado a nvel de estu-
dos ps-graduados (Vital 1998; Tinlin 1998; Chaves 2000, 2004; Neto 2003; Pires
2007; Capito 2012). Ainda no mbito dessas iniciativas, assinalamos o importante ins-
trumento de trabalho que o catlogo Os Portugueses e o Oriente. Sio China Japo
(2004) constitui, ao reunir informao histrica e bibliogrfica relevante para o perodo
de 1840 a 1940, a partir do qual comemos a traar e compreender as redes literrias
que ligam o Portugal finissecular ao Extremo Oriente.
Tendo em conta os objectivos que nos propomos cumprir e o corpus seleccionado,
visamos, de um modo mais geral, contribuir para os chamados estudos Leste-Oeste que,
na ltima dcada, se tm afirmado em disciplinas como os estudos de traduo e a litera-
tura comparada. E so quatro as reas de investigao sobre as quais incidimos preferen-
cialmente dentro do escopo temporal em foco (sculos XIX-XX): a do orientalismo lite-
rrio em Portugal; a da histria do relacionamento cultural e literrio entre Portugal e a
China e Portugal e o Japo; a da histria da traduo em Portugal; e a dos estudos de
gnero, concedendo particular ateno aos agentes que mediaram esses intercmbios, aos
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discursos estticos que produziram e ao imaginrio que puseram em circulao a respeito
das culturas asiticas em foco. Transversal a estas reas a formao de um gosto ou
discurso esttico no apenas sobre o Extremo Oriente e o corpo oriental mas, em particu-
lar, sobre um corpo feminino, transformado, como veremos, em palco simultaneamente
de encontro e de diferena esttica, cultural e espcio-temporal.
Neste estudo de dilogos entre Portugal e a sia Oriental, e como impe o prprio
lxico das reas sobre as quais o nosso estudo incide, conceitos como imagem, repre-
sentao e configurao so centrais para aludirmos relao entre texto, autor e
objecto textualizado. Como o ttulo da presente dissertao demonstra, a nossa nfase
recai sobre a configurao da identidade de gnero, e por conseguinte cultural, do
Extremo Oriente no final do sculo XIX e princpios do sculo XX. Importa, desta forma,
clarificar e precisar o uso que fazemos neste estudo de cada conceito assinalado, sem
descurar a dimenso histrica em que cada um se inscreve.
Utilizaremos o termo imagem para designar sobretudo uma construo esttica
da alteridade produzida por um determinado discurso semitico, ou seja, como um ins-
trumento retrico que participa na criao de um imaginrio consistente sobre o Outro
oriental. O estudo da imagem do estrangeiro na literatura e sua recepo atinente aos
estudos culturais e uma das (sub)reas mais antigas da literatura comparada. Ao termo
imagem subjaz o peso da tradio imagolgica, que caracterizou particularmente a
escola francesa da literatura comparada3 e a que ficaria ligada a trade viagens, imagens,
miragens (Pageaux 2004 [1989]: 133). Aps uma primeira fase em que a imagologia
comparatista esteve mais orientada para o estudo dos nacionalismos literrios e de uma
3 Vejam-se, para alm de Daniel-Henri Pageaux (2004 [1989]) e entre outros, os seguintes trabalhos: Jean-
-Marc Moura. 1992. LImagologie littraire. Essai de mise au point historique et critique. Revue de littra-
ture compare 3: 271-287; Joep Leerssen, e Menno Spiering (eds.). 1991. Yearbook of European Studies/
Annuaire dtudes europennes 4. National Identity Symbol and Representation. Amesterdo e Atlanta:
Rodopi; lvaro Manuel Machado, e Daniel-Henri Pageaux. 1988. Da Literatura comparada teoria da
literatura. Lisboa: Edies 70, sobretudo 3. Da Imagem ao imaginrio, 55-81.
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segunda fase, j nos anos 1950, em que se apoia numa sociologia da literatura que estuda
a identidade nacional como literariamente estruturada sobre a oposio Eu/Outro, o inte-
resse pelos estudos imagolgicos reemerge no final dos anos 1970, sobretudo como rea
de investigao interdisciplinar, muito em virtude da viragem culturalista nas cincias
humanas que veio dinamizar os estudos de recepo e fortalecer os estudos culturais.
Mais recentemente tm ganhado forma iniciativas vrias no seio dos estudos de traduo
com vista a interligar os estudos de imagem com os de traduo4, pois, como salienta
Andr Lefevere, [t]ranslation is one of the most obvious forms of image making, of
manipulation, that we have. [...] Translation is responsible to a large extent for the image
of a work, a writer, a culture (1990: 26-27).
Reconhecemos a dimenso imagolgica como subjacente s teorizaes que faze-
mos nesta dissertao. Segundo lvaro Manuel Machado (2001: 2), a prtica comparatis-
ta no Portugal do sculo XIX tem por base esta dimenso, que estaria essencialmente
entrelaada com a elaborao de imagens sobre o estrangeiro como forma de denunciar
os problemas intrnsecos nao e, por esse modo, proceder reviso da imagem da cul-
tura nacional. Machado (2001: 2-3) distingue sobretudo dois momentos formadores dessa
dimenso imagolgica: por um lado, o Romantismo portugus pela nfase que colocou
sobre o nacionalismo; por outro, a Gerao de 70 pelo reconhecimento de uma depen-
dncia nacional em relao cultura francesa, eleita como cultura de referncia e autori-
dade (Casanova 2008 [1999]), que serviu de inspirao modelar s demais correntes
artsticas no Portugal finissecular, numa tentativa de, atravs do seu exemplo, colocar o
pas a par da modernidade europeia. Os autores que compem o nosso corpus acompa-
4 Por exemplo, Luc van Doorslaer, Joep Leerssen e Peter Flynn comearam em Julho de 2012 a organizar o
volume Interconnecting Translation and Image Studies, na sequncia do xito da conferncia internacional
The Low Countries Conference: Translation and National Images, que teve lugar de 16 a 18 de Novem-
bro de 2011 em Anturpia e Amesterdo.
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nharam estes momentos formadores, embora distncia de duas dcadas, contribuindo
para a importao e circulao de imagens sobre o Extremo Oriente.
Partindo, como sistematizado por Jean Marc-Moura (1992: 271), ora de fontes tex-
tuais directas (documentos primrios como dirios de bordo ou relatos de viagens, de que
exemplo a obra de Wenceslau de Moraes) ora de fontes indirectas (obras de fico, de
que exemplo a poesia traduzida de Antnio Feij), imagologia interessa a interligao
entre literatura, cultura e sociedade atravs da textualizao da diversidade cultural e seu
impacto num dado sistema nacional. Incide de forma privilegiada na cultura em que a
imagem criada como representao de uma cultura outra, cruzando o imaginrio socio-
cultural do criador da imagem (escritor) com o do seu receptor (leitor) (Moura 1998a: 43-
-44). Quer isto dizer que a imagem, no mbito da imagologia comparatista, traduz uma
relao subjectiva com o mundo e, em princpio, recusa categorizaes essencializadoras,
tais como verdadeira ou autntica, ou qualquer gradao adjectival que conote algum tipo
de ligao ao mundo extratextual. A imagem estudada como propriedade do texto lite-
rrio, dentro da sua prpria lgica e consoante a funo que desempenha no texto, em
que d consistncia a um certo imaginrio sobre o Outro, sem pretenses a verificar a sua
adequao a uma realidade preexistente. Enquanto o estudo imagolgico busca, partida,
a imagem do Outro com vista a compreender como esta circula numa dada literatura
nacional, no nosso estudo procuramos antes compreender como dois autores se relacio-
nam com o Outro oriental e o configuram como testemunho de uma forma mais ampla de
conceptualizar a alteridade asitica e de pensar, por conseguinte, a realidade de que so
originrios.
Se imagologia no interessa verificar o grau de correspondncia entre imagem e
realidade, o mesmo no se poder dizer a respeito do termo representao. Desde a
poca clssica que o termo est associado tradio mimtica, que, como recorda Isabel
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33
Capeloa Gil, se reportava a uma forma particular de representao atravs da dana. O
acto mimtico apresentava-se assim como momento fundador de mediao entre realida-
des e indivduos, enquanto instrumento de identificao fundado no corpo e superfcie
primordial de representao (2004: 91). Utilizamos o conceito sobretudo quando nos-
so propsito chamar a ateno para questes de referencialidade, ou seja, de correspon-
dncia entre imagem e realidade, ou significante e significado, e para designar o processo
de criao da imagem literria e cultural; por isso, o termo recorrente, como veremos,
na nossa discusso em torno da obra inaugural de Edward Said, Orientalismo (1978).
Representar , no fundo, evocar/presentificar algo para sobre ele discorrer ou expressar
uma opinio; este acto reporta-se, deste modo, a um produto final, ao servir como presen-
tificao de um objecto ausente ou um conceito, por meio de imagem, figura ou smbo-
lo (Dicionrio da Academia das Cincias de Lisboa 2001: 3203). Na esfera literria,
representar significa sobretudo dar a conhecer atravs da mediao da palavra (potica,
simblica, metafrica), construir uma imagem com uma finalidade, que permite assim
entrever um posicionamento sobre o objecto em representao, pois, como salienta Maria
Tymoczko (2010: 113), as representaes implicam perspectivas e dissimulam, muitas
vezes, uma agenda ideolgica, para alm de se apoiarem em discursos preexistentes que
moldam as perspectivas do produtor da representao, e tambm as do seu receptor.
Representao e imagem partilham, como se v, a mesma realidade como referente e
correspondem a uma possibilidade de figurao, e logo de traduo, da realidade.
Em comparao com os termos imagem e representao, o conceito de confi-
gurao , em nosso entender, mais abrangente, nele estando implicada a construo de
uma imagem ou representao, e mais neutro, no sentido em que no carrega a herana
mimtica que caracteriza a representao. Alm disso, acreditamos que o seu uso assegu-
ra da nossa parte, enquanto investigadores, um maior distanciamento crtico em relao
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aos processos discursivos patentes no corpus a analisar. Do latim configuratio, con- (jun-
to) figuratio (forma exterior), configurar diz primeiramente respeito forma exterior,
ou aspecto geral, de um corpo, isto , disposio relativa das partes ou dos elementos
de um todo (Dicionrio da Academia das Cincias de Lisboa 2001: 915), que resulta
necessariamente de um processo de transformao semitica. O conceito de configura-
o, assim o defendemos, duplamente operativo ao colocar uma nfase quer no pro-
cesso ou modo de construo da imagem da alteridade e dos seus significados mltiplos,
quer nas condies em que esse processo decorre. Permite-nos tambm evitar trusmos
tais como uma representao fiel ou infiel, verdadeira ou falsa. Usamo-lo, por isso, como
sinnimo de formao discursiva e nesse mbito que damos particular ateno aos dis-
cursos que influenciaram directamente os autores do nosso corpus e com os quais os seus
textos estabelecem elos estticos, retricos ou temticos, elos esses que reforam a sua
participao na tendncia europeia para a feminizao do Oriente.
A imagem e/ou a representao so, como se v, o resultado de uma configurao
literria. Ao mesmo tempo que nos interessa compreender o processo de formao de
imagens culturais e de representaes literrias de um tipo oriental especfico isto , a
configurao , no podemos obliterar o facto de que essas imagens e os seus significa-
dos so normalmente criados na e para a cultura de chegada; quem as recebe que atribui
sentido a essas tradues do elemento estrangeiro. Visamos, ento, compreender como a
alteridade habita a cultura portuguesa finissecular e, para isso, combinamos diferentes
propostas tericas e metodolgicas. O prprio corpus seleccionado convida hibridez
disciplinar apontada, cruzando as disciplinas de estudos de traduo, estudos de cultura,
estudos de gnero e literatura comparada, disciplinas cuja dinmica assenta no binarismo
Eu/Outro, e propondo o estudo simultneo de literatura traduzida e literatura no-
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-traduzida, s quais se atribui igual importncia, porque se complementam na representa-
o esttica e ideolgico-cultural que propem do Outro extremo-oriental.
para este contexto que trazemos tambm o conceito de reescrita, que aplicamos
de forma flexvel para designar prticas discursivas pelas quais, por um lado, se verbaliza
a experincia da alteridade, que ocorre em circunstncias histrico-culturais concretas, e
o efeito que ela desperta sobre o sujeito que a tenta verbalizar e, por outro, se convocam e
sobrepem discursos estticos, semiticos e de mediao cultural vrios, que so trans-
postos para o idiolecto de quem traduz o Oriente. Este conceito foi introduzido no mbito
da Escola da Manipulao, historicamente constituda ao longo da dcada de 1980, por
Andr Lefevere no seu ensaio Why Waste our Time on Rewrites? The Trouble with
Interpretation and the Role of Rewriting in an Alternative Paradigm, que integrou a
coleco crtica que deu nome escola, The Manipulation of Literature Studies in Lit-
erary Translation (1985). Fundamentalmente, o conceito veio chamar a ateno para a
coexistncia de diferentes modos de produo discursiva, em que, na textualizao de uma
qualquer experincia com a alteridade, mais importante seriam os processos de apropria-
o e manipulao da alteridade textualizada. A noo de reescrita veio, de igual modo,
valorizar o contexto de produo e recepo do texto de chegada, assim como os variados
processos que tm lugar nesse contexto; so esses diferentes modos de produo textual e
os processos que os sustentam a que o corpus a analisar d visibilidade.
Formalmente, para alm das notas introdutria e final, da Bibliografia (citada) e
dos Anexos, este estudo est dividido em duas grandes partes: a primeira, intitulada O
Oriente nas encruzilhadas da traduo cultural, consiste no enquadramento terico-
-metodolgico do nosso estudo; a segunda, intitulada A Demanda do feminino extremo-
-oriental em Antnio Feij e Wenceslau de Moraes, consiste na anlise do corpus liter-
rio, que engloba, como o subttulo demonstra, dois estudos de caso e cumpre uma finali-
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dade pragmtico-descritiva. Para todos os captulos que compem ambas as partes, apre-
sentamos, no final, uma subseco intitulada Notas conclusivas, que pretende funcio-
nar como sntese das principais ideias exploradas no respectivo captulo e como fio con-
dutor entre os demais captulos.
Na primeira parte, expomos a nossa ancoragem terica a partir de uma anlise crti-
ca do estado da arte. Divide-se em trs captulos que correspondem, em traos breves,
apresentao das coordenadas conceptuais e histricas do nosso objecto de estudo, ao
paradigma terico que sustenta o argumento a explorar e colocao desse argumento
em relao ao corpus seleccionado. So eles: 1. Figuraes do Oriente, 2. Nas Encru-
zilhadas da traduo cultural e 3. A Feminizao do Oriente.
O Captulo 1, Figuraes do Oriente, pretende ser de discusso e contextualiza-
o histrico-espacial do problema do orientalismo. Tomamos como ponto de partida um
texto a que j aqui aludimos e central a qualquer teorizao das relaes interculturais e,
em particular, aos estudos culturais e ps-coloniais: trata-se de Orientalismo, de Edward
Said. Situando o incio do orientalismo na campanha napolenica no Egipto, desencadea-
da em 1798, o ensasta considera o final do sculo XIX e o princpio do XX como o auge
da atitude e da escrita orientalistas, que define numa sobreposio com a atitude e a escri-
ta coloniais e em ligao a um perodo em que se teria agudizado a polaridade entre cul-
tura ocidental e cultura no-ocidental. O nosso percurso de problematizao terica esta-
belece-se em contnuo dilogo com este ensaio crtico, luz do qual analisamos o corpus
literrio, procurando, contudo, ir alm das suas preocupaes e no nos esgotarmos nelas.
Do ponto de vista do problema enunciado neste primeiro captulo, que consiste numa
leitura cuidada e pormenorizada da obra saidiana, o orientalismo questionado como
esquema de representao e de circulao de imagens, na medida em que oferece confi-
guraes selectivas e relativizadas da realidade, ou seja, simulaes plurais do Oriente.
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Neste captulo no problematizamos abertamente a retrica da feminizao do Oriente
em ligao questo orientalista, que tratamos apenas no Captulo 3. nosso objectivo
definir as principais implicaes tericas do fenmeno orientalista e articul-las com a
histria das relaes entre Portugal e a sia Oriental. Sistematizamos, nesse sentido, os
momentos de maior e menor contacto entre Portugal e a China e o Japo, os quais osci-
lam entre a filia e a fobia; identificamos modos de pensamento dominantes sobre esse
Outro oriental; exploramos ainda os conceitos-chave de citao, para nomear fenme-
nos como o da intertextualidade, e de simulacro e geografia imaginria, para mostrar
a fora retrica das representaes oitocentistas do Oriente. A dinmica intercultural
explanada neste captulo conduz ao paradigma da traduo cultural, que aglutina todos os
processos de contacto cultural e literrio em estudo.
O Captulo 2, Nas Encruzilhadas da traduo cultural, consiste na fundamentao
terica do nosso estudo atravs de um debate centrado no paradigma da traduo cultural,
que, segundo Anthony Pym (2010), s mais recentemente comeou a atrair o interesse
dos estudos de traduo. Com vista a propor uma definio operativa do conceito e a
explorar as vantagens que ele oferece para o nosso estudo, reflectimos, neste captulo,
sobre as potencialidades metafricas e dialgicas do conceito de traduo, sobretudo
enquanto prtica de hospitalidade ou hostilidade cultural, a partir do contributo de disci-
plinas como a antropologia, os estudos culturais, os estudos ps-coloniais e os estudos de
traduo. Questes como a intraduzibilidade so atinentes ao percurso que aqui delinea-
mos, atravs da qual chegamos discusso do conceito de exotismo, com base em
Essai sur lexotisme (1978) de Segalen, como suposto acto falhado de traduo cultural.
O Captulo 3, A Feminizao do Oriente, nuclear nossa tese, pois nele con-
cretizamos o nosso argumento: a tendncia para a construo de um discurso de femini-
zao do Oriente no final do sculo XIX e nas primcias do sculo XX. Comeamos por
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mostrar a existncia de uma tendncia ocidental mais geral para feminizar espaos de
pertena e de diferena. Ilustramos esta tendncia com a retrica da feminizao da
nao, que apoiamos no discurso da historiografia nacional, e alargamos o uso retrico da
imagtica feminina noo de colnia e, por ltimo, ao Oriente. Sumariamos as princi-
pais crticas ausncia de uma reflexo sobre a feminizao do Oriente no postulado
saidiano e exploramos, em particular, o esteretipo da hostilidade que era frequente pro-
jectar no espao oriental. Fazemo-lo atravs de duas figuras que habitam o imaginrio
europeu e so arquetpicas do feminino perverso oriental, reavivado no final do scu-
lo XIX, nomeadamente Salom (em ligao ao Oriente islmico) e Turandot (em ligao
China). Atravs destes dois exemplos visamos mostrar como um dos discursos mais
recorrentes na Europa oitocentista sobre o Oriente entrecruzava gnero, espao e violn-
cia. Em contraponto a estas alteridades femininas, que exemplificam o mito do mau
Oriente, enunciamos outros discursos emblemticos que investem num feminino passivo
e submisso, o mesmo que o nosso corpus textualiza, assim confirmando a ambiguidade
discursiva que caracteriza o discurso europeu sobre o Extremo Oriente no fim-de-sculo.
Na segunda parte da dissertao procedemos anlise do corpus literrio, procu-
rando pr em evidncia as marcas discursivas do gnero feminino que se atribui ao
Extremo Oriente, a fim de testarmos a nossa hiptese de trabalho. Esta parte , por isso,
de natureza sobretudo descritiva e interpretativa. Est dividida em dois captulos que cor-
respondem, respectivamente, a cada um dos autores e conjunto de textos a analisar:
4. Cancioneiro chinez e o Oriente feminino e 5. Wenceslau de Moraes e o Eros
extremo-oriental. Alertamos para a estruturao dspar destes dois captulos, para os
quais definimos diferentes instncias de anlise, embora sejam conducentes a linhas de
reflexo similares, com vista compreenso do modo como cada autor assimilou a alte-
ridade feminina extremo-oriental. Essa estruturao dspar explica-se, em grande medida,
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pelo modo (livresco ou real, mediado ou no-mediado) como os autores contactaram com
o Extremo Oriente e pela prpria natureza dos textos em anlise: por um lado, a poesia
traduzida de Antnio Feij e, por outro, a prosa de Wenceslau de Moraes.
No Captulo 4, Cancioneiro chinez e o Oriente feminino, comeamos pela defi-
nio do perfil literrio de Antnio Feij e do da tradutora de partida, Judith Gautier, para
definir a recepo de Cancioneiro chinez no sistema portugus. Em vez de partirmos da
anlise do texto para a sua recepo, sistematizamos primeiramente a sua recepo crtica
e as principais linhas definidoras dessa recepo, que ajudam a sustentar o quadro inter-
pretativo que construmos. Esta direco da anlise permite comparar as imagens geradas
pela crtica sobre a traduo potica com as imagens criadas pela traduo potica em
torno da alteridade chinesa, bem como verificar como se complementam entre si. Divi-
dimos ainda a anlise do texto em trs momentos: preliminar (ou paratextual); macrotex-
tual, que respeita anlise da organizao formal da obra e da prosdia adoptada, a qual
permitir confirmar o comportamento tradutrio traado e inferir como ele influencia a
configurao da mulher chinesa; e textual, em que identificamos os instrumentos retri-
co-discursivos utilizados em Cancioneiro chinez com vista feminizao da China cls-
sica que a obra projecta, os quais reflectem valncias esttico-ideolgicas que definem o
programa potico de Antnio Feij.
No Captulo 5, o prprio ttulo aponta para uma mudana de perspectiva: Wences-
lau de Moraes e o Eros extremo-oriental revela, em relao ao captulo precedente, um
maior enfoque na figura do agente, produtor e disseminador de representaes sobre o
feminino extremo-oriental. Este enfoque advm do prprio papel de mediador cultural
que o autor reivindica para si e que se projecta em toda a sua obra, cujo conjunto exami-
namos sem privilegiarmos um ttulo em particular. Desdobramos a nossa anlise da prosa
moraesiana em vrios nveis, de que destacamos o espacial Macau/China e Japo , que
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cruzamos com o iderio de feminino extremo-oriental em discusso a mulher como
paradigmtica do colectivo geocultural em que se insere (mulher extica) e a mulher
nomeada, que teria feito parte da vida do autor emprico (mulher biogrfica). Para cada
um destes nveis propomos sobretudo linhas de anlise tpica, ligadas s imagens que o
autor associa ao gnero feminino extremo-oriental e tambm ao uso metafrico que faz
desta categoria para topografar sobretudo o Japo, que enaltece como modelo civiliza-
cional.
Em suma, esta dissertao pretende argumentar a presena de uma retrica orienta-
lista de feminizao do Extremo Oriente num corpus sincrnico limitado a dois autores
portugueses. Para isso, procuramos descrever como so configuradas as figuras femini-
nas que habitam o conjunto de textos seleccionado, identificar e caracterizar os processos
discursivos e retrico-estilsticos que sustentam essa feminizao e a tornam sintoma de
um discurso de esteticizao da geocultura extremo-oriental, compreender se e como a
feminizao serve uma agenda pessoal, e determinar as implicaes que essa feminizao
tem para o relacionamento histrico-cultural entre Portugal e o Extremo Oriente.
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PARTE 1
O ORIENTE NAS ENCRUZILHADAS
DA TRADUO CULTURAL
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Captulo 1
Figuraes do Oriente
Ocidente e Oriente so dos pares nocionais mais vulgarizados no mbito dos estudos
interculturais, a que subjaz o binmio mais geral do Eu/Outro, cujos termos em correla-
o correspondem a denominaes diferentes mas que, no fundo, podem designar a
mesma realidade. esta constatao, a de que o Outro sustenta a configurao psquica,
social e cultural do Eu, que Tzvetan Todorov toma como ponto de partida na sua reflexo
sobre La Conqute de lAmrique (1982). Estudos como o de Todorov mostram que Eu e
Outro funcionam como (de)marcadores culturais e ideolgicos que sobrecodificam um
qualquer discurso cultural. Na opinio de Doris Bachmann-Medick (1996: 2), foi a
assuno deste tipo de dicotomias (Eu/Outro, Ocidente/Oriente, familiar/estranho) que
moldou o que designa como o tom do contacto intercultural, a recepo literria e a tra-
duo, ou seja, as relaes que analisamos na presente dissertao.
O Oriente tem sido uma das alteridades radicais mais imediatamente reconhecveis
da Europa5, como se v pela diversificada literatura europeia que tematiza este crontopo,
sobretudo entre a segunda metade do sculo XIX e o princpio do XX, em particular no
que toca ao gnero, ou subgnero, que hoje se denomina narrativas de viagem. Em
traos gerais, a viagem, como meio ou finalidade, veio abrir mltiplas possibilidades de
acesso directo a culturas distantes e ao conhecimento delas, permitindo a recolha de
informao de teor diverso, desde antropolgico a historiogrfico, religioso ou sociolgi-
co, muitas vezes cruzada com conhecimentos de reas mais tcnicas, como a biologia, a
5 Na opinio de Todorov (1990: 12-14), a descoberta da Amrica que marca o encontro mais surpreen-
dente, extremo e exemplar de toda a histria ocidental. Nega mesmo a existncia de outro discurso que se
iguale com o mesmo sentido de diferena radical na descoberta de territrios outros. Esta diferena ter-se-
-ia consubstanciado na figura do bom selvagem, que Todorov explora em La Conqute de lAmrique.
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geografia humana e outras cincias similares. No sculo XIX, sobretudo o desenvolvi-
mento da antropologia como disciplina cientfica e o alargamento do seu objecto de estu-
do a espaos tnico-culturais longnquos que beneficiou da democratizao do acto de
viajar, fomentada em grande medida pelo fenmeno setecentista do Grand Tour6 torna-
riam mais bvio esse exerccio interdisciplinar, a que o Romantismo teria dado um novo
mpeto ao reinventar a ligao individual do homem ao mundo emprico (Blanton 2002:
19). A antropologia emerge neste ambiente de exaltao do homem e da Europa, decor-
rente do pressuposto avano material da Europa e da expanso bem-sucedida dos imp-
rios europeus. Este sentimento de superioridade da civilizao e do homem ocidentais
est especialmente patente nas narrativas de viagem por espaos no-europeus, apoiadas
ora numa experincia in loco, ora em testemunhos de terceiros.
No sistema literrio portugus, foi a partir da aventura martima renascentista e dos
relatos de viagem a ela associados que se desenvolveu o (sub)gnero das narrativas de
viagem, em particular sob os auspcios dos missionrios jesutas. Da expanso martima
quinhentista e seiscentista resultar uma deslocao progressiva para o Oriente, que vem
viabilizar o conhecimento do mundo asitico e o subsequente estabelecimento de rela-
es directas e permanentes com a generalidade das regies da sia martima (Loureiro
1999: 339), desde Goa, Ormuz e Malaca a Macau, China, Japo ou Timor7. O pioneiris-
mo e o empreendedorismo portugueses na sia tornam inegvel o contributo do projecto
6 O Grand Tour, que inicialmente se popularizou entre as elites sociais britnicas, pode ser definido como
uma viagem duplamente formadora: enquanto concluso da educao do jovem aristocrata e enquanto sua
iniciao na vida pblica e profissional. Tinha por objectivo no apenas expandir e consolidar conhecimen-
tos lingusticos e culturais, mas tambm o desenvolvimento de relaes diplomticas e comerciais (Quin-
teiro 2009: 55; Graa 2008: 186). 7 Rui Loureiro resume os incios da histria da presena portuguesa no Extremo Oriente da seguinte forma:
[T]rs anos mais tarde chegavam ilha de Ceilo [em 1506]; em 1509 aportavam a Malaca, cidade que
seria conquistada dois anos mais tarde; em 1512 eram organizadas expedies s Molucas e ao Sio; no
ano imediato os primeiros portugueses desembarcavam no sul da China e talvez em Timor; e em 1516 as
margens do golfo de Bengala eram exploradas pela primeira vez (1999: 340). O estabelecimento de bases
slidas atravs de feitorias e fortalezas em territrio indiano possibilitou presena portuguesa expandir-se
at Malaca, tornada o primeiro porto seguro durante a dinastia Ming (1368-1644), que Macau viria a subs-
tituir ao assumir-se como principal ponto de contacto entre Ocidente e Oriente.
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expansionista portugus para o desenvolvimento de uma produo literria na Europa
ligada ao Oriente e nele inspirada, tendo Portugal servido at meados do sculo XVII de
intermedirio nessa relao cultural, tal como o foi no intercmbio comercial. Entrev-se,
pois, uma coincidncia histrica entre a proliferao de narrativas de viagem e a viragem
a Oriente, que, no sculo XIX, se v transformado em paisagem de inspirao romntica
e estmulo experincia literria ou num espao simultaneamente de peregrinao (por
exemplo, atravs de Chateaubriand) e turismo (por exemplo, atravs de Pierre Loti).
Da produo literria dita extica de final do sculo XIX e princpios do XX, do
Extremo Oriente, tambm designado como sia Oriental ou Leste Asitico, que nos ocu-
pamos no presente estudo. Para o repositrio literrio sobre este extremo geogrfico con-
triburam diversas literaturas europeias, entre as quais a portuguesa. Para ilustrar o con-
tributo nacional, listamos, no Anexo 1, um conjunto de obras que tematiza Macau, a Chi-
na e o Japo, escritas originalmente em portugus e publicadas em livro entre 1851 e
1929, que pretende ser um perodo representativo. Manuela Leo Ramos subcategoriza as
obras produzidas nesse perodo redigidas na sua maioria por diplomatas, cnsules e
oficiais da Marinha e contendo quase todas referncias tpicas ao espao oriental tratado
em livros de viagens sob forma epistolar, impresses pessoais de viagem, dirio,
relatos sobre costumes e usos e fico de temtica ultramarina (2001: 41). Para alm
destas categorias, sublinhamos ainda a fico de aventuras e o fantstico-maravilhoso (de
que o conto O Mandarim [1880], de Ea de Queirs, exemplo), assim como manuais
mais tcnicos ou especializados (de que Repositorio de noes de botanica applicada
[1904], compilado por Joo Antnio da Silva, exemplo). Com base no mapeamento
bibliogrfico apresentado no Anexo 1, que no engloba o contributo da literatura traduzi-
da, de que uma das obras do nosso corpus Cancioneiro chinez exemplo, tomamos
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como ponto de partida a existncia de um orientalismo literrio portugus que conhece no
final do sculo XIX um desenvolvimento significativo8.
Semanticamente, o sufixo -ismo remete para um sistema de pensamento ou doutri-
na, um modo de proceder ou pensar (Cunha e Cintra 2002: 98). O orientalismo traduzi-
r, ento, um modo particular de conceptualizar uma geografia consensualmente desig-
nada por Oriente que perspectivaremos, nesta dissertao, a partir da experincia portu-
guesa e enquanto possibilidade ou estrutura de contacto com essa alteridade.
Pretendendo ns inscrever o orientalismo finissecular portugus sob a insgnia da
traduo cultural, no nos possvel faz-lo sem ter em considerao um texto seminal que,
desde a sua publicao em 1978, tem sido alvo de polmica: trata-se de Orientalismo de
Edward Said que, juntamente com The Question of Palestine (1979) e Covering Islam
(1981), o ponto de partida para o que se convencionou chamar a sua trilogia orientalista.
Hoje inegvel o contributo deste texto para a consolidao dos estudos culturais e para a
emergncia da rea de reflexo crtica designada como estudos ps-coloniais9.
8 Partimos da constatao de que h uma tradio de orientalismo portugus, confirmada, alis, por publi-
caes como o volume colectivo O Orientalismo em Portugal: sculos XVI-XX (Ana Maria Rodrigues e
Antnio Manuel Hespanha, coord. 1999) ou o estudo de caso Antnio Feij e Camilo Pessanha no pano-
rama do orientalismo portugus (Ramos 2001). Sobre o problema do Oriente portugus e do discurso
orientalista em Portugal em ligao ao Extremo Oriente, vejam-se entre outros: Ana Paula Laborinho, e
Marta Pacheco Pinto (orgs.). 2010. Macau na escrita, escritas de Macau. Ribeiro: Hmus, sobretudo 9-17
(introduo por Ana Paula Laborinho) e 81-92 (ensaio de Ana Paula A