Tragédia Grega - A Cidade Faz Teatro

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  • REVISTA PHILOSOPHICA N 26 (2003) Instituto de Filosofa Pontificia Universidad Catlica de Valparaso

    TRAGDIA GREGA: A CIDADE FAZ TEATRO

    Greek Tragedy: The City Makes Theater

    RACHEL GAZOLLA1

    RESUMO

    O texto pretende mostrar o teatro trgico e sua relao com a plis e com a Filosofia nascente no querespeita imitao. Quando recortamos certo vocabulrio usado pelos poetas arcaicos (picos elricos), possvel ver que os trgicos porque descobriram o dilogo como forma para seus textos criaram novos sentidos s mesmas palavras. Descobriram, tambm, as palavras para o pensamentojurdico/poltico nas cidades do V a.C., (como os pr-socrticos), ou seja, a fora que podem ter ospensamentos e sentenas argumentativas pblicas na formao do ethos grego.

    Palavras-chave: tragdia, jurdico, dilogo, imitao

    ABSTRACT

    The text intends to contemplate the tragic theater and the relationships with the plis and theinfluences in the nascent Philosophy, mainly in the subject of the imitation. When we pick up a certainvocabulary used by the archaic poets (epic and lyrical), it is possible to see that the tragic poets -because they discovered the dialogic form for your texts, they created new senses to the same words.They discovered also the words to the juridical/political thought and political (like the presocratics) inthe cities of the V aC, that is, the forces that can have the publics thoughts and argumentativessentences in the formation of the Greek ethos

    words-key: tragedy, juridical, dialogue, imitation

    1 Rachel Gazolla de Andrade professora titular de Histria da Filosofia Antiga na PontifciaUniversidade Catlica de S.Paulo, SP, Brasil

    RACHEL GAZOLLA / Tragdia Grega: A Cidade Faz Teatro

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  • REVISTA PHILOSOPHICA N 26 (2003) Instituto de Filosofa Pontificia Universidad Catlica de Valparaso

    1. O teatro trgico: um drama histrico e universal

    1.1 A historicidade da tragdia

    Quando pensamos na Grcia Antiga costumamos olhar para trs, e na melhor das

    hipteses fantasias sobre Homero, os deuses e os heris gregos, ou sobre a batalha

    de Tria, podem vir aos nossos olhos numa espcie de pintura atemporal e pouco

    ntida. Chegam-nos, tambm, imagens sobre as tragdias, as comdias, os filsofos,

    e o que nomeamos os primeiros historiadores. O imaginrio no se preocupa em

    datar seu olhar, de modo que os heris picos, os trgicos, os comediantes, os

    filsofos convivem num quadro nico que, em geral, respeitamos. E respeitamos

    porque interpretamos serem belos os versos dos poetas e profundo o pensamento

    dos filsofos. No entanto, essa Grcia quase idealizada numa s pintura bem mais

    aquela do chamado perodo clssico (a partir do sculo V a.C.) e bem menos a do

    perodo arcaico, produtor da poesia pica, da lrica, dos primeiros textos trgicos e

    filosficos. Trs sculos, pelo menos, separam o arcaico Homero do clssico

    Tucdides, diferena que em nada pesa no ir e vir das imagens.

    A Grcia nomeada arcaica, distanciada na cronologia daquela democrtica e do

    imprio ateniense, objeto de intensa investigao dos especialistas atuais, mas

    para ns, no especialistas, como nota Claude Moss, ainda parece um perodo

    obscuro2. Ter essa Grcia obscura para nossa imaginao reflexiva talvez seja um

    modo de dizer que a guardamos enquadrada com mais fixidez, porm com poucas

    cores e perfis em relao quela de Pricles. Por qu? So interessantes os matizes

    do nosso pensar histrico-imaginativo. Se a Grcia clssica nos movimenta mais que

    a arcaica, se nos diz algo mais de perto, porque h nela alguma identificao com

    nossos dias. Ora, as tragdias no so o melhor terreno para buscar essa

    aproximao de identidades, como mostrarei. Mesmo assim, os poetas trgicos

    permanecem fortes em nossa memria, tanto quanto os textos daqueles a quem

    nomeamos historiadores e filsofos. Estes sim, parecem falar modernidade mais

    de perto.

    No ser difcil, embora trabalhoso, refletir sobre o porqu de a Grcia de Clstenes

    e Pricles estarem mais presentes em nossos dias do que a chamada Grcia mtico-

    2 in La Grce archaque dHomre Eschyle, ed.du Seuil, Paris, 1984

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    arcaica, uma espcie de longnqua expresso cultural aparentada com os poetas.

    Contrape-se, facilmente, mito e razo nessa perspectiva, porm, falar-se em mito e

    em razo como contrapostos, e demarcadores de perodos tardiamente nomeados

    arcaico e clssico, no deixa de ser uma diviso no mnimo estranha, apesar de

    assentada, se pensarmos que os textos no mticos so somente os filosficos e

    histricos, pois o homem grego, o cidado grego, nunca deixou o mito, jamais

    abandonou seus deuses e seitas, no se distanciou do sagrado e no traou linhas

    demarcatrias para sua prpria racionalidade dentro do cosmos. o que se

    depreende dos escritos que nos chegaram.

    Se a estrutura da plis clssica, suas questes de poder e funes, suas batalhas,

    suas leis tm maior ressonncia na modernidade do que os valores e conformaes

    das antigas fratrias e das primeiras pleis do sculo VII e VI a.C., isto se deve ao fato

    de recuperarmos o que parece ser mais inteligvel para nossas prprias formaes

    sociais atuais, mesmo custa de transformar o sentido dos fatos passados ao dirigi-

    los para obtermos o que deles esperamos e precisamos. Essa costuma ser a postura

    diante das tragdias gregas e de seus heris que, por serem escritos essencialmente

    mtico-religiosos e cvicos, deveriam estar distantes de ns que j no unimos tais

    campos.

    Uma tragdia cvica na medida em que uma instituio criada pela prpria

    cidade, e como toda manifestao institucional tem regras e objetivos a seguir. Ela

    religiosa porque a cidade preserva os mitos e ritos e no desvincula o religioso do

    tico e do poltico em todas as suas manifestaes. Afinal, a pea trgica uma

    celebrao a Dioniso e ocorria, entre outras celebraes ao deus, nas Dionsias,

    durante a primavera. Ela mtica porque narra acontecimentos ocorridos entre

    homens comuns, heris e deuses num s universo imediatamente dado,

    reafirmando a memria dos antepassados e da prpria raa. Por que, ento, apesar

    de em nada se assemelharem nossa prpria vivncia especfica quanto ao cvico, ao

    religioso e ao mtico, as tragdias continuam enaltecidas em nosso imaginrio?

    Sabe-se que todas as peas trgicas usam os heris picos como personagens. Sabe-

    se, tambm, que pela primeira vez a poesia vem a ser dialgica, isto , cria versos

    para personagens dialogarem. Exposta a obra potica ao pblico de um teatro, a cu

    aberto, a so narradas as sagas hericas que todos os assistentes conhecem. Porm,

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    h pelo menos dois aspectos desconhecidos a esses assistentes, que ressalto: o

    dilogo narrativo e por vezes combativo entre os heris e outros personagens, e a

    prpria encenao, o teatro. Mas, antes de abordar mais de perto estes dois

    aspectos, necessrio apontar alguns referenciais histricos, poucos nos limites

    desta conferncia, que esto intimamente imbricados nessa criao potica

    especfica.

    1.2) A organizao jurdica e as poesias trgicas

    As primeiras tragdias foram encenadas ao final do sculo VI a.C.(530). Para

    compreender melhor o sculo V a.C., apogeu do teatro trgico na cidade que faz

    teatro, voltemos ao sculo VII a.C. apenas para lembrar que, poca da formao

    das pleis, aps a lenta desintegrao das antigas fratrias e o incio dessas novas

    formaes polticas, as cidades, a aristocracia antiga perdia seus poderes mas nem

    por isso desapareciam seus valores. Alguns historiadores notam que, no perodo

    inicial da formao das cidades, os aristocratas enfraquecidos e os proprietrios de

    terras viram-se obrigados a formar pequenos exrcitos - as falanges - para defender

    seus domnios. So as chamadas falanges de hoplitas documentadas em vasos de

    cermica. Elas batalhavam em grandes fileiras, escudo contra escudo,

    entrecruzando-se, avanando e recuando numa espcie de coreografia guerreira ao

    som da flauta que ritmava seus movimentos. digno de nota a grande

    transformao social sinalizada nos desenhos dessas cermicas3: no mais os

    corajosos heris personalizados na epopia homrica, mas grupos de homens que

    devem garantir os limites de uma cidade em formao, ou uma extenso de terra

    que tem seu dono, ou o poder de um usurpador.

    Para formar esses grupos guerreiros, existiam concursos nessas primeiras formaes

    polticas, constitudos pelos ricos interessados (aristocratas ou no), e nesses

    concursos eram escolhidos os melhores hoplitas. As regras para deciso baseavam-

    se naquelas ditadas pela antiga aristocracia quanto excelncia (aret) guerreira. Ao

    invs do memorvel heri, cuja aret servir como paradigma aos juizes desses

    concursos para decidirem sobre os novos melhores, tem-se, ento, o hoplita coletivo

    e a possvel excelncia desse grupo. previsvel uma espcie de laicizao da aret

    3 Moss, C. ob.cit.pg.113; Vidal-Naquet, P. Le chasseur noir-Formes de pense et formes de societsdans le monde gred, Maspero, Paris, 1981

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    antiga sem a perda total do solo sagrado, pois se o antigo heri, pleno em sua

    excelncia assim o era por ascendncia divina, os hoplitas, sem qualquer

    fundamento familiar sagrado, tm, no entanto, a aret semelhana do arists

    originrio, o que significa dizer que tambm participam do divino, de modo menos

    prximo. A presena dos deuses sempre mantida, so eles os patronos de todos os

    concursos, de todas as leis e regramentos que ordenam as novas cidades como se

    estivessem informando, em silncio, sobre as boas decises e atuaes dos homens

    que os reverenciam.

    Ora, no invivel relacionar essa profunda experincia das primeiras pleis

    relativa sobrevivncia, no caso especfico da formao das falanges e seus

    concursos, com a passagem de um pr-direito (expresso que tomo emprestada de

    Louis Gernet) ao Direito, quando sero institucionalizados os primeiros tribunais4.

    Isto porque um tribunal, com suas regras e funes, no deixa de apresentar um

    ritual semelhante aos concursos: alguns cidados, compenetrados em aplicar a

    justia, atentam para os acontecimentos que se passam sob seus olhos, ritualizados,

    tendo de antemo certos paradigmas para deciso.

    Assim , estruturalmente. Mesmo quando se trata de arbitrar contendas

    particulares antes resolvidas pelo basileus e, agora, pelos proprietrios de terras ou

    comerciantes abastados investidos do poder de justia, transparece o modo como se

    formaliza a organizao dos participantes, como so divididos os poderes, os

    regramentos, as condutas j impostas anteriormente e vivenciadas no momento e

    local esperados e determinados. As regras tcnicas para a escolha dos hoplitas, por

    exemplo - e no s elas -, guardam relao com a prpria formao das instituies

    das pleis necessitadas de medidas claramente expostas. O fato de as primeiras leis

    (nomo) estarem sob a patronagem dos deuses s vem confirmar o carter mtico,

    religioso e cvico desses primeiros tempos das pleis.

    Parece-me importante lembrar tais aspectos, pois no que concerne s tragdias,

    tambm elas se conformam ao complexo modo institucional firmado pelos cidados,

    como foi recolhido pelos historiadores. H bons exemplos de textos trgicos

    indicativos da histria da poca, como o caso da Orstia, de squilo, poeta

    trgico nascido em 525 a.C., e so vrios os helenistas que apontam essa tragdia,

    4 L.Gernet, Anthropologie de la Grce antique, ed. Maspero, Paris, 1968

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    entre outras, como rica fonte sobre a juridicidade dos sculos VI e V a.C.5. Como

    conhecido, a Orstia uma trilogia que narra a rede de crimes de sangue que

    envolve o rei Agamemnon, assassino de sua filha Ifignia e morto, por sua vez, pela

    esposa Clitemnestra e seu amante Egisto; estes morrero pelas mos do filho de

    Agamemnon e Clitemnestra, Orestes, insuflado pela irm, Electra; ser perseguido

    pelas Erneas, aps o que julgado em tribunal divino cujas funes, divises dos

    poderes, relaes entre o ru e seus defensores e acusadores tm muito a dizer-nos.

    As leis que estruturam a cidade, o modo como se define o comando nos primeiros

    tribunais, os valores em jogo e as divises de funes esto expostos nesse drama de

    squilo6. Trata-se, sobretudo, de uma maneira de explicitar, em versos, a procurada

    medida para a boa convivncia de todos, sob a gide da sagrada Dke, da Justia.

    Trata-se de explorar os limites impostos a cada um e ao todo, de modo que a

    singularidade no ultrapasse a generalidade, noes insistentemente veiculadas nos

    versos trgicos e que sero amplamente refletidas nos textos filosficos.

    J se pode inferir que, se retirarmos o texto trgico do seu habitat, do thos que lhe

    diz respeito, muito dele estar perdido. Creio que , exatamente, o que costumamos

    fazer. H, de fato, algo a-histrico numa tragdia que fala ao homem sobre os seus

    mais profundos impulsos, sentimentos e decises. Nisto, a tragdia universal. No

    entanto, sendo uma instituio cvica, teve nascimento, tem genitores: so eles a

    cidade e o passado da raa grega. Resguardar essas razes fundamental para o

    cidado, assim como lembrar de seus heris, preservar seus valores, ter paradigmas,

    afinal. No entanto, a prpria cidade sabe que novos valores so necessrios para os

    novos acontecimentos que experimenta. Como mant-los sem quebrar os antigos?

    sem que a memria da raa, sempre cuidadosamente preservada nos discursos

    pblicos, venha a perecer? sero melhores os antigos ou os novos valores? Em

    outras palavras, a tragdia recolhe esses conflitos vividos pelos cidados do sculo

    VI e V a.C., coloca-os a cu aberto para contemplao de todos, move-os no seu

    thos, nos seus argumentos, nas suas emoes, divide as opinies dos assistentes,

    repassa os aprendizados obtidos e os que esto em ebulio, ainda contraditrios e

    experimentados no dia a dia.

    5 Cf. obras de J-P Vernant, P. Vidal- Naquet, M. Finley (vide bibliografia sumria ao final).6 Esse assunto objeto de investigao de Louis Gernet, J.P. Vernant e P.Vidal-Naquet em vriosartigos.

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    a tragdia uma espcie de tribunal coletivo, um silencioso tribunal que aprende

    sobre si mesmo no ritual pedaggico que a encenao de uma saga herica. Essa

    tribuna no a instncia legtima para julgar, mas o lugar onde se movem

    potencialmente as leis e auxilia a formar o que, hoje, chamaramos de conscincia

    do cidado. A tragdia teatro7, em assim sendo tudo toca, primariamente, pela

    imagem e sentimento que sero acompanhados de argumentos.

    Uma vez estabelecido que o terreno de uma pea trgica histrico e a-histrico,

    possvel tentar resgatar, para ns, o novo que ainda vive nessa expresso cultural.

    No aprendemos somente pela semelhana, mas tambm pela diferena. Por esta,

    quem sabe, aprendamos com maior profundidade.

    2. A imitao trgica

    J.P. Vernant, nos seus imprescindveis estudos sobre tragdia, diz que seu domnio

    prprio ...situa-se nessa zona fronteiria em que os atos humanos articulam-se com

    as potncias divinas....8 Assim como a tragdia nasceu, tambm morrer, e haver

    o tempo em que o trgico ser quebrado, continua ele, pois expresso de um

    momento especfico da cultura grega. Quando de sua quebra, o homem de teatro

    ...pode bem continuar a escrever peas, inventando ele mesmo a trama segundo um

    modelo que cr conforme s obras de seus grandes predecessores... , mas no

    haver mais o especificamente trgico aps essa poca .

    No sculo III aC, Aristteles, na Potica, texto cuja inteno expor a essncia da

    tragdia, ir defini-la9 como uma arte (tchne) entre muitas outras, e sendo a arte,

    imitao (mmesis), diz:

    ... A tragdia imitao de uma ao nobre e completa ( prxeos spoudaas ka

    teleas) tendo uma certa grandeza (mgethos)... A imitao de uma ao mito

    (mthos). Nomeio mito (mthos) a sntese de aes (snthesin tn pragmton);

    nomeio carter (the) as aes que permitem que qualifiquemos aqueles que agem;

    e afinal, digo que pensamento (dinoian) o que nas palavras ditas traz um exposto

    ou exprime um conhecimento (gnmen)....

    7 A palavra teatro tem derivao dos verbos theatrdzo (expor para todos verem, da, expor em cena) etheomai (contemplar). O substantivo theats significa o que visvel, digno de ser contemplado,8 in Mythe et tragdie, pp.16-17, ed.Maspero,19829 (cap.VI- 1450a ssgg)

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    Ao enquadrar a arte, e a tragdia em particular, no lgos definitrio, algo dela

    evidentemente se perde, pois argumentar sobre a arte bem distante de faz-la e

    amplo o modo de receb-la. A proposta de Aristteles , no entanto, exatamente

    esta: distanciar-se da coisa a ser pensada para melhor compreend-la, definindo-a, o

    que um modo de apossar-se dela pela via do saber. No entanto, preciso cuidado

    ao estudar a essncia da tragdia no quadro de uma reflexo sobre o campo da

    Tchne, de um gnero que tem suas espcies, como faz Aristteles. Ele focaliza o

    estatuto de todas as tcnicas (ou artes) escolhendo a poitik, a potica, como

    tcnica em sentido estrito, uma vez que fazer sapatos, pes, navios ou poemas e

    discursos so tambm aes produtivas, poiticas, pertinentes ao campo do

    aprender e saber tcnico. Portanto, argumentar sobre a encenao trgica como

    tcnica potica imitativa da ao nobre, vale dizer, refletir sobre o mito como ao

    imitativa dever trazer seu sentido tico-poltico, pois que se trata de uma imitao

    nobre realizada para os cidados, por cidados. Este sentido no a proposta

    anunciada por Aristteles na Potica que, como o prprio nome diz, pretende

    refletir sobre o campo do poien, do fazer como fabricao, do produzir. Temos que

    tentar pensar a tragdia em sentido mais amplo, ao menos parcialmente, porm

    devemos observar com cuidado o que significa imitar, nos estreitos limites desta

    exposio .

    Se trilharmos o fcil caminho que diz ser o mito uma fbula, uma lenda como em

    geral fazem os tradutores da palavra mthos -, e que a encenao uma falsidade,

    pois encenar construir um aparato para que se veja a imitao de algo que, por ser

    imitao ter seu modelo, restar encenao imitativa, o estatuto do falso, de um

    belo falso na melhor das hipteses. No iremos muito longe nesse caminho.

    interessante aprofundar o sentido do encenar pertinente imitao. So imitaes

    (mimseis) os atos rituais religiosos, bem como os ritos guerreiros nas batalhas dos

    hoplitas ou em seus concursos, e nem por isso so meras encenaes no sentido de

    serem falsos tais ritos encenados; tambm o drama, a ao, exposto nos tribunais

    no deixa de ser uma encenao com seus ritos imitativos; e as discusses na

    assemblia, com ritos pr-determinados, so parcialmente encenaes. O teatro

    trgico, sabemos, um drama com ritos, como o mito narrao ritual e sagrada.

    Guardemo-nos, por ora, de entender o teatro trgico como imitao encenada que

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    carrega a mentira, o que desvaloriza o ser como imitao. Vejamos um ngulo, ao

    menos, dessa difcil e ampla questo10.

    Dioniso o deus das mscaras. Ele pode ter todos os rostos e nenhum. Em sua

    homenagem, o espetculo trgico tambm se mascara, porm, o valor da imitao, o

    significado do teatro, no aquele a que estamos acostumados. Damos um valor

    menor cpia por imitar um modelo e imputamos o valor forte ao modelo a ser

    imitado, por ser ele originrio. Devemos isso aos sofistas e a Plato. No entanto, a

    reflexo deste filsofo neste assunto ficou assentada de modo muito superficial, e

    em nada Plato superficial. Ao refletir sobre a verdade e falsidade dos juzos que

    construmos sobre as coisas, diz ele que imitar assemelhar-se ao modelo, de modo

    que uma cpia guarda alguma verdade em relao ao seu modelo, pois apesar de ela

    no ser a prpria coisa tem participao com ela. H uma verdade na cpia, sim,

    porm seu valor menor do que o do modelo, o que bastante claro nessa

    perspectiva. Um retrato no o ser retratado, mas no deixa de s-lo em certo

    aspecto. J o falso, diz Plato, o que se faz passar por algo que no 11. Se o valor do

    retrato com relao ao retratado claramente menor do ponto de vista da verdade,

    todavia, o retrato no falso. Ora, se eu disser que o retrato de Scrates Tucdides

    estarei dizendo o falso.

    No entanto, se nos afastarmos da perspectiva do par de valores verdadeiro-falso

    relativos ao conhecer, a relao assim valorada entre modelo e cpia no tem mais o

    mesmo sentido. Por qu? Vejamos a questo relativamente ao teatro trgico. Em

    sendo ele uma imitao encenada, assemelha-se a Dioniso na exata medida em que

    seu modelo, o deus, imitado pelos atores e suas mscaras, assim como os heris

    so imitaes de modelos-imagens, so seres expostos num local construdo para ser

    visvel a todos, ou seja, so postos em cena ao modo dos rituais religiosos. Da

    perspectiva da verdade do conhecer, algo de verdadeiro a est exposto, uma vez que

    no se trata de passar o que no como sendo, definio do falso, como foi dito;

    nenhum ator cuidar de travestir-se em dipo ao encenar a tragdia sobre ele, com o

    intuito de enganar os assistentes fazendo-se passar por dipo; e nem os assistentes

    assim o consideraro. Escondido atrs da mscara, o ator pronuncia palavras que

    10 Plato aprofunda tal questo em alguns dilogos, principalmente no Sofista. J.P.Vernant, na obraMortals and Immortals (ed.F.Zeitlin, Princenton Univ.Press), retoma questes platnicas sobre oassunto ser/ imagem.11 no dilogo Sofista.

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    exprimem os impulsos, sentimentos e decises do heri; elas sustentaro a

    semelhana, elas sero cpias, e enquanto cpias participaro verdadeiramente do

    modelo (que o deus em primeiro lugar, que so os heris em segundo lugar, que

    o poeta em terceiro lugar, que o ator em quarto lugar).

    As palavras expressaro dipo, o heri memorvel? No. Elas podem e devem criar

    uma imagem do heri que se colar obscura imagem de dipo fabricada pela

    memria helnica. Essa nova imagem trgica uma espcie de receptculo

    (chra)12, como a outra, um lugar ocupado; a mscara, se quisermos, para valores

    em conflito que os presentes conhecem e experimentam no cotidiano. Que peso

    tero argumentos quanto ao dipo encenado ser verdadeiro ou falso? Nenhum, pois

    no disso que se trata, mas da verdade por semelhana dentro do campo esttico-

    imaginativo e no argumentativo. Os valores em jogo so, em parte, universais, pois

    dizem respeito ao humano nos seus mbiles, e em parte historicamente

    determinados, pois dizem respeito vivncia especfica da cultura grega daquele

    sculo.

    Assim sendo, a verdade da imitao encenada est no sagrado mimetismo exposto

    aos cidados para que, tambm eles, vivenciem as mscaras ou os lugares ocupados

    por Dioniso, lugares que o deus escolheu para mostrar-se. Note-se que a palavra

    skne (cena) tem a raiz sk, do verbo skeno, que significa construir tenda Essa raiz

    relaciona as palavras que indicam sombra, fazer sombra, da ska que significa

    sombra e skideion, sombrinha para resguardar-se do sol. digno de nota que a

    psych homrica aproxime-se dessa significao: ela uma ska , uma sombra, alm

    de ser uma forma (eidolon), uma imagem semelhante ao contorno do corpo (sma),

    um duplo. Na Ilada, no a sombra de Ptroclo morto, sua psych, o prprio

    Ptroclo, mas algo a ele referente, seu duplo.

    Voltando ao teatro, a palavra prosknion, por exemplo, o lugar especfico onde os

    atores desenvolvem as aes. Ora, a encenao uma construo que marca os

    limites da ao imitativa, onde os atores representam. Se lembrarmos da palavra

    skptron, cetro, que representa o poder do rei, que o apoio e sinal de seu poder,

    12 Sobre Chra, receptculo ou lugar ocupado, h uma clara relao entre o poeta trgico que foiPlato e o filsofo Plato do dilogo cosmolgico Timeu , um assunto difcil que avancei parcialmenteem alguns escritos e meu objeto de estudo atual (in Plato, o cosmos, o homem e a cidade, umestudo sobre a alma ed.Vozes, Petrpolis, 1994; e Sobre as duas almas em Plato, revista Hypnos7, ed.Educ,Triom e P.Athena, S.P., 2001)

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    no estaremos muito longe do sentido de representao. Representar colocar uma

    presena de outro modo que no ela mesma, e uma das formas pela imagem.

    Lembrar de algo que j vimos, sendo isto a evocao de uma presena ausente, no

    deixa de ser representar, ou, como mais comumente dizemos, relembrar. A imagem

    como a representao de algo que no ele mesmo, mas uma espcie de presena

    dele, uma re-presena.

    Agora bem, trazer as palavras de dipo para a viso de todos, coloc-lo desse modo

    em cena, ou trazer as palavras de Media denotativas de seus impulsos, sofrimentos

    e titubeios de julgamentos re-a-presentar dipo e Media em novas imagens ou

    mscaras, busc-los como ausncias presentes. exatamente esse movimento da

    cpia ao modelo que nomeamos, pela via da reflexo platnica, mmesis, imitao,

    no campo da tchne, e phantasa, potncia da alma de imaginar e representar, no

    campo do conhecimento anmico.

    Aquele ator que est mascarado e age diante de todos apresentando as falas de

    Media, mimetiza uma presena como verdade fraca, se podemos dizer,

    participativa, ou seja, como presena no luminosa, sombreada porque s a prpria

    presena seria luminosa. Diz-se em grego que aquilo que se pe luminosamente

    altheia, palavra que traduzimos por verdade. O a inicial privativo. Lthe a

    deusa do esquecimento, o que nos remete ao que subjaz oculto, que no

    claramente exposto porque latente. Tanto a imaginao (ou representao, ou

    phantasa) quanto a imitao so, portanto, nubladas e subjacentes claridades

    quando comparadas claridade ela mesma. Sutil e ambgua fronteira, sem dvida,

    entre o representar, o imitar, o verdadeiro e o falso, o claro e o escuro.

    A imitao uma ao fabricadora, uma tcnica ou arte que implica o trabalho

    com cpias de modelos. Por isso, a imitao, margem do mito e dentro da

    racionalidade filosfica - que voltada altheia ser pouco valorizada da

    perspectiva do conhecimento argumentativo. Tal desvalorizao caminha a par e

    passo com a encenao teatral e ganha com o tempo o sabor de falsidade. Mas, no

    necessariamente assim. Nada mais enganoso que tais concluses superficiais. Se

    no, avancemos um pouco mais.

    Tentemos adentrar no mito e pensemos no caador tribal que imita a sua caa antes

    de apanh-la, num ritual especfico para trazer-lhe a vitria. Esse drama, esse rito,

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    essa ao imitativa, se quisermos, no falsa, mas a reproduo dos movimentos

    da ao da caa na forma ritual. Um caador, ao fazer os gestos necessrios para

    caar um certo animal enquanto um companheiro faz os gestos de avano e recuo da

    prpria caa, ambos esto buscando e adquirindo, de fato, as qualidades necessrias

    para o abate do animal pretendido numa espcie de futuro presentificado pelo

    mimetismo ritualstico. o modo mtico de tornar o ausente presente, mais ainda,

    de viver uma temporalidade mtica sem passado, sem futuro. No o nosso modo de

    compreender, ns, homens cronolgicos. Lemos no ritual sagrada uma mera

    imitao da caa que, estando a quilmetros de distncia do caador ritualstico

    indicaria o quanto de ingenuidade existe no pensamento primitivo tribal. Talvez a

    ingenuidade esteja em querermos ler a distncia da caa e do caador a partir de

    uma medida espacial e temporal diversa.

    Ora, uma encenao trgica, o teatro trgico, o prprio ritual mimtico de e para

    Dioniso nas figuras dos heris memorveis e dos atores que os sustentam.

    Apresenta-se o deus travestido em mscaras que o apresentam aos prprios

    assistentes; mescla-se o deus das mscaras aos valores da plis. o thos da plis

    recolhido em versos, penetrando em cada um pela criao potica e sob a mscara,

    gestos e palavras do ator; este, protegido quanto identidade cvica, participa do

    deus e das musas que roubam, parcialmente, seu lugar enquanto ator, assim como

    roubaram o cidado- poeta na versificao inspirada.

    preciso, ento, afirmar o mito na tragdia, do contrrio iremos compreend-la

    com olhos iluministas, o que pode ser interessante mas no nos novo. Trazer

    Antgona ou Fedra para o teatro vitaliz-los, mesmo que ambiguamente, e s o

    poeta o ser primeiro que, ao cri-los na inspirao divina, torna-os imitveis; ele

    quem propicia, impelido pela prpria divindade, a presena de Dioniso. essa a

    profunda criao do poeta trgico e Plato sabia bem disso, poeta trgico que foi

    antes de conhecer Scrates13. No sem razo que ele dir sobre o poeta, no dilogo

    Ion (534c,d):

    13 H uma interessante passagem na doxografia de Digenes Larcio (livro III de Vida e doutrinas dosfilsofos ilustres) que conta esse encontro: Plato teria conversado com Scrates tendo nas mos otexto uma tragdia j pronta. Aps essa conversa, jogou-o e voltou para casa.

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    ...o poeta uma coisa ligeira, alada, sagrada; ele no est em disposio de criar

    antes de ser inspirado por um deus...no em virtude de uma arte que os poetas

    compem...mas em virtude de um dom divino....

    O poeta necessita, sim, dos deuses e dos heris para sua arte, mas dos deuses ele tem

    a presena na prpria criao, e quanto aos heris, ele retira de suas prprias

    imagens a fora transformadora para reconstrui-los. Claro est que os heris no

    dialogaram como dizem os versos. Eles existem no teatro da maneira como o poeta

    trgico os fez nascer, em funo de sua sensibilidade cvica e de sua tcnica

    participativa do divino. A tragdia tem sua tipicidade, o que irrecupervel na

    histria. uma exposio de contedo conhecido de todos, transformada de modo a

    parecer desconhecida pela imitao inspirada do poeta em sua sutil tcnica com as

    palavras.

    Encenar, imitar, assemelhar so verbos que cabem tanto no mito quanto no que se

    consignou chamar Teoria da mmesis, de Plato, na primeira reflexo que o

    Ocidente teve sobre o que veio a ser conhecido como Esttica. A mmesis pertence,

    tambm, ao campo da nomeada Teoria do Conhecimento, quando refletida como

    parte da Tchne e quanto ao seu valor de verdade, mas , ainda, afeita ao campo do

    mito e do rito, e nesses campos a incidncia da Verdade no tem peso, como j foi

    apontado. Mas o Belo, sim, tem peso. No dizemos que um sapato verdadeiro, nem

    que o drama trgico o seja, mas que ou no Belo e bem feito. No se pode perder

    de vista tais perspectivas.

    Agora, j podemos afirmar que o teatro trgico um drama que, posto em cena,

    contm um tipo de verdade, a verdade da imitao, mas , fundamentalmente, uma

    criao assentada no Belo, e para um grego o que belo bom. Logo, toda tcnica

    est imbricada no tico-poltico. Valorar a Grcia antiga com nossas categorias

    mentais atuais faz de ns astutos utilitrios, no mais que isso. Poderamos ser mais

    que utilitrios.

    Para que a encenao viesse a adquirir as cores do adjetivo teatral carregado do

    valor falso, foi preciso que o mtico-religioso se separasse do poltico e este do

    artstico (tcnico). Foi preciso que os cnones daquele campo tardio denominado

    Belas-Artes entrassem em cena e os homens escondessem, sob a prpria

    racionalidade, uma parte dela mesma que no mais reconheceram como prpria: o

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    mito. E o mito racional, e a razo tem seu mover-se mtico. A Grcia antiga, aquela

    das tragdias, no medieval, no cartesiana, profundamente mtica e

    claramente tico-poltica,. Desse ngulo, tem grande sabedoria Nietzsche, na sua

    habitual agudeza, quando diz sobre o teatro trgico:

    ...o nico Dioniso verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob

    a mscara de um heri combatente e como que emaranhado na rede da vontade

    individual; e assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um

    indivdo que erra, se escora e sofre.... 14

    A partir desse quadro, compreende-se a unio do cvico, mtico e religioso na

    tragdia grega que, preciso dizer, no um gnero literrio como determina a

    diviso tardia e escolar de nossa racionalidade atual, quando esta separou muitos

    saberes em gneros, espcies e funo. Esta separao pressupe o sujeito que

    conhece e os objetos a serem por ele conhecidos construdos em campos cercados

    pelo poder da prpria racionalidade humana, quase alheia ao peso das prprias

    coisas. Sepultou-se facilmente o mito. Foram os filsofos gregos quem propiciaram

    tal construo tardia? Certamente, mas poderia no ter sido trilhada essa nossa via e

    sim alguma outra dentre as muitas que eles expuseram. No h nenhum valor de

    bem e mal nessa constatao, apenas... uma constatao.

    3.A tica do heri trgico

    Para iniciar minha concluso, se a cidade do sculo V aC passou por uma crise entre

    os valores antigos e os novos, e o drama trgico apanhou esta problemtica atravs

    dos heris memorveis, trata-se de buscar, nos poemas, o conflito conforme o teceu

    o poeta-cidado. Sabemos sobre a trama de valores da famosa pea de Sfocles,

    Antgona: h os valores de Creonte, tirano da cidade, que, na exposio das suas

    razes, cumpre as regras cvicas impedindo que se enterrem os inimigos de uma

    recm batalha, entre os quais est seu sobrinho, irmo de Antgona, Polinices, um

    inimigo de Tebas; h os valores de Antgona confrontando Creonte, quando enterra

    o irmo em nome de leis mais antigas que determinam honras fnebres aos

    familiares. Neste exemplo, como decidiriam os assistentes?

    14 in Nascimento da tragdia...pargr.10.

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    Mais que o embate entre o antigo e o novo, presente em todas as tragdias, h a

    hbris, a desmedida nas aes dos heris, permeando seus impulsos, desejos e

    decises. Eles poderiam ter agido de modo mais equilibrado, refletindo sobre os

    prprios impulsos e valores? Poderiam ter ouvido as insistentes palavras de cautela

    do coro, do corifeu, ou de qualquer outro personagem? Sim, mas no o fizeram, no

    concerne aos heris faze-lo. Entre as possveis decises de um heri e a

    determinao do seu destino, da parte que cabe a cada um conforme os desgnios de

    Moira, no h ponderao: cumpre-se o destino. Os cidados tambm esto

    determinados por Moira, mas no se sabe qual o lote a que somos destinados,

    portanto, em situaes de conflito o melhor acalmar o nimo (thmos) e refletir

    sobre a prtica (phronen). Essa a grande pedagogia da tragdia que incua para

    o heri.

    Nosso thos no herico. exatamente esse limite que abre espao para a reflexo

    filosfica sobre as aes humanas, quer na interioridade de cada um, quer no

    conjunto das relaes sociais. Os campos da tica e da Poltica como saberes que

    acompanham o agir dos homens delineiam-se na Sofstica, nos cnicos, em Plato,

    em Aristteles. Este, mais lido e mais prximo, em certos aspectos, da Teologia

    Medieval e de parte da nossa racionalidade moderna, nomear tica o saber sobre as

    coisas relativas ao thos, aos costumes, e Poltica o saber sobre a mais elevada de

    todas as formas de comunidade, a plis. medida em que, ao longo dos sculos,

    firma-se a crena na abertura que temos para o nosso poder de deliberar, quando a

    interioridade de cada um sinaliza a possibilidade de autarquia de princpios

    prprios -, o heri trgico decresce em fora e, com ele, o mito e os rituais

    mimticos. O thos herico, seu pthos, apesar de nos dizer respeito quanto aos

    nossos deslimites, no pode ser preservado quanto s nossas potncias e limites.

    O homem moderno, na sua interioridade bem traada, com a potencialidade para

    decises bem pensadas, ser o paradigma para as novas construes racionais de sua

    prpria historicidade. Viro as filosofias que tratam desse homem autrquico, uma

    espcie de novo heri afirmativo da prpria fora que se transformar, aos poucos,

    no indivduo responsvel, uma noo fundamental para ns, hoje. As leis

    individuais esto distantes das leis hericas. Sendo estas em parte provenientes dos

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    deuses, em parte das antigas alianas que a Grcia teve que fazer entre as fratrias, no

    perodo arcaico, no so escritas e perseveram por toda a vida.

    Dois exemplos: Aquiles participa da guerra de Tria junto com Agamemnon, Ulisses

    e outros heris, a favor de Menelau de quem o troiano Pris roubara a esposa,

    Helena. So regras de reciprocidade entre as fratrias que assim determinam as

    alianas: unir vrios reinos contra Tria. Mas Aquiles poderia sair da luta se regras

    comuns fossem quebradas, e o heri ameaou romp-las quando Agamemnon rouba

    sua parceira, Briseida e rompe, primeiro, a tica de reciprocidade15; Media,

    estrangeira em Corinto, tem direitos de hospedagem que so quebrados quando

    Jaso, por desejo de poder, casa-se com a filha do rei. Jaso marginaliza a famlia

    construda com Media e a ela prpria, retirada de sua ptria, a Clquida, e presa na

    rede amorosa que Aphrodite armou para os dois. Tanto Jaso quanto Media tm

    suas regras, seu thos, e sabe ela de seus direitos de esposa, me e estrangeira, e

    sabe ele sobre seus direitos de heri. Como decidir entre valores to fortes?16

    A cada heri exposto no teatro, os porqus que os impulsionam parecem justos,

    porm, uma escolha depender da perspectiva a ser assumida pelos assistentes: a

    dos deuses e de seus estranhos jogos? a da fratria de origem? a da reciprocidde nos

    contratos? ou a perspectiva dos que, vivendo nas pleis, tm que aprender a

    deliberar para construir seu prprio futuro? Este o jogo tico. Este o conflito

    poltico, jurdico, psicolgico, no sentido amplo das tragdias. Se elas expandiram as

    possibilidades para o homem penetrar nos seus prprios mbiles, empurrou-o

    tambm a adivinhar o enorme poder da parte logstica da alma, aquela que pode

    pensar, argumentar, escolher agir pela reflexo, como dir Plato, e por isso mesmo

    transformar-se. Talvez a tragdia anuncie o primeiro esboo de um novo homem,

    esboo que a cidade e a filosofia cuidaro de bem desenhar. E que se note tema

    no tratado nesta ocasio que a escritura alfabtica grega nascente, reformulada a

    partir da fencia, remodelou o esprito humano, seu modo de pensar e dizer sobre

    tudo o que , de produzir discursos, de ensinar, aprender, conhecer, decidir.17

    15 Gill, C., Personality in Greek Epic, Tragedy, and Philosophy, ed.Clarendon Press, Oxford,199616 Gazolla,R. Para no ler ingenuamente uma tragdia grega, ed.Loyola, S.Paulo, 200117 Entre vrios estudiosos do assunto conhecida a obra de E.Havelock The Literate Revolution inGreece and its cultural consequences, Princenton Univ.Press, 1982.

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    O teatro ou, diga-se como os antigos gregos, a Mousik,18 - parece ter sido o

    veculo propcio para indicar, sem os argumentos bem encadeados da Filosofia, essa

    transformao. que o teatro guarda, sempre, algo de sagrado, como os poetas,

    quer se creia quer no, quer se saiba disso, quer no. Esse espao pblico para viver

    a imitao como verdade e como beleza preserva, sem dvida, as emoes mais

    primrias dos homens ao reviver, de algum modo, os rituais sagrados. Hoje, mesmo

    laico, o teatro , potencialmente, o espao onde a cidade poderia fazer sua ktharsis,

    essa ao purificatria de expor o que deve ser separado de um mistura para melhor

    compreend-lo e ajuizar a respeito. Porm, dificilmente o faz, porque a encenao

    teatral, apesar de fundamentalmente cvica, incorporou bem mais o sentido estrito

    divertimento e adequou-se aos cnones das Belas-Artes, numa exteriorizao que

    costuma obrigar a separao do tico e do poltico, no rigor dos termos. Se o teatro

    consegue atingir essa unidade preservando seu aspecto mtico-imitativo, o que

    ainda possvel, melhor, mas dificilmente ele tem plena conscincia de seu poder em

    nossos dias excessivamente tcnicos.

    A ausncia de profundidade quanto ao tico-politico nas nossas cidades e nos nossos

    teatros parece caminhar ombro a ombro com a carncia de fora da arte como

    produo participativa em pequeno grau da verdade mas imediatamente relacionada

    ao Belo. Porm, como foi dito antes, se o Belo Bom, Beleza e Bondade deveriam ser

    o solo para as sementes de todas as artes. Ao menos para os gregos antigos,

    assentados no sagrado e no cvico, assim era. E para os filsofos, preocupados com

    os fins ltimos do homem, tambm. Resta refletir o que significa o teatro trilhar a

    via esvaziada do par tico-poltico. Mesmo quando se imagina um instrumento de

    conscientizao de valores o que de fato -, nem sempre consegue ultrapassar a

    tcnica retrica.

    (Via, setembro de 2002)

    18 Mousik concerne s Musas, inspiradoras de todas as artes, quer da prpria msica, quer daliteratura.

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    Bibliografia interpretativa sumria

    Finley, Moses- Linvention de la politique, ed.Flammarion, Paris, 1985Gazolla, Rachel Para no ler ingenuamente uma tragdia grega,ed.Loyola, S.Paulo, 2001Gazolla, Rachel- Plato, o cosmo, o homem e a cidade-um estudosobre a alma nos dilogos de maturidade -ed.Vozes, Petrpolis,RJ(Brasil), 1994Gernet,Louis Anthropologie dans la Grce antique, Maspero, Paris,1968Gill, Christopher - Personality in Greek Epic, Tragedy, andPhilosophy, Clarendon Univ.Press,Oxford, 1996Moss, Claude - La Grce archaque dHomere Eschyle, ed.Seuil,Paris, 1984Vernant, Jean-Pierre Mythe et tragdie dans la Grce ancienne,ed.Maspero, Paris, 1981________________ Mito e tragdia na Grcia antiga II,ed.Brasiliense, S Paulo,1991________________ Mythe et socit en Grce ancienne,ed.Maspero,Paris, 1974________________ Mortals and Immortals, ed.F.Zeitlin, PrincentonUniv.Press,1992________________ Figuras, dolos, Mscaras, ed.Teorema, Lisboa, s/dVidal-Naquet, Pierre Le chasseur noir, Formes de pense et formesde societ dans le monde grec, Maspero, Paris, 1981

    **********************************

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