Trágico e Erudito

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arte E Trágico e Pela primeira vez expondo no Rio Grande do Sul, Francisco Brennand investe numa arte repleta de simbologia clássica e (mal) classificada como popular CRISTIANO BASTOS, de Recife jornalista 7 6 ERUDITO ntrar na oficina do artista pernambucano Francisco de Paula de Almeida Brennand, no bairro da Várzea, em Recife, é viver uma aventura onírica nos domínios da história, da natureza, dos signos e da existência. Aventu- ra maior, no entanto, é conhecer o criador no mundo onde habitam suas criaturas. Uma pequena parte das obras de Brennand não está aqui, no Templo da Várzea, pois integrou em Porto Alegre a exposição itinerante Brennand: Uma Introdução, que pôde ser vista na cidade em setembro, no Museu da UFRGS. As 33 esculturas, 17 pinturas e nove desenhos do artista per- nambucano fazem parte da exposição itinerante que come- mora os 200 anos do Banco do Brasil e que percorre outras duas cidades brasileiras até 25 de novembro. Uma amostra modesta selecionada entre as mais de 1,7 mil peças da ofici- na do artista, mas ainda assim relevante: Brennand nunca havia exposto no Rio Grande do Sul, embora acumule indivi- duais na França, Alemanha, Itália e Estados Unidos. Ceramista por excelência, o artista também foi homena- geado em 2007 com uma retrospectiva no Museu AfroBrasil, em São Paulo, por conta de seus 80 anos. “Peças de barro são difíceis de transportar, mas mesmo assim trata-se de um ar- tista importante no cenário internacional pela sua originalida- de”, diz o crítico Elisio Yamada, que auxiliou na curadoria da exposição. Olívio Tavares de Araújo, mineiro radicado em São Paulo, há quatro décadas, é o curador da mostra, montada especialmente para preencher a lacuna em relação ao artis- ta. “Museus do Rio, São Paulo e Curitiba apresentaram o Brennand verdadeiro em várias exposições grandes nos últi- mos anos, mas no resto do Brasil ainda sobrevive muito do outro, tido como religioso-nordestino”, critica o curador. A ex- posição, de fato, não deixa dúvida de que se trata de uma obra que vai muito além do regionalismo nacionalista. “Nem Brennand, nem sua arte, possuem nada de popular. Ambos são inteiramente eruditos”, completa Araújo. Em 1971, Brennand transformou a Cerâmica São João – que fabricava telhas e tijolos, erguida pelo pai em 1917 e abandonada desde 1945 – na Oficina Cerâmica Francisco Brennand, espaço monumental de pórticos, totens e escul- turas transfiguradas, cada qual com significado particular: do mítico ao histórico, do humanístico ao heróico, a semiologia avulta-se em cada recanto. Num quadrilátero, os heróis que expulsaram os holandeses do Brasil: o índio Filipe Camarão, o negro Henrique Dias e os portugueses João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros. A oficina é um dos pontos turísticos mais visitados do Recife. A literatura teve importância primordial em sua escolha pela arte. Na juventude, desfrutou ao máximo da biblioteca da mãe, educada no colégio Sacre Coeur do Rio de Janeiro. Sua iniciação às letras, portanto, foi feita pelo viés feminino: “A biblioteca de meu pai era diferente da biblioteca de minha mãe. Tive de ler Jane Austin, Virginia Woolf, Sidonie Colette. Uma literatura de liberdade, modernidade e avanço”, lembra. Foi lendo a obra Um Gosto e Seis Vinténs, de Somerseth Maughan (biografia ficcional do pintor francês Paul Gauguin) que Brennand confirmou, de fato, sua vontade de se tornar pintor. “Dos pintores modernos, Gauguin foi o que teve a vida mais aventurosa. E isso me atraía”, diz o artista. Do traço à forma Ao dar utilidade às ruínas da antiga fábrica do pai, Brennand se identificou com o que os europeus começaram a chamar, nos anos 70, de arqueologia industrial. Londres talvez seja o melhor exemplo desse processo ao ter trans- formado imensos pavilhões de produção metalúrgica em espaços de arte. E ao ter transformado, não sem algum sofrimento, antigos bairros operários em verdadeiros guetos culturais. Pois no período do açúcar, no século 18, Pernambuco foi a província mais rica do Brasil. Nesse tempo, a região da Várzea, onde o artista tem sua oficina, era cheia de enge- nhos. Recife é uma cidade que começou a se desenvolver na presença dos holandeses. Olinda, a antiga capital da provín- cia, era uma das cidades mais ricas das Américas, conhecida no mundo todo pelas suas igrejas e pelo ouro que enfeitava seus altares. “São elementos que ainda estão presentes na cultura pernambucana”, lembra o artista. Curiosamente, foram os abastados senhores de terra – de quem Brennand é um herdeiro legítimo – que começaram a conspiração contra os holandeses. No terreno da Várzea começaram as primeiras escaramuças, que inspirariam deci- sivamente o artista: em 1961, Brennand pintou o seu mais famoso mural, A Batalha de Guararapes, encomendado pelos irmãos Farias, ilustres banqueiros de Minas Gerais. No mural, um mestiço sustenta uma bandeira republicana. “Era século 17, mas resolvi antecipar a nacionalidade”, justifica. Brennand até hoje se diz honrado pela oportunidade que recebeu de fazer o mural. O motivo é a premente ne- cessidade que existe de respeitar – e ressaltar – a história brasileira: “Não vejo nenhum intectual criticando o que está acontecendo na Amazônia”, critica ele. “Não é apenas a possibilidade de invasão estrangeira que aflige as frontei- ras. É o crime do desmatamento e das queimadas. São os pretextos de desenvolvimento sustentável. Está todo mun- do silencioso, em um silêncio amedrontador”, constata. Brennand, entretanto, não ficaria preso às formas pla- Fotos: Flora Pimentel FACHADA Na Oficina da Várzea, a 25 quilômetros do Recife, abriga-se o universo onírico do escultor

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Perfil do artista pernambucano Francisco Brennand. Revista Aplauso.

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arte

E

Trágico e

Pela primeira vez expondo no Rio Grande do Sul, Francisco Brennand investe

numa arte repleta de simbologia clássica e (mal) classificada como popular

CRISTIANO BASTOS, de Recifejornalista

76

ERUDITOntrar na oficina do artista pernambucano Francisco

de Paula de Almeida Brennand, no bairro da Várzea,

em Recife, é viver uma aventura onírica nos domínios

da história, da natureza, dos signos e da existência. Aventu-

ra maior, no entanto, é conhecer o criador no mundo onde

habitam suas criaturas.

Uma pequena parte das obras de Brennand não está

aqui, no Templo da Várzea, pois integrou em Porto Alegre a

exposição itinerante Brennand: Uma Introdução, que pôde

ser vista na cidade em setembro, no Museu da UFRGS. As 33

esculturas, 17 pinturas e nove desenhos do artista per-

nambucano fazem parte da exposição itinerante que come-

mora os 200 anos do Banco do Brasil e que percorre outras

duas cidades brasileiras até 25 de novembro. Uma amostra

modesta selecionada entre as mais de 1,7 mil peças da ofici-

na do artista, mas ainda assim relevante: Brennand nunca

havia exposto no Rio Grande do Sul, embora acumule indivi-

duais na França, Alemanha, Itália e Estados Unidos.

Ceramista por excelência, o artista também foi homena-

geado em 2007 com uma retrospectiva no Museu AfroBrasil,

em São Paulo, por conta de seus 80 anos. “Peças de barro são

difíceis de transportar, mas mesmo assim trata-se de um ar-

tista importante no cenário internacional pela sua originalida-

de”, diz o crítico Elisio Yamada, que auxiliou na curadoria da

exposição. Olívio Tavares de Araújo, mineiro radicado em São

Paulo, há quatro décadas, é o curador da mostra, montada

especialmente para preencher a lacuna em relação ao artis-

ta. “Museus do Rio, São Paulo e Curitiba apresentaram o

Brennand verdadeiro em várias exposições grandes nos últi-

mos anos, mas no resto do Brasil ainda sobrevive muito do

outro, tido como religioso-nordestino”, critica o curador. A ex-

posição, de fato, não deixa dúvida de que se trata de uma

obra que vai muito além do regionalismo nacionalista. “Nem

Brennand, nem sua arte, possuem nada de popular. Ambos

são inteiramente eruditos”, completa Araújo.

Em 1971, Brennand transformou a Cerâmica São João –

que fabricava telhas e tijolos, erguida pelo pai em 1917 e

abandonada desde 1945 – na Oficina Cerâmica Francisco

Brennand, espaço monumental de pórticos, totens e escul-

turas transfiguradas, cada qual com significado particular:

do mítico ao histórico, do humanístico ao heróico, a

semiologia avulta-se em cada recanto. Num quadrilátero,

os heróis que expulsaram os holandeses do Brasil: o índio

Filipe Camarão, o negro Henrique Dias e os portugueses João

Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros. A oficina é um

dos pontos turísticos mais visitados do Recife.

A literatura teve importância primordial em sua escolha

pela arte. Na juventude, desfrutou ao máximo da biblioteca

da mãe, educada no colégio Sacre Coeur do Rio de Janeiro.

Sua iniciação às letras, portanto, foi feita pelo viés feminino: “A

biblioteca de meu pai era diferente da biblioteca de minha

mãe. Tive de ler Jane Austin, Virginia Woolf, Sidonie Colette.

Uma literatura de liberdade, modernidade e avanço”, lembra.

Foi lendo a obra Um Gosto e Seis Vinténs, de Somerseth

Maughan (biografia ficcional do pintor francês Paul Gauguin)

que Brennand confirmou, de fato, sua vontade de se tornar

pintor. “Dos pintores modernos, Gauguin foi o que teve a vida

mais aventurosa. E isso me atraía”, diz o artista.

Do traço à forma

Ao dar utilidade às ruínas da antiga fábrica do pai,

Brennand se identificou com o que os europeus começaram

a chamar, nos anos 70, de arqueologia industrial. Londres

talvez seja o melhor exemplo desse processo ao ter trans-

formado imensos pavilhões de produção metalúrgica em

espaços de arte. E ao ter transformado, não sem algum

sofrimento, antigos bairros operários em verdadeiros guetos

culturais. Pois no período do açúcar, no século 18, Pernambuco

foi a província mais rica do Brasil. Nesse tempo, a região da

Várzea, onde o artista tem sua oficina, era cheia de enge-

nhos. Recife é uma cidade que começou a se desenvolver na

presença dos holandeses. Olinda, a antiga capital da provín-

cia, era uma das cidades mais ricas das Américas, conhecida

no mundo todo pelas suas igrejas e pelo ouro que enfeitava

seus altares. “São elementos que ainda estão presentes na

cultura pernambucana”, lembra o artista.

Curiosamente, foram os abastados senhores de terra –

de quem Brennand é um herdeiro legítimo – que começaram

a conspiração contra os holandeses. No terreno da Várzea

começaram as primeiras escaramuças, que inspirariam deci-

sivamente o artista: em 1961, Brennand pintou o seu mais

famoso mural, A Batalha de Guararapes, encomendado pelos

irmãos Farias, ilustres banqueiros de Minas Gerais. No mural,

um mestiço sustenta uma bandeira republicana. “Era século

17, mas resolvi antecipar a nacionalidade”, justifica.

Brennand até hoje se diz honrado pela oportunidade

que recebeu de fazer o mural. O motivo é a premente ne-

cessidade que existe de respeitar – e ressaltar – a história

brasileira: “Não vejo nenhum intectual criticando o que está

acontecendo na Amazônia”, critica ele. “Não é apenas a

possibilidade de invasão estrangeira que aflige as frontei-

ras. É o crime do desmatamento e das queimadas. São os

pretextos de desenvolvimento sustentável. Está todo mun-

do silencioso, em um silêncio amedrontador”, constata.

Brennand, entretanto, não ficaria preso às formas pla-

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FACHADANa Oficina da Várzea,a 25 quilômetros doRecife, abriga-se ouniverso onírico doescultor

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arte

nas durante muito tempo. O curador da mostra explica que

a década de 70 já marcou a transição de uma pintura

vinculada à religiosidade e à cultura nordestina, casos de

Sexta-Feira da Paixão (1959/1961) e Tigre (1965), para uma

escultura que destaca figuras da mitologia clássica, formas

sensuais e homens e mulheres regidos pelo sofrimento.

São características que se mantêm presentes na sua obra

até hoje. “O tema essencial de Brennand foi e continua

sendo o destino trágico do homem”, lembra Araújo.

Ao mesmo tempo, o escultor pratica uma espécie de

intuição criativa: “Picasso dizia que sua salvação era fazer

obras cada vez piores”, lembra o artista – uma forma

inteligente de distinguir o bom do certo. “É necessário coin-

cidir com o eixo do mundo, com as forças da natureza e

com os elementos intuitivos”, filosofa Brennand. É o que,

na prática, ele faz na Oficina da Várzea – um imenso work

in progress, um projeto de vida, como salienta Araújo.

As esculturas da Oficina da Várzea estão organizadas

segundo uma espécie de cosmogonia, onde o artista (ele) é

o deus. Num dos pátios laterais, no que é chamado de

templo, estão as peças mais identificadas com um caráter

totêmico, arquetípico. São imensos seres imaginários, sím-

bolos fálicos, Adão e Eva sobre um espelho d’água. “É como

entrar num sítio arqueológico, num templo ou palácio

construído há 4 mil anos”, descreve Araújo sobre a oficina.

Dentro dos galpões, as peças se enfileiram de forma mar-

cial, solene, como se representassem um exército.

Os verdadeiros heróis de Brennand, entretanto, estão na

literatura. O russo Fiódor Dostoiévski é a inspiração suprema:

portador de epilepsia, foi um dos gênios maiores da humani-

dade, para o escultor. “Encostado em Cervantes e em Shakes-

peare”, arremata. O polonês Joseph Conrad, que alguns críti-

cos reduzem a mero “escritor do mar”, é outro que inspira o

artista. “Ele possuía uma dimensão espetacular”, diz. Já

Hermann Mellville e sua criatura, a baleia Moby Dick, são

“criações portentosas”.

As influências eruditas e européias acabaram isolando

Brennand no cenário da arte brasileira, especialmente do

colega de colégio Ariano Suassuna – pernambucano como

ele, escritor, identificado com as raízes sertanejas da cultura

nordestina. Idealizador do movimento armorial nos anos 70,

baseado no romanceiro popular e no cordel, Suassuna de-

fende uma posição “nativista” em relação à arte e à política.

Algo, para Brennand, “jacobino e radical” demais. “Sob o

ponto de vista da pintura, Ariano foi muito mais influenciado

por mim do que ao contrário. Em minha arte, sempre tive

preferência pelos valores europeus”, confessa o escultor.

Ainda que, por muitos críticos, seja considerado um

artista armorial, o artista abandonou os temas regionais

justamente quando o movimento começou a ganhar for-

ça. Aliás, a exposição que iniciou em Fortaleza, passa por

Porto Alegre e segue para Belo Horizonte tem este obje-

tivo: limpar os clichês em torno do artista Franciso

Brennand, ampliando o alcance dos olhares sobre sua

obra e relativizando algumas verdades criadas com a re-

petição de falsas impressões.

Apesar das divergências, Suassuna jamais criticou o

amigo pelas posições ideológicas contrárias às suas. Sa-

bia, naturalmente, da dissidência de Brennand, especial-

mente quando o escultor começou a investir numa arte

na qual, abertamente, expunha a pesada carga sexual de

sua produção. “O Ariano simplesmente me deixou de lado,

como quem lida com um caso perdido”, diz o artista. Não

sem antes lembrar da inexistência de qualquer elemento

erótico no movimento armorial.

Brennand está mais para marujo do que para matuto.

“Não tenho olhar sertanejo: minha visão é para fora da-

qui. Para o mar aberto.”

REFÚGIORecuperada em 1971,

antiga oficina da famíliaBrennand virou

esconderijo para o mestre