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O TRAJE REGIONAL PORTUGUÊS E O FOLCLORE

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Minho

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  • O TRAJE REGIONAL

    PORTUGUS E O FOLCLORE

  • A

    s trs primeiras e fundamentais necessidades do homem so o alimen- to, o traje e a casa. O acto de comer e o acto de se cobrir so insubsti-

    tuveis por qualquer outro tipo de produto. Todavia a casa pode ser suprida por um abrigo natural ou artificial. Durante milnios, as grutas e, posterior- mente, a tenda consti turam para o homem primitivo e nmada uma forma de refgio e de so brevivncia frente s condies atmosfricas e ao ataque dos animais. Nesta medida, pode afirmar-se que o traje constitui, na ver- dade, a segunda necessidade do homem, tendo sofrido ao longo dos tempos e, no nosso territrio, uma evoluo muito lenta e progressiva.

    Muito embora tenha sido nos climas tropicais que os adornos ganharam uma expresso de vestimenta, desconhecendo-se nessas reas geogrficas e, em tempos pr-histricos, o traje, os Neanderthais europeus e peninsulares de senvolveram adereos vrios e contas, imitando os Sapiens Sapiens que exe- cutavam colares e amuletos mgicos, que penduravam ao pescoo. Podemos recuar a uma poca remota e referir que a cultura e a arte portu- guesas tm o seu incio em Foz Ca, 20 000 anos atrs. O alargado espao de tempo que ocorreu nestes ltimos vinte milnios, e todas as muitas e varia- das mutaes a que estiveram sujeitos, conferiu aos povos pe ninsulares uma sedimentao de diversificadas e muito relevantes experincias. No pode deixar de se registar tambm que o territrio foi habitado por hordas de invasores, provindos da frica homindea, mas tambm do Centro, do Leste e do Norte da Europa, que por aqui passaram e/ou se instalaram. Grupos humanos, vindos por terra e por mar, provenientes das primeiras civiliza- es do Mdio Oriente, da Europa do Sul e do Norte de frica, deixaram rastos de que a romanidade e a cultura islmica constituem os mais fortes traos de carcter, de modos de vida, de costumes e de permanncia cultural secular.

    A fundao da nacionalidade acontece, como sabido, no sculo XII, emer- gindo, em 1143, um reino que se distingue de Leo e de Castela. Este povo ex prime-se atravs de uma lngua prpria, criando, em consequncia, uma literatura. Tem sido fundamental cultura portuguesa uma atenta e especial relao do homem com a natureza, sendo tambm de salientar a sua forte componente potica e religiosa. Esta ltima caracterstica manteve-se at aos anos 60 do sculo XX, quando se d incio, ou se expande, o sentido e o entendimento de novas relaes sociais, baseadas na relevncia de uma tica

  • de civismo e de laicidade. Esta grande ruptura marcou a sociedade portuguesa, muito especialmente depois da Revoluo de 74, mas no deixou de se manter um lastro de religiosidade, menos crente e mais cultural, que constitui uma das raisons dtre do ser Portugus.

    A lngua da soidade, ou da saudade como hoje se designa, bem definidora da axial unicidade cultural de um povo que, embora se desmembre numa variada miscelnea de costumes, de modos de estar e de vestir, assume no seu plurissecular rectngulo geogrfico, uma mesma forma de ser que se pode traduzir facilmente no entendimento e na anlise do vocbulo medieval respeitante saudade.

    A histria e traje de um povo A capacidade para criar smbolos provm dos nossos antepassados africanos, por via dos Cro-Magnon, de que o Homo Sapiens Sapiens descende. Nem o Mesoltico nem o Neoltico se desenvolvem universalmente nos mesmos tempos histricos, existindo discrepncias no seu aparecimento nos diferen- tes continentes e regies, razo pela qual o texto prosseguir tendo como base a cronologia ibrica. De referir, sumariamente, que os deuses agricultores e criadores de gado vm substituir os deuses dos caadores 1. A tese da neoliti- zao do centro litoral portugus, formulada por Zilho, foi efectuada por colonizao martima, cuja economia se baseava no cultivo do trigo e da domes- ticao da ovelha, na manufactura de cermica e de pedra polida. Assim, o Algarve e o li to ral entre Tejo e Mondego foram os locais de instalao dos pri- meiros agricultores do Ocidente, semelhantes aos das regies de origem dos grupos pioneiros que espalharam o Neoltico pelo Mediterrneo ocidental.

    nesta fase histrica que se desenrolam dois acontecimentos revolu cio n- rios: a domesticao das plantas e dos animais. Estes eventos vieram permi tir a passagem do nomadismo ao sedentarismo, visto que o homem deixou de estar sujeito exausto ou rarefaco de alimentos nos locais onde foi ha bitando. A primeira necessidade humana, o alimento, passou a ficar potencialmente resolvida, na medida em que a soluo para a recolha dos seus vveres lhe ficou acessvel 2.

    A descoberta da agricultura foi, como se sabe, uma imensa revoluo. Deveu-se ao acaso e foi obra da mulher. A caa e a deambulao pela natu-

  • reza continham perigos que no ameaavam tanto as mulheres, pelo facto de ficarem com frequncia de guarda ao lar (na acepo de fogo mantido) e a tratar dos respectivos filhos. Numa cronologia portuguesa, pode-se acrescentar que o traje portugus, na forma de um manto de pele, contemporneo das gravuras de Foz Ca com cerca de 20 000 anos. Os Sapiens Sapiens inaugu ra - ram uma forma rectangular de vestimenta, feita da pele do animal ca ado, que veio a ser reproduzida na tecelagem, a partir de uma ruptura histrica decisiva, o chamado Neoltico. Tal como os menhires constituem a mais arcaica afirma- o da arquitectura implantada no solo, o rectngulo txtil constitui a forma basilar da veste, porque persegue o desenho antropomrfico e filiforme, quer da figura humana, quer da representao da sua sombra projectada no solo. Enquanto a verticalidade do menhir imutvel, o rectngulo txtil possui a ductilidade de ser horizontal, vertical e diagonal, de poder fazer um enrola- mento, de serpentear a figura humana, de se enroscar nele e de o abraar num gesto de amor, de proteco e de carinho materno e fmeo. Ma nufac- turaram-se e ainda se manufacturam rectngulos txteis em todos os locais onde existem tecidos, mesmo quando a tcnica no a da tecelagem, mas a do pisoar a casca de rvore at a tornar macia e fina, domvel e adaptvel s arredondadas e curvilneas formas do corpo humano. Os txteis esto sempre presentes em qualquer cultura e geografia, porque desde a mais alta antiguidade o homem necessitou de se proteger e de se vestir. Como padro basilar da indumentria ou como acessrio desta, o rectngulo txtil foi sendo fabricado em diferenciadas propores; primeiro, em tiras de pequena largura e, medida que os saberes evoluram, em tiras de maior lar- gura que acabaram por atingir a medida de uma figura humana que se unia em dois panos para se fazer uma manta e, finalmente, na largura inteira de uns braos abertos, destinada a cobrir o par eleito da comunidade e, em poca de abundncia, a de todos os pares dessa sociedade.

    Mantas e tapetes provm de uma remota parentela txtil cuja mltipla fun- o ainda hoje detectvel nos xailes, nas envoltas, nas capas e nas colchas, que tm a sua raiz no bero da civilizao, a Mesopotmia e, afinal, em todo o Mdio Oriente, de que a civilizao islmica a mais directa herdeira, na me dida em que foi habitando, sempre e at hoje, os mesmos locais, manu- facturando do mesmo modo e com idnticos processos manuais e artesanais esse saber milenar de fiar e de tecer, de tingir e ornamentar.

  • Foi preciso tempo, muito tempo, para se mostrar e se demonstrar que o Cres cente continuava a corresponder a um smbolo de unidade isl- mica que permanece, at hoje, como uma importante raiz cultural portu- guesa. Escondida, escamoteada e rejeitada pelos fiis defensores de uma f, manteve-se subterrnea desde que foi oficial e manuelinamente, rele- gada como cri minosa, desde o incio do sculo XVI. Todavia, a envol- vncia muulmana perseguiu o Pas, que mentiu a si prprio durante sculos, salvo algumas honrosas excepes, para se esquivar ao que lhe era natural.

    Embora alguns pensadores, intelectuais e agnsticos, se afirmassem divergentes de uma ortodoxia que delineou a cronologia dos tempos ibricos e portugueses, a plena afirmao da ancestralidade rabe nasce, ou melhor, floresce um dia em Mrtola, no terceiro quartel do sculo XX, quando afincadamente um homem livre se apercebeu da relevncia, da semelhana e do entrosamento entre o seu presente e o seu passado. Nesta vila alentejana, teima-se em afirmar, conservar e recuperar tudo o que complementar da ascendncia romana e crist. No pode de forma alguma escamotear-se que o tronco romano e o tronco islmico continuam a ser, at aos dias de hoje, as mais vincadas marcas da dualidade ou da alteralidade das artes decorativas portuguesas. Neste con- texto, deve salientar-se que a arte txtil abrange uma produo muito arcaica e que indumentria se somam os tecidos, os bordados, as rendas, o bragal, as colchas, as mantas, a tapearia, os tapetes e todo o tipo de manufacturas exe cutadas no tempo e no espao com as matrias txteis ou em conjugao com elas. Relativamente ao traje, a respectiva evoluo plurissecular segue os parmetros ocidentais cristos desde a Idade Mdia. No se poder esquecer que os pais da Ptria foram uma galega, D. Tareja, e um frans, o Conde D. Henrique. Esta origem indica, desde logo, o modo de trajar correspondente aos respectivos reinos cristos que seguiam os padres decorrentes de al guma evoluo medieval sobre os ltimos trajes romanos. At ao dealbar de uma frgil burguesia nos finais do sculo XIV, a sociedade dividia-se entre clero, nobreza e povo. O surgimento da moda ocorre, ento, na corte da Borgonha e nas diversas cortes italianas do Quatrocento. A corte

  • de Lisboa, sobretudo a partir de D. Duarte, fortemente influenciada pela borgonhesa, excepcionalmente ilustrada e documentada nos designados Painis de S. Vicente, nomeadamente no painel do Infante e no painel dos cavaleiros. O traje medieval popular no distinguia, seno excepcionalmente, as vestes populares dos Portugueses, dos Espanhis ou dos Franceses. De um modo geral, pode afirmar-se que, at Revoluo Francesa de 1789, este foi o padro comum ao traje regional com singularidades, como por exemplo, no traje algarvio que foi seguindo formas de estar e de vestir dos mouros e sarracenos, de que adiante se tratar.

    Traje regional e identidade A indumentria religiosa, militar e civil constitui um dos reflexos funda- mentais destas trs componentes essenciais da sociedade moderna, que per- durou grosso modo at aos anos 60 do sculo XX. Por outro lado, em cada uma destas instituies abrem-se leques de hierarquias a que correspondem trajes e insgnias classificadoras, apropriadas para distinguir as gradaes de cada uma das trs pirmides sociais. Enquanto as ordens religiosa e mili- tar contm os seus especficos parentescos de recorte bem delimitado (do mo nacal ao paramilitar), os quais no sero aqui desenvolvidos, a ordem civil organiza-se de forma mais complexa, criando diferenas civilizacionais e variantes culturais. Por sua vez, em cada cultura existem grupos e subgru- pos com as suas classes de poder, que se vestem de acordo com o seu enqua- dramento urbano ou rural. A cultura regional contm uma simblica participada de que os indivduos se revestem e paramentam para aderir e se dissolverem na comunidade. H formas de vestir especiais e, muito especialmente, h formas de parecer de festa e de trabalho. Significam uma forma material de acentuar e exprimir o ritual do quotidiano e o ritual em que toda a comunidade se faz engalanar e se ornamenta em dias eleitos pela mesma comunidade. Acontece assim, por exemplo, com o traje da mordoma do Minho e com a capa de honras de Miranda, que so emblemas culturais da regio porque re- presentativos de uma herana cultural. O traje do pastor da Serra da Estrela ou o dos pescadores da Pvoa de Varzim so, na mesma ordem de ideias, a assuno da funo para que foram imaginados, o pastoreio e a pesca. No

  • pretenso deste ensaio definir as culturas regionais portuguesas mas to- -somente contribuir para uma anlise das mesmas, atravs do estudo da in- dumentria identificadora de cada uma delas. Vo ser tratados os trajes mais significativos do patrimnio material portugus, porque constituem a envolvn cia do homem que os usa e da comunidade que os cria e pro- duz. Ex pressam uma mentalidade, resumem e espelham uma cultura. A permanncia secular outorga-lhes a consistncia histrica. Repetidos, gera- o aps gerao, no sem alguma lenta e diferenciada evoluo, so o garante da aceitao colectiva. A escolha dos trajes que so apelidados de especiais ou exemplares, do ponto de vista histrico ou outro, obedece a critrios estticos e formais, atendendo-se tambm ao local do uso e ao tipo de actividade em que eram e so (hoje, raramente) utilizados, porque est extinta a sociedade em que foram elaborados, substituda pela sociedade de consumo. Quando, em qualquer circunstncia, se pretende simplificar, ou seja, retirar apenas o essencial, para melhor se explicarem as diferenas e se estabelecerem comparaes, depara-se-nos o problema da eliminao dos excedentes, das redundncias e das sobreposies. Assim, acontece em relao globalidade do traje comummente designado por popular.

    Em primeiro lugar, estas formas de vestir no so sempre populares, no sentido de serem usadas pelas camadas mais baixas da populao. Parece, portanto, que a classificao de regional a mais adequada, pois olha o traje como um dos elementos que compem uma cultura ligada a um espao e que reflecte uma mentalidade e uma tradio.

    Todavia, h a salientar e a atender que este tipo de indumentria usado em dois segmentos essenciais da vida em sociedade: o quotidiano e os momen- tos ou dias especiais, que se integram numa actividade socialmente englo- bante e que se designa genericamente por festa. A festa domina, contribui e exalta sentimentos de ordem vria que congregam toda uma comunidade para se expressar de uma forma nica e, frequentemente, original. Ao anali- sar o traje regional, h que reconhecer que este um elemento fundamen- tal de distino no conjunto de itens que compem o sentido da festa, para melhor entender esta indumentria especial e, posteriormente, aten- der ao modo de vestir do quotidiano, liberto de excessos e de sobrecargas ornamentais.

  • As festas, origens e desenvolvimento O apelativo sentimento que emana da relao cultura-territorialidade est a converter-se, neste incio de milnio, numa fora agregadora e compulsiva que gera poderosos desejos unificadores entre os indivduos que detm, por nascimento ou consanguinidade, este sentimento de pertena. Estes laos de parentesco tambm tm crescido como criadores de conflitos, parecendo de carcter atvico e primitivo, pela violncia com que so expressos e difundidos nalgumas regies do Globo. O desporto, como o futebol, pode ser considerado como um elemento aglutinador e o seu contrrio, quer a nvel nacional quer internacional. Esta afirmao parece cada vez mais verdadeira em alargadas geografias do Planeta.

    A anlise destes acontecimentos contemporneos, longe de repugnar e conduzir ironia simplificadora que aliena a realidade com o depreciativo tribalismo, recorda que o velho conceito de cl, mesmo que absorvido e integrado no sentimento ptrio, permanece como uma realidade fundamental e uma necessidade imperiosa e personificante.

    A afirmao pacifica continuada, estimuladora e comunitria deste intenso sentimento que regula a reunio de famlias e aderentes num geoespao cultural, formalmente vivida e transmitida atravs da celebrao de mais ou menos empolgados dias festivos, que se realizam ao longo de um calendrio ritualizado, prprio de cada regio, bem como da organizao de uma comemorao especial que sempre se traduz numa festa.

    Assim e com o intuito de interpretar os trajes tradicionais atendeu-se importncia da festa como acontecimento aglutinante na cultura nacional. Seguidamente, descrevem-se as formas de indumentria que religam aos afectos e sentimentos de origem parental ou de adopo pessoal. Segundo Oliveira Marques, eram mltiplas as festas de raiz popular na Idade Mdia. Festejavam-se no somente os faustos do catolicismo, como tambm os do paganismo com cor de cerimnia crist e at de usos pagos puros. Era o caso das Janeiras e das Maias, que vrias vezes se procuraram reprimir sem resultado. As mais importantes festas crists, conhecidas em todo o Pas, eram as do Natal, da Pscoa, de S. Joo Baptista, do Corpo de Deus e de Todos os Santos. Judeus e mouros tinham igualmente os seus festejos pr-

  • prios e, o mesmo autor refere que no variavam muito dos dias de hoje, os di vertimentos costumados em tais festividades. Cerimnias religiosas (espe- cialmente procisses), mercado ou feira, repicar de sinos, baile e cantorias, refeies colectivas emprestavam o colorido tpico habitual. Tambm pouco diferentes se haviam de mostrar as grandes festas citadinas (que comemo- ravam nascimentos, baptizados ou bodas de grandes senhores).

    No entanto, algumas caractersticas particulares as distinguiam. Em primeiro lugar, as touradas 3 De tempos a tempos os reis aproveitavam um aconteci- mento de relevo, para oferecer aos povos espectculos deslumbrantes de fausto e de composio variada. Era tambm um meio de ostentar riqueza e de im pressionar os visitantes estrangeiros. Pela heterogeneidade das distrac- es, tais festas quase se poderiam comparar s feiras internacionais de nossos dias. Chegavam a durar mais de uma semana e incluam, alm dos ha bituais touros, canas, momos, jogos, danas e banquetes, desfiles militares, cortejos histricos, exibies de folclore e at autos de natureza teatral 4.

    Ana Maria Alves, a primeira autora de uma monografia sobre as festas pol- ticas, refere que, por ocasio do casamento da Infanta D. Leonor com o Im- perador Frederico III, em 1451, o Infante D. Fernando veio com seus ven- tureiros vestidos de guedelhas de seda fina como selvagens, em cima de bons cavalos envestidos e cobertos de figuras e cores de alimrias conhecidas e desconhecidas e outras disformas e todas mui naturais 5. a primeira refe- rncia ao homem silvestre que encontramos na tradio das festas e que, associado nova experincia africana, ter prspera fortuna nos diverti- mentos do Renascimento. Se acrescentarmos a esta inovao a utilizao do rio Tejo como palco das festas do mar ficar completa a variedade tipolgica e estrutural das festas no Pas. Por outro lado, a expulso dos judeus e mou- ros, ordenada por D. Manuel, em 1496, nem por isso extingue a sua he ran- a cultural; continuaremos a encontrar nos sculos seguintes as suas danas e culturas, assumidas por cristos mascarados, juntamente com as danas de um novo grupo tnico que vem agora juntar-se populao: os ciganos. A voga mourisca, sobretudo, muito longe de desaparecer, aumenta, no s na Pe nnsula como em toda a Europa, inserida no gosto pelo extico que carac- teriza uma das vertentes da festa renascentista 6. No reinado de D. Joo III, introduzem-se o fogo-de-artifcio e o uso dos arcos triunfais propriamente ditos, ou seja, inspirados nas formas romanas e

  • erig idos em materiais leves, revestidos de forma a imitar uma construo durvel 7. O casamento do prncipe herdeiro, em 1552, deu origem a uma curiosa festa em que o pretexto da noiva atravessar o Tejo deu azo realiza- o de um grande espectculo: o rio est coalhado de monstros terrestres e ma rinhos, grifos, animais selvagens, cavalos-marinhos, serpentes, lees, tigres, e de muitas figuras galantes por iniciativa de grupos profissionais lis- boetas, alm de batis que apresentavam cantores e msicos 8. O vice-rei da ndia, D. Joo de Castro (1500-1548), entra em Goa como um prncipe humanista: Debaixo do plio, uma palma na mo, a fronte cingida pela coroa de louros. Para que nada faltasse triunfal jornada e em tudo se ouvisse o eco da glria romana, veio ao Senado da cidade, porta da Forta- leza, aberta em arco, saudar o heri, em latim 9. Esta entrada tanto mais de assinalar quanto se passava a milhares de quilmetros da Europa culta. O representante do soberano afirmava-se perante o estrangeiro como um Imperador e com a carga histrica e cultural que a romanidade conferia aos novos Imprios. A ocupao espanhola (1580-1640) ocasiona a entrada de Filipe II de Es- panha e I de Portugal, em 1581, e a de Filipe II, em 1619. Esta foi a maior festa poltica que alguma vez se fez na cidade e certamente das maiores do mesmo gnero na Pennsula. A primeira das entradas teve a interveno de um artista rgio responsvel, Terzi; a segunda acabou por ter o seu programa iconogrfico estabelecido por Leonardo Turriano. A introduo da lingua- gem erudita e a erudio humanista de tipo jesuta, cada vez mais acentuada e que inspira motivos ornamentais, torna a entrada literalmente ilegvel para a populao 10. Esta tipologia de peas vai passar a ter um cunho nacional e, de alguma forma, a padronizar todo o tipo de festas realizadas no Pas. A partir de 1640, as entradas rgias regressam ao esquema tradicional de festa em honra da monarquia, sem contrapartidas municipais, e as mais sole- nes voltam a estar ligadas aos grandes casamentos rgios. Os rituais populares afirm am-se com muito mais expressividade nas festas religiosas at os virmos a encontrar num novo gnero de dramatizao poltica: as festas cvicas. O cerimonial evolui pelo facto de se introduzirem novas tcnicas de trans- portes, e a participao popular tende a ser meramente formal. Assim, pros- seguir o estudo das entradas ao longo dos sculos interessa apenas na pers-

  • pectiva da histria das artes decorativas, porque aparecem dispositivos que denotam uma evoluo do gosto ulico (caso do arco neomourisco, erguido em 1858 para o casamento de D. Pedro V; a inspirao neoclssica das decoraes urbanas para o casamento de D. Lus), mas ao contrrio do que sucede at meados do sculo XVII, as entradas deixam de ser momentos de criao ou modernizao artstica para serem a exibio de objectos decorativos mais ou menos acadmicos, provenientes da oficializao de movimentos estticos que se geram noutros locais e noutras circunstncias. Numa perspectiva sociocultural, a entrada estagnou 11.

    Da festa barroca festa popular Na poca barroca, as festas polticas passaram a manifestar o poder absoluto do rei, engrandecendo a figura do monarca e da famlia real. No se poder esquecer que D. Joo V ainda lhe acrescentou o cerimonial religioso, fa zen- do convergir o trono e o altar, por exemplo, na clebre Procisso do Cor po de Deus. Esto presentes o luxo e a magnificncia de uma corte barroca, tan- to na decorao como nas indumentrias religiosa e civil. Para tal, o rei enco- mendava expressamente de Itlia, nomeadamente de Roma, a paramentaria e, de Frana, os trajes que ia usando nos diferentes e constantes ce rimoniais de carcter poltico-religioso. A procisso do Corpus Christi, ainda em 1754, era talvez a mais soberba de quantas se faziam no mundo cristo 12.

    Estas festas calaram fundo na tradio nacional, repetindo-se em todo o territrio sob variados pretextos. Alm dos nascimentos, casamentos e mortes - o ciclo humano individual das famlias reinantes -, havia os aniversrios do monarca ou quaisquer outros factos que permitissem lembrar e afirmar o seu poder perante a populao 13.

    Para a sua concretizao a festa vai conjugar todas as formas artsticas e cul- turais da poca que so postas ao seu servio, dando-nos uma arte ef- mera, para a qual se teve de recorrer arquitectura, escultura, pintura e s denominadas artes menores, das quais destacamos a arte do traje, onde se associa a imaginao ao mundo da cor e que na Relaes das Festas tem sem pre um lugar de destaque. A ela estar associada a pirotecnia, a msica, a coreografia, a pera, o teatro - atraindo todos os gneros de expresso que so utilizados como instrumentos numa sinfonia sabiamente orquestrada 14.

  • A indumentria define-se no seio do tecido social, tendo o seu lugar na encenao e no espectculo de rigorosa regulamentao. As festas populares, no perodo barroco, que correspondem ao Estado Absolutista, integram-se na organizao geral e esto submetidas ideia de consagrao do poder. Intervm nos locais e nos modos permitidos, de forma a contribuir para a pom pa superiormente gizada.

    A inaugurao da esttua de D. Jos, na Praa do Comrcio, deu azo a uma festa que se dava ao povo de Lisboa, privado de outros monumentos que acabava de perder com o terramoto 15. Todas estas festas, transpondo os limites do palcio rgio e da capital, encontraram, na provncia e nas colnias, nomeadamente no Brasil, uma larga repercusso que as transformava em acontecimentos com a participao de todo o Reino 16.

    Estes acontecimentos organizavam-se segundo um programa de que constava a comunicao da notcia, a sua divulgao atravs de prego, pelo qual todos os moradores eram informados da boa-nova e intimados a porem nas suas casas luminrias durante trs dias, no denominado trduo, em que havia re pique de sinos, missa solene, Te Deum e procisso. As ruas eram limpas e as janelas deveriam estar ornamentadas com colchas, flores, perfumes e ramos. Um bando, a cavalo, fazia um percurso pela cidade, convidando alegria com o colorido dos trajes e o som dos instrumentos 17. A luz e o rudo constituam parte fundamental da teatralizao da festa barroca. Os repiques dos sinos e as descargas feitas pelos regimentos, pelos barcos e pelas fortalezas associavam-se a essa forma to expressiva da festa. Nos programas, ento organizados, apareciam, entre os espectculos que tinham grande adeso popular, as touradas, o teatro e o fogo-de-artifcio, mas incluam-se naqueles ainda: danas, de figuras ou mscaras, cavalhadas, encanizados, elevao de mquinas aerostticas, contradanas, carros triunfais, bailes, cantorias, agradveis composies poticas, repetidas ao pblico e outeiros. Ofereciam-se bem servidos jantares, profusas ceias e refrescos, davam-se esmolas aos primeiros. Tambm nestas festas se demonstrou o gosto pelo estranho e o bizarro, pois o homem do barroco tinha imensa curiosidade pelas singularidades dos pases no europeus e, nos festejos que se fizeram no Porto, recorreu-se ao exotismo atravs de elementos inspirados na China e na Amrica, tambm se denotando a permanncia dos infiis atravs de cortejos de mouros e turcos 18.

  • Assim se expressou a festa barroca que, por assim dizer, padronizou os processos festivos que, desde ento, se realizaram no nosso pas. Haver ainda a referir que, no reinado de D. Jos, o povo continuava espectador, mas o penitenciado da Inquisio parecia reabilitado e o poder pombalino detectava na nobreza tradicional os crimes de lesa-majestade 19. Com o governo de Pombal, a razo de Estado vai dominar todo o seu pro- grama e a RES PUBLICA vai adquirir um carcter civil. Nesta nova organizao, h pouco lugar para festas. O trabalho, de forma directa ou indirecta, su bli- mado, e os negociantes e os mercadores podem, em certos casos, substituir a nobreza desaparecida. Os intelectuais, arquitectos maons, jurisconsultos, mdicos, professores, judeus ou no, podem em alguns casos, ocupar lugar de relevo nas decises rgias, apoiadas e apresentadas por Pombal para as suas reformas 20. Alguns anos mais tarde, William Beckford conta no seu dirio que o Conde de Vila Nova abriu os seus jardins gentalha de Lisboa. Estava tudo iluminado com bales vermelhos, azuis e cor de prpura, muitos rotos e desbotados. Havia um coreto tosco para danar e as modistas, costureiras e damas de companhia da cidade se exibirem nos cotillons com o Duque de Cadaval e alguns jovens de primeira sociedade, gente que s se sente bem na companhia de pessoas ordinrias 21. O comentrio final prprio de um ingls para quem era impensvel esta mistura de classes sociais que sempre tem pontuado, ao longo dos s- culos, o carcter de transgresso das festas portuguesas. Beckford assiste tambm a uma tourada em que, para a sua sensibilidade, tinham sido massacrados quinze ou dezasseis infelizes touros. No deixa todavia de gabar os cavaleiros que lidaram a corrida. D. Bernardo, apesar da febre, mostrou coragem e percia, D. Jos, a maior destreza e Assumar [Conde de] nada, alm da sua elegante jaqueta e das suas atitudes de peralvilho 22. P e quenos apontamentos de um estrangeiro que permanece em Lisboa, nos finais do sculo XVIII, e que assiste, ao declinar do Ancien Rgime portugus. Ainda que continue a haver uma evoluo na organizao e nos modos da festa, esta tende a constituir-se como foi referido, na justaposio de dois es- pectculos, o erudito e o popular. Enquanto o espectculo erudito vai pros-

  • seguindo, no sculo XIX, no sentido de se tornar completamente hermtico para a populao, o espectculo popular retm da festa barroca a encenao, o programa, a decorao, a arquitectura efmera, a estaturia (em figuras de gigantones e nos arcos triunfais e alegricos), prolongando as artes decorativas barrocas at aos nossos dias. A festa popular, nas suas vertentes de ritual e ostentao, compreende vrios aspectos estruturais que so retirados da festa barroca, transbordando para os espaos ldicos do profano os elementos da festa religiosa 23. As romarias e as feiras do nosso pas englobam o que Toms Ribas designa como festana, ou seja, qualquer estrutura ritualista ou cerimonial pr-determinada, codificada, mas sempre com muita alegria, grande envolvimento sentimental e social, sempre como um divertimento 24.

    Para Duvigaud, a festa um acto surpreendente, imprevisvel, aparece tanto durante cerimnias oficiais com as quais no se confunde, como fora de toda a manifestao pblica. Reveste aspectos diferentes que escapam a toda a lei: triste ou alegre, aterradora ou calma, privada ou pblica. Este autor atende sobretudo ao carcter da torrencial, energtica e exaltante subverso como caracterstica dominante da festa 25.

    No poder deixar ainda de se referir a definio de Eugnia Gomes que, ao analisar a festa, a classifica como um tempo denso que tambm tempo de es quecimento. Implica uma transformao social, porque um momento de contestao se no mesmo de destruio das regras mas no contribuir ela para manter a ordem estabelecida? 26

    Atenderemos todavia ao sentido da palavra festa como vem descrita no Di - cionrio Geral das Cincias Humanas: momento de dinmica sociocultural em que uma colectividade (isto , um grupo) reafirma, de modo ldico, as relaes sociais e a cultura que lhe so prprias. A festa elaborava-se a partir de um tema mtico particular e organizava-se no numa desordem mas com algumas alteraes ordem, de modo a obter ou reactualizar, na conscin- cia colectiva, o assentimento ordem preconizada. , portanto, essencial- men te um jogo simblico que re-situa a praxis em relao ao mito que lhe d sentido. A festa vale o que valem para o Grupo, efectivamente, a simblica utilizada e o mito evocado. Daqui decorrem as diferenas notrias entre a festa em meio arcaico e tradicional e a festa nas sociedades modernas 27.

  • As invases francesas e a divulgao das ideias da Revoluo de 1789, o exlio da Famlia Real no Brasil e a Revoluo Liberal de 1820, seguida de uma guerra civil que terminar em 1834, criaram um lapso histrico de cerca de 30 anos, sem grandes festas pblicas, razo pela qual as festas religiosas assumem o sentido de uma festa colectiva local, de que so forte exemplo as feiras e romarias do Norte do Pas. A acentuao dos regionalismos desencadeia-se a partir da dcada de 30 do sculo passado, a qual se expressa no s mas tambm nas formas de vestir. No admira, pois, que a importncia da festa pblica e erudita tenda a diminuir, a partir do sculo XIX, e que o povo tenha retido na memria o fausto das festas barrocas, criando o mito de uma Idade de Ouro. No se poder esquecer que, de facto, assim aconteceu.

    Durante o sculo XVIII, chegavam do Brasil carregamentos de ouro e dia- mantes que brilharam por todo o Pas, nos palcios como nas igrejas, nos conventos, nas casas burguesas e entre o povo, pois, at as escravas usavam pulseiras de ouro fino. Parece, assim, que a simblica Idade de Ouro se continua a repetir nas festas populares com as formas e os processos sete- centistas, em que o traje est claramente contido. A forma de festa popular designada por arraial constitui e mantm as caractersticas de uma festa bar- roca com os seus momentos religiosos e ldicos. O arraial passou a consti- tuir a festa deste povo, bem significativa de uma herana cultural, e se desa- parecem algumas particularidades, criam-se outras e estabelece-se nova diversificao 28. O espectculo, apesar de ingnuo, sobretudo nas romarias mais nitida- mente rurais, no deixa de ser brilhante. uma profuso de cores, feita para o sol: fitas, tafets, paninhos de algodo, papel frisado, vidrinhos, prolas, estrelas de ouro e de prata em curvas e contracurvas barrocas compem um nicho de santo - ou, se a esttua pequena, um pedestal - de vrios metros de altura. Baloiando aos ombros dos homens que o transportam, atravessa a multido numa apoteose, ao som da msica de banda e de foguetes. So raras as procisses de romaria que acompanham um nico andor. Os pr- prios santos submetem-se no ordem hierrquica, mas do corao popu- lar. No da ortodoxia, pois o santo mais venerado que vir em lugar de honra, seguido somente pela relquia (muitas vezes da Vera Cruz) que o padre transportar sob o plio 29.

  • Os arraiais continuam bem vivos em territrio continental e insular. Para participar na festa, usa quem tem, e sempre que pode, o traje regional, quer ele seja de trabalho ou romaria, pois o que necessrio representar a tradio, ou seja, encenar o mito quer nas danas e cantorias, quer nas orna- mentaes ou na indumentria. Por outro lado, as transformaes de ordem econmica e social, acompanhadas do aumento demogrfico, tornam impos- svel que a totalidade dos autctones, dos vizinhos e dos forasteiros, integre os arraiais vestindo a rigor. Surge, assim, frequentemente, a utilizao de um xaile, leno ou capa de sabor tradicional sobre o traje urbano com a varie- dade tipolgica do vestir quotidiano da cultura ocidental, usada pelos citadinos e pelos emigrantes de Frana, da Alemanha, do Canad, da Ve nezuela, dos Estados Unidos e do Brasil. comum, no Continente e nas Ilhas, a revivificao das festas tradicionais que ocorrem de Junho a Setembro e que coincidem com dois factores importantes: por um lado, a poca da recolha dos produtos agrcolas, nos trabalhos sazonais do Vero; por outro, o calendrio litrgico f-las coincidir com as festas dos Santos Padroeiros. Recentemente, a poca estival de descanso dos habitantes de cada microrregio corresponde tambm s frias dos emigrantes, de regresso temporrio, quer das cidades do pas onde vivem e trabalham como do estrangeiro. Este ltimo factor no de desprezar, pois tm-se vindo a constituir podero- sas Comisses Organizativas que envolvem considerveis fundos, propi- ciando o desenvolvimento de negcios locais, acompanhado de comrcio ambulante que, mais ou menos acampado, percorre os locais das festas e romarias do Continente. Casos isolados, mas no de menos atraco tam- bm turstica, acontecem pelo Natal, Carnaval e Pscoa, e noutras estaes do ano: como a Feira da Goleg, no dia de S. Martinho, 11 de Novembro; a Festa das Cruzes, a 22 e 23 de Maio, em Barcelos; a Festa da Padroeira, a 8 de Dezembro, em Vila Viosa, ou ainda a Senhora dos Remdios, em La- mego; a Feira de S. Mateus, em Viseu, e o S. Joo, em vora; a de S. Silves- tre, a 31 de Dezembro, na Madeira, e a do Esprito Santo, no Domingo de Pentecostes, em todo o arquiplago dos Aores, com especial incidncia em Ponta Delgado, na to conceituada Festa do Senhor Santo Cristo. As noites de Santo Antnio e de So Joo so ocasio para as cidades de Lisboa e do Porto comemorarem o incio do Vero 30. Estas festas, so orga-

  • nizadas pelas Juntas de Freguesia e pela edilidade, e tm acentuado uma interveno crescente de diversas camadas sociais. O cariz vincadamente democrtico das festas atingiu Lisboa, no 25 de Abril, enquanto no Norte esta dimenso fora sempre mais espontnea. A caracterstica da porta aberta e de um vasto terreiro de participao comu- nitria foi aproveitada pelo Partido Comunista Portugus para, todos os anos, realizar a sua Festa do Avante, que ultrapassou a inteno poltica, pas- sando a ser um dos acontecimentos mais concorridos na primeira semana de Setembro, com todos os ingredientes de uma Feira tradicional portu- guesa. A igreja aqui outra e no h procisso. Mas, a doutrina passa ao lado, tal como nas outras mencionadas festas, onde se perdeu j, no sem algumas excepes, a motivao religiosa, pag ou lendria.

    A sociedade mudou e h que reconhecer o sentido das transformaes. J no existe a festa popular comunitria nem o traje popular. Tudo mudou. A ortodoxia antropolgica no pode garantir a permanncia de usos e costu- mes que, hoje, so vivenciados de uma maneira diferente. A manufactura da indumentria j , em certa medida, industrial. Raros so os lugares onde se semeia, colhe, fia e tece o linho. Os teares manuais deixaram de ser caseiros e passaram a fazer-se em grupos de famlias ou em cooperativas. O burel raro, e os tintos so qumicos e artificiais. A reactivao do fabrico da seda em Trs-os-Montes, porm, comea a ser uma realidade. A chita estampada mo desapareceu e tem vindo a ser substituda por algodes de estampado industrial, assim como a preferncia vai hoje para a aquisio de rendas de nylon, muito mais acessveis do que as tradicionais, executadas em linho e, mais recentemente, em algodo. Restam algumas bordadeiras que, como no caso da Madeira, se conseguem manter atravs do apoio e da marca de qua- lidade introduzida pela via legal e empresarial.

    H tambm uma nova vaga de bons artesos que, desde a dcada de 60, pro- curaram recriar valores e peas tradicionais. So tanto urbanos como rurais. Entre estes, contam-se numerosos jovens que, cansados de consumismo, pre- conizam o retorno terra e lutam por uma vida mais humanizada. As Feiras de Artesanato, organizadas pela Feira Internacional de Lisboa, absorvem grande parte destes produtos que dificilmente atingem o mercado e os ndi- ces de produtividade desejveis. Mas, para alm do rigor analtico e da veri- ficao emprica, necessrio saber interpretar o sentir destes artesos para

  • compreender porque trabalham, o que realizam e quais as tcnicas e proces- sos de fabrico. A herana cultural rica e muito variada. A repetio e a mul- tiplicao das formas, das cores e dos motivos decorativos so a grande ten- tao. Torna-se difcil, em todos os campos culturais, inovar, fazer original, evoluir e propor novas alternativas. H que esperar at que aconteam sinais de uma importante renovao das artes decorativas tradicionais.

    Assim, se por um lado se vive ainda, nalguns locais do Pas, um festivo folclo- re a nvel nacional, padronizado pelos anos 40, por outro, estamos numa fase a que poderei chamar de neopopular, com apetncia crescente para re flexes sobre a identidade nacional, regional e microcultural. O forte movimento ecologista e a conscincia do vazio das ideologias, quer esquerda, quer direita, conduz a um caminho de introspeco que influi com bastante vigor nas opes das novas geraes. a escolha da qualidade que se traduz numa reforma de mentalidades, a qual tem vindo a desabrochar, com consequn- cias importantes no domnio da reinterpretao dos territrios como repre- sentativos de identidades geogrficas de contornos culturais bem definidos, pois resultam de uma sucesso de culturas com abrangncias histricas secu- lares, vividas por povos e civilizaes de razes diversas, dos Iberos aos Celtas e aos Romanos, dos Fencios e Gregos aos Visigodos e aos Muulmanos.

    Simblica dos trajes regionais

    Muito embora os Ocidentais tenham perdido o sentido da metafsica para aten derem somente linguagem cientfica, a verdade que os smbolos per- manecem e continuam a ser transmitidos atravs da linguagem visual. A sim- blica est contida tambm na essncia da tecelagem, na reunio axial das fibras. O fio vertical (a teia) ao unir-se com o horizontal (a trama) forma uma cruz et tout point du tissu, tant ainsi le point de rencontre de deux fils perpen- diculaires entre eux, est par l mme le centre dune telle croix 31. A teia consti- tui a estrutura. A trama materializa o varivel e o contingente. A vertical, ou seja, a teia, representa o princpio activo ou masculino. A horizontal apre- senta-se como o princpio passivo ou feminino. Desprendem-se, em coro- lrio, todas as correlaes simblicas que advm deste dois elementos fundamentais, quer eles se situem na ordem csmica ou na ordem da trans- cen dncia. A cruz apela para a unio dos complementares e simboliza, por isso, a estreita, necessria e fundamental reunio dos seres feminino e mas- culino, que constituem a base de qualquer sociedade.

  • Ao atendermos aos materiais com que os trajes so executados, h que obser- var, em primeiro lugar, os tecidos em que os trajes regionais so confec- cionados, havendo a distinguir cinco espcies: os txteis monocromticos, os riscados e os axadrezados, os lavrados e os estampados. Qualquer destes pro- cessos passou pela fase manual. A partir, grosso modo, dos finais do sculo XIX, a grande maioria dos tecidos sofre a modernizao que a tecnologia industrial veio trazer, quer ao tecido propriamente dito, quer manufactura dos prprios fios. Estes ltimos, executados, desde a mais remota antigui- dade, em l, linho, seda e algodo, so agora fabricados artificialmente, em consequncia da Revoluo Industrial. Esta acontece no nosso pas no sculo XIX e, mais acentuadamente, em Novecentos, com a achega tecnol- gica dos novos produtos utilizados como matrias-primas, de que resultam as mais variadas fibras sintticas e texturas inslitas e diferenciadas, com qua- lidades inusitadas, atrmicas e impermeveis. Aceitando a tese de Pastoureau, sobre o uso do vesturio listrado - como caracterstica medieval de transgresso ou excluso social do seu utilizador - dever ter-se em conta que a dominncia monocromtica do traje do interior se contrape aos listrados e estampados do Litoral. Os principais vestgios das riscas encontram-se nas mantas, nas saias nortenhas, madeirenses e ribatejanas. Pertencem mesma linhagem dos riscados, que se contm no sistema das librs e no vesturio da criadagem. Sem ser diablica, a risca permaneceu como marca desvalorizante 32.

    No caso nortenho, risca, acrescentaram-se os lavrados e bordados que dig- nificam o desejo de enaltecer o tecido e, consequentemente, a sua possui- dora. Os tecidos bordados implicam o uso de outra tcnica, que se sobrepe tecelagem, e que pode ser executada no mesmo ou noutro material que serve de suporte ao bordado. Este ltimo, constitui uma decorao do suporte que, em vrias formas e feitios, em densidades maiores ou me nores, resultam numa carga ornamental. Esta aparece como portadora de uma cul- tura com sinais sobrepostos, exprimindo, simultaneamente, a poca em que a vianense no era exaltada, e a outra, posterior no tempo, em que eno- brecida. A carta de privilgio data do sculo XVIII, e detectvel na gramtica tardo-barroca dos elementos decorativos que se apem s coloraes das riscas que, por sua vez, tm puxados. A tcnica dos puxados, que uma tcnica de lavrado de tecelagem, usada nas saias e nos aventais, torna o con- junto da minhota, densa e profusamente policromo.

  • Devero acrescentar-se mais dois tipos de txteis, os pisoados e os feltros. Os primeiros, cujas tcnicas de manufactura transformam os tecidos mono- cromticos, tornando-os impermeveis; os segundos, alteram o fabrico dos txteis, pois o feltro executado atravs da reunio catica e indiscriminada de milhes de fibras de l e plos de animais, nomeadamente de castor 33. Surgem ainda, no contexto das vestes regionais, as executadas em pele e as que so manufacturadas em palha. A cobertura de peles, de raiz pr-hist- rica, permanece no traje do pastor da Serra da Estrela e nos pelicos e safes alentejanos. Ambas a indumentrias so masculinas e correspondem ao acto nmada do homem, acompanhando a transumncia dos animais. Facto que, hoje em dia, continua a acontecer, atravs da conduo dos rebanhos das pla ncies para as terras mais altas. Estas peas constituem as formas mais primitivas e arcaicas do traje regional, tendo as suas origens no Paleoltico. Do Neoltico sobrevive outra forma de vestir, a coroa ou croa. Remete para a tcnica do entrelaado de palha, utilizado na cestaria. Sabe-se que a manu- factura de cestos, assim como a olaria so anteriores ao conhecimento da tecelagem. A descoberta da agricultura conduziu sedentarizao e, simul- taneamente, necessidade de fazer vasilhames para guardar e conter os mais diversos produtos. Inicialmente, e antes de se conhecer o cozimento, fazia-se um invlucro de vime entrelaado para conter o barro, o qual secava com a forma desse suporte. Esta tcnica de entranado passa a ser utilizada para cobrir o homem em saiotes e outras formas, de que a coroa deriva. Corr es- ponde ao que se designa como pr-tecelagem. Tambm est relacionada com a cobertura das choupanas e palheiros. Mantm-se rara, hoje, na Beira Alta, nomeadamente nas serras de Montemuro e do Maro. A tecelagem de l prossegue no tempo e vem originar o tecido de mantas de vrias funes e de mantos e capas, cuja confeco exige alm da agulha e do fio, j conhecidos no Neoltico, a descoberta da faca. Este utenslio pressupe uma elaborada e desenvolvida indstria do ferro. Do vesturio dos Lusitanos muito pouco se conhece. Estrabo diz apenas: O vesturio geralmente uma capa preta com que tambm dormem sobre a terra; porm, as mulheres gostam de vestidos de cores 34. No nosso pas, h a referenciar as mantas de l da Serra da Estrela e do Alen- tejo, relacionadas com a pastorcia. Enquanto as primeiras se mantiveram

  • monocromticas, as segundas, por influncia muulmana, vieram a sofrer alteraes atravs da introduo de motivos decorativos geometrizados, ao gosto berbere, e tambm de riscas, que acabaram por ser includas nas mantas de papa da Serra da Estrela, servindo tambm de capotes atravs de uma pequena costura num dos lados. Ainda de l, e usada fundamental- mente na serra do Caramulo, dever referir-se a capucha, cuja configurao tem um dimetro solar maior do que a coroa, mas executada em burel. Cor res ponde a uma fase avanada da tecelagem em tempos j histricos. Todas estas formas monocromticas so executadas nas cores naturais do car- neiro. Os tintos implicam uma tcnica que supe um adiantado grau de civi- lizao. A tintagem adquire um grande valor cultural, a partir das invases rabes na Pennsula e da permanncia dos mouros em Portugal, at ao sculo XIII. Como sabido, os mouros abandonam oficialmente o territrio nacional com o decreto de D. Manuel, no incio do sculo XVI, que os expulsa do Pas juntamente com os judeus. Mas, na verdade, se atentarmos, por exemplo, permanncia do uso da bioca no Algarve, esta pea s foi retirada dos hbitos quotidianos e dos costumes das mulheres da regio, atravs de uma medida legal datada dos anos 30 do sculo XX.

    De origem celta, existe ainda a branqueta do sargaceiro da Aplia e o saiote do pauliteiro de Miranda do Douro. Enquanto o primeiro tem a forma de uma tnica branca e curta, a saia mirandesa, tambm branca, formada por uma sobreposio de folhos que atinge o joelho do homem. Foi executada em linho, havendo quem tambm a relacione com o traje tradicional grego, do que discordo, pois jamais este povo fez incurses pelo interior do Pas, li- mitando-se a estabelecer feitorias no litoral. Muito embora o Douro fosse navegvel at Miranda, uma hipottica subida pelo rio at quelas paragens no justifica a presena e a manuteno, na fronteira, da secular forma deste traje regional.

    Matos Sequeira refere que a invaso dos brbaros do Norte da Europa, no prin cpio do sculo V, operou uma revoluo na indumentria peninsular e gaulesa. Sero, portanto, os Suevos e os Visigodos os introdutores do uso do calo e calas nesta parte do Sul da Europa [], que se generalizou em cala comprida com a Revoluo Francesa de 1789. [] O traje popular parece ter sido apenas influenciado, mas no imediatamente, pelo que via nas classes privilegiadas, como sempre sucedeu e sucede ainda hoje 35.

  • A utilizao do linho generaliza-se com a presena romana, assim como o uso da camisa, que envergada desde a Idade Mdia como pea de roupa, tanto interior como exterior, at ao sculo XIX. Aos Romanos deve-se ainda o uso do branco, que subsiste tanto na referida branqueta como no traje do pescador da Pvoa de Varzim. O fabrico industrial vem a permitir que os preos passem a ser mdicos. Estas circunstncias geram a possibilidade das pessoas, homens e mulheres, terem e usarem uma camisa para o dia e, outra, para a noite, razo pela qual a camisa de noite s divulgada, entre as clas- ses mais abastadas, em Oitocentos e, a nvel regional, no sculo XX.

    Do manto romano derivam todas as capas e capotes usados no nosso pas, assim como o traje, inicialmente religioso, da Universidade de Coimbra. O h bito talar advm da toga latina usada pelos senadores. A batina dos estudantes de Teologia, longa at aos calcanhares, estendeu-se aos universitrios de todos os ramos cientficos. A indisciplina e a displicncia no trajar, verificada no sculo XVIII, conduziram a que a reforma da Universidade se focalizasse tambm nos hbitos talares que passaram a estar regulamentados. No entanto, as calas e sobrecasaca, ainda hoje utilizadas, correspondem adopo do traje secular masculino do princpio do sculo XX, sobre o qual se enverga a capa, essa sim, de raiz medieval.

    Outro tipo de negro, no universitrio, est presente no do traje da mordo- ma do Minho. Dever salientar-se esta utilizao do negro e mais raramente do azul-escuro em sua substituio. Esta tonalidade tornou-se cor de circuns- tncia para cerimnias religiosas e para a indumentria eclesial, posterior- mente ao Conclio de Trento e consequente influncia dos Jesutas. A auste- ri dade da corte, a moda espanhola e a Inquisio fizeram perdurar, muito para alm do sculo XVI, a postura negra do traje, mesmo aristocrtico e at real, de que Filipe II o grande cone. Desde finais do sculo XVII, a indument- ria erudita masculina explode num intenso cromatismo de que se vem a soltar com a Revoluo Francesa de 1789 e com a postura austera e minimalista de Lord Brummel, Le Beau Brummel, que, no incio do sculo XIX, faz vingar a moda da discrio e da sbria elegncia masculina do seu fraque negro.

    Dos trajes regionais

    A escolha e a designao de trajes regionais obedecem a critrios basea- dos na visualidade, ou seja, nas qualidades estticas e poticas da disse-

  • minada tipologia de traje no Continente e nas Ilhas. Tambm foram consideradas razes de natureza social e tcnica, sempre que estes factores contribuem para a compreenso e a interpretao do significado dessas mesmas roupagens. Cada tipo de traje representa a imagem de uma cultura e tipifica, assume e su blinha, a relao de participao do homem com o seu enquadramento geocultural. So trajes de oficiantes. Explicam e integram as cerimnias de carga simblica local e esto ligados quer a celebraes especiais quer cadncia dos dias e das estaes comandadas pelo astro-rei. Foram tanto a segunda pele de uma sublimao, dissolvida no colectivo, como a de um vitico vital. Ambas as situaes so carismticas, porque, tanto num caso como noutro, transcendem a ordem do real para se situarem na orla do ideal. Este ideal traduz-se na indumentria que se foi considerando e evoluindo at ficar perfeita. O traje perfeito aquele que rene todas as qualidades, conjugando a estrutura, a forma, a cor, os ornatos e os acessrios com os materiais e as tcnicas, de modo a constituir o conjunto que reflecte a atitude de comunho em cada regio. A fora e o vigor na elaborao de cada um dos elementos e a sua globalidade so to importantes como a adaptao da forma de cada traje funo que desempenha, acrescida de sinais misteriosos ou incompreensveis para os no iniciados, mas que veiculam a expresso prpria da comunidade. Este breve ensaio de caracterizao pretende ser uma anlise tipolgica do traje re gional portugus, sobrelevando-se o seu valor atravs da explanao dos seus contedos, das suas estruturas e formas.

    Foram consideradas as vestes que, numa determinada regio, advieram inva- riantes, pois os trajes, tal como as histrias de carcter mitolgico, parecem ser arbitrrias, sem significado, absurdas 36. Mas, na realidade, tm um sen- tido, uma ordenao dentro de grupos ou famlias de indumentrias, exal- tando-se como criaes nicas e originais, no sem que absorvam e mante- nham algumas caractersticas estilsticas, de remotas ou mais recentes origens histricas. Entendeu-se que a concepo destes trajes provm de uma mistura de ele- mentos locais, de profundas e seculares razes culturais, a que se foram justa- pondo outras formas eruditas, a partir dos sculos XVII e XVIII. A Re volu o

  • Liberal extremamente propcia definio dos regionalismos e, a partir do segundo quartel do sculo XIX, os trajes regionais esto padronizados.

    Existe uma forte diferenciao nos trajes portugueses, dividindo-se o Pas em duas grandes zonas: a litoral e a serrana, como escrevia Lus Chaves, em 1940: As ls dos picotes, riscadilhos, xergas ou burelas, buris, estamenhas, saragoas, churras ou tingidas, do tons de montona grandeza aos trajes ser- ranos. medida que se desce para a plancie, a cor alegra os trajes que mani- festam pouco a pouco a subida para a policromia rica. Assim, as mulheres policromizam e complicam o vesturio, quanto mais se aproximam das baixas, sobretudo quanto mais se achegam ao mar. A os matizes so perfei- tos, vivos no colorido e movimentados no jogo dos tons. A mulher da zona litoral a mais colorida e a de maior composio na indumentria. E, de entre todas, a mais rica a do recanto do Noroeste, na regio de Viana do Cas telo. Esta graduao do traje, das alturas para as baixas e do interior para a orla martima, condiz com as outras manifestaes espirituais e utilitrias do homem na mesma direco 37. Idntica situao se gera no traje insular da Madeira e dos Aores, cujas vestes se dividem entre a policromia e a mo- nocromia, entre a exploso de alegria e o sentido da interioridade.

    A diviso geogrfica acima citada, entre a orla martima e a zona montanhosa, traduz-se tambm na forma do uso do leno da mulher. No eixo interior Norte e Centro, a testa tapada, o que significa a diminuio do papel da mulher nas decises da comunidade transmontana e beiroa. No Sul e em todo o litoral, o leno, embora atado de formas variadas, liberta a testa, sinalizando um papel mais activo da mulher e a aceitao do seu modo de ser, pensar e sentir. No Minho, depois de uma volta na nuca, o leno atado no alto da cabea, coroando o topo, guisa de figura real; isto , indica uma afirm ao e desenvoltura rara e nica em territrio nacional, pois aqui prevalece o feminino sobre o masculino.

    Outra situao nica acontece na Madeira, onde ambos os sexos usam a carapua com espigo, alteando a cabea, que fica bem erguida para o cu. A configurao deste chapu pode representar a ilha dirigida ao Sol e, simul- taneamente, a calote esfrica, a Terra, dividida em quatro gomos, onde no centro se implanta a vertical que a liga ao Cosmos. Qualquer destas simbo- logias analisvel nos formatos dos chapus, cujo desenho convexo, obri- gado pelo cncavo da cabea, , frequentemente subvertido e alterado, para impor diversas composies com os seus correspondentes significados.

  • Simblica e caractersticas Relativamente ao traje regional portugus, podem ser desde logo detectados cinco grandes factores componentes do variado conjunto que o constituem.

    A representao do afecto A linguagem amorosa foi veiculada com muita frequncia, constituindo uma constante que se repete de diversas formas, no modo de trajar, de usar o leno e nos prprios motivos decorativos das camisas dos homens do Mi- nho, habitualmente dos noivos. Apresentam dois pequenos coraes borda- dos a vermelho e so um exemplo deste facto, tal como os chamados lenos de namorados. Com efeito, os versos que se encontram bordados no entorno dos lenos de amor constituem um interessante e diversificado manancial de poesias populares, geralmente escritas em quadras de grafia saborosa. A algibeira da minhota a pea mais obviamente sexuada, no contexto do traje regional portugus. A perfeita geometrizao da curva e da contracurva em que se configura esta algibeira, constitui uma representao idealizada da mulher que se repete no interior da algibeira onde a sua forma se abre na ho rizontal. Toda esta concepo raia a criao de um acessrio de luxo, tal a profuso do bordado e da decorao e, com frequncia, da assinalada legenda AMOR. O desenho mais ou menos estilizado do corao e do prprio corpo da mulher so cones do sentimento lrico que se reconhecem nou- tros adereos e bordados. Esta simblica detecta-se ainda dependurada no cordo ou nos fios de ouro, em grandes, mdios e pequenos formatos. A fa- mosa borboleta no mais que um corao virado ao contrrio, e que uma aluso ao amor.

    Tudo e todos tm como centro as emoes ditadas pelos sentimentos e pelo afecto. E, quando ele falta, o luto pesado, permanente e dramtico. As mu - lheres da Nazar, e todas as outras de diversas regies que se mostram embu- adas ou embiocadas nas suas capas, so a imagem desta realidade que per- durou at quase meados do sculo XX. Segundo Maria Bello, a mulher po rtuguesa gerou e educou sozinha os filhos ao longo da sua secular histria, porque o homem partia conquista do seu territrio, na luta contra os in- fiis, para a pesca, o bacalhau, as ndias, as fricas, os Brasis, as Franas e as

  • Ale manhas A dureza da vida e do sobreviver constitua um destino inevitvel, pelo que o factor de autoridade e de responsabilidade familiar e patrimonial teve as consequncias visuais no modo de trajar em que o luto esteve sempre muito presente. Este facto pode ser generalizado mulher me diterrnica, desde a mamma romana, italiana e siciliana, mre francesa, madre espanhola e me portuguesa.

    A proliferao dos adornos em ouro A sobrecarga decorativa do traje, sobre- tudo o uso e o abuso do ouro, no Norte do Pas, esconde, ou melhor, revela a rivali- dade de ser a mais bela, a mais rica, a es- colhida, em resumo, a mordoma. Esta tem um traje prprio, azul-escuro ou ne- gro, mas cintilante, nos seus bordados e nos seus ouros. Na nsia de apagar o corpo, abria-se em profuso ornamental adjacente. O poder econmico tam bm se espelha na indumentria, na me dida em que o ouro corresponde a um investi- mento que torna visvel, perante a comu- nidade, as posses da sua proprietria. Por outro lado, o valor fiducirio dos ouros era facilmente transaccionvel, o que equivalia a ser uma poupana utilizvel

    Noiva e noivo do Minho

    Trajes de festa

    em momentos mais difceis. Os ouros podiam ser vendidos e comprados sempre que necessrio. Convinha ter bastantes para valer em situaes financeiramente mais complexas. A ostentao deste luxo rural tambm engendrava conflitos e tenses, que deram azo a ini- mizades entre as vizinhas e as prprias freguesias. Amores e dios que perduravam por geraes... Voltando mulher minhota e simbologia real da sua figura, no poder deixar de se ter em con- ta algumas formas do muito ouro que a reveste: as laas, o corao, os brincos rei e os brincos

    Acessrios femininos de festa

    Brincos rainha

  • rainha. Qualquer destas peas essenciais da ourivesaria nortenha , estilisticamente, barroca, ou melhor, rocaille. Coincide, pela composio e pelos ornatos, com a gramtica designada como D. Maria.

    A laa da ourivesaria popular deve o seu formato interveno real. Tem sido tradicionalmente atribuda a D. Maria Ana de ustria a clebre Laa de Es meraldas, pertencente s jias da Coroa. Presumivelmente, a rainha t-la- oferecido a uma das suas netas. Idntica laa tambm est presente no conhecido retrato da rainha D. Mariana Vitria, mulher de D. Jos, datado de c. 1750. E mais laas se poderiam referir, nos retratos da aristocracia portuguesa, nomeadamente dos finais do sculo XVIII. A forma, o aparato e a magnificncia das laas usadas pelas rainhas, no s deve ter tido um enorme impacte visual, como criou o desejo entre as mulheres portuguesas, ricas ou pobres, aristocrticas ou plebeias de ter algo de semelhante, tendo-se transformado numa jia popular. Algumas variaes da laa e a sua estilizao vieram criar a pea mais original da ourivesaria portuguesa que comummente designada como a laa. No se poder tambm esquecer o voto de D. Maria I e a sua devoo ao Cora o de Jesus: se tivesse um filho varo, mandaria erguer uma baslica. Assim foi. E, em 1789, foi sagrada a Baslica da Estrela, o primeiro edifcio no mundo a ser dedicado ao Corao de Jesus e que tanta divulgao have- ria de ter durante o romntico sculo XIX 38. A forma do corao, que comummente ligada simbologia do amor profano, remete, como se v, para a ordem do amor divino e da aco de graas pela ddiva do Cu. nesta poca que se padroniza, at aos nossos dias, a forma deste corao assi- mtrico e com ornatos ao gosto rocaille. ainda o Corao de Jesus que, a partir de 1789, D. Maria I manda timbrar nas mais importantes condecora- es portuguesas: as Ordens de Cristo, Avis e Santiago 39.

    , pois, o Corao de Jesus que as mulheres por- tu guesas e, nomeadamente, as do Norte do Pas usam ao peito. Apesar do aspecto barroco, esto hoje apenas conotados com a forte e reconhecida vertente lrica do Povo portugus. Tambm setecen-

    Acessrios femininos de festa tistas, barrocas e contemporneas de D. Maria I, so

    Pendente em forma de corao as formas dos brincos rei e rainha. A distino

  • dos mesmos reside na forma esguia dos primeiros, representao estilizada, com lao, do smbolo flico, enquanto os outros, so volumosos, desenhando formas arredondadas e curvilneas. Tanto uns como outros contm a configu- rao ou a ideia de laa, uma das estruturas base da joalharia deste Pas. H a referir ainda a imagem da Senhora da Conceio, em esmalte, que fi- gura em medalhas, medalhes e alfinetes de raiz popular. Esta figurao constitui a resposta popular a um gesto real: D. Carlota Joaquina cria, por favor rgio, a Ordem das Damas Nobres de Santa Isabel, em 1804. Era uma condecorao em honra da Rainha Santa, destinada s a senhoras, agra- ciando assim as aias e damas que a acompanhavam e/ou a visitavam. A nvel popular, este gesto foi repetido com a prtica generalizada a nvel nacional de ter a Padroeira de Portugal colocada ao peito. Este uso teve a sua moda. Passou, desde meados do sculo XIX, a ser usado fora da capital, mas sobre- tudo no Norte do Pas. Alm dos fios, cordes, grilhes e cadeias, compostos por elos de ouro, deve- ro referir-se como peas invariantes da ourivesaria nacional, os colares de contas, as argolas e as arrecadas. Qualquer uma destas peas tem razes mile- nares 40. Constituem uma preservao de tcnica e de formato. So indis- cutivelmente usadas por qualquer estrato social. So objectos do quo tidiano. Atravessaram os tempos, fiis sua concepo original, com pe quenas varia- es. Representam mais trs estruturas base da joalharia tradicional. Foram celtas e castrejas, fencias, romanas, visigodas e mouriscas, enfeitaram rai- nhas e camponesas, compem o colo e as orelhas da operria, da burguesa e da feminista.

    Espelham um modo de ourar portugus e reflectem o gosto por este material nobre. Dever todavia acrescentar-se que o dilogo espontneo e natural da mulher lusitana com estas peas de ouro uma constante cultural 41. Vrias influncias desembocam nesta tradio. Une tradition, cest laction par laquelle on transmet quelque chose; et, par extension, ce qui est transmis. La tradition, selon Gunon, cest ce qui est transmis partir dune origine humaine et qui touche donc au surnaturel 42. A associao do ouro com o Sol, a festa e a alegria demasiado conhecida e facilmente detectvel entre ns, e poderamos novamente invocar o grande eixo geogrfico cultural que separa o Litoral da zona serrana para delimitar

  • as gra daes do seu uso. Com forte incidncia no Norte vai diminuindo a presena do ouro para as plancies do Sul e rareando no interior do Pas. O mesmo eixo vlido para a colorao dos tecidos, como se referiu anteriormente, e para a manufactura dos txteis.

    A preferncia pelo linho e pela l

    Esta preferncia provm do Neoltico. Estas matrias-primas foram das pri- meiras a ser utilizadas desde os primrdios da tecelagem, cumprindo ambas a necessidade de um agasalho e de uma cobertura mais leve, mas suficiente- mente duradoura e resistente para perdurar o mais tempo possvel. O uso das primeiras vestes era quotidiano. A cadeia de operaes que era necess- rio realizar, quer para a manufactura de uma pea de l, como para uma pea de linho eram muitas e, por razes diversas, estavam sujeitas a trabalhos sa- zonais. Os velos do carneiro retiravam-se no Vero, enquanto as sementeiras do linho se processavam umas luas antes da Primavera. Durante milhares de anos, tanto em territrio nacional como europeu e asitico, assim se organi- zavam os dias e as tarefas domsticas, destinadas a suprir as necessidades do homem, da mulher, do recm-nascido e da criana. A seda vinda do Oriente chegou ao nosso pas atravs do mundo islmico e, tardiamente, na Baixa Idade Mdia, do comrcio fluvial com as cidades italianas, nomeadamente G nova e Veneza. com o movimento da expanso e com a descoberta do caminho martimo para a ndia que a seda entra em quantidade no nosso pas e, logo de seguida, o algodo. Este material s ganhou os favores da corte durante a estada de D. Joo VI no Brasil, no primeiro quartel do s- culo XIX. A razo reside, prioritariamente na perfeita adaptao do algodo ao clima tropical, mas tambm na moda Imprio que ento era usada a nvel eu ropeu. O regresso do rei, em 1821, conduz ao regresso da seda como mate- rial preferencial da moda feminina, enquanto o algodo comeou paulati- namente a substituir algumas peas do vesturio exterior e, sobretudo, o linho das camisas e outros elementos do traje interior. Esta substituio decorre da Revoluo Industrial e, mais fortemente, a partir de 1900. A diviso cromtica entre a faixa litoral e o interior

    As formas e as cores do traje popular portugus ajustam-se, com uma evidn- cia muito marcada, localizao geogrfica. A orla martima vestia-se de cores

  • garridas, o que exprime sentimentos positivos de alegria, de prazer, de desejo de viver e do sentido da festa. Mesmo nos casos em que o homem usava cas- tan ho ou negro nas calas ou na capa, a cor era introduzida na camisa, na faixa ou na camisola de l, como acontecia no pescador da Pvoa do Varzim. Na parte territorial interior, a visualidade exprimia a austeridade e a severi- dade dos costumes que iam a par com a dureza da vida e do trabalho e com o prprio clima, mais rigoroso e glido. Os elementos decorativos so aqui de pequena dimenso e usados sem excessos. De norte a sul, o castanho abunda como base do vesturio exterior, tanto feminino como masculino. A l era tratada sem corantes na sua cor natural, que tambm a cor da terra. Razes de ordem financeira no so alheias a estas opes.

    A religiosidade na ornamentao dos trajes de festa Os trajes de festa foram concebidos essencial- mente para assinalar dias que obedeciam ao calendrio litrgico. Os poucos dias especiais de cada indivduo, como o nascimento, o Bap- tis mo, o casamento e a morte, e as sucessivas e anuais comemoraes de cada uma destas datas, estavam tambm relacionados com os rituais eclesiais, porque existem santos para todos os dias do ano. Assim, a religio deter- minava as ocasies festivas. no traje de festa, e muito menos no traje de trabalho, que a com petio se viveu com mais empenho. para ver e ser visto, no dia da romaria, aos olhos de toda a freguesia, ou no dia grande do seu casamento, confrontado por vezes com gentes das freguesias vizinhas e eventual- mente rivais, que, tanto a mulher como o homem, se engalanavam e usavam o seu traje de festa. Todos os fregueses apunham o seu investimento financeiro no metal nobre e dourado.

    Traje masculino de festa (colete)

    Pauliteiro de Miranda do Douro

    Traje feminino de festa

    Mulher do Douro

  • O pau ou o varapau foi um acessrio ancestral do traje masculino comum a todas as regies, destinado a resolver conflitos, rivalidades, invejas, cimes e dios. Era usado como apoio nas caminhadas de peregrino ou de trabalhador, para encaminhar o gado, a junta de bois ou o rebanho. Este simultaneamente um acessrio de defesa e de ataque, uma afirmao da virilidade, um apoio na velhice e, de algum modo, uma expresso de poder do homem no contexto da sociedade e da comunidade local.

    Casos arcaicos singulares

    Atendendo agora s formas do vesturio, parece ser de salientar, em pri- meiro lugar, os trajes cujas referncias histricas e culturais tm origem em pocas muito recuadas, anteriores mesmo fundao da nacionalidade. 1 - A cobertura de peles, de raiz pr-histrica, datvel do Paleoltico Su pe rior, presente em diversos stios arqueolgicos na Pennsula Ibrica. Esta ori gem da mais antiga vestimenta humana permanece no pelico e nos safes alentejanos. O material utilizado na sua manufactura provm dos caprinos e ovinos da regio, sendo preferencial o uso do plo da ovelha, animal que, junto com o equdeo esto representados na gruta do Escoural, perto de Mo ntemor-o- -Novo. O corte destas duas peas do vesturio regional masculino, desta zona Sul do Pas, restringe-se adaptao do recorte natural da pele for ma cor- poral dos ombros, no caso do pelico, e das pernas, no caso dos safes, como se tratasse do autntico sentido do mais rigoroso e estilizado design.

    2 - A coroa ou croa remete para a tcnica do entranado de vime, utilizada na cestaria, desde o perodo Neoltico. Este processo remete para uma origem milenar que paralela aos primrdios da manufactura da cermica, que decorre do perodo que se caracterizou pela domesticao dos animais e das plantas. a tcnica do entranado, cujas razes se situam numa fase de pr-tecelagem, que utilizada na confeco da coroa. A trana uma forma de domar os cabelos e de cruzar fibras vege-

    Traje masculino de trabalho

    Coroa e polainitos

    tais e animais que resultam num txtil, num cesto ou num qualquer receptculo. Este processo

  • mantm-se at hoje, por todo o Pas e nas Ilhas adjacentes, na execuo da cestaria, nas esteiras e nos tapetes regionais e que continuam, consequentemente, a ter uso quotidiano.

    3 - A branqueta do sargaceiro da Aplia tem a sua origem na t ni- ca cltica, j que a sua forma tem como base uma tnica branca e curta sem mangas. O formato de tnica era comum e quase idn- tico ao traje usado pelos Lusi- tanos e at pelos Romanos. A tnica possibilitava longas perma- nncias beira-mar e na recolha do sargao, que justificavam, pela funcionalidade, a forma desta pe- a. Era executada em l de cor na-

    Sargaceiro da Aplia

    Traje masculino de trabalho

    tural, a que foram apostas mangas. O cinturo que a prende apela para remi- niscncias romanas, j que os cintos de cabedal compunham parte do vesturio das legies, permitindo atar cinta, armas como adagas, facas e punhais. Esta tnica tambm tem parentesco com o saio medieval, que cons- titua a forma da indumentria quotidiana dos camponeses e dos aprendizes dos mais diversos ofcios. O conjunto masculino do traje da Aplia, usado descalo ou com botas de borracha, passou a ser acompanhado por um chapu de lona ou de oleado preto, para a proteco da cabea, nos finais do sculo XIX.

    4 - O saiote dos pauliteiros de Miranda do Douro parece ter idntica origem cltica, que se coaduna com o instrumento musical to tocado naquela regio, como a gaita-de-foles. Esta indumentria tem semelhanas com o traje que vimos anteriormente, por se tratar de uma saia. Todavia tambm possvel fazer uma leitura aproximativa das reminiscncias romanas, pois existem diferenas suficientes para se atentar mais nestas que nas clticas. O material utilizado o linho e no a l. Por outro lado, a forma da saia exe- cutada com uma aprecivel quantidade de tecido. Por sua vez, o formato deste saiote e o prprio chapu enfeitado com flores conduzem tambm a analisar o traje dos pauliteiros de Miranda no quadro das festas do Solstcio de Vero, de raiz acentuadamente pag, romana ou pr-romana, mas sempre

  • religiosa. Enfim, possvel admitir que o saiote aos folhos, que surge no traje erudito de 1840, se tenha comeado a usar a partir da poca romntica, deduzida do valor cultural ou regionalista local no perodo das lutas liberais.

    5 - A bioca Algarvia constitui a pea portuguesa de indumentria feminina com uma evidente raiz muulmana. Foi usada at aos anos 30 e, no interior algarvio, at aos anos 40 do sculo XX. A regulamentao de 1882 do Go- vernador Civil do Algarve contra esta vestimenta no obteve o resultado pre- visto e imediato, porque as mulheres algarvias recusavam perder a indepen- dncia identificadora e a liberdade de ficarem incgnitas sempre que o desejassem. Por outro lado, a bioca no tinha moda, nem tempo, nem esta- o, nem hora ou local de uso. Estava sempre mo para a mais inesperada, diversa e imprevista situao. Era confortvel, cmoda e fcil de manusear. Durava uma, duas ou mesmo trs vidas. No eram necessrias quaisquer cui- dados de manuteno ou de reajuste na sua confeco. Grvida ou no, gorda ou magra, estava sempre medida. Por sua vez, tinha a vantagem de fazer ignorar o tipo de vestido envergado sob a bioca, de modo que o seu uso tanto encobria um farrapo como um fato mais luxuoso. A bioca foi-se sim- plificando e perdendo a configurao de tromba de elefante, que apresentava nos finais de Oitocentos. Reduziu-se ao uso de uma capa preta com que a mulher se encobria e, posteriormente, a cabea passou a ser envolvida num leno de algodo ou de seda, negro, atado sobre a nuca. A burka, com que os Ocidentais se pasmaram, aquando da Guerra do Afeganisto, teve o seu paralelo neste esquecido e estranho traje algarvio.

    6 - O gabo constitui uma das mais interessan- tes formas de abafo masculino e resulta de uma simbiose entre os trajes medievais monstico, eventualmente franciscano, e civil. Foi usado no Litoral, desde Aveiro ao Algarve, com espe- cial incidncia nas reas da laguna da Ria e em todas as povoaes limtrofes, lhavo, Ovar, Murtosa, Espinho at gueda... Idntico uso teve no Tejo, atravs dos pescadores que des- ciam at ao grande rio do Sul para trabalhar na faina do peixe, e, por essa razo, se chamavam varinos. Varino foi tambm um nome da em-

    Traje masculino de trabalho Capa de tipo gabo

    bar cao manufacturada por estes emigrantes

  • dentro do prprio territrio nacional. Este tipo de abafo, de raiz mediterr- nica, foi conhecido e usado entre Romanos e Muulmanos. uma capa com mangas e um largo capuz, cuja base forma, por vezes, uma espcie de romeira que protege e aquece a zona dos ombros. Era aberta a todo o comprimento, para deixar todos os movimentos livres, e manufacturada em burel. O col- chete, usado desde meados do sculo XIX, foi o modo de apertar de ento, j que, anteriormente, a capa no tinha abotoadura. De burel castanho, passou a ser executada em fazenda de l preta ou de merino e, entre gente mais abastada, chegou a ser forrada de seda. A de- sen voltura e o carcter de grande sobriedade e gran- deza fizeram deste abafo uma pea de porte ele- gante usada pelas classes superiores. Por volta de 1900, este abafo rivalizou com o capote alentejano, que era o preferido de D. Carlos e da prpria rai- nha D. Amlia. De uma maneira geral, praticamen- te todos os abafos femininos e alguns dos abafos mas- culinos, usados de norte a sul, no Continente e nas Ilhas reflectem estas origens islmicas e romanas. So as formas mediterrnicas de uma veste enrolada com mais ou menos tecido, semelhante clssica toga que veio gerar o traje profissional do advogado e do estudante de Coimbra.

    Trajes exemplares

    1 - A capa de honras de Miranda de origem mais recente que os trajes anteriormente des- critos, mas no menos interessante. Era ini- cialmente executada em burel. Esta pea apre senta claras referncias aos motivos deco- rativos e estilizao das folhagens tardo-gti- cas e renascentistas, que se recortavam na antiga Catedral de Miranda de que s resta hoje parte da colunata e das arcarias do res- pectivo claustro. O bordado, aplicado na pr- pria l, repete as cercaduras de um baixo-

    Estudante de Coimbra

    Traje masculino -relevo geometrizado, ordenado e rigoroso.

    Capa de honras de Miranda de Douro

  • Por outro lado, importante referir o corte desta capa masculina. Com efeito, se atentarmos na severidade estrutural romnica da veste, executada na l de merino castanho, tornada opaca e impermevel por tcnica e tratamento especfico, estaremos a falar como que de uma catedral fechada, com abertura central, emoldurando a cabea, j que em torno da mesma que se organiza a composio que se vai alargando pelos ombros.

    Todavia, o capuz traduz a forma de uma ogiva aberta e o cabeo assume-se tam bm como se fora uma arcada de triunfo. Todos os elementos da pea en caminham o olhar para o rosto, centralizada que est a composio. Visto por trs, e descendo do capuz, cai uma grossa tira de burel bordada e pes- pontada com semelhantes motivos decorativos e que constituem a honra propriamente dita. Prolongamento do capuz e do cabeo, espcie de henin, a honra parece conter a ideia de cabelo comprido entranado, sinal de viri- lidade, de pequeno manto pendente e de ponta de estola religiosa. Este traje parece conter uma dupla vertente religiosa e civil. Transmite-nos potencial carismtico mesmo fora do suporte humano e raras so as peas de indu- mentria que resistem a esta provao. A anlise formal e simblica desta pea conduzem, com alguma preciso, aos finais do sculo XV e poca manuelina.

    2 - O capote e capelo aorianos constituem uma representao seiscentista barroca, dat- vel portanto do sculo XVII e da era conven- tual intensamente vivida naquelas Ilhas Atlnticas. A figura feminina encerrava-se com pletamente, figurando um autntico casulo, uma casa txtil que remete para as reminiscncias de uma sociedade pervertida- mente inquisitorial. Tudo pecado e todas as estruturas mandam que a mulher se apague e se anule no exterior, visto que se trata de um traje para usar fora de portas.

    Esta pea de vesturio perdurou na burguesia e aristocracia dos Aores at aos anos 30 do

    Traje feminino sculo XX. Podia ser confeccionada em l ou

    Mulher com capote e capelo dos Aores em seda. O capote e o capelo, executados em

  • seda natural, compunham-se de uma larga capa e de um enorme capuz terminando em bico, o que dava figura a expresso de um imenso aor negro, um pouco esvoaante. A seda, batida pelo vento e pela caminhada, ganhava movimento, tornando frgil a sua utilizadora. A oposio entre a rigidez da forma (o capelo enformado por carto interior) e a grande leveza do material, torna o conjunto um pouco menos severo, ajudando a superar o drama que est subjacente priso ideolgica que emana desta vestimenta, usada predominantemente na ilha de S. Miguel. 3 - O traje da lavradeira do Minho repre- senta a apoteose barroca popular, a qual remete para o esplendor policromo do s- culo XVIII. Centrada na cidade de Viana do Castelo, esta roupa constitui o para- digma dos tempos em que o ouro do Brasil fazia prosperar o Pas. O uso de ouro , alis, um fenmeno cultural portugus que perdura at aos nossos dias. Qualquer es- trato social mantm ainda hoje, por tradi- o, este costume de se ornar de ouro no quotidiano. A veste organiza-se em: saia franzida, colete justo apertado com fitilho e camisa branca, Lavradeira de Viana do Castelo sobre a qual se ape o avental, a algibeira e o leno. Na cabea, colocava-se um leno idntico ao do peito. Nos ps, cal- avam chinelas tambm bordadas, maneira barroca, e meias arrendadas. 4 - O par da ilha da Madeira constitui, porventura, no contexto do traje popular, o mais perfeito casal do ponto de vista da anlise formal e da fun- cionalidade. Com efeito, quer no calado quer no toucado, ambos os sexos usavam as mesmas formas. No tocante ao calado, as botas de vilo e de viloa eram executadas em carneira, decoradas com pequeno filete vermelho. As botas eram chs, favorecendo as caminhadas na paisagem em declive da ilha e o trabalho no campo, protegendo simultaneamente o p e o incio da perna. Na cabea, a capucha idntica, tanto no traje feminino como no masculino. A decorao organiza-se na predominncia do branco e do ver- melho. Ele vestia cala branca de linho, sobre a qual colocava uma faixa ver-

  • melha. Ambos envergavam camisa de idn- tico tecido e, ela, saia e leno, trespassado de l, boa maneira neoclssica dos finais do sculo XVIII, no perodo da Revoluo Francesa de 1789. Estas reminiscncias his- tricas esto presentes nas formas deste par perfeito, no lavrado do tecido da saia e da capinha que ambos levam ao ombro. Estas capas curtas eram executadas s riscas, tipo de ornamentao txtil que foi moda desde Lus XVI a 1830, data a partir da qual se d incio aos motivos axadrezados.

    Traje masculino e feminino de festa 5 - O Ribatejo reflecte nos seus trajes tanto Vilo e viloa da Madeira os costumes ligados actividade piscatria

    desenvolvidos no rio Tejo, como, e acentua- damente, porque mais ricos e com mais visibilidade, os trajes envergados pela populao que trabalhava na zona das lezrias, na criao de gado, nomeadamente de cavalos e touros. Os rituais ligados s festas sazonais e anuais, no contexto desta economia, elegeram uma tipologia de festividades, as touradas, cujo poca urea e mtica remonta poca tardo-barroca e, muito especialmente, ao reinado de D. Jos, quando os touros de morte pas- saram a ser proibidos. Por outro lado, tambm preciso referir a derrocada do Palcio Real de Salvaterra de Magos, provocada pelo mesmo terramoto que assolou Lisboa. O facto de a famlia real ter abandonado aquelas para- gens e deixado de l passar temporadas, mesmo na poca venatria, condu- ziu a um certo declnio da regio, que veio a ser colmatado com a criao da Com panhia das Lezrias. Deste modo, a indumentria regional desta zona reflecte o sentido de uma gesto unificadora e empresarial. O traje de moo de estrebaria corresponde a uma farda, tal como o do forcado e o prprio traje de campino. O primeiro usava umas calas de serrubeco ou, mais recen- te mente, de cotim e um bluso riscado azul e branco. Tanto o forcado como o campino usavam calo, como no sculo XVIII, seguindo a moda da aris- tocracia de ento. O colete do campino tem um formato semelhante aos de cerca de 1820, com gola de rebuo, enquanto o forcado usa, sobre a cintura, uma larga faixa de proteco de cor encarnada. A jaleca do campino uma jaqueta curta, com a configurao de uma casaca de Setecentos ou mesmo Im prio, no sendo abotoada para deixar o corpo livre para a montaria.

  • no en tanto bastante justa ao corpo, para que no possa ser puxada ou sujeita a qualquer repelo dado pelos animais. pespontada, dando um ar afidal- gado figura. A jaqueta do forcado tambm curta, e era inicialmente ma- nufacturada em tecido lavrado. Ambas estas figuras usam barrete, colocado de modos diferentes, o que indica de imediato que pertencem ao mesmo es- trato social. Tanto o lavrador ribatejano como o alentejano vestem similar- mente de castanho ou cinzento ou preto, envergando semelhante jaqueta curta solta e desabotoada, sem atavios e um sbrio chapu preto, de aba mdia, portuguesa.

    6 - O capote alentejano a rplica quase fiel da capa romntica da burgue- sia. Constitui um abafo tpico e hoje usado tanto por Portugueses como por Es panhis, que compram esta pea jun- to da fronteira, constituindo para eles um confortvel, quente e elegante casa- co de Inverno. ainda resistente chu- va, porque as trs romeiras que cobrem o capote, desde a altura do ombro, pro- tegem e agasalham o peito. A gola pode ser usada levantada ou baixa, invariavel- mente com pele, sendo a mais rica com pele de raposa. Hoje em dia, a gola Capote alentejano executada em pele sinttica. O capote tem uma profunda abertura nas costas, o que permite poder ser usado na montaria e a p. O design desta pea absolutamente geometrizado e de um corte perfeito em sucessivas circulares. As diversas camadas de romeiras, que vo cobrindo e descobrindo partes do corpo, conferem uma gradao de linhas de envolvncia corporal e uma grande singeleza de corte. Foi usado por mimetismo, desde 1900, quando o seu uso foi divulgado por D. Carlos e pela rainha D. Amlia, mantendo-se ainda hoje como um abafo elegante, e at sofisticado, que homens e mulheres podem ter no seu guarda-roupa.

    7 - A samarra corresponde a uma sobretudo curto, uma casaco de abafo que foi usado pelos homens que viviam e trabalhavam nas duas margens do Tejo. Assim, tanto os alentejanos como os ribatejanos envergavam a samarra, que continua a ser usada no Inverno sobre as vestes comuns de homens e mulhe-

  • res. A festa da Goleg e a Feira do Cavalo, em Santarm, tm propiciado uma tradio no uso de vestimentas da regio, de que tambm so exemplo os tradicionais trajes de montar por- tuguesa. Todas as peas que constituem o inte- ressante e muito especfico conjunto de trajes, neste contexto cultural local, so executados tan- to para senhoras como para homens, e at para

    Traje masculino de trabalho

    Samarra crianas, que assim desfilam em ambas as festivi- dades equestres. de destacar que este espec-

    fico modo de vestir, sendo j em parte industrializado, manufacturado com a mestria e a tcnica de alfaiataria. A atraco nacional e internacional destas festas tem como primeiros amadores os Espanhis, pela similaridade do recorte cultural com as ferras e as festas da Andaluzia.

    8 - Existem vrios trajes femininos no Norte do Pas, que seguem com me- nor ri queza e com outros pormeno- res e acessrios a linha basilar do tra- je de la vradeira de Viana. As cores mudam conforme as aldeias e os luga- res, assim como o leno de peito e o da cabea. Mas o padro segue sem- pre o formato de uma saia rodada com avental, um colete exterior e

    Traje masculino e feminino de romaria e festa uma camisa de linho bran co. Como

    Pescador da Pvoa do Varzim acessrios, desenham-se frequente- mente a algibeira presa cinta, um

    leno estampado de peito e um leno semelhante atado cabea, de modos diferentes conforme a freguesia a que pertence a sua proprietria. Este padro setecentista, como setecentistas so todos os restantes trajes fe mi- ninos, com colete exterior sob o qual a mulher ostenta a camisa de linho. No caso da Pvoa de Varzim, estamos perante algumas especificidades, de que a mais emblemtica e significativa corresponde introduo das siglas que constituem um glossrio iconogrfico. Com pequenos sinais identifica- dores de cada pescador e, frequentemente, de cada famlia, os poveiros dese- nham uns sinais grficos com que tambm marcam a sua roupa, como se fora uma griffe. Nas suas famosas camisolas, as siglas so cotejadas com as

  • ncoras e com todo o tipo de sinaltica martima, que vai dos diferenciados ns, s redes, aos remos cruzados, s flmulas e aos prprios barcos. 9 - Existe um segundo padro em que o ves- turio feminino todo executado em algodo estampado, e que espelha a poca da revolu- o in dustrial portuguesa dos finais do s- culo XIX. Pertencem a este grupo os trajes das alentejanas e das algarvias, sendo sempre divi- didos em saia e blusa. A chita com que se exe- cutavam estas peas podia diferir entre a que se usava como blusa e a que constitua a saia. As mulheres utilizavam os estampados no com rigor esttico de coordenao de estam- pados, mas com a opo da funcionalidade e da adaptao de tecidos de diversas origens ou ainda com restos e sobras de qualquer outra obra txtil em curso. Neste grande grupo de trajes, encontram-se peas de eleio, como a

    Traje feminino de trabalho Algarvia

    blusa da aldeia de Glria do Ribatejo, que uma rplica de uma blusa de senhora, com aba pequena, bordada com favos, para dar largura ao peito. reconhecida pelo seu original design e pela elaborao quer do corte quer dos bordados.

    10 - Tambm existe um terceiro padro misto, que pode ser considerado assim, na me dida em que a saia segue rodada e com- prida, manufacturada em fazenda de l com caractersticas setecentistas; a blusa de algodo bran co ou estampado, com feio no vecentista. o caso da ceifeira de Niza, cuja saia vermelha contm um bordado de aplicao, nico no mbito dos trajes regio- nais portugueses. O uso de leno acompa- nha este traje, que tambm foi usado com chapu de palha, como acontecia com os trajes alentejanos e algarvios. Estes ltimos, usavam ser encimados por chapus de fel-

    Traje de trabalho Pastor alentejano e ceifeira

  • tro preto masculinos e, frequentemente, corr