TRAJETÓRIAS DE VIDA: RECONSTITUIÇÃO DE REDES … · estudo das relações sociais e de gênero...
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TRAJETÓRIAS DE VIDA: RECONSTITUIÇÃO DE REDES
SOCIAIS E RELAÇÕES DE GÊNERO EM GUARAPIRANGA
Lucilene Macedo da Costa1(UFOP)
Resumo:
A partir da reconstituição da trajetória de vida de duas mulheres da região de Guarapiranga,
Minas Gerais, no século XIX, nos propomos a estudar as relações sociais e de gênero dessa
localidade. Ao vislumbrarmos a história dessas personagens, objetivamos demonstrar o
contexto histórico regional de Guarapiranga a fim de confirmar sua relevância e participação na
história de Minas. A demografia histórica será de essencial importância na reconstituição dos
núcleos familiares das personagens escolhidas e nos ajudará a lidar metodologicamente com as
fontes cartoriais e paroquiais. A família será tomada como unidade básica da vida social e
econômica, o que nos fará estender a análise aos cônjuges e familiares próximos às
personagens escolhidas.
Palavras-chave: Minas Gerais; Família; Mulheres.
Abstract:
By reconstructing the life histories of two women from the region of Guarapiranga, Minas
Gerais, in the nineteenth century, in this article we propose to study the social and gender
relations of this location. When glimpse the story of these characters, we aimed to demonstrate
the regional historical context of Guarapiranga and try to confirm their relevance and
participation in the history of this state.The historical demography has a vital importance in the
reconstruction of the households chosen characters and It will help us to deal methodologically
with the notary and parochial sources. The family will be taken as the basic unit of social and
economic life, which will cause us to extend the analysis to spouses and family near the chosen
characters.
Keywords: Minas Gerais; Family; Women.
1 Aluna sob a orientação da Professora Doutora Andréa Lisly Gonçalves. Bolsista da Universidade Federal de
Ouro Preto com financiamento da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação.
2
Introdução
O presente artigo se dispõe a apresentar parte de uma pesquisa de mestrado em
desenvolvimento na Universidade Federal de Ouro Preto, que tem por principal objetivo o
estudo das relações sociais e de gênero na região de Guarapiranga, Minas Gerais, no século
XIX.
A história de vida de Clara Maria Violante e Francisca Januario Carneiro compõe o
nosso objeto de pesquisa. A reconstituição da trajetória dessas personagens foi possível
através da análise de fontes cartoriais e paroquiais – Inventários Post Mortem, Testamentos,
Listas Nominativas, Registros de Batismo, Processos Matrimoniais.
A metodologia de pesquisa tem acompanhado a perspectiva da análise demográfica de
uma região no intuito de compreender as redes sociais e familiares, os princípios da micro-
história e métodos posopográficos para a análise das trajetórias de vida.
No Brasil, a partir de 1970, a historiografia retoma os estudos sobre família,
ultrapassando seus limites de consanguinidade, abarcando todos os modelos de família em
seus aspectos cotidianos, públicos e privados (FARIA; 1998). Influenciados pelo
desenvolvimento da demografia histórica, os historiadores brasileiros começaram a definir
variáveis novas para suas análises, focalizando, principalmente nas taxas de mortalidade,
natalidade/fecundidade, migração e nupcialidade (BOTELHO; 2004).
A demografia histórica surge, no Brasil, na década de 1960, mas, somente na década
de 1980, que teremos o seu desenvolvimento efetivo, quando Marcílio (1986) utiliza a técnica
de reconstituição de famílias de Louis Henry.
Os estudiosos da população brasileira no passado contribuíram de modo significativo
para um melhor conhecimento da história do país. Pela exploração de fontes e temas pouco
abordados, ampliou-se de modo notável o conhecimento sobre a família livre e a escrava,
sobre a criança e a mulher, sobre as relações de sociabilidade; fizeram-se, também, algumas
análises críticas das fontes utilizadas (BACELLAR, SCOTT, BASSANEZI, 2005: 339).
3
Além da demografia histórica, a perspectiva histórica dos Annales foi de extrema
importância para o desenvolvimento da História das Mulheres, pois voltando os interesses
para a história de seres concretos e para a teia de suas relações cotidianas, livrando-se de
idealidades abstratas, instauraram a possibilidade de que as mulheres fossem incorporadas à
historiografia (GONÇALVES, 2006: 53).
Muitos dos estudos sobre as mulheres no Brasil apresentaram como marco cronológico
os séculos XVIII e XIX, com destaque para temas relacionados ao papel do feminino na
família, relações vinculadas ao casamento, à maternidade, à sexualidade; interseção entre o
privado e o público, entre o individual e o social, o demográfico, o político e o erótico
(MATOS, 2000: 14). “As principais fontes que permitiram tais reconstituições históricas
foram aquelas produzidas pelo Estado e pela Igreja” (GONÇALVES, 2006: 83).
Nesse trabalho, afastamo-nos um pouco da perspectiva da História das Mulheres e
buscamos uma abordagem de caráter estritamente relacional das construções sociais entre
feminino e masculino. De acordo com Gonçalves (2006), ao trabalhar com a categoria gênero,
os historiadores se distanciam de análises essencialistas e abrem possibilidades para entender
a importância das mulheres em fatos em que apenas os homens foram considerados pelas
fontes oficiais.
Assim, esperamos que, através da trajetória de duas mulheres, seja revelado o contexto
de toda uma trama familiar, assim como, as estratégias e arranjos familiares da região de
Guarapiranga. As histórias de Clara e Francisca nos ajudaram a vislumbrar um meio social e
evidenciar que, mesmo as especificidades impostas pela sociedade ao “ser mulher”, não
anulam a importância de cada uma nas relações sociais construídas.
Desbravando os Sertões das Minas: a Região de Guarapiranga
Após a descoberta do ouro um significativo contingente populacional foi adentrando
os sertões mineiros em busca do metal precioso de brilho dourado. Guarapiranga foi um dos
primeiros povoados a surgir em meio às matas virgens do sertão (LOPES; 2014). Localizada
entre a região Mineradora Central e a Zona da Mata (PAIVA e GODOY, 2010), ao sul da
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cidade de Mariana e oeste da antiga Vila de Queluz (atual Conselheiro Lafaiete), banhada
pelo rio Piranga, fazia parte do Termo da Cidade de Mariana.
De acordo com Andrade (2014), o povoamento do território mineiro se deu de forma
centrífuga, a partir dos principais núcleos mineradores para as áreas circunvizinhas.
Chegavam pessoas de diversas áreas: colonos portugueses do nordeste e de São Paulo, de
terras portuguesas ou de outras colônias lusitanas. Grande maioria vinha em busca de
constituir riquezas e distinção social.
Em 1693, o capitão Rodovalho, comandando uma bandeira, encontrara populações
indígenas à beira do rio e, após exterminá-las, se instalaram ali fazendo roça e buscando ouro.
Neste local, erigiu-se o arraial que ficou conhecido como Guarapiranga, devido a existência
de muitos pássaros vermelhos e pequenos (guará = vermelho, piranga = pequeno)
(FIGUEIREDO e CAMPOS; 1999).
Na década de 1700, após bandeira de Bento Fernandes Furtado, foram encontradas
“faisqueiras” nas localidades que receberam os nomes de Pinheiro, Rocha, Bacalhau e
Pirapetinga, ocasionando uma agilidade ainda maior no processo de ocupação da região. Os
mineiros se estabeleciam e logo povoavam sítios, arraiais e construíam-se capelas, estavam
predispostos tanto para a produção do ouro, quanto para o plantio de cereais, o que desde o
início contribuiu para a diversificação da economia local. O povoamento da região
intensificou ainda mais entre os anos de 1753 e 1756, devido à concessão de inúmeras
sesmarias nesse período (BARBOSA, 1971).
Mas a ocupação da região não se deu de forma tranquila e passiva, pois de acordo com
registros disponíveis no Códice Costa Matoso2, nesse território foram encontradas várias
2 O Códice Costa Matoso é uma coletânea de 145 documentos do século XVIII reunida por Caetano da Costa
Matoso, ouvidor-geral da Comarca do Ouro Preto, nos anos de 1749 a 1752. De acordo com Verônica Campos
“é uma obra de grande valor histórico, que reúne memórias sobre os primeiros descobrimentos das minas de
ouro na América Portuguesa, legislação, dados econômicos, tributários, administrativos e documentos
relacionados aos temas de grande significado da época, como o acesso às minas, as terras em disputa com a
Espanha, as riquezas, os rendimentos da Fazenda Real e do bispado mineiro. É também uma rica fonte de
informação sobre o cotidiano e os costumes do povo da então capitania das Minas Gerais.” (CAMPOS,
Verônica. Códice Costa Matoso. Revista Minas Faz Ciência, nº 3 (jun a ago de 2000). Disponível em:
http://revista.fapemig.br/materia.php?id=122, acesso 02/05/2015).
5
tribos indígenas, principalmente dos grupos dos Botocudos e dos Puris, que foram
conquistadas através da cooptação ou da violência. À medida que as fronteiras naturais iam se
expandido, os indígenas passaram a ser escravizados, mas, com o desenvolvimento de uma
economia local diversificada, foram as mãos negras que alimentaram a produtividade de
grande parte dessa população. Além de não manter uma produtividade almejada nos trabalhos
empregados, os indígenas frequentemente mobilizavam invasões e assaltos às casas dos
brancos. Na tentativa de conter esses ataques, na segunda metade do século XVIII, deu-se
início ao processo de catequização dos gentios (LOPES, 2014).
A freguesia de Guarapiranga era composta por um conjunto de localidades. Além do
arraial sede, fazia parte de sua composição geográfica outros arraiais, aplicações, povoados e
distritos (LOPES; 2014). Na segunda metade do século XVIII, entre 1750 e 1808, os arraias e
povoados subordinados à jurisdição da freguesia estudada eram: Guarapiranga (atual cidade
de Piranga), Barra do Bacalhau (Guaraciaba), São Caetano do Xopotó (Cipotânea),
Pirapetinga, Pinheiro, Manja Léguas, Calambau (Presidente Bernardes), Brás Pires (ou
Senhora do Rosário) e Tapera (Porto Firme) (CHAVES, PIRES e MAGALHÃES; 2008: 28).
Ao lado da Freguesia de Furquim, Guarapiranga correspondia a maior freguesia do Termo de
Mariana em extensão territorial (LOPES; 2014: 55).
Nas primeiras décadas de sua ocupação, a região, tornou-se um dos polos mineradores,
com considerável incidência de lavras de exploração mineral (VENÂNCIO, 1997). Os limites
foram definidos principalmente em relação à atividade de mineração, mas algumas porções do
território apresentavam o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, visto que estas áreas
respondiam pelo abastecimento do centro da região e representavam a transição para as
regiões vizinhas, onde o cultivo e a criação eram atividades centrais (CUNHA e GODOY,
2003). Assim, devido a grande porção de terras cultiváveis, Guarapiranga teve uma economia
com características híbridas, de associação entre agricultura e mineração.
Com o declínio da extração aurífera, a economia mineira passou por um processo de
rearticulação, iniciando-se a "acomodação evolutiva" (LIBBY; 1988), no qual o setor agrícola
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teve maior destaque. Minas Gerais passou por um processo de “ruralização” de sua economia
(CARRARA; 2007).
Nesse período de reorganização da economia mineira em Guarapiranga a agricultura
assumiu as rédeas da economia local, atraindo um forte contingente populacional,
ocasionando assim, um surto demográfico (LOPES; 2014). No período pós-mineração,
percebe-se que “a produção agrícola, sobretudo a da cana de açúcar, era a atividade
econômica primordial nas primeiras décadas do século XIX, senão de toda freguesia, pelo
menos dos grandes proprietários de terras e de escravos” (LEMOS e LOPES; 2009: 4). Mas
dentro de algumas unidades agrárias, foram encontradas evidências de que havia a
coexistência de atividades agropastoris, de extração e mineral, assim como, atividades proto-
industriais (sendo mais comum a tecelagem). Essas características econômicas indicam que a
região mantinha atividades complexas e diversificadas, apontando para a existência de uma
economia mercantil com função de abastecimento de regiões limítrofes (LEMOS e LOPES;
2009).
Neste período de reorganização econômica, de acordo com análises feitas por Andrade
(2014), através da Lista Nominativa de 1832, o contingente populacional de Guarapiranga
atingia 7.442 indivíduos livres e libertos e 2.176 escravos. A porcentagem da população
piranguense livre (67,87%) se aproximava do valor encontrado para Minas Gerais (66,06%).
De acordo com Lemos (2012) a freguesia de Guarapiranga abastecia regiões de intensa
mineração, como Mariana e Ouro Preto, oferecendo-lhes aguardente e produtos agrícolas.
Além da produção da cana de açúcar e da mineração, ali também se produzia suprimentos
internos, que podiam ser também comercializados no mercado local, e realizava-se a criação
do gado vacum e muar para o pesado trabalho de tração e carga. Também foram encontradas,
em muitos inventários, a relação de aparelhagens para a confecção das rudes vestimentas da
escravaria e algumas tendas de ferreiro. A região também servia de alternativa para uma
migração permanente.
No processo de formação e desenvolvimento da sociedade piranguense, a família
assumiu uma posição central, pois além de unidade básica majoritária da vida social, era a
7
unidade primária da vida econômica. Desempenhava uma função vital na reprodução da
economia local, a partir de sua própria dinâmica reprodutiva. Assim, o enraizamento familiar
através da reprodução dos novos casais, garantiu a perpetuação da atividade agro-açucareira
na região até pelo menos a década de 1850 (LEMOS; 2012).
Trajetória de Vida: análise da vida material e relações de parentesco
O estudo das relações sociais e de gênero na região de Guarapiranga, na primeira
metade do século XIX, realizou-se através do acompanhamento da trajetória de duas
mulheres. Apresentamos as trajetórias de Clara Maria Violante e Francisca Januario Carneiro,
reconstituídas através de informações colhidas em Inventários Post Mortem, Testamentos e
Registros Paroquiais referentes ao núcleo familiar de ambas as personagens. E, para melhor
reconstituição, em momentos anteriores à morte delas, contamos com as Listas Nominativas
de Piranga e suas localidades (1832 e 1839).
Clara Maria Violante
Aos 19 dias do mês de março de 1773 foi batizada, na Capela de Nossa Senhora da
Conceição da Pirapetinga, filial da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, a
inocente Clara Maria, filha legítima de Caetano José Machado e Clara Dias, nascida aos nove
do mesmo mês e ano. (Cópia do Registro de Batismo de Clara Maria, Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de Mariana, Processos Matrimoniais. 33-8162, 081620, fl. 9) (Figura 1).
Clara era neta pela parte paterna de Antonio de Freitas e Antonia Josefa Cunha,
naturais do Arcebispado de Braga, e pela parte materna de Antonio Dias Cunha e Teresa Dias,
uma preta mina escrava de uma sociedade entre Antonio Dias e João Coelho Ferraz, todos
moradores em Manja Léguas. No entanto, durante a análise das fontes cartoriais e paroquiais
referentes à Clara Maria Violante temos por várias vezes a omissão de sua cor, resultante de
sua ascendência africana, vinda de sua avó materna.
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Figura 1 – Genealogia de Clara Maria Violante *
Fonte: AFP, Inventário de Clara Maria Violante, Códice A208, Auto 584. Listas Nominativas de Guarapiranga
1832 e 1839 (disponíveis em: http://www.poplin.cedeplar.ufmg.br/, último acesso em 20/01/2013).
* A genealogia de Clara Maria Violante, foi registrada em um software criado para a reconstituição de redes
genealógicas yEd (Grafic Editor yWorks), diponível para download em:
http://www.yworks.com/en/products_yed_about.html. Conversões adotadas: círculos representam mulheres;
triângulos representam homens, sendo que os azuis indicam a origem portuguesa; vértices indicam as relações de
parentesco entre os indivíduos, sendo que os laços consanguíneos partem sempre da mãe; vértices tracejados
apontam relações e filhos ilegítimos.
De acordo com Botelho (2008), a declaração da cor era muitas vezes influenciada pela
posição social do indivíduo (p. 8). Assim, talvez seja possível, que um pouco antes de sua
morte, em 1856, pela adoção de estratégias sociais diversas, Clara poderia ter alcançado uma
posição social um pouco mais elevada do que em 1832 e 1839, quando foi listada como parda
nas Listas Nominativas. Também, pode ter contribuído para o desaparecimento da cor as
relações sociais estabelecidas. Desde a ascendência de Clara, havia relações desiguais se
formando, especialmente, no matrimônio ou relações consensuais. O caso de sua avó materna
foi o mais exemplar, nesse sentido, uma escrava que manteve relações com o seu próprio
senhor, um homem branco e de origem portuguesa, gerando uma prole natural.
Talvez a família de Clara seja uma das exceções, já que trabalhos de diferentes
matizes são unânimes em indicar que o casamento, no Brasil, se pautou pelo princípio da
9
igualdade social entre os nubentes, sendo o principal pressuposto de igualdade social a
condição jurídica entre os noivos (BRÜGGER; 2007: 223-224). Mas, também, podemos
aproximar o caso das ponderações de Botelho (2008: 8), para o qual “a homogamia seria mais
uma construção social realizada no momento da constituição do casal do que a expressão de
uma ‘realidade’ racial”. O autor considera a hipótese de que os párocos ou os juízes de paz
poderiam tender a enxergar os cônjuges com a mesma cor/raça.
No entanto, o casamento da própria Clara Maria Violante, parece ter ocorrido
seguindo os princípios da homogamia, pois, através das fontes, tomamos o conhecimento de
que ambos os nubentes eram pobres e foram denominados como pardos em alguns momentos.
Antonio de Souza Lobo também era morador no distrito de Manja Léguas, vivia de
seu ofício de alfaiate e tinha 58 anos. O Processo Matrimonial não apresenta sua ascendência,
permanecendo a incerteza do nome de seus pais, já que para esse personagem não
encontramos o Inventário e o Testamento para esclarecer um pouco mais sobre sua trajetória.
No entanto, sabemos que este era viúvo de Inácia Maria do Sacramento e no Processo
Matrimonial desse enlace encontramos uma cópia do seu Registro de Batismo que nos revela
que era filho de pais incógnitos e havia sido exposto em casa de alguém, sendo batizado aos
30 de julho de 1756, quando, provavelmente, ainda era um recém-nascido ou uma criança
com pouco tempo de vida. (AEAM, Processo Matrimonial, 01-124, 001236, fl. 5v).
Antonio e Clara tiveram que solicitar dispensa para se casarem. O processo teve início
em novembro de 1815 e o orador era acusado de ter tido cópula ilícita com a irmã da
contraente e ter mantido por muitos anos uma relação ilegítima com a oradora, o que havia
resultado na difamação desta. Para justificação do processo, os oradores apontavam a
necessidade de tornarem legítimo os laços construídos através do matrimônio e que o orador,
apesar de pobre, tinha condições de sustentar a esposa e os filhos que viessem a ter, através do
seu ofício de alfaiate.
Durante todo o Processo Matrimonial não encontramos referência à cor/condição de
Antonio ou Clara, exceto no momento em que é proclamada a vontade de casar dos nubentes.
Buscando provar que o casal estava livre para se unirem, o Vigário transcreveu uma cópia do
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Registro de Óbito da primeira esposa do orador, quando este é denominado como pardo
(AEAM, Processos Matrimoniais. 33-8162, 081620,fl. 9).
Mesmo após ouvir o depoimento das testemunhas e saber que o casal confirmava as
acusações, em 5 de dezembro de 1815, o casal recebeu do Reverendíssimo Provisor e Vigário
Geral a liberação para se casarem após cumprirem algumas penitências, pois segundo ele o
casal não havia faltado com a verdade. Em fevereiro do ano seguinte, as penitências haviam
sido cumpridas e aprovadas e os contraentes estavam habilitados para a realização do casório,
quando Clara se declarava com 42 anos.
Apesar de o casal ser declarado como pobre, o matrimônio pode ser indicativo de um
pequeno e singelo acúmulo de bens pelos nubentes, já que “o casamento legítimo era algo que
fazia parte da experiência de vida de uma parcela limitada da população brasileira”
(BOTELHO; 2004: 3).
Na Lista Nominativa de 1831-32, Clara Maria Violante estava locada no fogo de
número 56 e primeiro quarteirão de Manja Léguas, sendo classificada como uma mulher de
50 anos, parda e casada. Além de Clara, o fogo reunia mais nove pessoas: seu marido e chefe
de domicílio, Antonio de Souza Lobo (76 anos, pardo, lavrador); duas crianças - Maria (10
anos, parda, solteira) e Vidal (8 anos, pardo, solteiro); e seis escravos, a maioria em sua faixa
etária produtiva.
Já na Lista Nominativa de 1838-39, a família de Clara é registrada no fogo de número
23 do 11º quarteirão de Piranga, constando 11 residentes (os cônjuges; sua neta e o marido;
uma criança de 12 anos sem identificação por nome, mas denominada como parda e solteira e
6 escravos). Clara (37 anos, parda, livre ou liberta), além das informações de 1832, fora
citada como fiadeira, enquanto para seu esposo é acrescentada a informação de que sabia ler e
escrever. Essas informações referentes ao ofício podem indicar uma inserção do indivíduo na
economia familiar. De acordo com Botelho (2008: 217), no Brasil do século XIX, “a
ocupação não é uma forma universal de categorizar os habitantes, (...) e sim uma forma de
diferenciar uma parcela específica da população”.
Fica evidente as discrepâncias com relação às idades dos indivíduos nessas fontes.
Mas são comuns de serem notadas em vários registros da época. Considerando as datas de
11
nascimento e batismo de Clara e Antonio, em 1839, tinham em torno de 66 e 83 anos
respectivamente.
A neta de Clara, Maria Rosa (16 anos, parda, livre ou liberta), é citada como casada
com Felipe Ferreira (19 anos, pardo, lavrador, livre ou liberto) e ambos são classificados
como agregados. Além disso, havia se tornado uma costureira e sabia ler e escrever. Assim,
podemos perceber, que enquanto os homens desse domicílio estavam envolvidos com o
trabalho na terra, as mulheres desenvolviam atividades ligadas ao setor têxtil.
Outra informação que nos chama a atenção nesta Lista de 1839 é com relação à
condição dos indivíduos. Clara, Antonio, Maria e Felipe são classificados como livres ou
libertos. Sabemos que Clara carregava consigo a ascendência africana, mas ela nunca recebera
a titulação de cativa, pois sua mãe foi liberta na pia batismal e, consequentemente, a condição
de livre se estenderia para toda a sua prole.
Em 1856, em seu inventário, Clara é designada como viúva de Antonio de Souza
Lobo, mas o seu casamento não foi o suficiente para que os seus filhos naturais fossem
legitimados. O que pode indicar que eram filhos de outro homem e que ela e Antonio não
tiveram a oportunidade de possuírem herdeiros legítimos.
Durante a escrita de seu Testamento, Clara reconhece os seus filhos já falecidos, João
de Souza e Lúcio José Dias, como naturais e institui por seus herdeiros os netos legítimos e
naturais, assim como suas noras. Esse fato demonstra que Clara se preocupou em garantir que
sua herança ficasse em mãos de seus descentes, pois a legislação da época garantia o direito
dos filhos legítimos ou legitimados, mas os naturais e os espúrios, sem o reconhecimento por
parte do progenitor ou qualquer outra prova de paternidade ou maternidade, dificilmente
conseguiria garantir os seus direitos de herdeiro. Também podemos associar o
reconhecimento dos filhos como uma forma de corrigir o pecado de uma relação ilícita
(ALMEIDA; 2002), desejando assim, alcançar uma boa morte com o perdão divino, já que ao
iniciar seu Testamento, Clara se declara cristã da Igreja Católica Apostólica e Romana.
A partir da análise dos bens e posses acumulados por Clara, descobrimos que além de
diversos objetos arrolados em seu Inventário, possuía uma escravaria composta por 5
escravos, sendo 3 homens e 2 mulheres. Um homem e uma mulher são citados como
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quartados, ambos de idade de 70 anos. Dois escravos fogem durante o processo de partilha
dos bens e a escrava, Florentina, faleceu no mesmo ano que Clara. O plantel, que já era
pequeno, acabou se desfazendo por razões variadas.
Clara também foi possuidora de alguns Bens de Raiz: morada de casas cobertas e
paiol; terras de fazenda, algumas de planta de milho; terras cobertas de telhas e um rancho
coberto de capim; um engenho de ralar mandioca com prensa e dois caixões de braúna (AFP.
Inventário de Clara Maria Violante, Códice A 208, Auto 584). O que indica que essa família
poderia se manter com a produção desses alimentos e, por outro lado, poderia estar
envolvidos no abastecimento local.
Somados, todos os bens chegavam a um total de 2:445$800 (dois contos quatrocentos
e quarenta e cinco mil e oitocentos réis), uma quantia significativa para uma mulher viúva e
de filhos falecidos, que morava em uma localidade rural e afastada do centro e, ainda,
carregava consigo a marca da cor.
Francisca Januario Carneiro.
Aos três de novembro de 1781, na Matriz de Guarapiranga, era batizada Francisca,
nascida aos 22 de outubro do mesmo ano, filha legítima do Licenciado Francisco de
Magalhães Canavazes e de Tomazia Rosa dos Santos (Cópia do Registro de Batismo de
Francisca, AEAM, Processo Matrimonial, 05-57, 05731, fl. 3) (Figura 2).
Aos 18 anos de idade, Francisca casara pela primeira vez com José Tomaz Ferreira,
um soldado do exército. Mas, pelo que indicam as fontes, durante algum tempo ela vivera
separada do seu primeiro marido, quando, provavelmente, deu início a uma relação ilegítima
com um membro da família Carneiro, o Capitão Mor Antônio Januário (homônimo do pai),
homem de grande influência política e econômica na Vila de Piranga.
De acordo com Botelho (2004) o matrimônio é um momento crucial dentro das
estratégias de reprodução social, pois une grupos familiares, garantindo a perpetuidade dos
laços. Para Graham (2005), o matrimônio era uma estratégia de expansão e contração da
propriedade. A união de Francisca e Antonio Janurio Carneiro parece ter representado isso
perfeitamente, pois as famílias Canavazes e Carneiro foram "brancos" respeitosos e tiveram
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afiliações profissionais e institucionais que colocava-os em contato com uma grande
variedade de pessoas (MENDES, 2012). A união de Francisca com o Capitão Antonio
estabeleceu laços que durariam pelo resto de suas vidas e por gerações seguintes com os
Carneiros.
Figura 2 – Genealogia de Francisca Januario Carneiro
Fonte: AFP, Inventário de Francisca Januario Carneiro, Códice A037, Auto 469. Listas Nominativas de
Guarapiranga 1832 e 1839 (disponíveis em: http://www.poplin.cedeplar.ufmg.br/, último acesso em 20/01/2013).
Pelo Processo Matrimonial de Antonio e Francisca, conseguimos perceber que antes
mesmo de passarem pelo processo de dispensa matrimonial haviam se casado em algum
momento do ano de 1823 e fizeram as proclamas logo em seguida, afim de prestarem seus
depoimentos.
14
Aos 13 de junho de 1823 os oradores foram ouvidos pelo Reverendo Pároco e
afirmaram que não possuiam nenhum laço de parentesco consanguíneo ou espiritual, que
eram livres e desimpedidos para o matrimônio. Apresentaram como prova uma cópia do
Registro de Óbito de José Tomaz Ferreira, Soldado do Primeiro Regimento de Cavalaria de
Linha do Exército, primeiro esposo de Francisca, que havia falecido no dia 28 de agosto de
1810.
Em 18 de outrubro de 1823 Antonio Januario e Francisca foram considerados
habilitados para o matrimônio e tiveram os seus laços validados pelo Provisor e Vigário Geral
Manoel Antonio Monteiro. O amor de tempos foi legitimado pelo sacramento do matrimônio
e com o nascimento de mais um filho, o único realmente legítimo entre o casal, Camilo.
Um pouco antes de se casar com Francisca, no ano de 1821, em uma escritura de
perfilhamento, Antonio Januario Carneiro reconhece seus filhos espúrios e naturais:
“[...] vivendo e conformando se no presente estado de solteiro e sem herdeiros
forçados por serem falecidos seus pais e avós, teve por sua fragilidade tratos ilícitos
com D. Francisca Paula, mulher casada vivendo separada de seu marido resultando
do mesmo trato os filhos seguintes: Clementina – Jose – Tereza – Francisco = e
continuou do dito trato muito depois do falecimento do dito marido de D. Francisca
de Paula e estando no estado de Viúva houveram mais os filhos seguintes =
Antonio – Joaquim – Joao (?) – Rita – Maria – Justina, e como desejava que todos
esses fossem seus herdeiros não tendo ele outorgante [...] algum que lhe possa
suceder por serem falecidos seus pais e avós, os queria por isso perfilhar e
legitimar implorando para isso a Graça de Vossa Alteza Real e por ser essa a sua
vontade.” (ACSM, Livro de Notas, nº 111, p. 28v-29).
Através do Testamento do segundo consorte de Francisca percebemos que houve certa
demora para a aceitação do processo de legitimação dos filhos feito pelo Capitão.
Praticamente um ano antes de sua morte, em primeiro de abril de 1827, Antonio declara em
seu Testamento: “(...) para legitimar a todos, e juntamente a Luis filho legítimo da dita
[Francisca] requeri, tendo-os perfilhado por Escritura Pública à Sua Magestade Imperial”
(ACSM, Livro de Registro de Testamentos, lv. 20, p.167v-169v).
Essa preocupação com a transmissão de seus bens fez com que Antonio se cercasse de
estratégias para garantir aos seus descendentes a sua herança. Além da escritura de
perfilhamento e a declaração de reconhecimento dos filhos espúrios e naturais no Testamento,
15
ele determinou que Francisca fosse a tutora dos seus filhos menores e que seus filhos
(Francisco Januario Carneiro, Dona Clementina Candida e Dona Teresa Januaria) fossem seus
primeiros testamenteiros.
Na Lista Nominativa de 1832 Francisca Januaria Carneiro aparece chefiando o
domicílio de número 22, do primeiro quarteirão, sendo classificada como branca, 44 anos,
viúva, livre e negociante. Com ela moravam os nove filhos (Luiz Antonio Carneiro;
Clementina Januaria Carneiro; Teresa Januaria Carneiro; Antonio; Joaquim; João; Maria;
Justina e Camilo), todos citados como solteiros e apenas 3 maiores de 21 anos.
O plantel de Francisca era composto por 16 escravos, sendo a maior porcentagem de
homens (75%). O escravo do sexo masculino mais velho tinha 51 anos; 8 cativos estavam na
faixa etária entre 17 e 44 anos, sendo que, a maioria, estava no auge de sua produtividade;
apenas 3 escravos apresentaram idades inferiores a 15 anos (entre 10 e 12 anos).
Além de informações sobre os ofícios de Francisca e três filhos designados como
caixeiros (Luiz, Clementina e Teresa), a fonte também classifica os ofícios de alguns escravos
dessa propriedade, e, podemos citar dentro desse plantel, os seguintes: alfaiate, tropeiro,
costureira.
Já na Lista Nominativa do ano de 1839, Dona Francisca Januaria Carneiro foi arrolada
no fogo de número 27, no 1º quarteirão, sendo classificada como uma mulher de 55 anos,
branca, viúva, livre, mercadora e com as habilidades de ler e escrever. Apenas três de seus
filhos permaneciam no domicílio da mãe: Capitão Antonio Januario Carneiro (26 anos,
branco, casado, livre, lê/escreve), Capitão João Januario Carneiro (24 anos, branco, solteiro,
livre, negociante, lê/escreve) e Dona Clementina Januario Carneiro (35 anos, branca, solteira,
livre, lê/escreve).
Também são listadas como moradores no domicílio de Francisca duas crianças
expostas, uma menina chamada Maria, de 11 anos, e um menino de nome Manoel, de 12 anos.
Além disso, são citados três agregados: Clara (70 anos, parda, solteira, livre, costureira),
Francisca Gota (50 anos, branca, solteira, livre, costureira) e João Manoel Alves (33 anos,
branco, solteiro, livre, boticário, lê/escreve).
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Tanto Francisca, como seus filhos, são listados com a habilidade de saber ler e
escrever, no entanto, é uma informação que nos deixa em dúvida, pois em seu testamento
Francisca declara que não sabia ler e escrever e pediu a Silverio Ulbaldo Martins Paiva que
assinasse a seu rogo. (AFP, Inventário de Francisca Januario Carneiro, Códice A037, Auto
469, fl. 173).
Tanto Clara como Francisca em seus Testamentos pedem a outras pessoas, do sexo
masculino, que assinem “a seu rogo”. Sabemos que durante século XIX, apesar da existência
de algumas escolas públicas ou mesmo privadas, havia uma distinção entre gênero que
determinava o que os alunos e alunas iriam aprender. Se Francisca fosse uma mulher
alfabetizada, poderíamos levantar a hipótese de que o saber ler/escrever dependia da condição
social, já que esta foi muito mais rica e ocupou uma posição social bem acima da nossa
primeira personagem, a Clara. Mas, independente da classe social à qual pertenciam ambas
não sabiam ler/escrever. Talvez, o que já foi apontado por Graham (2005: 133), “mais do que
raça, condição ou classe, o gênero determinava as chances de uma pessoa aprender a ler e a
escrever”, condiz com a realidade da região de Guarapiranga.
A escravaria de Francisca passou por uma grande modificação em um curto período de
tempo. Em um espaço de apenas 7 anos, entre as duas Listas Nominativas analisadas,
conseguimos identificar apenas dois escravos que, provavelmente, se repetem, João Congo e
Delfina parda. Outro fator importante é que a taxa de mulheres aumenta significativamente,
sendo composta por 44% de mulheres e 56% de homens. Além disso, os homens cativos
possuem idades inferiores às mulheres.
Francisca faleceu no dia 28 de abril de 1865 e teve como inventariante dos seus bens
o seu filho Coronel Camilo Antonio Januario Carneiro. Este mesmo filho, também foi o
testamenteiro de sua mãe e junto com sua irmã, Clementina Januario Carneiro, foi herdeiro da
terça (AFP, Inventário de Francisca Januario Carneiro, Códice A037, Auto 469).
Ao ler o Inventario de Francisca ficamos admirados com o tamanho da riqueza
material que essa mulher conseguiu reunir durante a vida, somando um Monte mor de
143:385$211 (cento e quarenta e três contos, trezentos e oitenta e cinco mil e duzentos e onze
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reis). Ainda não sabemos dizer como ela fez para conseguir construir uma riqueza tão vultosa,
se foi por herança ou dotes a ela deixados, ou se foi pelo seu envolvimento com atividades
comerciais, ou, ainda, por dívidas ativas e créditos.
O rol de herdeiros de Francisca foi composto por seus 10 filhos (os nove já citados na
Lista Nominativa de 1832 e o Major Francisco Januario Carneiro), sendo que quatro deles
(Tenente Coronel Luis Antonio Carneiro, Doutor Joaquim Januario Carneiro, Major João
Januario Carneiro e Dona Jacinta Januario Carneiro) já eram falecidos e foram representados
por seus respectivos filhos. A maioria dos herdeiros vivos, na data do falecimento de
Francisca, era casada. Apenas Dona Clementina Januario Carneiro permanecera solteira e a
sua irmã Dona Teresa Januario Carneiro encontrava-se viúva.
Duas filhas de Francisca casaram-se com homens que carregavam o mesmo
sobrenome. Em um caso temos a certeza de que houve um casamento dentro do mesmo
núcleo familiar: Dona Maria Januario Carneiro foi casada com o Tenente Francisco Justiniano
Carneiro, que era seu primo, filho do Coronel José Justiniano Carneiro3 e Dona Antonia
Teresa Maria do Carmo. No segundo caso, permanece a incerteza do possível parentesco entre
os nubentes: Dona Justina Januario Carneiro foi casada com o Tenente Coronel Joaquim
Antonio Carneiro. Os casamentos realizados entre parentes próximos têm sido percebido por
vários autores e têm sido considerados como uma estratégia para evitar a dispersão da
propriedade e da influência por meio da partilha dos bens (GRAHAM, 2005).
Todos os filhos possuíam títulos que além de indicar um significativo posicionamento
social, também podia significar que estavam envolvidos com a administração e a política da
localidade em que viviam. Um deles, Joaquim Januario Carneiro, tinha o título de Doutor, o
que poderia significar certo grau de estudo, possivelmente, até em universidades estrangeiras.
Assim como os homens, as filhas possuíam títulos que as distinguiam socialmente, todas eram
chamadas de Dona.
3 O Coronel era irmão do Capitão Mor Antonio Januário Carneiro.
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No montante de bens arrolados no Inventário de Francisca, podemos citar uma
quantidade significativa de animais para trabalho (bestas e cavalos) e parte de várias
propriedades (algumas compradas a seus filhos).
Desde a Lista Nominativa de 1839, Francisca conseguiu aumentar e renovar a sua
escravaria. No Inventário são listados 20 escravos, sendo a maior porcentagem de mulheres
(55%). No entanto, ao lavrar o Testamento, Francisca deixa 3 cativas forras (duas mulheres de
50 e 48 anos, e uma criança de 5 anos), 3 escravos quartados (um homem de 52 anos e duas
mulheres, uma de 25 e a outra de 28 anos) e doa dois escravos a duas de suas filhas (Quiteria,
de 16 anos, foi doada a Dona Clementina e Luis crioulo, de 22 anos à Dona Amelia). Assim,
sobram para a partilha de bens apenas 12 escravos (7 homens e 5 mulheres).
Também não conseguimos encontrar os Inventários dos maridos de Francisca, mas o
Testamento e a Escritura de perfilhamento do segundo esposo foram de extrema importância
para complementar nossas análises e enriquecer a discussão.
Os cenários das relações: os distritos de Manja Léguas e Piranga
Tendo em vista que as personagens analisadas viviam em localidades diferentes de
uma mesma região, apresentamos brevemente algumas características demográficas de cada
distrito, na tentativa de aproximar as trajetórias pessoais ao contexto local.
De acordo com dados demonstrados na dissertação de mestrado de Andrade (2014), a
partir da análise da Lista Nominativa de 1832, a população do distrito de Manja Léguas era
composta por 61,24% de homens livres contra 38,76% de escravos do sexo masculino e
71,98% de mulheres livres contra 28,02% de cativas. Esses valores indicavam uma
participação significativa sobre a população total da freguesia representando 30,28%, 19,17%,
36,39% e 14,17% respectivamente.
Ao detalhar ainda mais a análise desses dados, Andrade aponta que mais da metade da
população de Manja Léguas era parda livre/liberta e que a localidade tinha uma expressiva
emigração o que explica a alta taxa de mulheres na população local.
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A partir da perspectiva de microrregionalização proposta por Andrade (2014:56)
podemos dizer que Manja Léguas compartilhava da tendência percebida para a microrregião
norte, caracterizada por “(...) grande presença de pessoas livres de cor, provavelmente
egressos do cativeiro em uma região primária de colonização, que no século XIX estava
estancada economicamente – reflexo do esgotamento das lavras auríferas e da não
solidificação de uma indústria canavieira agroexportadora”.
Clara Maria Violante e sua família ajudavam a compor esses dados. Partindo de sua
avó, uma escrava que conseguiu construir uma relação ilegítima com seu próprio senhor,
garantindo a liberdade para a filha resultante de tal enlace. Clara Dias Cunha, parda, liberta na
pia batismal, casou-se com um homem branco e de origem portuguesa, gerando uma prole
legítima, a qual pertencia Clara Maria Violante, que casou-se com um homem livre, pardo e
pobre.
A população do distrito de Piranga era composta por 61,86% de homens livres contra
38,14% de homens escravos e 76,15% de mulheres livres contra 23,85% de cativas. Essas
porcentagens correspondiam a um total de 32,18%, 19,84%, 36,53%, 11,44%,
respectivamente, dentro da população geral da Freguesia de Guarapiranga (ANDRADE;
2014).
Assim como Manja Léguas, Piranga tinha o maior percentual da sua população livre
entre os pardos, o que pode nos indicar uma forte possibilidade de ascensão social e
disposição para concessão de liberdades em toda a região, pois a maior parte da população
livre de cor, um dia havia sido cativa.
O distrito de Piranga, na perspectiva da microrregionalização, estava localizado na
microrregião central e apresentava “(...) expressivo número de escravos, provavelmente
reflexo da vocação agrícola (...)”, essa microrregião vivia uma dinamicidade econômica.
(ANDRADE; 2014: 56 e 60).
Francisca Januario Carneiro e sua família também representavam bem os dados
expostos por Andrade. Após casar-se duas vezes, constituir uma família extensa, Francisca se
tornou chefe de seu domicílio e esteve à frente dos negócios da família por mais de 30 anos,
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vivendo em prosperidade econômica e expandindo sua fortuna para seus herdeiros, através do
comércio e provavelmente de atividades agrícolas mantidas por sua escravaria.
Considerações Finais
A partir dos dados apresentados sobre a trajetória de vida de Clara e Francisca e da
região em que viviam, conseguimos resaltar a importância de fontes como Inventários,
Testamentos, Listas Nominativas e Registros Paroquiais para uma análise da vida social,
material e pessoal de indivíduos do passado. Vimos que tanto a realidade vivida por Clara
como a vivenciada por Francisca estava de acordo com a organização demográfica e
econômica do distrito em que construíram suas histórias de vida.
No entanto, essas fontes não nos informam sobre uma memória do indivíduo. Mas nos
abre brechas para o entendimento do cotidiano das personagens que escolhemos estudar, por
isso acreditamos que as informações colhidas serão de extrema importância para o
entendimento das relações sociais constituídas, assim como, das relações de gênero que nelas
se entrelaçam.
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