Tramas e Urdiduras de um novo campo de pesquisa

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1 Comemorações PPGAS-UnB Antropologia da Política: tramas e urdiduras de um novo campo de pesquisa Christine de Alencar Chaves 1 Nesse momento especial de “festa”, em que nos reunimos para comemorar os trinta anos de PPGAS-UnB 2 , os que compõem esta mesa assumiram a responsabilidade de apresentar uma reflexão a respeito dos Desafios e Perspectivas da Antropologia. Responsabilidade que a mim particularmente honra, pois neste PPGAS fiz-me antropóloga. O desejo de homenagem e o sentimento de reconhecimento precisam, no entanto, ser domesticados em linguagem comedida, atributo que o motivo e o próprio espaço da celebração prescrevem. Porém, sendo entre todos a neófita, não procurarei apresentar aqui um diagnóstico da produção antropológica no meu campo de pesquisa. Mais modestamente, dentro dos limites que uma comunicação como esta impõem, buscarei delinear a perspectiva geral que tem orientado algumas das contribuições da Antropologia da Política. Não posso prosseguir sem, no entanto, deixar de sublinhar que há entre nós protagonistas muito mais autorizados a cumprir essa tarefa. Treinada no enfoque etnográfico que se atém aos cenários, cenas e narrativas concretas, sobre os quais se detém o olhar interpretativo do pesquisador e a partir dos quais é feito o trabalho de construção, cotejamento e crítica de conceitos, não pretendo propor síntese, chegar a conclusões generalizantes, ou apresentar propostas de renovação teórica. Esta última, talvez a de maior interesse dentre as tarefas listadas, pode ser adequadamente cumprida única e exclusivamente através de pesquisas acuradas sobre fenômenos discretos, com o 1 Christine de Alencar Chaves é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, mestre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. 2 O encontro comemorativo dos 30 anos do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade de Brasília foi realizado, em novembro de 2002, na própria universidade.

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Ensaio bibliográfico sobre a Coleção Antropologia da Política

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    Comemoraes PPGAS-UnB

    Antropologia da Poltica: tramas e urdiduras de um novo

    campo de pesquisa Christine de Alencar Chaves1

    Nesse momento especial de festa, em que nos reunimos para comemorar os trinta anos de PPGAS-UnB2, os que compem esta mesa assumiram a responsabilidade de apresentar uma reflexo a respeito dos Desafios e Perspectivas da Antropologia. Responsabilidade que a mim particularmente honra, pois neste PPGAS fiz-me antroploga. O desejo de homenagem e o sentimento de reconhecimento precisam, no entanto, ser domesticados em linguagem comedida, atributo que o motivo e o prprio espao da celebrao prescrevem. Porm, sendo entre todos a nefita, no procurarei apresentar aqui um diagnstico da produo antropolgica no meu campo de pesquisa. Mais modestamente, dentro dos limites que uma comunicao como esta impem, buscarei delinear a perspectiva geral que tem orientado algumas das contribuies da Antropologia da Poltica. No posso prosseguir sem, no entanto, deixar de sublinhar que h entre ns protagonistas muito mais autorizados a cumprir essa tarefa. Treinada no enfoque etnogrfico que se atm aos cenrios, cenas e narrativas concretas, sobre os quais se detm o olhar interpretativo do pesquisador e a partir dos quais feito o trabalho de construo, cotejamento e crtica de conceitos, no pretendo propor sntese, chegar a concluses generalizantes, ou apresentar propostas de renovao terica. Esta ltima, talvez a de maior interesse dentre as tarefas listadas, pode ser adequadamente cumprida nica e exclusivamente atravs de pesquisas acuradas sobre fenmenos discretos, com o

    1 Christine de Alencar Chaves professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do

    Paran, mestre e doutora pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia. 2 O encontro comemorativo dos 30 anos do Programa de Ps-Graduao de Antropologia Social da

    Universidade de Braslia foi realizado, em novembro de 2002, na prpria universidade.

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    exerccio minucioso e, ainda assim precrio, de ordenar pelo pensamento ou buscar a inteligibilidade da realidade infinitamente mltipla do mundo social. Renncia ambio terica? Certamente no: por um lado reconhecimento da obscuridade e estranheza do mundo humano, que por ofcio nos compete compreender; por outro, conscincia da frgil e instvel qualidade de nossas ferramentas tericas. Como aprendi com meus mestres, a boa teoria se ancora na boa ou em boas etnografias e tecida na trama mesma em que a pesquisa se desdobra em representao discurssiva. Embora j bastante profcuo, o campo das pesquisas abrigadas sob o ttulo de uma Antropologia da Poltica extremamente recente. Talvez por isso mesmo seja de proveito indagar quais as condies que ensejaram essa produo. De uma maneira sumria, pode-se aduzir trs diferentes fatores, relacionados aos desenvolvimentos tericos mais gerais da disciplina, histria especfica da Antropologia no Brasil e ao prprio contexto histrico recente do pas. Desde que a Antropologia passou a ser hegemonicamente concebida como um modo de conhecimento definido no por um objeto mas por uma perspectiva (des)centrada na diferena, abriram-se novas e insuspeitadas possibilidades de pesquisa. Tendo h muito abandonado preocupaes normativas, superado veleidades cientificistas e com um corpo de conhecimento acumulado no estudo da alteridade atravs do mtodo do trabalho de campo, com esse novo descentramento a Antropologia pde estender seus interesses para os mais diversos mbitos, produzindo com sua perspectiva relativizadora um conhecimento renovado sobre a realidade social. No Brasil, os efeitos dessas mudanas repercutiram de maneira especialmente significativa devido ao fato de a Antropologia ter-se constitudo aqui como uma Cincia Social, legitimando-se a partir de um processo de diferenciao com a Sociologia e a Cincia Poltica, mas todas vinculadas aos interesses de construo da nao (Peirano, 1986; 1992; 1999). O aludido giro epistemolgico da Antropologia foi entre ns mais ou menos concomitante institucionalizao dos Programas de Ps-Graduao incluindo o PPGAS-UnB e, tambm, instalao do regime autoritrio no pas. Assim, a exploso da

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    diversificao temtica na disciplina foi acompanhada da profissionalizao e do estabelecimento de um padro de qualidade nas pesquisas e, por razes histricas, tambm associada transformao do trabalho intelectual acadmico em um dos ltimos redutos em que a crtica social era facultada. Em fins dos anos 70 e incio da dcada de 80, verificou-se o esgotamento poltico do regime militar e do seu modelo de sustentao econmica. A crise do regime foi escoltada pela emergncia de movimentos sociais reivindicatrios em torno de demandas pontuais e concretas tanto no campo como nas cidades, alm da rearticulao do sindicalismo e do crescimento eleitoral da oposio consentida, impulsionando de maneira definitiva o processo de abertura poltica. nesse contexto de repolitizao da sociedade, a partir de questionamentos oriundos de um misto de interesse prtico e engajamento intelectual com o processo de redemocratizao, que surgem as primeiras pesquisas antropolgicas orientadas, por exemplo, para a compreenso dos smbolos de cidadania expressos nos documentos (Peirano 1986); para a problematizao da no converso da lealdade sindical em capital poltico (Palmeira 1992; Palmeira & Herdia 1995), ou para a investigao da percepo popular a respeito da poltica, por ocasio das primeiras eleies diretas para presidente da Repblica, em 1989 (Chaves 1993). Se o clima dos tempos tornaram propcias as condies para o amadurecimento do antroplogo como cidado, eles se manifestavam tambm nos novos ventos tericos da disciplina. O esgotamento do modelo objetivante de conhecimento implicou no deslocamento da orientao terica para a questo da significao. Com ela, verificou-se uma revalorizao do ponto de vista nativo e o privilegiamento da ao social como ao significativa. Ou seja, o interesse antropolgico voltou-se para a densidade significativa do vivido. Os antroplogos foram tomados do escrpulo maussiano notado por Lvi-Strauss (1974: 24-25), e que os obriga a manterem-se referidos ao fato social que nunca deve ser completamente despojado, mesmo pela mais alta abstrao, nem de sua cor local, nem de sua ganga histrica, como afirmou Mauss (1974:184). O privilegiamento dessas duas dimenses a das representaes e a da ao social fez-

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    se, portanto, tributrio de uma revalorizao da herana de Durkheim e Weber. Tomar o aspecto simblico dos fatos sociais, implica, dentro da melhor tradio antropolgica, no opor representao e ao, como mais uma vez bem expressou Mauss: na maioria das representaes coletivas... (trata-se) de uma representao escolhida mais ou menos arbitrariamente para significar outras e comandar prticas (Mauss 1974:190). Talvez em nenhum outro domnio da vida social moderna essa perspectiva se apresente de maneira to evidente como na poltica. Na poltica, as palavras tm uma inaudita capacidade performativa. Tanto quanto as aes, elas assumem um poder constituinte e so, em geral, destinadas a adquirirem relevncia, isto , significao social. Assim, o ponto de partida do projeto de uma Antropologia da Poltica consolidado com a constituio de um grupo interinstitucional de pesquisa, o Ncleo de Antropologia da Poltica3 (NuAP) ancorou-se na ateno privilegiada ao ponto de vista nativo, a comear pelo prprio recorte do objeto, definido pelo que socialmente pensado como poltica. Tal delimitao faz-se particularmente importante e necessria se considerarmos ser a poltica um domnio central de elaborao da auto-conscincia das sociedades modernas, assim como do pensamento social nelas produzido, de que somos, de uma forma ou de outra, herdeiros. A cautela exigida implica, portanto, uma vigilncia suplementar, pois diz respeito aos prprios fundamentos, tcitos e tericos, que aliceram nossa concepo de sociedade. Todo o acmulo da tradio antropolgica faz-se mais do que nunca necessrio, a comear pela problematizao do senso comum acadmico que toma a poltica como um domnio separado nas sociedades ditas modernas. Ao contrrio, a Antropologia da Poltica pode ser considerada tributria, entre outros, de Evans-Pritchard na medida em que consolida a ampliao da noo de poltica que seus trabalhos deram incio. Por outro lado, diferentemente dos seus herdeiros britnicos, insere a poltica na sociedade global e, portanto, no mbito geral da Antropologia Social. O privilegiamento da

    3 O NuAP rene pesquisadores de Programas de Ps-Graduao de diferentes instituies como o Museu Nacional, a UnB, a UFC, a UFRGS, a UFRJ e a UFPR. Com a aprovao do projeto de pesquisa Uma Antropologia da Poltica: Rituais, Representaes e Violncia pelo Programa de Apoio a Ncleos de Excelncia (Pronex) do Ministrio da Cincia e Tecnologia, o NuAP passou a ter uma existncia institucional a partir de dezembro de 1997.

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    abordagem etnogrfica tem sido imprescindvel para revelar o imbrincamento social da poltica, mostrando como nos termos do pensamento e da experincia nativa ela atravessada por princpios que regem toda a sociedade. Assim, evitando substantivaes, a poltica tem sido tratada como atividades, interaes e representaes cuja delimitao se verifica sempre contextualmente, pelos prprios atores sociais nela implicados. Como compreensvel, uma parte significativa da produo inicial dos pesquisadores envolvidos em torno do NuAP tem focalizado o fenmeno das eleies, do voto e da representao poltica4. Portanto, diferenciando-se da Cincia Poltica, cujas anlises tm se centrado nos partidos, segundo uma abordagem predominantemente internalista como j notaram outros antroplogos (Goldman & SantAnna,1996). As eleies so um tempo nativamente recortado o tempo da poltica (Palmeira 1995) em que se acentuam as atividades polticas e os diferentes tipos de atores polticos se encontram. quando parece verificar-se uma relativa inverso de papis entre aqueles normalmente considerados como polticamente passivos os eleitores e aqueles tidos como ativos os polticos profissionais5. Se o tempo da poltica, seguindo Palmeira (2002) representa um recorte social que demarca uma excepcionalidade em que, inclusive, a explicitao dos conflitos passa a ser tolerada talvez seja possvel acrescentar que um dos elementos dessa excepcionalidade uma espcie de suspenso transitria da assimetria poltico-eleitor, criada pela liminaridade imposta aos polticos profissionais pela caracterstica cclica de suas carreiras. Essa assimetria pode ser constatada na crtica feita por eleitores de que o quando poca das eleies o poltico reconhece a gente, bate no ombro, chama pelo nome, depois de eleito passa de carro na rua e nem olha para o lado (cf. Chaves 1993). Entretanto, se consideramos as eleies como um ritual (uma das abordagens privilegiadas no NuAP), pode-se reconhecer nelas, por

    4 Mencionando apenas alguns trabalhos, pode-se citar as seguintes coletneas Palmeira & Goldman 1996; Palmeira & Barreira 1998; Herdia et alli 2002, alm dos trabalhos de Chaves (1993), Scotto (1994), Barreira (1998) e Kushnir (2000a; 2000b). 5 Um trabalho que elabora explicitamente essa inverso de papis o de Kushnir (2002).

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    outro lado, uma acentuao de aspectos que esto presentes no cotidiano da sociedade, repondo de outro modo a diferenciao de papis entre os polticos profissionais e os eleitores. Durante as eleies, a participao dos eleitores no s tida, como passa a ser fundamental6 para alm do momento puntual do voto e polticos em campanha buscam de diversos modos, usando os mais diferentes meios, tornarem-se (oni)presentes, prximos ao eleitor. Com a exposio de sua biografia, o uso de imagem, msica, slogans e smbolos os mais diversos, eles buscam apresentar-se7 e fazerem-se reconhecidos, geralmente atravs da construo de uma identificao com o eleitor. Mas eles o fazem desde um lugar diferenciado, de destaque, como os comcios evidenciam8. Assim, pode-se dizer que o perodo eleitoral expe de maneira dramtica o paradoxo da representao9. Como este paradoxo se explicita durante as eleies? As etnografias tm mostrado em diferentes contextos a recorrncia e a centralidade da categoria compromisso nas relaes polticas, seja nos perodos de campanha em municpios do interior (Chaves, 1993; 1996; Palmeira & Goldman, 1996) e nas metrpoles (Kushnir, 2000a; 2000b) ou mesmo durante a atividade parlamentar (Bezerra, 1999). Ela referncia tanto na relao poltico-eleitor, quanto naquela estabelecida entre polticos

    6 preciso lembrar a insistncia com que se repete que o voto um direito e tambm um dever, ou seja, no caso da sociedade brasileira o carter obrigatrio transformado em exerccio de cidadania. 7 O trabalho de Scotto (1994) explicita essa caracterstica da campanha como um ritual de apresentao do candidato. 8 Como notaram Palmeira e Herdia: so os comcios que sinalizam o incio do tempo da poltica (1995: 35). Eles so parte fundamental das campanhas no apenas nos municpios do interior, estudados pelos autores, mas de qualquer campanha eleitoral como o demonstram o farto e imprescindvel uso de sua imagem no horrio gratuito eleitoral da televiso, apesar da solene afirmao de que comcio no d voto (idem: 36). Os autores tambm destacam o carter paradoxal dos comcios, pois apesar da distncia entre palanque e pblico, eles estimulam a participao popular como nenhuma outra forma de assemblia poltica. 9 Irlys Barreira (1998) trata especificamente as campanhas eleitorais como rituais de representao. Com respeito ao paradoxo identidade/diferena constitutivo do problema da representao durante as campanhas eleitorais, a autora estabelece uma interessante distino entre ritos mveis, expressos no deslocamento dos candidatos, que estabeleceriam a aproximao, e ritos fixos, como os comcios, em que se produziria a hierarquia entre poltica e povo(1998: 28). Teixeira (1998) e especialmente Bezerra (1999) exploram os dilemas entre modelos diferentes de representao.

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    de diferentes esferas da federao10. Tudo se passa como se a poltica fosse a arte de comprometer-se e comprometer a outrem. Mas a categoria compromisso no opera sozinha, no Brasil ela vem associada promessa e, em determinados contextos, ao pedido e ao favor. Espressas em atos de fala e em aes, todas essas categorias referem-se a um mbito de relaes que vincula pessoas morais, indivduos investidos de suas teias de relaes e obrigaes sociais. Essa indissociabilidade to importante que se revela inclusive nos momentos crticos de perda do mandato parlamentar, como o estudo da operacionalizao poltica do dispositivo do decoro parlamentar feita por Teixeira (1998) revela. O vnculo estabelecido entre pessoas morais pode manifestar-se tanto na relao entre indivduos na relao candidato-eleitor como referir-se a coletividades, a exemplo das faces nos municpios do interior, ou do vnculo dos polticos com municpios, regies e outros grupos sociais o que remete dimenso das identidades coletivas nas relaes polticas. Este um campo relativamente pouco explorado nos trabalhos at agora realizados, e com perspectiva de ser particularmente promissor no estudo das eleies para cargos majoritrios11, seja na explicitao das lutas pela representaes associadas coletividade, seja na compreenso do poder referido ao exerccio desses cargos. De modo geral, a contribuio do estudos at agora realizados tem sido no sentido de explicitar os mecanismos sociais que no processo eleitoral e para alm dele buscam estabelecer e preservam os vnculos entre eleitores e polticos profissionais. Fora do perodo eleitoral, esses vnculos so matidos e reforados, por exemplo, atravs de atos de governo, como inauguraes (Borges 2002b), envio de correspondncia, boletins ou cartas (Herdia 2002), e

    10 Vitor Nunes Leal, no clssico Coronelismo, Enxada e Voto que pode ser considerado pioneiro na abordagem sociolgica, e, ao seu modo, etnogrfica, da poltica brasileira j assinalava a importncia do compromisso. Escrevia Vtor Nunes Leal em 1949 a respeito do compromisso coronelista: a regra ser honrado o compromisso que no municpio se firma de homem para homem (1975:41). Bom etngrafo, ele idenficou esse compromisso como eixo de um sistema complexo de relaes entre o poder local e o poder central, constituindo um verdadeiro sistema de reciprocidade (1975: 42ss). 11 Os trabalhos de Borges (2002a e 2002b) e o de Teixeira (2002), ambos com respeito ao Distrito Federal apontam nessa direo.

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    pela manuteno do atendimento populao (Kuschnir 2000a) ou s bases (Bezerra 1999). Por sua vez, as campanhas eleitorais buscam reativar esses vnculos, compreendidos como compromissos entre pessoas morais, que se reconhecem como iguais mas tambm diferentes, ou ainda, cuja relao percebida como, por um lado, de identidade e, por outro, de desigualdade. Assim, caminhadas, caravanas, reunies, visitas e comcios ao mesmo tempo que explicitam uma proximidade e identidade entre o eleitor e o poltico profissional estabelecem e reforam a distncia e a diferena entre um e outro. Em certo sentido este um dilema inerente representao poltica. No Brasil, ele vivido pelos parlamentares na oposio entre a atividade legislativa, referida nao, e o atendimento s demandas de suas bases eleitorais, considerado como igualmente legtimo. Ao contrrio da primeira, que goza da sano do iderio poltico moderno, a validao da noo de representao como atendimento a demandas advm dos vnculos polticos estabelecidos com os eleitores em torno das categorias centrais promessa e compromisso, pedido e favor. Parece que estamos em um circuito de trocas, caracterizado pela obrigao de dar, receber e retribuir tanto palavras (pedidos e promessas) como atos (favores e votos). Uns e outros compreendidos pela categoria compromisso. preciso lembrar, no entanto, que se os polticos assumem o papel de mediadores, eles o fazem atravs de vnculos com sujeitos socialmente desiguais e com sua prtica reforam essa desigualdade. Portanto, ao que tudo indica, aprofundar nossa compreenso das bases de valor que aliceram essas prticas imprescindvel para se conhecer melhor os elementos que fundamentam, na sociedade brasileira, os paradoxos da representao poltica e a recriao da desigualdade social. O estudo de campanhas, das eleies e do voto, da derrota eleitoral e do exerccio do mandato, assim como dos mecanismos que permitem a sua perda tem contribudo para a compreenso da ao e da representao polticas no Brasil. Mas outras vias tambm tm sido trilhadas pelos antroplogos na identificao das formas de

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    estruturao das relaes polticas, dos mecanismos sociais de poder por elas engendrados e do modo como os smbolos esto entretecidos nessas relaes. Dessa forma, busca-se elucidar como tais smbolos e relaes, sendo construdos segundo cdigos compartilhados, tornam-se demarcadores constituintes de diferenas seja na sua apropriao semntica, seja na conformao de sujeitos socialmente desiguais. Nessa mesma direo, portanto, outros trabalhos tm se dedicado, por exemplo, percepo e construo social da cidadania no Brasil e em outros contextos nacionais, em termos da oposio entre direitos legais e direitos morais (Cardoso de Oliveira 1999; 2002); ou atravs da observao das formas de construo e uso de smbolos da cidadania, como os documentos (Peirano 1986; 2002). Pesquisas tambm tm se voltado para a dimenso violenta da poltica, na forma da pistolagem (Barreira 1998) e para outros atores sociais na poltica, como sindicatos (Palmeira 1998) ou movimentos sociais, como o MST (Chaves 2000). Na trilha das tramas e urdiduras com que se fabrica e renova a sociedade, esses trabalhos tm se guiado pelas demarcaes nativas da poltica e encontrado caminhos inusitados como marchas, caravanas, passeatas; lugares privilegiados como reunies (Comeford 1996; 1999), assemblias, comcios, acampamentos e festas; eventos que so demarcados como tempos especiais, delimitados por atividades tidas como pertinentes a estes lugares e meios de ao. Esses trabalhos defrontam-se com uma poltica feita de palavras que so atos e aes que so enunciados simblicos. Durante as eleies e depois delas, no Parlamento mas tambm nas ruas e praas, a poltica invade e ressemantiza a vida social nos mais diferentes nveis. Cabe aos antroplogos seguir essas pistas que criam e recriam a vida social, renovando-a de um modo que possvel identificar tanto a permanncia quanto a promessa de mudana. Para finalizar, acrescento que h muito o que fazer na consolidao de um corpo de conhecimento sobre o processo eleitoral e os mandatos parlamentares, sobre os smbolos da cidadania e os processos legais, sobre a atuao poltica de sindicatos e movimentos sociais. Mas h tambm um campo inexplorado, ou pouco estudado, que diz respeito atuao do Executivo e do Judicirio, em suas diferentes instncias,

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    incluindo a burocracia em suas inmeras ramificaes. Os trabalhos j realizados apontam nexos entre essas diferentes jurisdies, que so pistas valiosas a seguir. Alm disso, fora das instituies estatais, h todo um campo a ser explorado seja nas chamadas Organizaes no Governamentais, seja na atuao quase invisvel, mas no menos importante, das formas de sociabilidade e organizao populares. Certamente, esse muito a ser feito no deve ser tomado a priori, precisa antes ser guiado pelos problemas culturais que tornam relevantes e significativos determinados mbitos da realidade social. Por isso mesmo, como nos ensinou Weber (1993), no devemos esquecer de, ao mesmo tempo, problematizar os fundamentos de valor que sustentam essa relevncia e nossas prprias escolhas. O que nos remete ao alerta feito por Dumont (1975) com relao nfase na dimenso poltica, ou seja, o perigo de nos confinarmos ao que ele ironicamente chamou de gabinete metafsico, que tomaria o individualismo moral e poltico, prprio da ideologia moderna, pela descrio da vida social. Tudo indica que a Antropologia da Poltica tem sabido contornar essa armadilha. Mas no devemos subestimar os desafios que ela impe. Afinal, a poltica parece gozar em nossa sociedade do poder encantatrio da magia, ela tem mana e confere mana o que coincide com a percepo popular da poltica como algo exterior, do outro12. A poltica uma magia que perseguindo fins prticos, uma idia prtica (Mauss 1974:121), opera mediante atos e falas rituais que atualizam uma cosmologia compartilhada e, apesar de seus fracassos, ainda assim eficaz, porque capaz de fazer crer. Cumpre-nos desvendar essa arte de fazer cuja matria prima so os desejos coletivos e deslindar os meios de ao dessa magia no mundo moderno que a poltica, como fizeram os antroplogos com respeito prpria magia: sem duvidar de sua eficcia social, mas sem sucumbir aos sortilgios de seu poder encantatrio.

    12 Em festa-comcio-jogo na qual o prefeito no palanque fazia-se animador de brincadeira de pau-de-sebo, um trabalhador rural observou ser ela pura manifestao de poder. Observao conforme a de Mauss a respeito do mana, No basta dizer que qualidade de mana liga-se a certas coisas em razo de sua posio relativa na sociedade, mas necessrio dizer que a idia de mana no mais do que a idia desses valores, dessas diferenas de potencial (1974: 149-50).

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    Resumo

    A partir da leitura de etnografias recentes, este artigo examina a produo do campo de pesquisa abrigado sob o ttulo de Antropologia da Poltica. Aps breve delineamento das condies, tericas e sociais, que ensejaram a constituio deste campo de pesquisa no Brasil, bem como da perspectiva terica que o orienta, o texto faz um levantamento dos principais temas e questes que tm atrado o interesse dos pesquisadores. Ao apontar algumas contribuies at aqui alcanadas, procura sugerir, tambm, mbitos ou temas ainda inexplorados para, finalmente, indicar a cautela necessria ao estudo da poltica na nossa sociedade.