TRANSGRESSÕES LÚDICAS: LEITURAS E DESLEITURAS NO … · separavam imagem e palavra como elementos...

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1 TRANSGRESSÕES LÚDICAS: LEITURAS E DESLEITURAS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO Bárbara Lívia Damasceno de Souza Graduada em Direito pela Faculdade SEAMA -2007 com especialização em Metodologia do Ensino Superior pela mesma instituição (2010); foi pesquisadora do Grupo de Pesquisa da UNIFAP Direitos Sociais, cultura e cidadania; É artista visual e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes- PPGArtes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará com estudos vinculados à linha de pesquisa Processos de criação em artes. Resumo: Este artigo aborda como os Livros Ilustrados contemporâneos transgridem o padrão linear da literatura dita para a infância evidenciando, assim, o valor da integração entre os textos verbal, visual e não verbal. Sinaliza, ainda, como a experiência tátil e as múltiplas técnicas da ilustração contemporânea permitem ao Livro Ilustrado um alcance para além de um suporte da palavra tornando-o, assim, acontecimento poético autônomo, reflexo da fusão palavra/imagem presente nos processos criativos contemporâneos. Palavras chaves: livro, transgressão, ilustração, ludicidade. PLAYFULNESS TRANSGRESSION: READINGS AND DESCONSTRUCTION READING IN CREATION OF CONTEMPORARY PICTURE BOOK Abstract: This article discusses how contemporary Illustrated Books transgress the linear pattern of said literature for children, thus demonstrating the value of the integration between verbal, visual and nonverbal texts. It also indicates how the tactile experience and multiple techniques of contemporary illustration allow the Illustrated Book a reach beyond a word of support, thus making it autonomous poetic event, reflecting the fusion word / image present in contemporary creative processes. Keywords: book, transgression, illustration, playfulness. Os chamados Livros Ilustrados são obras em que as imagens destacam-se por sua inter- relação ou autonomia aos textos verbal e não verbal 1 , ou seja, a constituição, apresentação e apreensão sígnica da obra desconstroem hierarquias históricas que separavam imagem e palavra como elementos de funções bem definidas. Cores, traços, formas, e ainda, o modo de conduzir e dinamizar visualidade, verbalidade e 1 Considero no correr de minha escrita, o texto não verbal como os elementos articulado no livro em seu design, formato, textura, folhas e gramaturas imprescindíveis para o sentido da narrativa. Chamo assim, de texto total quando imagem, palavra e forma integram-se simultaneamente na recepção da obra literária.

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TRANSGRESSÕES LÚDICAS: LEITURAS E DESLEITURAS NO PROCESSO

DE CRIAÇÃO DO LIVRO ILUSTRADO CONTEMPORÂNEO

Bárbara Lívia Damasceno de Souza

Graduada em Direito pela Faculdade SEAMA -2007 com especialização em Metodologia do Ensino

Superior pela mesma instituição (2010); foi pesquisadora do Grupo de Pesquisa da UNIFAP Direitos

Sociais, cultura e cidadania; É artista visual e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes-

PPGArtes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará com estudos vinculados à

linha de pesquisa Processos de criação em artes.

Resumo: Este artigo aborda como os Livros Ilustrados contemporâneos transgridem o

padrão linear da literatura dita para a infância evidenciando, assim, o valor da

integração entre os textos verbal, visual e não verbal. Sinaliza, ainda, como a

experiência tátil e as múltiplas técnicas da ilustração contemporânea permitem ao Livro

Ilustrado um alcance para além de um suporte da palavra tornando-o, assim,

acontecimento poético autônomo, reflexo da fusão palavra/imagem presente nos

processos criativos contemporâneos.

Palavras chaves: livro, transgressão, ilustração, ludicidade.

PLAYFULNESS TRANSGRESSION: READINGS AND DESCONSTRUCTION

READING IN CREATION OF CONTEMPORARY PICTURE BOOK

Abstract: This article discusses how contemporary Illustrated Books transgress the

linear pattern of said literature for children, thus demonstrating the value of the

integration between verbal, visual and nonverbal texts. It also indicates how the tactile

experience and multiple techniques of contemporary illustration allow the Illustrated

Book a reach beyond a word of support, thus making it autonomous poetic event,

reflecting the fusion word / image present in contemporary creative processes.

Keywords: book, transgression, illustration, playfulness.

Os chamados Livros Ilustrados são obras em que as imagens destacam-se por sua inter-

relação ou autonomia aos textos verbal e não verbal1, ou seja, a constituição,

apresentação e apreensão sígnica da obra desconstroem hierarquias históricas que

separavam imagem e palavra como elementos de funções bem definidas. Cores, traços,

formas, e ainda, o modo de conduzir e dinamizar visualidade, verbalidade e

1 Considero no correr de minha escrita, o texto não verbal como os elementos articulado no livro em seu

design, formato, textura, folhas e gramaturas imprescindíveis para o sentido da narrativa. Chamo assim,

de texto total quando imagem, palavra e forma integram-se simultaneamente na recepção da obra literária.

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performance poética, sinalizam um fenômeno de amplificação no processo de criação e

recriação do Livro Ilustrado contemporâneo.

“De imediato, o Livro Ilustrado evoca duas linguagens: o texto e a imagem. Quando as

imagens propõem uma significação articulada com a do texto, ou seja, não são

redundantes à narrativa, a leitura do livro ilustrado solicita apreensão conjunta daquilo

que está escrito e daquilo que é mostrado (LINDEN, 2011, p.8)”.

Editados principalmente para o público infantil, os livros ilustrados são utilizados, em

sua maioria, como recursos didáticos para crianças que ainda não leem o código escrito.

No entanto, sabe-se que estes livros não são objetos de apreciação apenas das crianças.

Jovens e adultos também buscam o livro ilustrado dado a qualidade e ousadia artísticas

cada vez mais explorada por ilustradores, designers e escritores. Não por acaso o

ilustrador Odilon Moraes diz não gostar da classificação livro para crianças ou livro

infantil. Odilon prefere chamar o que faz de literatura ilustrada, e não de literatura

infantil, declaração que se justifica ao mencionar, ainda, que não foi através da literatura

infantil que se deu sua introdução ao universo visual. “Tinha uma rica biblioteca de

livros de arte. Esses livros, juntamente com algumas coleções ilustradas de contos de

fadas (não posso me esquecer da vez que folheei “A Divina Comédia” ilustrada por

Gustave Doré), histórias em quadrinhos e o cinema formaram meu primeiro vocabulário

visual.” 2

Porém, há ainda hoje a ideia de que a leitura do Livro Ilustrado seja um objeto de

construído para a infância e que ainda deve seguir a linearidade marcada pelo inicio do

séc. XVIII, ou seja, por uma história de pedagogismo e rígido moralismo, em que a

função da palavra, no livro, subjuga o valor da imagem.

Existe um caráter fixo neste tipo de construção um tipo de monólogo, em que

o texto é dominante, tornando a ilustração um simples acessório. O recurso

ilustrativo restringe-se apenas a uma função utilitária, a de servir ao texto,

limitando-se a atender objetivamente a autoridade educacional e científica.

Até então dispensável, a ilustração vai pouco a pouco conquistando a atenção

do leitor e tomando um lugar de destaque nas páginas. (BAHIA, 1995, p.14)

2 Entrevista concedida à revista Crescer em Abril de 2013.

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Desconstruir a ideia de gênero literário ajuda-nos a desmistificar não apenas a recepção

visual do Livro Ilustrado como também nos permite perceber que o processo de criação

do ilustrador, escritor, designers, ou ilustrador-escritor, pode ser feito a partir de

múltiplos caminhos. Evidencia, ainda, que para criar a atmosfera lúdica de sua narrativa

estes profissionais não precisam conduzir, necessariamente, sua criação visual pelo

mando do texto verbal, duplicando em imagens o que é expresso em palavras. Isso

porque, caso o autor-ilustrador escolha pela não utilização da escrita, sabe-se que a

ausência da palavra não faz da imagem um signo vazio. O texto total no livro, que

abrange desde o espaço-tempo acolhido pelas páginas à textura e designer, explorados

em toda a sua potência contempla o livro como lugar de acontecimentos, treina o olhar,

sugere novas interpretações e assim desenvolve autonomia imagética.

Se ensinar a pensar é a primeira tarefa dos novos e renovados docentes que

enfrentam a linha de fogo do poder nas trincheiras da sala de aula, ensinar a

pensar a imagem é o movimento estratégico mais importante nessa dura

batalha contra o apagão mental que se promove em toda parte.(...) É

necessário, é urgente, portanto, ensinar a pensar as imagens para que esse

processo se sobreponha ao da alfabetização e fomente nos estudantes um

verdadeiro pensamento complexo capaz de fazer frente aos desafios de uma

sociedade atual igualmente complexa. (CATÁLÀ, 2011, p. 8)

O primeiro livro brasileiro só de imagens foi publicado em 1976 pela editora Primor.

“Ida e Volta” de Juarez Machado narra, a partir de imagens, as pegadas de um

personagem invisível. Um exercício para o leitor que, de maneira divertida, busca seguir

e compreender os passos do protagonista (NECYK, 2006 p.03). De lá para cá centenas

de livros de imagens circulam pelo país entre publicações nacionais e estrangeiras.

O livro The arrival, publicado pela primeira vez em 2006, do autor e ilustrador

australiano Shaun Tan, é um típico exemplo contemporâneo deste tipo de narrativa. Não

podemos dizer que se trata de um livro só para crianças. O repertório visual, que conduz

para a formação de uma ou várias narrativas contidas na obra, embora indubitavelmente

fascine os pequenos leitores, alcança todas as idades.

Visualmente, The arrival, (ou A Chegada em sua primeira publicação no Brasil em

2001), lembra o esboço dinâmico de um roteiro para o cinema. De fato, é como assistir

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a um cinema mudo, não apenas pela ausência das palavras e sequência fílmica dada pelo

ilustrador, como também pelas cores em sépia, o traço perceptivelmente feito à mão e o

figurino de época que, sugestivamente, constrói, de imediato, uma atmosfera no

passado. No entanto, o passado construído na narrativa, apesar de acontecer num lugar

de pessoas e seres exóticos, aborda um tema universal da história humana: a imigração.

Shaun Tan consegue ser lúdico, crítico e técnico ao mesmo tempo. Consegue nos

prender na narrativa visual, no texto e no contexto não verbais.

Figura 1- Uma das sequencias do livro de Shaun Tan (2011) quando o protagonista é inspecionado e

registrado como imigrante no novo país.

Transgressões Lúdicas

Redescobrimos, assim, as múltiplas formas de construção de um livro de imagens

enquanto texto não verbal. Isso não significa, entretanto, que os conteúdos apreendidos

do texto verbal não participem do texto visual.

A variedade sígnica que compõe o não verbal mescla todos os códigos, de

modo que o próprio verbal pode compor o não-verbal, mas não tem sobre ele

qualquer força hegemônica e centralizante; ao contrário, a palavra nele se

distribui, porém não o determina. (...)Trata-se de um texto feito de resíduos

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sígnicos, de um lixo de linguagem e seu nome é, de certa forma, impróprio,

porque nele também a palavra surge, porém sem determina-lo. O nome não-

verbal se justifica exatamente porque nele a palavra não apresenta aquela

lógica central que caracteriza o texto verbal. Desvencilhando-se da

centralidade lógica e consequentes linearidade e contiguidade do sentido, o

texto não-verbal tem uma outra lógica, onde o significado não se impõe, mas

pode se distinguir sem hierarquia, numa simultaneidade; logo, não há um

sentido, mas sentidos que não se impõem, mas que pode ser produzidos.

(FERRARA, 2001 p.16)

Esta variedade sígnica no processo de criação da obra ilustrada orbita num campo de

transgressão que também envolve o leitor. A experiência insinuada pela diversidade de

criação e recepção é uma transgressão não se limita a um a contrario senso, quebradura

do tradicional ou original em objeto obsoleto - inédito ou não. Falamos aqui de uma

transgressão da linguagem que não reconhece mais sentido positivo no sagrado. Em

suma, é a transgressão “como gesto relativo ao seu limite”. (FOUCAULT, 2009, p.29)

A transgressão é antes uma qualidade do pensamento criador, transformador do tempo

no tempo. Igualmente, pensar o conceito de transgressão no livro ilustrado é encontrar

com sua natureza contemporânea. O que interessa é a compreensão sobre o livro como

experiência simbólica, o livro como potência poética.

O livro percebido enquanto experiência simbólica vai para além de uma função. Os

livros pensados por um artista comportam-se como lugar de acontecimento, espaço tátil,

caligrama vivo, imaginação ativa.

O livro percebido enquanto texto total, ou seja, em sua totalidade sígnica, permite um

comportamento literário e imagético mais sofisticado. Em busca do sentido da narrativa

o leitor/receptor investiga os acontecimentos impressos em cada página com curiosidade

e entusiasmo ao mesmo tempo em que treina solidão e silêncio, desenvolve percepção e

imaginação. Aprendemos que, talvez, mais importante que conceituar coisas, descrever

acontecimentos, discorrer temas e teorias, seja saber interpretar o texto não explícito.

Não é nossa intenção elaborar uma falsa dicotomia entre a linguagem e construção

visual, visto que, como nos explica Domènech

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Na imagem a condição polissêmica que aparece em segundo lugar na

linguagem apresenta-se ao espectador de imediato,(...) enquanto com a

imagem do polissêmico nos dirigimos ao concreto por um processo de

compreensão de sua estrutura visual. A escrita, em nossa civilização, se

apoia basicamente sobre a transparência de sua materialidade, enquanto

imagem se baseia na necessidade de fazer que essa materialidade seja opaca,

ou seja, que detenha o olhar em vez de deixa-lo passar rumo a outro lugar.

Enquanto aprender a ler significa aprender a apagar o suporte material do

escrito para internalizar e automatizar seus mecanismos simbólicos, aprender

a ver implica tornar visível a materialidade do figurado para construir sobre

ele nova simbologia. (CATALÀ, 2011 p.15)

Contudo, é fundamental que possamos ensinar e aprender a reagir às experiências que o

universo das imagens das formas e texturas proporciona. Que possamos ter em mãos

livros mais diversificados em seu modo de comunicar sentido.

Na verdade essa é uma esfera em que o sistema educacional se move com

lentidão monolítica, persistindo ainda uma ênfase no modo verbal, que exclui

o restante da sensibilidade humana, e pouco ou nada se preocupando com o

caráter esmagadoramente visual da experiência de aprendizagem da criança.

Em muitos casos, os alunos são bombardeados com recursos visuais –

diapositivos, filmes, slides, projeções audiovisuais -, mas trata-se de

apresentações que reforçam sua experiência passiva de consumidores de

televisão. ( DONDIS, 1991 p.17)

Enquanto objeto o livro de imagem ensina, sobretudo, o momento de calar. Calar a

palavra, diante da imagem, o conceito diante do sentido.

Bruno Munari (1907-1998, Milão) foi um pioneiro na arte do que chamou de livro

ilegível e dos pré-livros, No livro Das coisas nascem coisas (MUNARI,1998 p.210) o

designer propõe novas formatações e significâncias sobre a comunicação dos objetos

Procuram-se, então, todos os tipos de papéis possíveis, desde os papéis de

impressão aos de embrulho, dos transparentes aos texturizados, ásperos, lisos,

reciclados, papel velino, parafinado, vegetal, sintético, macio, rígido, flexível,

etc. (...) Se um papel é transparente comunica transparência , se é áspero

comunica aspereza. Um “capitulo” feito com folhas de acetato (usadas por

arquitetos e engenheiros nos projetos) dá uma sensação de neblina; folhear

essas páginas é como entrar na neblina.(...) Em suma, cada papel comunica

sua qualidade, e isso já é uma razão para ser usado como comunicante.

(MUNARI, 1998, p. 213)

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Percebemos a ênfase dada por Munari às sensações, às impressões causadas pelos

materiais de que podem ser constituídos os livros. O suporte antes subjugado ao pano de

fundo do texto verbal é colocado agora como texto principal a ser olhado e

experimentado pelo receptor como um objeto estético.

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Figura 2. O livro ilegível de Bruno Munari, um problema de experimentação das possibilidades de

comunicação visual do material editorial e suas técnicas.(MUNARI 1998,p. 2010)

O livro ilegível é autônomo quanto a sua comunicabilidade, não precisa de texto verbal

para transmitir sua mensagem. Utiliza-se do material do próprio livro, como papéis e o

formato da página, por exemplo, para levar o receptor a percebê-lo. É a composição

lógica do livro que o compõe enquanto ideia. Munari concebeu o livro como um espaço

de contexto sensorial, material rico de sentido estético intertextual em que a escrita

sozinha não é o foco principal, tampouco apenas a visualidade, mas as outras possíveis

sensações táteis e intertextuais que, neste caso, a criança, poderia vir a ter de maneira

livre.

Já os chamados pré-livros, também pensados por Munari, são pequenos livros

projetados especialmente para o manuseio das crianças ainda não iniciadas na vida

escolar.

Esses livrinhos, pequenos para que uma criança de três anos possa segurá-los

facilmente, seriam construídos com materiais diversos, encadernações

diferentes e cores diferentes, naturalmente. Todos teriam o mesmo titulo –

LIVRO -, colocado de modo que seja qual for a posição a posição do livro

nas mãos, este fique direito. Assim, haverá um título na capa e um na

contracapa. (MUNARI, 1998, p. 224)

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Figura 3. Os pré-livros "Os protótipos são colocados à disposição das crianças de algumas escolas pré-

primárias para se observarem as reações"(MUNARI, 1998 p.231)

Bruno Munari, preocupado com o método de sua construção trabalhou com finalidades

muito claras e objetivas em seus no projeto do livro ilegível e dos pré-livros. O que lhe

fez ter lucidez sobre a inferência da literatura sobre a formação do individuo ainda na

infância:

(...) Essas mensagens não devem ser histórias literárias acabadas, como as

fábulas, por isso condiciona muito a criança, de forma repetitiva e não

criativa. Todos sabem que a criança gosta de ouvir a mesma história várias

vezes, e cada vez vai fixando-a na memória, até que, quando adulta, pode

chegar a decorar sua casa de campo com a Branca de Neve e os Sete Anões

em cimento colorido. Assim, destrói-se na criança a possibilidade de ter um

pensamento elástico, pronto a modificar-se segundo a experiência e o

conhecimento. É preciso desde cedo habituar o individuo a pensar, imaginar,

fantasiar, ser criativo. (MUNARI p.225)

O livro apresentado por Munari reage pela tessitura do não verbal e libera o receptor

para novas maneiras de comunicação e narrativas, explorando a multiplicidade

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cognitiva de que somos capazes. Em certo sentido, podemos dizer que a palavra, os

meios sígnicos foram simplificados, mas a comunicação não deixou de ser aperfeiçoada

ou complexa.

.

Figura 4- Crianças em experiência com um dos livros de Munari. "Um tufo macio de pelúcia branca para

tocar e soprar" ( MUNARI 1998, p.222)

Cada livro é planejado para despertar uma função diferente no leitor/receptor que é

livre para ir além dos estímulos oferecidos e assim, nas palavras de Munari, “formar

pessoas com mentalidade mais elástica e menos repetitiva (MUNARI,1998,p.222)”.

A visão, em sentido geral, não está só relacionada com os olhos. Na verdade,

podemos dizer que vemos também por meio do corpo, já que o campo de

visão e as experiências que dele derivam estão conectados à posição do corpo

em relação à realidade que o rodeia, assim como toda a experiência visual

tem que ver com os estímulos que são recebidos do entorno por meio do

corpo em sua totalidade. (CATALÀ, 2011, p. 19)

Refletir e desconstruir estes modos repetitivos de organização da linguagem verbal-

visual significa não só o aprimoramento de leitores, mas principalmente a articulação de

movimentos lúdicos-transgressores no processo de criação do artista, escritor e

designer.

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O livro tradicionalmente concebido é essa fortaleza protegida que guarda suas lacunas.

Passagens estrategicamente construídas por aqueles que dominam não apenas o

conhecimento das portas, mas, sobretudo de suas respectivas chaves. Fendas, passagens

simbólicas construídas para a seguridade e a permanência do poder que transborda da

linguagem, um segredo para o domínio de poucos. Tais fissuras do conhecimento, de

outro modo, são fendas para transgressões lúdicas, portanto frutíferas e germinativas de

novas formas de comunicação.

Na ausência daquela voz que diz a hora de começar, pontuar, virgular ou virar a página,

podemos escolher contemplação, viagem, imaginação. Sem aquela voz, muitas vezes

excessivamente sinalizadora de seus caminhos de tijolo/palavra, percebemo-nos imersos

no espaço da imagem que ora parece não dizer nada, ora transborda muito mais do que

estamos habituados a experimentar. Sem aquela letra que nos carrega e que, por vezes,

não nos dá tempo de ver o detalhe da ilustração, somos impelidos num compromisso

maior para com a observação da imagem sem a culpa do devaneio.

Culpa de pensar melhor, sentir melhor, olhar melhor, questionar melhor. O que

estamos lendo? O que estamos vendo? A textura do papel escolhido para aquela edição

tem inferência com seu texto? E seu formato? Sua textura? Percebemos o potencial do

livro apenas como superfície/suporte de impressões ou também enquanto espaço

significante?

Estes são questionamentos que ajudam a avaliar nossa relação diante do Lvro Ilustrado

e seus processos de criação e atuação em Artes.

Assim, a apreensão do Livro Ilustrado não é um exercício simples de linguagem. Como

mencionado, não fomos educados a pensar a narrativa, no livro, a partir das imagens. O

ritmo da leitura nos foi tradicionalmente doutrinado como sendo uma função exclusiva

do texto verbal. Logo, diante da imensa biblioteca da literatura ilustrada, é natural que

nos sintamos inseguros, sós, perdidos no universo da imagem, do sensorial, da

opacidade do estético. Porém, aos poucos, descobrimos, sempre aos poucos, que

também é parte do processo de criação perder-se nas cores, nos traços, nas formas. Um

modelo sem mandos que desvela a narrativa aberta, e práticas de transgressões, lúdicas.

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Referencias

ABRAMOVICH, F. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,

1997.

ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro: princípios da técnica de editoração.

Prefácio de Antonio Houaiss. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL,

1986.

BAHIA, Maria Carmen Batista. A construção visual do livro infantil. Campinas São

Paulo. (Dissertação de Mestrado) Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes

CATALÀ, Domènech Josep M.. A forma do real – Introdução aos estudos visuais.

São Paulo: Summus, 2011.

DONDIS, Donis . A Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Leitura sem palavras. São Paulo: Ática, 2001. 4 ed.

LINDEN, S.V. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MORAES, Odilon. Entrevista concedida a Marina Vidigal em Abril de 2013.

Disponível em <"http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI76954-

17326,00.html > Acesso em 29 de julho de 2014.

MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas / tradução José Manuel Vasconcelos . São

Paulo: Martins Fontes, 1998.

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TAN, Shaun. A Chegada. São Paulo : Edições SM, 2011.