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TRANSIÇÃO POLÍTICA E DEMOCRATIZAÇÃO NA GUATEMALA: OS ALCANCES DA JUSTIÇA TRANSICIONAL Ana Carolina Reginatto Mestranda PPGHIS/UFRJ [email protected] Resumo A partir de meados da década de 1980 a Guatemala vivenciou intensos debates e reivindicações pela ampliação democrática e respeito aos direitos humanos no país. De uma transição política “desde cima” iniciada pelos militares, a uma intensa mobilização e participação dos movimentos sociais nas negociações de paz entre o governo e as forças guerrilheiras, uma questão tornou-se primordial: como superar o legado autoritário e seus enclaves para a construção de um novo regime democrático? A partir desse ponto pretendo analisar os mecanismos adotados para uma justiça transicional por essa sociedade, as disputas em torno desse passado recente e como a cultura política do país e a correlação de forças vigentes influenciaram esse processo. Palavras-chave: Guatemala, democratização, justiça transicional Resumen A partir de mediados de 1980 a Guatemala experimentó intensos debates y demandas de ampliación de los derechos democráticos y humanos en el país. A partir de una transición política "desde arriba" iniciada por los militares, la intensa movilización de los movimientos sociales y la participación en las negociaciones de paz entre el gobierno y la guerrilla, una pregunta se convierte en fundamental: ¿Cómo superar el legado autoritario y sus enclaves en la construcción de un nuevo régimen democrático? A partir de ese momento tengo la intención de analizar los mecanismos adoptados por la justicia de transición en esta sociedad, las disputas sobre el pasado reciente y la cultura política del país y la correlación de fuerzas que prevalecen en este proceso. Palabras clave: Guatemala, democratización, justicia de transición

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TRANSIÇÃO POLÍTICA E DEMOCRATIZAÇÃO NA GUATEMALA: OS

ALCANCES DA JUSTIÇA TRANSICIONAL

Ana Carolina Reginatto Mestranda PPGHIS/UFRJ

[email protected]

Resumo

A partir de meados da década de 1980 a Guatemala vivenciou intensos debates e reivindicações pela ampliação democrática e respeito aos direitos humanos no país. De uma transição política “desde cima” iniciada pelos militares, a uma intensa mobilização e participação dos movimentos sociais nas negociações de paz entre o governo e as forças guerrilheiras, uma questão tornou-se primordial: como superar o legado autoritário e seus enclaves para a construção de um novo regime democrático? A partir desse ponto pretendo analisar os mecanismos adotados para uma justiça transicional por essa sociedade, as disputas em torno desse passado recente e como a cultura política do país e a correlação de forças vigentes influenciaram esse processo. Palavras-chave: Guatemala, democratização, justiça transicional

Resumen

A partir de mediados de 1980 a Guatemala experimentó intensos debates y demandas de ampliación de los derechos democráticos y humanos en el país. A partir de una transición política "desde arriba" iniciada por los militares, la intensa movilización de los movimientos sociales y la participación en las negociaciones de paz entre el gobierno y la guerrilla, una pregunta se convierte en fundamental: ¿Cómo superar el legado autoritario y sus enclaves en la construcción de un nuevo régimen democrático? A partir de ese momento tengo la intención de analizar los mecanismos adoptados por la justicia de transición en esta sociedad, las disputas sobre el pasado reciente y la cultura política del país y la correlación de fuerzas que prevalecen en este proceso. Palabras clave: Guatemala, democratización, justicia de transición

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Os questionamentos políticos dirigidos ao passado autoritário e seus arbítrios foram

uma característica marcante das sociedades contemporâneas, principalmente, após o fim da

Segunda Guerra Mundial e da queda do regime nazista. Esse processo se intensificou a partir

da década de 1970, quando inúmeras sociedades, em regiões diversas, vivenciaram períodos

de transição política onde o passado recente e os legados da violência e suas consequências

foram colocados em debate no retorno à democracia. Podemos encontrar exemplos de tal

postura na Europa Ocidental com o fim dos governos franquista na Espanha e de Salazar em

Portugal, na América Latina com a queda dos regimes militares, na África do Sul com o

término do apartheid e no Leste Europeu com o fim das repúblicas soviéticas.

Em todos esses casos, governos e sociedade articularam formas de atuação dentro

desse cenário de transição. Segundo sua cultura política e os atores presentes no processo,

cada país esteve envolvido com questões relativas aos instrumentos políticos e jurídicos a

serem adotados, diante desse passado de violações. As escolhas feitas acabaram influenciando

os rumos desses processos, na construção e nos limites dessas democracias. Nesse sentido, o

conceito de justiça transicional é uma ferramenta importante para a análise da forma como as

sociedades lidam com os legados recentes de violações sistemáticas aos direitos humanos em

períodos de transição política, uma vez que, de modo geral, seus mecanismos são

estabelecidos em resposta a essas violações de forma a reparar às vítimas e promover a

reestruturação democrática, frente à herança autoritária.

A noção de uma justiça de transição ganhou fôlego e amplitude a partir da elaboração

de medidas legais vinculantes, criadas por organismos internacionais como o Tribunal

Europeu dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Penal

Internacional. Instituições que nos últimos vinte anos estabeleceram normas e obrigações

claras aos Estados em relação ao respeito aos direitos humanos e formas para se enfrentar suas

violações, proibindo anistias amplas em caso de crimes internacionais.

Entretanto, a justiça transicional não se caracteriza como uma forma especial de

justiça, e sim, por um conjunto de práticas e dispositivos jurídicos estabelecidos com o intuito

de dar conta à reparação dos direitos das vítimas e esclarecer os crimes cometidos. De acordo

com Paul Van Zyl (2009, p. 32-55), sua aplicação pressupõe o processo dos responsáveis

pelas violações, a revelação pública da verdade sobre os crimes cometidos, o fornecimento de

reparações às vítimas, as reformas das instituições do Estado e a promoção da reconciliação.

Cada país deve, portanto, percorrer um caminho próprio ao lidar com as questões

referentes a esse passado de arbítrios. Desse modo, como afirma Glenda Mezarobba (2008, p.

9), os avanços na superação da herança autoritária são delimitados pelo grau de violações,

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pelas especificidades do processo de transição política, e também, pelo escopo institucional

vigente e pela amplitude do papel desempenhado pelos movimentos em defesa dos direitos

humanos e por organizações internacionais.

O processo de transição política e de pacificação na Guatemala nos revelam,

justamente, os debates em torno dos legados desse passado autoritário e a formação de um

novo pacto político. Suas especificidades demonstram uma sociedade que procurou se

mobilizar, de diversas maneiras, para reivindicar o fim do arbítrio por parte de um Estado

oligárquico, autoritário e militarizado historicamente. Conquistas significativas foram

alcançadas a partir das oportunidades disponíveis de participação no processo, mas por outro

lado, muitos desses avanços foram delimitados por forças políticas conservadoras resistentes a

qualquer tipo de mudança mais ampla. Resistências essas que estavam profundamente ligadas

à prática política do país e às correlações de forças vigentes à época.

Desde a queda do governo de Jacobo Arbenz, em 1954, e o fim de 10 anos de uma

experiência política democrática jamais vivenciada pelo país, os governos que se sucederam

foram marcados pela intervenção militar (direta ou indireta) e por períodos de revogação dos

direitos constitucionais e das liberdades civis. A partir da década de 1960, com a adesão de

setores da esquerda à luta armada, a radicalização política intensificou-se com a instituição de

uma política contra-insurgente e de todo um aparato de inteligência e repressão, por parte do

Estado, em nome da defesa nacional.

Em 36 anos de conflito armado, estima-se que 200 mil pessoas foram mortas ou

desaparecidas, em sua maioria indígenas, o que levou a comissão da verdade do país a afirmar

que o Exército guatemalteco entre 1981-1983 praticou “atos de genocídio” contra o povo

maia. A violência institucionalizada e as consequências do conflito também produziram

deslocamentos em massa interna e externamente. Aproximadamente 150 mil guatemaltecos

fugiram para o México e cerca de 1/3 dessas pessoas se dirigiram para zonas de colonização e

acampamentos nas regiões próximas a fronteira e, posteriormente, foram considerados como

refugiados pelas Nações Unidas (CEH, 1999). Dar conta de esclarecer as violações cometidas,

promover o retorno de refugiados e reestruturar o Estado guatemalteco pondo fim ao conflito

foram os grandes desafios impostos ao processo de paz entre o governo e a guerrilha.

Transição política e uma sociedade em busca da reconciliação

O início dos anos 1980 foi marcado por grandes tensões políticas no país. O governo

do general Romeo Lucas García apesar de manter em sua base alguns setores reformistas,

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como seu próprio vice-presidente Francisco Villagrán Kramer que acreditava na possibilidade

de um governo que unisse os interesses e as responsabilidades entre civis e militares,

representava um grupo mais conservador do Exército que desde o início da década de 1970,

aliado a diferentes partidos políticos em diversos momentos, controlava o processo eleitoral

elegendo sempre o militar responsável pelo Ministério da Defesa do governo anterior.

Desde o início de seu mandato, em julho de 1978, o governo luquista jamais propôs

qualquer tipo de diálogo, nem mesmo com setores reformistas. A política contra-insurgente

era clara: massacres e operações militares que impedissem a escalada dos grupos

revolucionários no interior do país. De fato, apoiados por redes urbanas e instalados,

principalmente, na região central da Guatemala (conhecida como Altiplano indígena), a

ofensiva insurgente conseguiu assassinar muitos representantes e autoridades militares,

alcaides de regiões importantes como El Quiché, Sololá e Chimaltenango; e ainda, controlar

setores estratégicos da rodovia pan-americana, a mais importante do país.

Entretanto, como afirma Gilles Bataillon (2008, p. 275), o projeto de alguns grupos

guerrilheiros de formar as bases para um futuro “exército popular”, construído desde o

interior do país, carecia de articulação política, poderio estratégico-militar e de apoio

internacional. A oposição reformista ao governo de Lucas García descartava qualquer apoio à

via armada. Os diferentes grupos guerrilheiros careciam de uma coordenação comum que

conferisse articulação e eficiência a suas ofensivas militares. Além disso, diferentemente de

seus vizinhos revolucionários nicaraguenses e salvadorenhos, os insurgentes guatemaltecos

não possuíam apoio logístico ou financeiro internacional. Sob essas condições, “mal armados

y numéricamente inferiores, los guerrilleros no lograron defender los territorios que habían

pretendido “libertar”.” (BATAILLON, 2008, p. 276).

A campanha contra-insurgente de setembro e outubro de 1981 procurou reintegrar os

pontos da rodovia pan-americana ao controle militar e, posteriormente, todas as aldeias que se

encontravam sob ocupação guerrilheira. A estratégia era destruir as bases de apoio

campesinas dos insurgentes. Durante as incursões militares comunidades inteiras foram

massacradas ou obrigadas a se militarizar, através da formação das Patrulhas de Autodefesa

Civil (PAC). A fuga para as montanhas do país ou para o México se intensificou nesse

momento.

Em contrapartida, as acusações sobre a devastação dos massacres e sua publicidade na

imprensa e perante organismos internacionais, também se multiplicaram. A reprovação das

ofensivas militares internacionalmente pressionava, cada vez mais, os militares a

estabelecerem algum tipo de diálogo com a insurgência para pôr fim ao conflito no país. Além

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disso, o contexto regional com os desdobramentos revolucionários da queda de Somoza na

Nicarágua e a deposição do presidente salvadorenho, ainda em 1979, fazia pairar sobre os

militares guatemaltecos o fantasma de que se as guerrilhas conseguissem estabelecer ligações

mais amplas e diretas com outros setores civis, assim como nos países vizinhos, acabariam

por receber apoio internacional de governos europeus e latino-americanos, dispostos a apoiar

um processo de negociação sob a tutela da ONU, o que poderia servir de justificativa para

uma reforma ampla do Exército, de sua influência e poder político. 1

As incertezas do próprio futuro institucional das forças armadas em meio às pressões

para o fim do conflito e implementação de um diálogo democrático, aliadas ao

descontentamento de diversos setores militares com a participação recorrente da instituição

em fraudes eleitorais e ao próprio desgaste social e político das campanhas contra-insurgentes

junto a setores da elite econômica, tornavam os custos e consequências do conflito ainda mais

preocupantes para os militares.

O golpe de março de 1982 foi uma resposta a esse cenário. A derrubada de Lucas

García representou, de fato, uma reviravolta no discurso e nas estratégias políticas dos

militares que agora tomavam o poder, porém, as práticas contra-insurgentes permaneceram

espalhando terror entre aqueles que ousavam desafiar a autoridade e hierarquia do Exército e,

principalmente, entre as comunidades indígenas.

O Plano Nacional de Segurança e Desenvolvimento, promulgado em maio, previa

justamente um reordenamento das estratégias do Exército no intuito de fortalecer a presença

militar e do Estado junto aos povos maia. Nesse sentido, a estabilidade nacional seria

alcançada não só com a derrota das forças insurgentes, mas também, com investimentos que

melhorassem as condições de vida dessas comunidades como uma forma de controle e

esvaziamento do discurso de igualdade dos guerrilheiros. Como afirma Gilles Bataillon, os

militares nesse momento:

Aunque estiman necesario sistematizar la contraofensiva militar contra las guerrillas, y reforzar el potencial combativo del ejército regular, también piensan que esas medidas militares deben acompañarse de programas de mejoramiento de las condiciones de vida de los más desfavorecidos, de reactivación de la producción y de mayor igualdad en el acceso a las riquezas. “Recurrir únicamente a la fuerza bruta”, dicen, “no genera más que resentimiento en la población” (2008, p. 283).

1 O livro do general Héctor Gramajo apresenta um panorama importante sobre as questões político-militares nesse momento. GRAMAJO, Héctor A. De la guerra a la guerra, la difícil transición política en Guatemala. Guatemala: Fondo de Cultura Editorial, 1995.

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Essa mudança de perspectiva em relação às comunidades indígenas não significou

uma diminuição das violações, pelo contrário, os massacres e as práticas de “terra arrasada”

se intensificaram, assim como, a obrigatoriedade das Patrulhas de Autodefesa Civil.

Sem dúvida, o golpe e a criação do Plano Nacional foram marcos político e

institucional de uma reorganização militar que também visava a manutenção da relevância do

Exército como instituição capaz de promover uma transição segura, e mais ainda, uma

abertura política gradual onde o novo governo civil compactuasse com as medidas contra-

insurgentes. De fato, com o respaldo das elites econômicas e dos partidos políticos legalizados

à época, essa estratégia consagrou-se vitoriosa. Forjando um Estado constitucionalista e de

eleições livres, onde o discurso democrático era ressignificado por meio do caráter

extremamente ambíguo da nova constituição. Aprovada em 31 de maio de 1985, ao mesmo

tempo, em que determinava a criação de estruturas mais democráticas, como a Procuradoria

de Direitos Humanos, o Tribunal Supremo Eleitoral, a Corte Suprema de Justiça e a Corte de

Constitucionalidade, por outro lado, legalizava as medidas contra-insurgentes, sob a égide da

segurança nacional.

Como afirma Jennifer Schirmer (2006), a partir de 1982 os militares guatemaltecos

que tomaram o poder, procuraram reformular a filosofia de atuação de Exército, colocando

em prática um projeto político que se iniciou com massacres e terminou com a realização de

eleições civis presidenciais em 1985. Diante do caráter ambíguo da nova constituição, um

Estado constitucionalista fora forjado consolidando e legitimando a estrutura militar existente,

da mesma forma com que o discurso democrático e dos direitos humanos era incorporado e

ressignificado.

A eleição de Vinicio Cerezo pela Democracia Cristã Guatemalteca (DCG), em

dezembro de 1985, foi marcada pela abstenção dos partidos em apresentar propostas concretas

sobre qualquer tipo de reforma econômica ou debater a relação entre as Forças Armadas e o

novo regime civil. De imediato, a eleição de um civil depois de quase 20 anos de governos

militares consecutivos não trouxe mudanças significativas, com a continuação do projeto

militar de liberalização controlada. Entretanto, a criação de estruturas mais democráticas e a

própria instituição de um regime civil, permitiram aos grupos de direitos humanos

legitimarem suas reivindicações dentro do espaço político, mesmo diante desse cenário de

adversidades.

Diante da profunda desarticulação dos movimentos sociais durante os governos

militares do início dos anos 1980, as ações individuais de busca por desaparecidos, respeito ao

devido processo e fim das práticas de tortura, encontraram na defesa dos direitos humanos,

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um marco de atuação coletiva imprescindível na luta pelo fim das violações como política de

Estado. Ainda que a nova constituição pactuasse com o projeto político-militar de transição

controlada, a criação de instituições mais democráticas como a Procuradoria dos Direitos

Humanos e a Corte Suprema de Justiça, permitiu a abertura de novos espaços e instrumentos

legais de reivindicação.

Fundado em 1984 por viúvas e familiares de desaparecidos, o Grupo de Apoio Mútuo

(GAM), é um exemplo desse contexto e paradigma de atuação. Foi a primeira organização a

traçar uma estratégia de trabalho junto com a Procuradoria dos Direitos Humanos e a

promover alianças com organismos internacionais, como a Anístia Internacional e a Human

Rights Watch. Internacionalizando suas demandas a fim de reivindicar a condenação

internacional das atividades contra-insurgentes do governo e do Exército guatemaltecos,

dando início a uma rede transnacional de ativismo no país. Nesse contexto, outras

organizações foram surgindo, como a Coordenadoria Nacional de Viúvas da Guatemala e o

Conselho Nacional de Refugiados .

É importante perceber que o discurso em defesa dos direitos humanos foi utilizado por

essas organizações como uma forma de compreender e investigar o passado, revelando os

fatos ocorridos individual e coletivamente, na tentativa de impedir a permanência da política

violenta e repressiva por parte do Estado.

Al proporcionar un lenguaje legítimo por medio del cual la gente podia articular sufrimientos pasados y presentes, el marco de los derechos humanos se empleó para buscar justicia u protegerla, como una manera formal de comprender el pasado y dirigirse al presente (BRETT, 2006, p. 89).

Dessa forma, a evolução da noção de direitos humanos presente nas reivindicações

sociais, estava profundamente ligada ao sentido desse passado recente e a necessidade de

superação de suas práticas e valores no presente, para a construção de um futuro realmente

democrático para o país. Nesse sentido, como ressalta o autor, se a priori as reivindicações se

centraram principalmente na defesa do direito à vida e no fim imediato das violações, com o

tempo, as demandas baseadas em direitos coletivos específicos dos povos indígenas e ligadas

a questões de gênero, começaram a ganhar um espaço significativo no debate público. Essa

mudança estava profundamente ligada aos antecedentes históricos de racismo, discriminação

e a cultura machista que modelaram as práticas autoritárias no país.

As obrigações internacionais assumidas pelo novo governo civil, também serviram de

base para a atuação dessas organizações e legitimavam suas reivindicações. O “Acordo de

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Esquipulas II” sobre o procedimento para estabelecer a paz na América Central 2, por

exemplo, assinado em 1987 por Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica, incluía o

país em uma iniciativa regional de promoção da paz através da ampliação democrática e do

respeito aos direitos humanos. Prevendo a abertura de espaços políticos públicos de diálogo

entre os grupos opositores, com ampla participação popular, e a criação de uma Comissão

Nacional de Reconciliação (CNR).

A Comissão foi um importante espaço de diálogo entre diversas organizações civis e

trabalhistas, onde temas como democratização, direitos humanos e vítimas da violência,

foram discutidos. Além disso, durante todo ano de 1990, a CNR promoveu reuniões entre

representantes guerrilheiros com integrantes de partidos políticos, setores empresariais

organizados como o Comitê Coordenador de Associações Agrícolas, Comerciais, Industriais e

Financeiras (CACIF), setores religiosos e populares (incluindo intelectuais e pequenos

empresários). Esses encontros foram realizados, respectivamente, na Espanha, Canadá,

Equador e México; onde as partes se comprometiam a buscar soluções compartilhadas e

políticas para o fim do conflito e o fortalecimento democrático. Essa iniciativa procurava

articular e pressionar o governo para que negociações diretas fossem definitivamente iniciadas

e o processo de pacificação concluído.

Os caminhos da justiça transicional na Guatemala

A fase de negociações diretas entre o governo e representantes da guerrilha, reunidos

através da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) 3, foi implementada

somente em 1991. Os Acordos de Paz, como ficaram conhecidos os compromissos firmados,

foram mediados pela ONU e seus termos abordaram elementos importantes para a

reestruturação do Estado guatemalteco à democracia, como a criação de uma comissão da

verdade, reassentamento das populações forçadas a se deslocar, reconhecimento da identidade

e dos diretos indígenas, desmantelamento do aparato de repressão, lei de anistia e reformas

constitucionais. Temas caros não só as especificidades guatemaltecas, mas também, ao

processo que envolve a adoção de mecanismos para uma justiça de transição.

2 Todos os Acordos aqui mencionados encontram-se disponíveis em: www.guatemalaun.org/paz.cfm 3 Organizada com fins de coordenação política e militar, unindo os diversos grupos guerrilheiros, ainda em 1982, transformou-se na instituição política responsável pelas negociações com o governo durante todo o processo de paz.

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A assinatura dos acordos foi marcada por diversos momentos de instabilidade

política, como o autogolpe promovido pelo então presidente Jorge Serrano Elías em 1993 4 e

por outras tentativas frustradas até o fim do processo de paz em 1996. As negociações

também foram acompanhadas por momentos de maior participação social e por outros de

menor abertura, fatos que marcaram avanços e retrocessos na ampliação democrática para

além das instituições políticas.

Talvez a principal conquista para as reivindicações de ampliação da participação

política social no processo, tenha sido a criação da Assembleia da Sociedade Civil (ASC),

pelo “Acordo Marco para a Retomada do Processo de Negociação”, em janeiro de 1994.

Formada logo em março do mesmo ano, a ASC contou com a participação de grupos

acadêmicos, religiosos, sindicais, populares, organizações de direitos humanos, partidos

políticos, cooperativistas, médios e pequenos empresários, grupos feministas e indígenas. Sua

função era formular proposições, em consenso, sobre os cinco temas mais relevantes da

negociação: o reassentamento das populações forçadas a se deslocar por causa do conflito,

reforma socioeconômica e situação agrária, papel da sociedade civil e do Exército em uma

sociedade democrática, identidade e direitos dos povos indígenas e reforma constitucional e

do sistema eleitoral.

Cada um desses onze grupos criou setores representativos dentro da Assembleia para

discutir suas plataformas políticas e sociais, escolhendo dois delegados para atuarem nas

cinco comissões temáticas. Os termos aprovados pelas comissões eram encaminhados à

plenária da Assembleia onde todos os delegados, redigiam um documento de consenso. Esses

documentos eram apresentados às partes e a ONU, para a discussão. 5 Apesar de seu caráter

consultivo e da não obrigação, pelas partes, em atender suas recomendações, a Assembleia

representou uma instituição de mobilização e participação da sociedade civil sem precedentes

nos processos regionais de democratização. Mesmo sem fazer parte dos temas sobre os quais

a Assembleia poderia apresentar propostas, o estabelecimento de uma comissão da verdade

ocupou um enorme espaço na agenda dos grupos de direitos humanos.

No inicio dos anos 1990, quase todas essas organizações e outros setores da sociedade

civil reivindicavam abertamente a instauração de uma comissão da verdade ampla, que

tratasse de toda forma de violação e suas vítimas. Propunha-se uma comissão com plenos 4 Com a instabilidade e a completa falta de legitimidade de seu mandato, o presidente orquestrou um autogolpe em 25 de maio de 1993, fechando o Congresso e suspendendo a Constituição. Erro político gravíssimo, diante do grau de mobilização em que se encontrava a sociedade guatemalteca, a manobra de Serrano Elías resultou num amplo movimento de oposição com apoio da comunidade internacional, e foi revertido em junho do mesmo ano. 5 O funcionamento da Assembleia é descrito em uma primeira compilação de seus documentos de consenso, publicada por: FUNDAPAZD. Asamblea Civil: Propuestas para la paz. Guatemala: 1995.

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poderes para apontar os responsáveis pelas violações que, então, se tornariam passíveis de

julgamento e punição. 6

A criação de uma comissão desse tipo não era um tema caro às negociações. A

possibilidade de sua implementação não estava presente em nenhum dos temas programáticos

do cronograma de debates entre as partes. Enquanto o Exército se opunha radicalmente a sua

criação, a URNG, tão pouco, a tornara uma de suas bandeiras principais. Os representantes

militares sugeriam que se a criação de uma comissão fosse realmente aceita, o informe

resultado de sua investigação deveria se tornar público, como um documento histórico,

transcorridos 20 anos do processo de paz e sem caráter judicial ou individualização de

responsabilidades.

O Acordo de Oslo, assinado finalmente em junho de 1994, estabeleceu a criação da

Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH) e, de fato, a posição do Exército acabou

sendo parcialmente confirmada. Sobre o seu funcionamento ficou estabelecido que “los

trabajos, recomendaciones e informe de la Comisión no individualizarán responsabilidades,

ni tendrán propósitos o efectos judiciales.” 7 Entretanto, seriam necessários outros três anos

para que, em 31 de julho de 1997, a Comissão fosse colocada em prática.

Segundo as determinações do Acordo de Oslo de 1994, a primeira finalidade da

Comissão era “esclarecer con toda objetividad, equidad e imparcialidad las violaciones a los

derechos humanos y los hechos de violencia que han causado sufrimientos a la población

guatemalteca, vinculados con el enfrentamiento armado.” Nesse sentido, ficava claro que se

investigariam os atos atribuídos tanto ao Estado como a insurgência, e que era preciso

estabelecer uma relação entre as violações cometidas com o conflito armado interno.

A necessidade de que o objeto de investigação fosse vinculado ao conflito, abordava

uma questão política sensível sobre suas origens históricas. Fazendo uso da ausência de uma

data fixa no Acordo para o período de sua investigação, a CEH optou por uma interpretação

pragmática do termo conflito armado, como uma “lucha entre grupos con objetivos políticos

opuestos” (SIMON, 2002, P. 158). Desse modo, o surgimento do primeiro movimento e

frente militar insurgente, no final de 1962, foi considerado o marco inaugural do conflito,

encerrado com a assinatura do “Acordo de Paz Firme e Duradoura”, em dezembro de 1996.

Ou seja, quase 35 anos para se investigar. Além disso, essa escolha acabava por corroborar

6 Para um breve histórico sobre assunto ver: GUTIÉRREZ, Edgar. “La disputa sobre el pasado”. In: Nueva Sociedad, n° 161, 1999. 7 Acordo sobre estabelecimento da Comissão para o Esclarecimento Histórico das Violações dos Direitos Humanos e atos de Violência que tenham causado sofrimentos a população guatemalteca

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como um discurso mais conservador de que a radicalização política do país começou a partir

da formação das frentes armadas de esquerda, interpretação um tanto maniqueísta.

A CEH priorizou em suas investigações as seguintes violações aos direitos humanos e

atos de violência: Execução extrajudicial; civil morto ou ferido em hostilidades entre as partes

beligerantes, por ataque indiscriminado, por utilização de minas e por migração forçada;

tortura, tratos cruéis, inumanos ou degradantes; violação sexual; desaparecimentos e

sequestro. Seu informe foi divulgado no dia 25 de fevereiro de 1999, com o título Guatemala,

memoria del silencio. Durante quase um ano e meio, foram coletados 7.338 depoimentos com

relatos de mais de 7.500 casos de violação aos direitos humanos, totalizando 42.275 vítimas

apresentadas de forma individual ou coletivamente pelos testemunhos (CEH, 1999, v. I). As

forças de segurança do Estado são responsabilizadas por 93% das violações registradas. Já as

organizações guerrilheiras são citadas em 3% dos relatos de violência. Outros 4% foram

atribuídos a outros grupos armados ou pessoas sem identificação (CEH, 1999, v. 5). A

responsabilização dos fatos ocorridos durante o conflito armado é dirigida a alta hierarquia do

Exército e aos sucessivos governos do país, assim como, aos comandos dos grupos

insurgentes. Além disso, a CEH conclui em relação à tortura, desaparecimentos forçados e

execuções arbitrárias atribuídas ao Estado, que as mesmas atingiram um caráter sistemático

durante alguns períodos do conflito.

Sobre as raízes históricas do enfrentamento armado, a Comissão afirma que os

fenômenos simultâneos de injustiça estrutural, fechamento dos espaços políticos, o racismo e

a ampliação de uma institucionalidade excludente e antidemocrática determinaram o início e o

desenvolvimento das hostilidades internas, dentro de um contexto mais amplo marcado pela

tradição política autoritária do país e suas práticas. A partir dessas conclusões a Comissão

formulou algumas recomendações centrais para a preservação da memória das vítimas,

promoção de uma política de reparação, observância dos direitos humanos através da

construção de uma cultura de respeito mútuo e fortalecimento do processo democrático.

Sem dúvida, o estabelecimento de uma comissão da verdade é um passo importante,

não só para o esclarecimento das violações aos direitos humanos que não foram sequer

passíveis de investigação à época, mas também, no desenvolvimento de um marco explicativo

sobre as origens e causas da violência sistemática e institucional, que é de fundamental

importância para a produção de sentido sobre esse passado traumático e para o entendimento

dos processos políticos e históricos vivenciados, etapas imprescindíveis para a reconciliação.

Por outro lado, o trabalho e o discurso produzidos pelas comissões da verdade também

produzem acerca não só das vítimas das violações, mas também do processo histórico

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vivenciado pelo país. No caso da Comissão para o Esclarecimento Histórico, tal fato fica

evidente no volume do Informe sobre as causas e origens do enfrentamento armado. Apesar

de estipular como período inicial de investigação o surgimento do primeiro movimento

guerrilheiro no país, em 1962, a CEH procurou apresentar os antecedentes históricos do

conflito e, nesse sentido, acabou formulando certas interpretações acerca desse passado. Para

além das características históricas excludentes e autoritárias do Estado e da sociedade

guatemalteca, os anos democráticos dos governos de Juan José Arévalo e Jacobo Arbenz

Guzmán (1944-1954), foram recuperados como um curto período de reformas e avanços

sociais, interrompidos drasticamente por uma intervenção militar orquestrada pela CIA e com

apoio das elites econômicas e políticas do país.

A maneira como as reformas e os governos de Arévalo e Arbenz são abordados pelo

Informe, vão de encontro a interpretações mais conservadoras sobre o tema que ainda

permanecia como um ponto de disputa sobre esse passado. Tanto o discurso de oposição ao

governo de Arbenz vigente à época, quanto interpretações mais recentes encaram as reformas

empreendidas durante o período como influenciadas pela doutrina comunista, o que

legitimaria a intervenção militar de 1954 e toda a influência do Exército na política

guatemalteca até a transição. Para a Comissão, entretanto, os governos entre 1944-1954 foram

uma ruptura com a contínua tradição autoritária do país, mas que acabaram culminando com o

retorno de suas práticas, através do fechamento dos canais de participação política, com a

queda de Jacobo Arbenz. Porém, seus efeitos e as esperanças despertadas influenciariam as

gerações seguintes.

A criação da Comissão para o Esclarecimento Histórico, na Guatemala, apesar das

críticas recebidas acerca de suas limitações, teve um impacto positivo sobre as organizações

da sociedade civil e seus representantes. Após a divulgação do Informe, diversas

organizações, procuraram sensibilizar autoridades e a sociedade em geral sobre a importância

do cumprimento das recomendações da Comissão e a reivindicar a adoção de políticas de

reparação às vítimas. Rigoberta Menchú, importante ativista indígena, vencedora do Prêmio

Nobel da Paz, afirmava que “trabajar porque se cumplan estas recomendaciones ocupará

mis seguientes años ”(GUTIÉRREZ, 1999, p. 14). A Comissão, entretanto, não partiu de uma

iniciativa do governo, e sim, de uma decisão em consenso das partes durante as negociações

de paz. Aliado a isso, o não reconhecimento público do Estado dos danos causados teve uma

dimensão simbólica e política muito forte, nesse momento, o que debilitou a construção

efetiva de uma agenda política mais democrática para o país, a partir da divulgação de seu

informe.

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Dois pontos chaves para o entendimento das especificidades do caso guatemalteco,

dizem respeito aos conflitos por terra e ao racismo contra a população indígena. Essas duas

questões estão diretamente relacionadas às reivindicações sociais para a superação das

práticas repressivas e do caráter historicamente excludente do Estado. Nesse sentido, como

principais vítimas da violência sistemática e das consequências do arbítrio do Estado, as

políticas de reparação deveriam ser dirigidas, fundamentalmente, aos povos maias. Entretanto,

apesar dessas questões terem feito parte de acordos específicos entre as partes, os limites

burocráticos, políticos e econômicos impostos as negociações limitaram os alcances de suas

medidas.

O “Acordo para o Reassentamento das Populações Deslocadas pelo Conflito

Armado”, firmado em junho de 1994, por exemplo, apesar de tentar dar conta das

necessidades imediatas dos refugiados a retornarem, não aprofundou questões importantes

levantadas pela Assembleia da Sociedade Civil, como a garantia do acesso à terra. O

compromisso de garantir segurança aos refugiados e mesmo aos que se viram obrigados a se

deslocar internamente, abandonando suas terras, esbarrava na fragilidade das leis e registros

de terras na Guatemala. A não (re)distribuição de terras, por parte do Estado, deixava à mercê

desse sistema frágil a resolução dos conflitos com o retorno de seus reais proprietários depois

de décadas de conflito.

Por outro lado, o “Acordo sobre a Identidade e os Direitos dos Povos Indígenas”,

assinado em 31 de março de 1995, traduziu-se como um dos mais importantes para a

participação civil. Os termos aprovados não divergiram muito da proposta da Assembleia e

foram recebidos como uma importante conquista. As partes reconheciam a discriminação,

exploração e injustiças sociais e econômicas a que os povos indígenas foram submetidos

historicamente. O governo se comprometia a fomentar o respeito à cultura indígena, seus

idiomas, espiritualidade e cosmovisão, através de mudanças legislativas e judiciais que

promovessem o desenvolvimento eficaz da defesa de seus direitos, reconhecendo o caráter

multiétnico, pluricultural e multilíngue do Estado guatemalteco.

O reconhecimento da identidade e dos direitos dos povos indígenas foi, sem dúvida,

um conquista importante, porém, a dimensão da reparação aos principais atingidos pela

violência sistemática do Estado, foi muito superficial, diante da falta de garantias de acesso à

terra e de uma política efetiva de ressarcimento às vítimas. Somente em 2003, durante o

governo de Alfonso Portillo Cabrera, é que foi instituído o Programa Nacional de

Ressarcimento.

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Em relação à reestruturação do Estado guatemalteco ao regime democrático, os

principais pontos abordados pelos acordos versavam sobre o desmantelamento do aparato de

repressão, fortalecimento da sociedade civil e redefinição da função e responsabilidades do

Exército. Na Guatemala, a doutrina de Segurança Nacional criou diversas estruturas de

inteligência repressiva, permeou outros corpos de segurança tradicionais, como a Polícia

Nacional, e militarizou a sociedade. Durantes os anos de conflito, a colaboração entre as

forças policiais e a inteligência militar atingiram um status institucional, com a criação de

uma rede de informações sob a direção do Estado Maior Presidencial e do Ministério da

Defesa.

A reformulação do setor de segurança e o desmantelamento do aparato repressivo já

haviam sido abordados desde o “Acordo Global sobre Direitos Humanos”, assinado em março

de 1994, onde as partes assumiam o compromisso de não que não existiriam corpos de

segurança ilegais nem aparatos clandestinos, e o governo regularia o porte de armas.

Entretanto, essas questões foram abordadas de forma mais específica no “Acordo sobre o

Fortalecimento Civil e Função do Exército em uma Sociedade Democrática”, assinado em

setembro de 1996.

De fato, houve um desaparelhamento dos corpos de segurança e, principalmente, a

desmobilização das Patrulhas de Autodefesa Civil. A Polícia Nacional, principal órgão

responsável pela perseguição política durante os anos de conflito, adquiriu um caráter de

patrulhamento civil, cuja principal função era a segurança pública. As funções do Exército

foram delimitadas a soberania nacional e defesa do território, porém, nenhum tipo de

depuração dos funcionários dos organismos de segurança foi realizada. As práticas

autoritárias continuam a permear os novos sistemas de segurança, fazendo da sociedade

guatemalteca um ambiente violento e impune. A efetividade das mudanças institucionais

aprovadas parece esbarrar na persistência de práticas autoritárias que são corroboradas por um

sistema de justiça burocrático e ineficaz, reticente em indagar o passado arbitrário. O

problema é institucional em sua superfície, mas suas raízes se encontram em imaginários e

práticas autoritárias que definiram historicamente os modelos de dominação e controle social

e que não foram objeto de depuração, durante os processos de transição e redemocratização.

O “Acordo sobre Reformas Constitucionais e Regime Eleitoral”, assinado em

dezembro de 1996, cristalizava o compromisso do governo em cumprir com as demais

reformas propostas anteriormente, incluindo as reformas do sistema de judiciário previstas

pelo “Acordo sobre o Fortalecimento Civil e a função do Exército em uma Sociedade

Democrática”, entre elas, o estabelecimento da carreira judicial, garantias na administração de

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justiça, serviço público gratuito para a defesa jurídica, modernização e fortalecimento do

Poder Judiciário e reforma do Código Penal.

Um elemento de grande frustração para os movimentos sociais e para grande parte da

sociedade civil foi a aprovação da controversa Lei de Reconciliação Nacional, no “Acordo

para a Incorporação da URNG à legalidade”. Considerada, pelos atores civis como uma lei de

anistia, permitia a extinção da responsabilidade penal nos casos de crimes cometidos por

motivações políticas, abrindo precedente para a não culpabilidade de outros setores

envolvidos no conflito, como o Estado e o Exército. A lei, aprovada pelo Congresso no dia 27

de dezembro de 1996, por outro lado, excluía a extinção de responsabilidade penal nos

seguintes casos: Genocídio, tortura e desaparecimento forçado.

Sem dúvida, a natureza própria do conflito armado na Guatemala, a dimensão de seus

crimes e o envolvimento de amplos setores da sociedade em seu processo, tornava a

promulgação de uma lei de anistia um passo indispensável para a incorporação de diversos

grupos, como os insurgentes, para a vida pública do país e para a reconciliação nacional. É

preciso reconhecer que ao excluir da anistia tais crimes imprescritíveis, a lei promove um

importante avanço em relação ao respeito às normas e convenções internacionais que

consideram tais delitos como imprescritíveis. Por outro lado, ao anistiar crimes políticos e

autoridades do Estado, abre precedente para muitos perpetradores envolvidos com as

estruturas de segurança e com a vida política do país, limitando o conceito de reorientação

democrática da segurança pública e as garantias de justiça.

Na análise dos desafios colocados à justiça após o fim das negociações de paz, é

preciso ter em conta, as debilidades históricas do sistema de justiça no país. Desde a falta de

assistência gratuita e bilíngue, até a ausência de autonomia do Poder Judiciário e da

Magistratura, em especial, durante os anos de conflito. Além disso, como afirma Edelberto

Torres-Rivas (2009, p.11-50), a transição política na Guatemala não foi marcada por uma

vitória de forças políticas democráticas, mas sim como resultado de um projeto político

militar contra-insurgente. Tais fatos são, sem dúvida, elementos de limitação da prática dos

mecanismos de justiça transicional estabelecidos como compromisso nos Acordos de Paz.

Para além do período de transição para o regime civil e constitucional, porém, durante

o processo de negociação de paz e de democratização, a sociedade civil organizada cumpriu

um papel fundamental se apropriando dos espaços de participação possíveis para a

formulação de uma agenda para as negociações, através da Comissão de Reconciliação e para

dirigir suas reivindicações às partes, formulando propostas em consenso através Assembleia

da Sociedade Civil. A relevância desse papel permanece ativa, uma vez que, a decisão de

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julgar é sempre política, e por isso, questionável e debatível dentro do espaço público. Nesse

sentido, o processo e julgamento desse passado deverão ser acionados a partir da sociedade e

de suas reivindicações por justiça, mesmo esbarrando nas debilidades do Pode Judiciário e na

fragilidade de forças políticas interessadas em julgar esse passado.

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