Transitividade e Ensino

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  • Revista Letr@ Viv@ v. 11, n. 1, 2012 / UFPB DLEM/ISSN 1517-3100 / p. 11 - 18

    CONSIDERAES SOBRE TRANSITIVIDADE E ENSINO DE LNGUA MATERNA

    Nedja Lima de LUCENA1

    Resumo Este artigo tem por objetivo discutir o fenmeno da transitividade e sua relao com o ensino de lngua materna. Tradicionalmente, a transitividade tratada em termos sinttico-semnticos como uma propriedade intrnseca ao verbo. Entretanto, pesquisas alinhadas lingustica funcional norte-americana mostram que a transitividade uma noo gradiente que se manifesta na orao como um todo. Nessa perspectiva, a transitividade explicada em termos de prototipia; desse modo, uma orao que codifica um evento transitivo prototpico implica as seguintes propriedades: agentividade do sujeito, perfectividade do verbo e afetamento do objeto. Essas propriedades so investigadas neste trabalho e relacionadas a questes de ensino-aprendizagem de lngua. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - Brasil. Palavras-chave: transitividade; prottipo; ensino de lngua.

    Abstract This paper aims to discuss the transitivity phenomenon and its relation to language teaching. Traditionally, transitivity is treated in accordance to syntactic-semantic terms as an intrinsic property of the verb. However, studies aligned to North American Functional Linguistic show transitivity is a gradient notion which manifests itself in the whole clause. According to this perspective, transitivity is explained in terms of prototypes. Thus, a clause that encodes a prototypical transitivity event involves the following properties: subject agentivity, verb perfectivity, object affectedness. These properties are investigated in this paper and related to language teaching and learning. This paper was supported by CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Brazil. Keywords: transitivity; prototypes; language teaching.

    1. Introduo

    Sob a nova tica do ensino de lngua portuguesa, proposta pelos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), o estudo das manifestaes gramaticais, ou a anlise gramatical, deve ser tratada como instrumento de apoio para a discusso dos aspectos da

    Mestre em Estudos da Linguagem pelo Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN).

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    lngua, e no mais o centro dela como h alguns anos atrs. Em outras palavras, a anlise gramatical deve estar vinculada produo, leitura e escuta de textos, servindo como mecanismo de aprimoramento das habilidades lingusticas do aluno (BRASIL, 1998).

    Diante desse novo paradigma, o presente artigo busca tecer consideraes acerca do fenmeno da transitividade e o ensino de lngua materna a fim de apontar caminhos que possam subsidiar a prtica do professor de lngua portuguesa.

    Para isso, recorremos ao escopo terico da lingustica funcional, na sua vertente norte-americana, que compreende a lngua como um instrumento de comunicao flexvel, cujas estruturas surgem, moldam-se e se regularizam no seu uso efetivo.

    De acordo com essa abordagem terica, no forjar da lngua, interagem, de modo complexo, princpios cognitivo-funcionais que motivam o surgimento, a manuteno ou a modificao dos padres lingusticos, isto , da gramtica. A gramtica , pois, o resultado desses padres lingusticos motivados, mantidos ou modificados pela situao comunicativa; portanto, ela no pode ser vista como dissociada do discurso, ou seja, do uso concreto da lngua (FURTADO DA CUNHA; OLIVEIRA; MARTELOTTA, 2003).

    Essa viso dinmica de lngua est em harmonia com o que sugere os PCN, uma vez que esse documento toma a lngua como um sistema simblico motivado histrico e socialmente que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade (BRASIL, 1998, p. 20). A interao atravs da linguagem uma atividade discursiva orientada a partir de um contexto histrico que demanda determinadas circunstncias.

    Nesse sentido, o estudo dos recursos e elementos lingusticos (a estrutura gramatical) deve estar vinculado s funes discursivo-pragmticas desses elementos no uso interativo da lngua.

    Para subsidiar este trabalho, as anlises so feitas a partir de dados empricos, coletados no Corpus Discurso & Gramtica: a lngua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998).

    2. Transitividade

    Nas gramticas tradicionais em geral, regncia verbal, valncia verbal e transitividade so conceitos tratados como similares. De um modo geral, esses conceitos se referem maneira como um verbo se relaciona com os Sintagmas Nominais numa mesma orao (TRASK, 2008, p. 298).

    Nessa perspectiva, a transitividade , pois, compreendida como uma propriedade relativamente inerente ao verbo. So transitivos os verbos que exigem termos que lhes completem o sentido, enquanto nos verbos intransitivos, a ao no vai alm do verbo (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 147). Isso significa que a classificao de um verbo como transitivo ou intransitivo depende da presena/ausncia de um Sintagma Nominal/Sintagma Preposicional codificado como objeto: so transitivos os verbos acompanhados de complemento; so intransitivos aqueles verbos que no apresentam objeto. Entretanto, alguns gramticos tradicionais consultados concordam que a fronteira entre verbos transitivos e intransitivos no bem delimitada, uma vez que verbos como comer e beber podem se comportar ora transitivamente, como em comer carne, beber vinho, ora intransitivamente, como em o doente no come nem bebe (SAID ALI, 1971, p. 165).

    A lingustica contempornea tem oferecido um abrangente nmero de pesquisas voltadas para anlise de fenmenos relacionados transitividade, como os trabalhos

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    oriundos da Costa Oeste dos Estados Unidos: Hopper e Thompson (1980); Givn (2001); Thompson e Hopper (2001), e das pesquisas brasileiras: Neves (2000); Furtado da Cunha (2006) Furtado da Cunha e Souza (2007), dentre outros. De um modo geral, esses estudos compartilham a ideia de que a transitividade se manifesta a partir de fatores sinttico-semnticos e discursivo-pragmticos que so simbioticamente dependentes.

    Thompson e Hopper (2001), evocando o trabalho anterior (cf. HOPPER; THOMPSON, 1980) explicam que a transitividade no uma propriedade inerente ao verbo, mas uma propriedade escalar da orao como um todo. Apenas na orao possvel observar as relaes entre o verbo e seus argumentos, isto , a gramtica da orao. Esses autores tomam orao transitiva a partir da observao de dez parmetros distintos2 que determinam gradualmente se a orao mais ou menos transitiva.

    2.1. O evento transitivo prototpico

    O modelo dos prottipos explica que as entidades so categorizadas com base em seus atributos, mais centrais ou perifricos, no a partir de um contraste binrio. Nessa linha, as categorias lingusticas podem ser distribudas em um contnuo, de maneira que diversos membros possam ser agrupados numa mesma categoria, na qual, em um extremo, encontra-se o membro mais prototpico, e no outro, o membro que exibe os traos mais perifricos (TAYLOR, 1995; 2003). Sob a tica de Slobin (1982) e Givn (2001), a orao transitiva apresenta, no mnimo, dois participantes: um agente e um paciente. O primeiro, codificado sintaticamente como sujeito, o responsvel pela ao; o segundo, codificado sintaticamente como objeto direto, o paciente da ao verbal. Essa configurao caracteriza o prottipo de um evento transitivo, no qual um agente age para causar uma mudana de estado ou de condio num paciente.

    O modo como um verbo se configura depende de fatores discursivos componente pragmtico , ou seja, o modo como o falante interpreta e comunica o evento. Isso pode ser mostrado na escolha entre uma orao ativa ou passiva: a perspectiva do evento pode ser comunicada a partir do ponto de vista do agente (voz ativa), como em O menino quebrou a vidraa; ou do ponto de vista do paciente (voz passiva), como em A vidraa foi quebrada pelo menino (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007).

    Givn (2001) afirma que trs parmetros definem o evento transitivo prototpico: a) agentividade ter um agente intencional ativo; b) afetamento ter um paciente concreto afetado; e c) perfectividade envolver um evento concludo, pontual, como mostram os exemplos They demolished the house e She sliced the salami. Em ambos os exemplos, h um agente intencional (they / she) que afeta uma entidade paciente (the house / the salami), alm disso, os verbos so perfectivos, pois denotam um evento j concludo. Todavia, Givn ressalta que os traos semnticos agentividade, afetamento e perfectividade so graduais, uma vez que o afetamento do objeto pode ocorrer de maneira parcial ou total.

    A proposta de Givn (2001) compartilha similaridades com a proposta de Hopper e Thompson (1980), na medida em que ambos levam em conta aspectos como a

    2Participantes; cinese; aspecto do verbo; pontualidade do verbo; intencionalidade do sujeito; polaridade

    da orao, modalidade da orao; agentividade do sujeito; afetamento do objeto e individuao do objeto.

    Embora descritos aqui para elucidar a proposta de Hopper e Thompson, desses parmetros, apenas trs

    so adotados neste trabalho (pontualidade do verbo, agentividade do sujeito e afetamento do objeto).

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    agentividade, o afetamento e a perfectividade como essenciais para o entendimento da transitividade. Logo, o presente trabalho se valer desses parmetros para a investigao do objeto de estudo.

    3. Transitividade e ensino de lngua

    De acordo com os PCN, a anlise gramatical deve estar centrada em

    uma prtica que parte da reflexo produzida pelos alunos mediante a utilizao de uma terminologia simples e se aproxima, progressivamente, pela mediao do professor, do conhecimento gramatical produzido. Isso implica, muitas vezes, chegar a resultados diferentes daqueles obtidos pela gramtica tradicional, cuja descrio, em muitos aspectos, no corresponde aos usos atuais da linguagem, o que coloca a necessidade de busca de apoio em outros materiais e fontes (BRASIL, 1998, p. 29).

    Nessa linha, a seleo dos contedos gramaticais no deve seguir o modelo dos compndios gramaticais de orientao tradicional, mas deve atender s demandas da prtica lingustica dos alunos.

    Veicula nos PCN a necessidade de uma abordagem que considere a lngua como dinmica e rica em todas as suas formas de manifestao. Desse modo, valoriza-se de igual modo o trabalho com a modalidade oral e com a modalidade escrita.

    Assim, priorizando ambas as modalidades, utilizo a seguir dois textos do tipo relato de procedimento, produzidos pelo mesmo informante na modalidade oral (1) e na modalidade escrita (2):

    (1) ento esse peixe ... que eu fao muito l em casa um peixe frito ... ento a primeira coisa que eu fao ... pegar o cardpio e ver o que que eu vou fazer ... olho o que que eu tenho em casa e o que eu no tiver ... vou ao supermercado ... ento esse peixe ... eu compro a posta de peixe e boto no limo ... e no alho e no sal e deixo curti-lo ... enquanto isso eu cozinho umas batatas ... no ... ainda na casca para ficar aquela:: pra ela no ficar muito molhada ... ela fica mais:: mole ... mas no fica molhada com gua ... ela fica mole ... mas:: mole sem ser aguada como essa outra que cozinha na gua ... ento pe a batata pra cozinhar ... prepara o arroz ... n ... faz aquela limpeza total ... bem lavado ... preparo este arroz ... preparo um molho pra refogar esse arroz ... que eu coloco alho ... sal ... manteiga ... a coloco cebola pra dourar ... nessa coisa ... n ... depois eu ralo cenoura bem ralada e tambm coloco pra ... nessa fritura ... depois eu pego tomate e pimento e vou ... essas coisas eu vou colocando aos poucos ... depois que esse molho t todo pronto ... eu jogo o arroz e deixo cozinhar o arroz ... com a tampa ... n ... pra ele ficar mais abafado e no sair todo o cheiro e o sabor da comida ... no esvair ... assim no vapor (Corpus D&G, Fala, p. 60).

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    (2) A primeira coisa que fao pensar no cardpio. Como minha famlia gosta muito de peixe, normalmente escolho peixe. Vou a geladeira para saber se tem tudo o necessrio, encontrando comeo o trabalho. Primeiro limpo bem o peixe e o tempero com sal e limo, deixo descansando enquanto preparo o que vai acompanhar. Limpo bem o arroz e o lavo, deixo escorrer um pouco, enquanto o arroz escorre, douro a cebola e o alho no leo quente, descasco os legumes como: cenoura, repolho, beterraba e chuchu. Coloco os legumes ralados na panela com a cebola e o alho dourado, ponho o arroz e gua at cobrir tudo. Em seguida descasco umas batatas e ponho para cozinhar; estando cozidas fao um pur com queijo ralado, manteiga, gema de vo, leite e as batatas bem amassadas. Neste nterim, o arroz est semi-pronto, unto uma forma, redonda e furada no meio, com manteiga e ponho o arroz ainda quente socando-o. ponho no forno uns 10 minutos, retiro-o e viro num prato como se fosse um bolo. (Corpus D&G, Escrita, p. 69-70).

    Ambos os textos referem-se ao mesmo procedimento, isto , ao modo como o informante prepara um peixe. Assim, as pores textuais que relatam os passos para a preparao do peixe so mais dinmicas e esto em grifo. Os adendos, explicaes e comentrios do informante, que servem de recheio s pores mais salientes, no foram destacados.

    A maneira como o falante organiza linguisticamente o modo de preparo corresponde ordem natural dos eventos, ou seja, ordem dos procedimentos necessrios para se obter um resultado. Isso, em termos funcionais, est relacionado ao princpio da iconicidade, isto , a correlao motivada entre forma (organizao lingustica) e funo (ordem dos eventos). Numa situao comunicativa, o usurio da lngua seleciona as estruturas gramaticais consoante seus propsitos, de maneira a atuar com sucesso sobre o seu interlocutor (cf. GIVN, 2001; FURTADO DA CUNHA; OLIVEIRA; MARTELOTTA, 2003).

    Como j dito anteriormente, a abordagem da gramtica tradicional trata a transitividade como uma propriedade inerente ao verbo; por outro lado, a lingustica funcional concebe a transitividade como um fenmeno que envolve os componentes sinttico e semntico na orao. O prottipo do evento transitivo prototpico envolve trs parmetros: agentividade, afetamento e perfectividade.

    No caso dos textos aqui analisados, a perfectividade do verbo no acentuada, uma vez que o informante no explica o que fez, mas enumera um conjunto de aes habituais, genricas, que esto presentes na maioria das vezes em que ele realiza o procedimento. Por outro lado, observado que esse modo de fazer implica uma entidade (aquele que faz) que age a fim de provocar uma mudana numa entidade paciente, como o caso de: cozinho umas batatas, ralo cenouras, limpo bem o peixe e unto uma forma. Nessas oraes, o afetamento do objeto bem proeminente: as batatas mudam de condio de cruas para cozidas; a cenoura alterada de inteira para ralada; o peixe passa de sujo para a condio de limpo; a forma que no estava untada muda para untada.

    O professor de lngua materna pode usar os atributos (agentividade, afetamento e perfectividade) na abordagem da transitividade, partindo das formas mais regulares (prototpicas) para as menos regulares, levando o aluno a compreender a noo de transitividade como um todo significativo que se manifesta em termos de grau.

    Para ilustrar a possibilidade de trabalhar com esses atributos, observem-se os casos em (2) e (3):

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    (3) Um dia o professor Edson me convidou para ajud-lo [..] Ele pegou uma pitada de clorto de sdio em estado natural (pastoso) e ps num pequeno becker com gua foi aquele fogo desfilando dentro do becker. (Corpus D&G, Escrita, p. 66).

    (4) Quando estavam conversando, brincando, distrados o menino saio de perto deles e foi brincar perto da estrada, o velho viu e chamou o menino, o pai e a me tambm, mas foi tarde demais o menino foi atravessar a rua e um caminho o atropelou (Corpus D&G, Escrita, p. 46). A amostra em (3) possui uma entidade agentiva na posio de sujeito (ele) responsvel pela execuo da ao (pegar). Por outro lado, prev uma entidade paciente (uma pitada de cloreto de sdio em estado natural), afetada, pois sofre uma mudana de localizao fsica pela ao desencadeada pelo agente. O caso descrito em (4) descreve uma entidade agentiva (um caminho) que desencadeia uma ao (atropelar) que menos controlada do que a ao de pegar (3), mas que provoca, no contexto dado, a mudana de estado de uma entidade paciente (o, retomando o menino).

    Assim, casos como (3) e (4) esto relacionados ao prottipo de um evento transitivo, uma vez que em seus enquadres semnticos esto implicados agentividade do sujeito, afetamento, fsico ou de condio, do objeto e eventos concludos (perfectivos). O mesmo no acontece com a amostra em (5):

    (5) Ficou todo mundo estendido na ... na ... na ... l na BR ... na pista ... e passou algumas pessoas e prestou socorro gente n [...]e a empregada e o motorista sofreu s escoriaes leves n ... foram medicados e liberados n (Corpus D&G, Fala, p. 22).

    Na amostra (5), denotado um processo (sofrer) pelo qual a entidade codificada sintaticamente como sujeito (a empregada e o motorista) no um agente, mas o paciente. Alm disso, o referente do objeto direto (escoriaes leves) no sofre nenhum afetamento. O verbo (sofrer) perfectivo. Logo, percebe-se que h um afastamento entre a orao em (5) e as amostras (3) e (4) na medida em que (5) no possui os atributos agentividade e afetamento. Esse afastamento fica ainda mais aparente em casos como (6):

    (6) aquela fotografia ... que ns batizamo-na de tronco de So Sebastio ... porque ali o tronco ... parecia que ele tinha sido esculpido ali sobre a duna ... o tronco na altura de dois metros ... dois e vinte... e ele tinha uma beleza ... um assim ... indescritvel (Corpus D&G, Fala, p. 120).

    O caso acima descreve um estado (ter uma beleza) da entidade codificada sintaticamente como sujeito (ele, retomando o pssaro). Note-se que a orao herda do caso prototpico apenas a moldura sinttica (formada por Sujeito Verbo Objeto), pois seu enquadre semntico no compartilha nenhum dos atributos (agentividade, afetamento, perfectividade) com o prottipo.

    Desse modo, ao tratar das diferenas com base nos atributos sinttico-semnticos, o professor pode abarcar os usos que so menos prototpicos e proporcionar ao aluno a possibilidade de refletir acerca dos fatos da lngua, mostrando que as

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    categorias da lngua so dinmicas e flexveis. Alm disso, essa abordagem tambm possibilita explicar os diferentes usos de

    um mesmo verbo, como ocorre em (7) e (8):

    (7) a o menino foi ... eu tava at dormindo ... dormia l no meu quarto s ... l com meu irmo ela l dormindo ... que ela era praticamente da famlia ... a eu escutei quando ... eu escutei noite o berro do menino (Corpus D&G, Fala, p. 23).

    (8) mas frente teria uma mata densa [...] ficamos escutando o barulho dos pssaros ... porque nessa hora eles comeam a ... a voltar pra ... pra mata n [...] e elas faziam um canto lindo sabe? a gente ficou ouvindo o:: sussurrar dos pssaros ... o piu-piu de cada um ... de cada espcime rara chegando e ... e se despedindo do dia n? (Corpus D&G, Fala, p. 122).

    O verbo escutar em (7) diferente de (8) na medida em que uma ao perceptual, pontual, no intencional e no controlada por uma entidade agentiva. Em (8), a forma verbal ficou ouvindo implica uma ao mais durativa, intencional e controlada pelo agente. Ainda possvel destacar em (8) que o uso dessa forma verbal parece implicar intencionalidade ainda maior do que escutar. Cabe ressaltar, tambm, que os referentes dos objetos diretos (o berro do menino / o barulho dos pssaros / o sussurar dos pssaros) no sofrem mudana fsica ou de condio, isto , o parmetro do afetamento no se evidencia nesses casos. Em termos de transitividade, as ocorrncias em (7) e (8) so mais distantes do prottipo, uma vez que no compartilham todos os atributos que correspondem ao evento transitivo prototpico.

    Logo, sob a tica do quadro terico adotado aqui, e em conformidade com os PCN, o professor pode chamar a ateno para o fato de que as formas lingusticas so motivadas pela funo que desempenham no uso interativo da lngua.

    4. Consideraes finais

    O presente trabalho buscou correlacionar o fenmeno da transitividade e o ensino de lngua materna, tomando por base a proposta de abordagem da anlise gramatical sugerida pelos PCN. Essa proposta compartilha com a Lingustica Funcional uma viso de lngua viva, plstica e malevel, que se adapta aos contextos socioculturais.

    luz da Lingustica Funcional, o trabalho evidenciou que a transitividade um fenmeno da orao, e no do verbo, como preconiza a gramtica tradicional.

    Alm disso, o fenmeno da transitividade pode ser compreendido em termos de prottipo, isto , uma orao que codifica um evento transitivo prototpico possui os seguintes atributos: agentividade do sujeito, afetamento do objeto e perfectividade do verbo. Por outro lado, oraes que no apresentam esses atributos se afastam gradualmente na escala de prototipicidade.

    A proposta de tomar os fenmenos lingusticos atravs do modelo dos prottipos se constitui ferramenta til no processo de ensino-aprendizagem. A ideia que o professor de lngua materna possa partir do uso lingustico, utilizando estruturas mais prototpicas, para, em seguida, abarcar os usos menos prototpicos.

    Por fim, a anlise gramatical feita atravs do processo de reflexo crtica sobre a

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    lngua em uso ferramenta de refinamento das habilidades lingusticas dos alunos e incita interesse, iniciativa e autonomia para ler e produzir textos diversos e coerentes.

    Referncias

    BRASIL. (1998) Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: lngua portuguesa/ Secretaria de Educao Fundamental. Braslia: MEC/SEF. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. (1985) Nova gramtica do portugus contemporneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. FURTADO DA CUNHA, Maria Anglica. (1998) (Org.). Corpus Discurso & Gramtica a lngua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN. _____. (2006) Estrutura argumental e valncia: a relao gramatical objeto direto. Gragoat, n. 21. FURTADO DA CUNHA, Maria Anglica; OLIVEIRA, Maringela Rios de; MARTELOTTA, Mrio Eduardo. (2003) (orgs). Lingustica funcional teoria e prtica. Rio de Janeiro: DP&A. FURTADO DA CUNHA, Maria Anglica; SOUZA, Maria Medianeira. (2007) Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna. GIVN, Talmy. (2001) Syntax. v. 1. Amsterdam: John Benjamins. HOPPER, Paul; THOMPSON, Sandra Annear. (1980) A. Transitivity in grammar and discourse. Language, v. 56. NEVES, Maria Helena de Moura. (2000) Gramtica de usos do portugus. So Paulo: Editora UNESP. SAID ALI, Manuel. (1971) Gramtica histrica da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Edies Melhoramentos. SLOBIN, Dan Isaac. (1982) The origins of grammatical encoding of events. In: HOPPER, Paul; THOMPSON, Sandra. (Eds.). Syntax and sematics v. 15 (Studies in transitivity). New York, Academic Press, 1982. TAYLOR, John Robert. (1995) Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford: Claredon Press, 1995. TAYLOR, John Robert. (2003) Linguistic categorization. New York: Oxford University Press, 2003. THOMPSON, Sandra Annear; HOPPER, Paul. (2001) Transitivity, clause structure, and argument structure: evidence from conversation. In: BYBEE, Joan; HOPPER, Paul. (Eds.). Frequency and the emergency of linguistic structure. Amsterdam: John Benjamins, 2001. TRASK, Robert. Dicionrio de linguagem e lingustica. So Paulo: Contexto, 2008.