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RDS X (2018), 3, 527-557 Transmissão de quotas e de ações – Algumas questões DR.ª RAQUEL DE LÓIA SEQUEIRA Sumário: Nota introdutória. I – Transmissão de participações sociais. II – Transmissão de quotas: 1. Transmissão mortis causa: 1.1. Posição dos sucessores do sócio de cujus na deliberação com vista à amortização ou aquisição da quota; Posição dos sucessores do sócio de cujus durante a pendência da quota; 2. Cessão de quotas: 2.1. O consentimento social: 2.1.1. Eficácia, proibição e recusa da cessão; 2.1.2. Posição do sócio alienante na deliberação sobre o pedido de consentimento para a cessão de quotas; 2.2. Limitações estatutárias ao consentimento social: 2.2.1. Preferências estatutárias. III – Transmissão de ações: 1. Livre transmissibilidade das ações; 2. Limitações à livre transmissibilidade das ações: 2.1. Cláu- sulas de consentimento; 2.2. Cláusulas de preferência; 2.3. Cláusulas de condicionamento. IV – Considerações finais. Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise de algumas das formas legalmente previstas para a transmissão de quotas e de ações. Tendo em conta a importância acrescida que a identidade do transmissário destas participações pode assumir em determinadas circunstâncias da vida prática, o presente trabalho focar- -se-á também nas limitações contratuais à transmissão de quotas e de ações. Abstract: The present work aims to analyze some of the legally provided forms for the transfer of shares and quotas. Given the important role of the identity of the beneficiaries under certain circumstances, the present work will also be focused on contractual restrictions on transfer of shares and quotas. Nota introdutória Embora as participações sociais, à semelhança de qualquer outro bem, sejam suscetíveis de ser transmitidas, a facilidade com que estas operações ocor- rem nem sempre é a mesma, circunstância que resulta, naturalmente, do tipo de sociedade adotado mas também das opções tomadas dentro dela ao abrigo da autonomia privada. Ainda que difiram no modo como operam, estas opções Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2018).indb 527 Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2018).indb 527 22/10/18 11:33 22/10/18 11:33

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Transmissão de quotas e de ações – Algumas questões

DR.ª RAQUEL DE LÓIA SEQUEIRA

Sumário: Nota introdutória. I – Transmissão de participações sociais. II – Transmissão de quotas: 1. Transmissão mortis causa: 1.1. Posição dos sucessores do sócio de cujus na deliberação com vista à amortização ou aquisição da quota; Posição dos sucessores do sócio de cujus durante a pendência da quota; 2. Cessão de quotas: 2.1. O consentimento social: 2.1.1. Efi cácia, proibição e recusa da cessão; 2.1.2. Posição do sócio alienante na deliberação sobre o pedido de consentimento para a cessão de quotas; 2.2. Limitações estatutárias ao consentimento social: 2.2.1. Preferências estatutárias. III – Transmissão de ações: 1. Livre transmissibilidade das ações; 2. Limitações à livre transmissibilidade das ações: 2.1. Cláu-sulas de consentimento; 2.2. Cláusulas de preferência; 2.3. Cláusulas de condicionamento. IV – Considerações fi nais.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise de algumas das formas legalmente previstas para a transmissão de quotas e de ações. Tendo em conta a importância acrescida que a identidade do transmissário destas participações pode assumir em determinadas circunstâncias da vida prática, o presente trabalho focar--se-á também nas limitações contratuais à transmissão de quotas e de ações.

Abstract: The present work aims to analyze some of the legally provided forms for the transfer of shares and quotas. Given the important role of the identity of the benefi ciaries under certain circumstances, the present work will also be focused on contractual restrictions on transfer of shares and quotas.

Nota introdutória

Embora as participações sociais, à semelhança de qualquer outro bem, sejam suscetíveis de ser transmitidas, a facilidade com que estas operações ocor-rem nem sempre é a mesma, circunstância que resulta, naturalmente, do tipo de sociedade adotado mas também das opções tomadas dentro dela ao abrigo da autonomia privada. Ainda que difi ram no modo como operam, estas opções

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contratuais têm em comum, em princípio, o facto de se destinarem à proteção do interesse social que reclama, frequentemente, o controlo do substrato pes-soal da sociedade.

A complementaridade que caracteriza a relação entre a transmissão de par-ticipações sociais e as suas limitações justifi ca, por isso, que estas duas proble-máticas sejam tratadas conjuntamente, ainda que de modo sintético e parcial.

De acordo com a organização sistemática do Código das Sociedades Comerciais, começaremos por explorar o regime da transmissão de quotas, o que implicará a análise da transmissão mortis causa e, seguidamente, da transmis-são voluntária inter vivos, comummente tratada como cessão de quotas. Nesta última matéria, merecerá especial destaque, como aliás já seria de se esperar, as questões relativas ao consentimento para a cessão de quotas mas, também, a possibilidade que o legislador expressamente consagrou de condicionamento desse consentimento a requisitos específi cos.

No que toca às sociedades anónimas, dedicaremos algumas páginas ao prin-cípio da livre transmissibilidade de ações. Ao longo deste subcapítulo, tornar--se-ão bastante claras – e justifi cadas, pensamos nós – as diferenças de regime entre, por um lado, a transmissão de quotas e, por outro, a transmissão de ações. Contudo, é possível que as últimas linhas lancem sobre o leitor a convic-ção exatamente oposta: afi nal as semelhanças são muitas! Nomeadamente por-que, pese embora aquele princípio, também as sociedades capitalísticas sentirão necessidade de limitar a transmissão das ações que a compõem. Neste sentido, traremos à colação as típicas cláusulas de consentimento, de preferência e de condicionamento.

Por razões de clareza, resta-nos referir que se encontrarão excluídas da nossa abordagem as questões relativas à aquisição originária de participações sociais, à sua amortização e à aquisição de participações sociais como forma indireta de aquisição de empresas. Relativamente às sociedades por quotas, também não trataremos da cessão de quotas entre cônjuges, bem como da transmissão inter vivos por ato não voluntário. Em sede de sociedades anónimas, não trataremos da questão das ações próprias.

I – Transmissão de participações sociais

A participação social consiste no “conjunto unitário de direitos e obriga-ções atuais e potenciais do sócio (enquanto tal)”1. Nas sociedades por quotas,

1 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Das Sociedades, Vol. II, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, p. 195.

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este conjunto de direitos e obrigações é designado por quota (artigo 197.º/1 do Código das Sociedades Comerciais2) e nas sociedades anónimas por ação (artigo 271.º). A aquisição de participações sociais pode ser originária ou derivada. A aquisição originária é efetuada mediante subscrição do contrato de socie-dade ou em aumento de capital. Pelo contrário, a aquisição derivada resulta duma transmissão mortis causa, inter vivos ou, até, da aquisição de participa-ções sociais na sequência de um processo de fusão por incorporação ou de cisão-fusão-incorporação3.

Tanto as ações como as quotas podem, por isso, ser objeto de negócios jurídicos translativos cujo efeito essencial será, naturalmente, a transmissão da titularidade destas para o seu adquirente que, consequentemente, adquirirá também a qualidade de sócio.

II – Transmissão de quotas

1. Transmissão mortis causa

Em princípio, a quota4 transmite-se para os sucessores dos sócios nos termos do direito comum das sucessões (artigo 2024.º do Código Civil5). Não obs-tante e nos termos do artigo 225.º/1, o contrato de sociedade pode estabelecer que perante o falecimento de um sócio a respetiva quota não se transmite aos sucessores do falecido. Ou, por outro lado, pode o contrato de sociedade con-dicionar esta transmissão a certos requisitos.

Estes requisitos podem prender-se com a tutela dos interesses da sociedade, dos sucessórios do sócio6 de cujus ou, simultaneamente, de ambos7 e podem ser

2 Doravante, CSC. Pertencerão a este Diploma todos os artigos que, daqui em diante, forem referidos sem indicação de proveniência.3 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 195.4 Referimo-nos a “quota” e não a “quotas” pois aquela será a situação que ocorrerá com mais frequência uma vez que, e nos termos do artigo 219.º/1, na constituição da sociedade a cada sócio apenas fi ca a pertencer uma quota, correspondente à sua entrada. Neste sentido, João Labareda, “Posição do Sócio alienante na deliberação sobre o pedido de consentimento para a cessão de quotas”, Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura, Coimbra Editora, Lisboa, 2003, p. 493.5 Doravante, CC. 6 Hipótese regida pelo disposto no artigo 226.º. Recebida a declaração de não aceitação da transmissão por parte dos sucessores do sócio, a sociedade tem um prazo de 30 dias para, mediante deliberação social, optar pela amortização ou aquisição da quota por si, por sócio ou terceiro. Questiona-se a opção legislativa por um prazo tão diminuto, fi ndo o qual a falta de opção por qualquer um dos mecanismos confere ao sucessor o direito de requerer a dissolução da sociedade

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defi nidos 7quer em sentido positivo, quer sem sentido negativo8. O requisito tem de ser certo, no sentido em que tem de se encontrar concretamente defi -nido, sendo por isso possível a sua determinação com segurança. Se a cláusula de intransmissibilidade não for aplicável a todos os sucessores, tratar-se-á do segundo tipo de restrições e não do primeiro9.

Nos casos em que a quota não se transmite, e sob pena duma expropria-ção ad nutum, o legislador estabeleceu um mecanismo de compensação10-11 para os sucessores do de cujus cuja inobservância, nos 90 dias12 subsequentes ao conhecimento da morte do sócio por algum dos gerentes, implicará o desapa-recimento da restrição e a consequente transmissão da quota, a título defi nitivo, para os sucessores. Refi ra-se, em todo o caso, que o interesse que a lei visou proteger foi o dos sócios supérstites e não o dos sucessores do sócio falecido13. Assim, dispõe o artigo 225.º/2 que a não transmissão da quota para os sucesso-res implicará, sem qualquer tipo de ordem de precedência, i) a amortização da quota pela sociedade, caso em que a quota se integrará no património da pessoa coletiva; ii) a aquisição da quota pela sociedade ou iii) a aquisição da quota por outro sócio14 ou um terceiro15.

por via administrativa (n.º 4). A mesma consequência, associada ao incumprimento do mesmo prazo, é aplicável no caso da contrapartida não puder ser paga ao sócio e este não optar pela espera do pagamento, ou no caso de esta não ser pontualmente paga (artigo 240.º/6 e 7 ex vi 226.º/3). Desta forma, “uma sociedade fl orescente poderá ser dissolvida por impossibilidade de observância deste prazo injustifi cável”. Neste sentido, António Pereira de Almeida, Direito Angolano das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 265.7 J. P. Remédio Marques, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. V, Jorge M. Cou-tinho de Abreu (coordenador), Almedina, Coimbra, 2011, p. 420.8 Evaristo Ferreira Mendes, A transmissibilidade das Ações, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1989, p. 264.9 Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 1989, p. 543.10 António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, Vol. II, 2.ª edição (revista e atualizada), Almedina, Coimbra, 2007, p. 367. 11 Conforme referido por Raúl Ventura, ob. cit., pp. 546 e 547, aos sucessores do sócio é indiferente que a quota seja extinta ou seja transmitida para outra pessoa, “desde que recebam a contrapartida”. 12 Trata-se de um prazo de caducidade. Neste sentido, Raúl Ventura, ob. cit., p. 556.13 Raúl Ventura, ob. cit., p. 545.14 Nestes casos, a sociedade terá de respeitar o princípio do igual tratamento dos sócios, dando a mesma oportunidade a todos eles de adquirirem a quota, de acordo com Raúl Ventura, ob. cit., p. 547.15 Importante mecanismo que permite fazer face aos casos em que a sociedade, perante a existência de bastantes reservas livres, não pode recorrer ao mecanismo da amortização ou da aquisição, por si própria, das quotas. Neste sentido, Raúl Ventura, ob. cit., p. 547.

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Da parte fi nal do n.º 1 do artigo 225.º decorre o caráter imperativo deste regime, à exceção, todavia, do disposto no n.º4, que pode ser afastado por dis-posição em contrário no contrato de sociedade. Daqui resulta que o legislador não acolheu a validade da estipulação de “cláusulas de estabilização ou amorti-zação automática da quota em caso de morte do titular”16.

De acordo com o n.º 3 do artigo 225.º, caso se opte pela aquisição da quota por sócio ou terceiro, o respetivo contrato é outorgado pelo representante da sociedade – que atuará em nome do vendedor – e pelo adquirente. No caso em que o adquirente da quota é a própria sociedade ocorrerá uma situação bastante próxima da fi gura do negócio consigo mesmo17. Refi ra-se ainda que a socie-dade é sempre parte no contrato o que não signifi ca, em todo o caso, que seja ela a detentora da quota. Pelo contrário, estaremos perante um caso em que a sociedade benefi cia do poder de disposição de coisa alheia18.

A opção por uma destas vias terá de ser efetivada através de uma delibera-ção dos sócios19, o que levanta a questão de saber qual será, então, a posição do sucessor do sócio falecido nestas circunstâncias.

1.1. Posição dos sucessores do sócio de cujus na deliberação com vista à amortização ou aquisição da quota

A favor da participação dos sucessores do sócio falecido na deliberação tomada em assembleia geral que tenha por objeto a amortização ou aquisição da quota pronunciam-se Menezes Cordeiro20, Remédio Marques21 e Pedro

16 Pedro de Albuquerque, Código das Sociedades Comerciais Anotado, António Menezes Cordeiro (coordenador e redator), Almedina, Coimbra, 2009, p. 586.17 Ibidem, p. 586.18 Ibidem, p. 586.19 No caso da amortização ou da aquisição da quota pela sociedade isso resulta expressa e imperativamente do artigo 246.º/1/b). No que toca à aquisição da quota por um sócio ou terceiro isso resulta, precisamente, da circunstância daqueles primeiros mecanismos terem de ser decididos em sede de deliberação social, pelo que também a aquisição da quota por um sócio ou terceiro, fi gurando no leque de mecanismos possíveis, fi cará sujeita, por maioria de razão, à mesma deliberação. Um argumento de segunda ordem parece apontar no sentido de não ser aceitável que se permita que o gerente possa, por si só, optar por um dos mecanismos. Assim, Raúl Ventura, ob. cit., p. 556. Veja-se, ainda, o Ac. STJ (19-09-2006) Azevedo Ramos, Proc. n.º 06a2395, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual não basta “(…) a mera carta registada, enviada pelo autor, a comunicar às rés que não aceitava que a quota do seu falecido pai fosse transmitida aos seus herdeiros (…)”.20 António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 367.21 J. P. Remédio Marques, ob. cit., p. 424.

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de Albuquerque22. Este entendimento é sustentado com base no disposto no artigo 248.º/5 nos termos do qual nenhum sócio pode ser privado (…) de participar na assembleia, de onde resulta o direito do sucessor do sócio a ser convocado para participar na deliberação.

Em sentido contrário pronuncia-se Coutinho de Abreu23. Com efeito, atento o disposto no artigo 227.º/2 e 3 e salvo o devido respeito, que é muito, esta parece ser a posição mais adequada. Vejamos: entendemos que o sucessor do sócio se encontra impedido de votar naquela deliberação, o que ocorre em virtude deste direito se encontrar suspenso por imposição do artigo 227.º/2. Esta hipótese não se identifi ca, sequer, nem com a letra nem com a ratio do artigo 227.º/3 que visa, somente, conferir o direito de voto ao sucessor do sócio no caso de “deliberações que sejam susceptíveis de modifi car ou alterar a integridade da quota”, depreciando o seu valor ou a sua signifi cação “no equi-líbrio do pacto fi rmado e existente à data da morte do sócio transmitente”24. Assim, também o direito do sucessor do sócio ser convocado para participar na assembleia geral se encontra, por respeito ao disposto no artigo 227.º/3, suspenso. Os direitos que, por força do n.º3, podem ser exercidos durante a suspensão não devem ser aqueles que respeitam à própria situação jurídica do sucessor na quota ou aos limites e consequências da precariedade desta25.

1.2. Posição dos sucessores do sócio de cujus durante a pendência da quota

Coloca-se também a questão de saber qual a posição assumida pelos suces-sores do sócio durante a pendência da quota26, nomeadamente se esta se trans-mite para aqueles ou não.

Em sentido negativo, invocam-se, sobretudo, argumentos de base literal. Desta forma, “o contrato de sociedade pode estabelecer que a quota não se transmitirá aos sucessores do falecido”27; “quando, por força de disposições contratuais, a quota não for transmitida”28 e “a quota considera-se transmiti-da”29 consistiam em importantes disposições que permitiam sustentar a tese da

22 Pedro de Albuquerque, ob. cit., p. 590.23 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 325.24 Neste sentido, Ac. STJ (29-10-2013) Gabriel Catarino, Proc. n.º 994/11.0T2AVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.25 Raúl Ventura, ob. cit., p. 570.26 Isto é, desde o momento da morte do sócio até à amortização ou aquisição da quota.27 Artigo 225.º/1.28 Artigo 225.º/2/ 1.ª parte.29 Artigo 225.º/2/in fi ne.

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suspensão da aquisição da qualidade social pelos herdeiros até à deliberação da amortização ou aquisição da quota.

Não obstante, este entendimento é rejeitado por quem entende que a não transmissão da quota não opera automaticamente30, pressupondo sempre, e pelo contrário, a deliberação da sociedade dentro de determinado prazo - ainda que a sociedade possa optar por não deliberar -, nos termos da qual será defi nido o destino a dar à quota. Ora, até à verifi cação da amortização ou aquisição da quota, a quota terá que pertencer “a alguém. Esse alguém só pode ser o sucessor ou sucessores do sócio falecido que, segundo as regras do direito comum das sucessões, continuam na posição social do de cujus”31e não, pelo contrário, a sociedade, “(…) pois o conteúdo da cláusula de intransmissibilidade é apenas impedir que a quota se transmita para os sucessores normais; efeito, portanto, puramente negativo”32.

Por outro lado, parece ser este o entendimento mais consentâneo com o regime híbrido consagrado ao abrigo dos artigos 227.º/2 e 3, nos termos do qual vigora, respetivamente, a regra segundo a qual os direitos e obrigações dos sucessores fi cam suspensos e uma exceção que permite, em casos limitados, a habilitação destes ao imediato exercício33 de direitos necessários à tutela da sua posição jurídica, nomeadamente, através do voto em deliberações sobre alteração do contrato ou dissolução da sociedade. Daqui decorre que, ainda que a generalidade dos direitos e obrigações inerentes à quota se encontrem suspensos, os sucessores podem ainda intervir e reagir “contra eventuais situa-ções suscetíveis de prejudicar a sua posição patrimonial”34. É precisamente pelo facto dos sucessores terem passado a ser os contitulares35 daquela quota que o legislador sentiu a necessidade de estabelecer expressamente a suspensão daque-les direitos. Por outro lado, como poderia o sócio votar nas circunstâncias do artigo 227.º/3 se a quota não lhe tivesse sido transmitida? Em suma, “o status associado à qualidade de sócio” fi ca “parcialmente paralisado”36, operando uma transmissão da quota para os sucessores em termos precários.

30 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 329, J. P. Remédio Marques, ob. cit., p. 423 e António Pereira de Almeida, ob. cit., p. 264. Na jurisprudência, veja-se o Ac. STJ (29-10-2013) Gabriel Catarino, Proc. n.º 994/11.0T2AVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.31 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 329.32 Raúl Ventura, ob. cit., p. 548.33 Ac. STJ (23-01-2001) Ribeiro Coelho, Proc. n.º 00A3654, disponível em www.dgsi.pt.34 Ac. STJ (29-10-2013) Gabriel Catarino, Proc. n.º 994/11.0T2AVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.35 Ou, caso esteja em causa um único sucessor, titular. 36 J. P. Remédio Marques, ob. cit., p. 423.

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2. Cessão de quotas

A cessão de quotas consiste numa forma de transmissão de quotas inter vivos e a “sua característica diferencial reside na voluntariedade do facto transmis-sivo”37. Distingue-se, por isso, das transmissões forçadas resultantes da perda da quota (artigo 204.º), da arrematação e adjudicação judiciais (artigo 239.º). A cessão de quotas pode ter origem num negócio de caráter gratuito ou oneroso.

A cessão de quotas depende, de acordo com o artigo 228.º/1 e sem prejuízo do disposto no artigo 4.º-A38, da sua sujeição a documento escrito assinado pelas partes. Nas sociedades por quotas a regra consagrada no artigo 228.º/2 dispõe que a cessão de quotas carece do consentimento da sociedade quando o cessionário não se integre nas categorias de cônjuge, ascendente ou descen-dente do cedente ou ainda naqueles casos em que o cedente e o cessionário assumem a posição de sócios39.

2.1. O consentimento social

Nos casos em que o consentimento da sociedade é condição de efi cácia da cessão para com esta, a sua inobservância implicará que, no plano social, o cedente mantenha a sua qualidade de sócio – com os correspondentes direitos e obrigações –, não sendo reconhecida essa qualidade ao cessionário40. Em todo o caso, a falta do consentimento, quando necessário, “não origina um vício ou defi ciência congénito no negócio da cessão, que continuará a ser (…) válido e efi caz no domínio das relações internas entre o cedente e o cessionário”41-42.

37 Raúl Ventura, ob. cit., p. 577.38 Sob pena de nulidade do negócio que serve de base à cessão conforme previsto no artigo 220.º CC.39 Nos primeiros casos, estão em causa relações familiares estreitas entre os sujeitos e, no último caso, relações de confi ança mútua que, à partida, vigoram entre os sócios. Neste sentido, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 331. No primeiro caso, a lei faz prevalecer os interesses familiares do titular da quota a possíveis interesses da sociedade. O segundo caso justifi ca-se porque a pessoa do cessionário não pode levantar objeções da parte da sociedade, Assim, Raúl Ventura, ob. cit., p. 586.40 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, “Preferências estatutárias na cessão de quotas – Algumas questões”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, setembro – outubro de 2010, Coimbra Editora, p. 7 e Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 330.41 Ac. STJ (10-12-2015) Lopes do Rego, Proc. n.º 1990/07.8TBAGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.42 Ou seja, o “(…) o consentimento da sociedade constitui um requisito legal da efi cácia da cessão de quotas, e não um requisito de validade, o que vale por dizer que a sua ausência não determina

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Por outro lado, a oponibilidade da cessão a terceiros depende sempre do registo da cessão (artigos 3.º/1/c) e 14.º/1 do Código de Registo Comercial43). De acordo com o artigo 53.º-A/5/a) CRCom, o registo será efetuado, por inter-médio da sociedade44, através do mero depósito.

O consentimento social pode ser anterior ou posterior à cessão da quota45.Uma vez consentida a cessão ou ainda nos casos em que esta condição não

é exigida, impõe ainda o artigo 228.º/3, a comunicação46, por escrito, feita à sociedade da transmissão da quota47 – através da pessoa do cedente ou do cessionário48 – ou, na sua ausência, o reconhecimento expresso ou tácito pela sociedade49.

Em todo o caso, pode o contrato de sociedade dispensar o consentimento da sociedade quer para alguns, quer para todos os casos em que ele seria neces-sário (artigo 229.º/2). Da mesma forma, nos casos em que a cessão é livre – porque o adquirente se integra numa das categorias referidas – pode o contrato de sociedade exigir o consentimento da sociedade (artigo 229.º/3).

O consentimento da sociedade terá de ser pedido por escrito, pelo cedente ou pelo cessionário, com a indicação do cessionário e de todas as condições da cessão50 (artigo 230.º/1).

Por consentimento da sociedade deve-se entender o consentimento do coletivo dos sócios que será dado, nos termos dos artigos 230.º/251 e 246.º/1/b), por deliberação destes no prazo de 60 dias (artigo 230.º/4). A deliberação con-siderar-se-á tomada, salvo disposição diversa da lei ou contrato, se obtiver a maioria dos votos emitidos, não se considerando como tal as abstenções, o que resulta do artigo 250.º/3. A deliberação pode consistir numa deliberação unânime por escrito, em assembleia geral regularmente convocada ou em assembleia geral.

a invalidade da cessão.”. Neste sentido, Ac. TRC (27-01-2015) Maria Domingas Simões, Proc. n.º 1990/07.8TBAGD.C1, disponível em www.dgsi.pt.43 Daqui em diante referido como CRCom..44 Como decorre dos artigos 242.º-B/1 CSC e 29.º/5 CRCom..45 Pedro de Albuquerque, ob. cit., p. 593.46 Que pressupõe, naturalmente, a existência de uma transmissão válida.47 Com todos os elementos defi nidores do facto ocorrido, de acordo com Raúl Ventura, ob. cit., p. 589.48 Raúl Ventura, ob. cit., p. 587.49 De acordo com Raúl Ventura, ob. cit., p. 587, o reconhecimento “ justif ica-se por a comunicação ser exigida em atenção à sociedade; se esta, independentemente da comunicação que lhe deveria ter sido feita, reconhecer a transmissão, não há motivo para ela ser inefi caz”. 50 Raúl Ventura, ob. cit., pp. 625 e ss.51 Disposição de caráter imperativo.

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Esta deliberação pode igualmente ser adotada por escrito nos termos em que tal é possível, tal como dispõe o artigo 247.º.

Reforce-se que o consentimento exigido “é o da sociedade e não dos sócios enquanto tal. Por essa razão, não é possível estabelecer no contrato de sociedade que os efeitos da cessão fi carão dependentes do consentimento de todos, algum ou alguns dos sócios”52. Em todo o caso, o próprio artigo 229.º/5 dispõe que o contrato de sociedade não pode subordinar os efeitos da cessão a requisito diferente do consentimento da sociedade, nomeadamente, à vontade individual de um ou mais sócios ou de pessoa estranha (al. a)).

O consentimento da sociedade pode também ser tácito, o que ocorrerá nos termos do artigo 230.º/5 e 6 e também naquelas situações em que a sociedade passou a tratar o transmissário como sócio53.

Situação diferente é aquela prevista no artigo 230.º/4, nos termos do qual o legislador não atribuiu à inércia da sociedade o valor de consentimento tácito, tendo antes, pelo contrário, estipulado um prazo de caducidade para o exercí-cio do direito, fi ndo o qual a cessão se torna livre.

2.1.1. Efi cácia, proibição e recusa da cessão

Até 2006, porque sujeita a escritura pública, a cessão de quotas consistia num ato solene. A partir daquele ano, porém, o legislador rompeu com a larga tradição portuguesa seguida ao longo dos anos de 1888, 1901 e 190654. Com efeito, ao invés de aumentar as exigências formais como refl exo do reforço das garantias jurídicas em sede de transmissão de quotas, o legislador, movido pelas ânsias da simplifi cação, veio, com a entrada em vigor do DL n.º 76-A/2006 de 29 de março, estabelecer a substituição da escritura pública pelo documento escrito (artigo 228.º/1).

A transmissão de quotas passou, por isso, a estar sujeita ao registo por mero depósito, conforme resulta do artigo 53.º-A/2/a) CRCom. Este tipo de registo consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo e na respetiva menção na fi cha informática de registo (artigos 53.º-A/3 e 55.º/2 CRCom)55. Ora, conforme resulta do artigo 47.º CRCom, a sujeição da trans-

52 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit. p. 45653 António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 369.54 J. Barata Lopes, “A desformalização da cessão de quotas – perspetiva do notário”, Cessão de quotas – “Desformalização” e registo por depósito, Almedina, Coimbra, 2009, p. 27.55 Luís Brito Correia, “A desformalização da cessão de quotas – perspetiva de um Advogado”, Cessão de quotas – “Desformalização” e registo por depósito, Almedina, Coimbra, 2009, p. 42.

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missão de quotas ao registo por depósito implica que o funcionário do Registo não mais verifi que a regularidade formal daqueles títulos nem dos atos titulados nos documentos apresentados56.

De resto, o próprio CSC dedica alguns artigos (243.º-A a 242.º-F) à regu-lação do registo de quotas por depósito, sem prejuízo do que também se dispõe em sede do CRCom (artigos 29.º-A a 30.º).

Assim, nos termos do artigo 242.º-A, os factos relativos a quotas são inefi cazes perante a sociedade enquanto não for solicitada, quando necessária, a promoção do registo respetivo. Depois de solicitado o registo57, competirá à sociedade a sua promo-ção (artigo 242.º-B). Para esse efeito, a sociedade será representada pelos seus gerentes, mandatário com procuração bastante, advogado ou solicitador (artigo 30.º/1/als. a) a c) CRCom).

Quer a cessão seja livre ou dependa do consentimento da sociedade, o artigo 229.º/3 dispõe que a cessão de quota só se torna efi caz para com a socie-dade no momento em que lhe for comunicada por escrito ou por ela reconhe-cida, donde resulta um aparente desacerto em relação àquilo que decorre do artigo 229.º/3. Por esta razão, deve-se entender que a comunicação à sociedade valerá como solicitação para a promoção do respetivo registo58. Ou, caso ocorra primeiro, que a solicitação para a promoção do registo valerá como comunica-ção à sociedade dessa cessão59. Duma forma ou de outra, a solução é compatível com a letra da lei.

É admissível, de acordo com o artigo 229.º/1, que o contrato de sociedade proíba, pura e simplesmente, a cessão de quotas60, tendo o sócio nestes casos, e como contrapartida, o direito à exoneração61 uma vez decorridos 10 anos sobre o seu ingresso na sociedade.

Perante a recusa, pela sociedade, da cessão, no caso da quota se encontrar há mais de três anos na titularidade do cedente, do seu cônjuge ou de pessoa a quem tenham, um ou outro, sucedido por morte (artigo 231.º/3), o artigo 231.º/1 impõe que, a par da comunicação da recusa, a sociedade apresente também uma proposta de amortização ou de aquisição da quota, sob pena da

56 Ibidem, p. 43.57 Por algum dos sujeitos elencados n.º 2 do artigo 242.º-B.58 Pedro Maia, “Tipos de sociedades Comerciais”, Estudos de Direito das Sociedades, elaborados por Alexandre de Soveral Martins, Maria Elisabete Ramos, Paulo de Tarso Domingos e Pedro Maia, sob a coordenação de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, 12.ª edição, Almedina, Lisboa, 2015, p. 18.59 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 332.60 De acordo com a terminologia utilizada por M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 8, tratam-se de “cláusulas estatutárias de incedibilidade”.61 Artigo 240.º. Esta solução é semelhante àquela que vigora no regime das sociedades em nome coletivo (artigo 185.º/1/a)).

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cessão se tornar livre, tal como resulta do artigo 231.º/2/a), sem que a socie-dade possa, neste caso, rejeitar a efi cácia da cessão, uma vez comunicada. Neste sentido, o sócio a quem tenha sido recusado o consentimento terá sempre a possibilidade de realizar, ao menos parcialmente, o seu interesse, deixando de ser sócio e recebendo uma contrapartida monetária por isso62. Por isso, “o requisito do consentimento destina-se a funcionar como fi ltro ou barreira à entrada de novos sócios, permitindo à sociedade a sua seleção; não como limite à saída dos existentes”63.

Nos termos do artigo 229.º/4 a efi cácia da deliberação de alteração do contrato de sociedade que proíba ou difi culte64 a cessão de quotas depende do consentimento de todos os sócios por ela afetados. É natural que assim seja uma vez que esta circunstância vai afetar “a posição pessoal (e patrimonial) de todos eles”65. Em todo o caso, e estando em causa uma alteração dos estatutos, a deliberação em si bastar-se-á com a obtenção de uma maioria de três quartos, tal como decorre do artigo 265.º/166.

2.1.2. Posição do sócio alienante na deliberação sobre o pedido de consenti-mento para a cessão de quotas

Coloca-se a questão de saber se o sócio alienante pode votar na deliberação social que visa decidir o pedido de consentimento por ele feito para a cessão de quota de que é titular. Raúl Ventura67 pronuncia-se em sentido afi rmativo, uma vez que “não existe nenhum impedimento de voto imposto pelo artigo 254.º; não há confl itos de interesses, não há proibição legal expressa e o objeto da deliberação não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 1” do artigo 251.º.

62 Pedro Maia, ob. cit., p. 20.63 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 8.64 Como referido Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 464, tratam-se, por exemplo, dos casos em que é dispensado o consentimento, em que se exige o consentimento para mais casos, em que se estabelecem determinados requisitos para a concessão do consentimento ou em que se reforça o quórum exigido para a deliberação subjacente àquele consentimento. 65 António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 372.66 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 464, que entende que quando se trate de deliberação com vista à supressão da exigência do consentimento ou à facilitação da transmissão, ainda que esta não implique a eliminação da cláusula de consentimento, é de aplicar analogicamente o disposto no artigo 328.º/3/2.ª parte, exigindo-se, portanto, uma maioria de dois terços. 67 Raúl Ventura, ob. cit., p. 627.

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De iure condendo tendemos a concordar com o entendimento oposto afi r-mado por João Labareda68. Ora, é por demais evidente qual será o sentido do voto do sócio alienante neste tipo de deliberação social. Naturalmente que não se espera que este, tendo solicitado a autorização da sociedade para ceder a sua quota, se manifeste, em sede de deliberação, contra a pretensão que ele pró-prio formulou e deseja ver satisfeita. O sentido do voto estará, por isso, inqui-nado pelos objetivos próprios do sócio alienante, o que não se coaduna com “(…) o interesse pessoal que o direito de voto satisfaz (…)”, que corresponde, necessariamente, ao “(…) interesse do sócio enquanto tal, não devendo – nem podendo – ser utilizado para alcançar fi ns extra-corporativos”69.

Acresce a isto que “(…) a tutela do interesse do sócio não carece da sua participação na deliberação social ou sequer se realiza, de algum modo, através dela (…)70”. Assim ocorre pois, independentemente do sentido da deliberação, o interesse do indivíduo nunca sairá prejudicado: continuará a poder abandonar o tecido social e, concomitantemente, benefi ciará de um regime de proteção que o legislador expressamente lhe assegurou nos termos do artigo 231.º.

Por outro lado, “(…) nem essa intervenção, a admitir-se e a verifi car-se, poderia já ser justifi cada como meio de expressão da colaboração do sócio na defi nição e promoção do interesse corporativo que a ele igualmente respeita”71. É que a sujeição da cessão ao consentimento social visa, essencialmente, obviar à entrada de terceiros indesejáveis - circunstância particularmente compreen-sível no contexto das sociedades por quotas, de pendor acentuadamente mais personalístico - e, assim, proteger a sociedade duma ingerência que ela con-sidera prejudicial. A defesa deste interesse caberá, necessariamente, aos sócios remanescentes e já não ao sócio alienante pois é a posição destes, e já não daquele – porque não pretende mais ser sócio -,que o sentido da deliberação poderá vir a afetar.

De iure condicto, porém, parece não haver como sustentar solidamente esta última posição. O direito de voto é um direito fundamental do sócio e as dis-posições que o impedem ou inibem são excecionais por isso não podem, em virtude do disposto no artigo 11.º CC, ser aplicadas analogicamente. Por outro lado, dada a elevada concretização do regime das sociedades por quotas será, porventura, difícil, não aceitar que, se o legislador tivesse querido impedir o sócio de votar nesta deliberação, tê-lo-ia dito expressamente72.

68 João Labareda, ob. cit., p. 470.69 Ibidem, p. 490.70 Ibidem, p. 491.71 Ibidem, p. 491. 72 António Pereira de Almeida, ob. cit., p. 268.

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2.2. Limitações estatutárias ao consentimento social

Como referimos, o contrato de sociedade não pode subordinar os efeitos da cessão a requisito diferente do consentimento da sociedade73. A ratio desta disposição é, portanto, permitir que o sócio possa benefi ciar dos mecanismos de tutela previstos expressamente para os casos em que este se vê confrontado com a recusa de consentimento por parte da sociedade74.

Nos termos do artigo 229.º/5 é admissível o condicionamento deste con-sentimento mediante estipulação no contrato de sociedade. Este condiciona-mento resultará da imposição da observância de determinados requisitos, desde que não proibidos por lei, cuja violação acarretará a anulabilidade da delibera-ção por violação dos estatutos (artigo 58.º/1/a)). Em todo o caso, estes requisi-tos não podem fazer com que a cessão fi que dependente da vontade individual de um ou mais sócios ou de pessoas estranhas, salvo tratando-se de credor e para cumprimento de cláusula de contrato onde lhe seja assegurada a permanência de certos sócios (al. a)); de quaisquer prestações a efetuar pelo cedente ou pelo cessionário em proveito da sociedade ou de sócios (al. b)) ou da assunção, pelo cessionário, de obrigações não previstas para a generalidade. Estas limitações visam evitar a subversão do sistema, impedindo que, “a pretexto de autorização para a cessão, se pretendam obter vantagens específi cas para a sociedade ou para os sócios”75.

2.2.1. Preferências estatutárias

Dada a fl exibilidade e a ampla autonomia estatutária do regime previsto para as sociedades por quotas parece ser de admitir a validade da estipulação de preferências estatutárias a favor da sociedade e/ou dos sócios não cedentes. Esta preferências, sob pena de não serem oponíveis à sociedade, têm de estar previstas no contrato social, não sendo sufi ciente, para esse efeito, o simples acordo parassocial.

Em bom rigor e ainda que, contrariamente ao que acontece nas sociedades anónimas, o CSC preveja, para os quotistas, o direito de exoneração, este não é um direito geral, mesmo naqueles casos em que ocorre justa causa. Desta

73 Contrariamente ao cenário vigente ao abrigo da antiga Lei das Sociedades por Quotas, de 1901 (§3 do artigo 6.º), nos termos da qual “a escritura social pode fazer depender a cessão de quotas do consentimento da sociedade ou de outros requisitos”.74 Raúl Ventura, ob. cit., p. 606 e ss.75 António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 373.

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forma, a via normal de um sócio sair da sociedade continua a ser, mesmo nas sociedades por quotas, mediante o recurso à cessão destas76.

Nos casos em que a cessão é livre, estarão em causa cláusulas de preferência autónomas77, “puras e simples”78. Pelo contrário, sempre que for exigido o consentimento da sociedade, estaremos perante cláusulas mistas79. Nestes últi-mos casos, e por respeito ao disposto no artigo 229.º/5, a efi cácia da cessão perante a sociedade não pode – nunca – fi car subordinada ao cumprimento da obrigação de preferência pelo sócio cedente. A violação desta norma implicará o recurso às regras gerais da redução e da conversão do negócio jurídico pre-vistas, respetivamente, nos artigos 292.º e 293.º CC como forma de assegurar a validade daquela estipulação.

Mais discutível tem sido a natureza destas preferências estatutárias.Ora, estas preferências visam, tipicamente, a concretização de interesses de

índole societário que impõem, muitas vezes, a necessidade de controlo sobre a “composição do substrato pessoal da sociedade”80. Por outro lado, estando previstas nos estatutos, encontram-se sujeitas “aos requisitos de validade, ao regime de efi cácia e às regras de modifi cação destes”81. Neste sentido, a even-tual derrogação desta cláusula terá de ocorrer nos termos gerais previstos para as alterações dos contratos de sociedade82, pelo que será sufi ciente, nos termos do artigo 250.º/3 ex vi 265.º/1 a obtenção de uma maioria de três quartos83, salvo disposição em contrário do contrato. Ora, não é essa a lógica subjacente aos pactos de preferência que requerem, nestes casos, o consentimento de todos os que foram partes no contrato84. Ademais, quando estipuladas, as preferências estão de tal modo inerentes85 às quotas que o sócio que as adquira passará tam-bém a estar vinculado àquela cláusula, sem prejuízo do contrato de sociedade poder dispor em sentido contrário86. Acresce a tudo isto a circunstância do

76 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 7.77 Ibidem, p. 3.78 Ibidem, p. 4.79 Ibidem, p. 3.80 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 337.81 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 6.82 Como aliás ocorre, por imposição expressa do legislador, no âmbito das sociedades anónimas (artigo 328.º/3/2.ª parte). 83 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 18. Em sentido contrário, Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 472, Autor que defende a aplicação analógica do disposto no artigo 328.º/3/2.ª parte, exigindo-se, portanto, uma maioria qualifi cada.84 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 472.85 M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 6.86 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 472.

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próprio ordenamento acolher preferências legais87, entre as quais se destaca, por razões de semelhança em relação às preferências estatutárias, aquela prevista no artigo 239.º/5.

Do exposto resulta, em suma, que estas preferências têm um caráter mate-rialmente estatutário, por contraposição com os pactos de preferência que, enquanto fi gura de direito civil, apenas se encontrariam incluídos nos estatutos em termos formais88. Este entendimento não obsta, todavia, ao recurso, a título subsidiário, às normas previstas nos artigos 414.º e ss. CC ex vi artigo 2.º CSC89.

III – Transmissão de ações

A partir do artigo 1.º/a) do Código dos Valores Mobiliários90 o legislador português qualifi cou expressamente as ações como valores mobiliários, razão pela qual a sua transmissão se encontra dentro do âmbito de aplicação daquele Diploma.

No que toca à forma de representação das ações, esta pode ser feita, nos termos do artigo 46.º CVM, através de registo em conta ou papel. No primeiro caso, tratar-se-ão de ações escriturais e, no segundo, de ações tituladas.

Até à entrada em vigor da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, era possível estabelecer uma segunda distinção entre ações – independentemente de serem escriturais ou tituladas – consoante o emitente tivesse ou não a faculdade de conhecer a todo o tempo a identidade dos titulares, de onde resultava que as ações poderiam ser qualifi cadas como nominativas ou ao portador (artigos 229.º/1 CSC e 52.º/1 CVM).

Por fi m, as ações podem ser distinguidas consoante estejam integradas – ou não – em sistema centralizado (88.º-94.º CVM).

No que toca às ações escriturais, a sua transmissão depende do registo na conta do adquirente, conforme resulta do artigo 80.º/1 CVM. Pelo contrário, e nos termos do artigo 102.º/1 CVM, as ações tituladas nominativas transmi-tem-se por declaração de transmissão escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente – a sociedade – ou junto de intermediário fi nanceiro que o represente.

87 Vejam-se os artigos 239.º/5, 231.º/4, 268.º e 460.º.88 João Labareda, Das Ações das Sociedades Anónimas, AAFDL, Lisboa, 1988, p. 295.89 Sem prejuízo do recurso à aplicação analógica do regime do direito de subscrição preferencial de novas quotas (artigos 266.º e ss.), como entendem M.J. de Almeida Costa e Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 7, nota de rodapé (13).90 Doravante, CVM.

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1. Livre transmissibilidade das ações

Ora, vimos que, no que toca às sociedades por quotas, a regra supletiva dispõe que a cessão depende do consentimento da sociedade (artigo 228.º/2), podendo mesmo ser proibida pelo contrato de sociedade (artigo 229.º/1). Diversamente, no que toca às sociedades anónimas, e à semelhança do que ocorre noutros ordenamentos jurídicos91, decorre do artigo 328.º/1 o princípio da livre transmissibilidade das ações. Neste sentido, o contrato de sociedade não pode excluir a transmissibilidade das ações, e isso ainda que aquela exclusão tenha em vista, somente, determinado período92.

A regra da livre transmissibilidade das ações surge, do ponto de vista dos investidores, como um importante incentivo para a aquisição de ações, pois permite que a recuperação do capital investido, através da transmissibilidade da qualidade de sócio, se apresente como fácil93, fazendo com que o acionista não seja um prisioner de son titre.

Por outro lado, “a parcimónia com que o legislador admite o direito de exoneração”94 dos acionistas nas sociedades anónimas95 implica que o aban-dono do tecido empresarial se concretize, fundamentalmente e naqueles casos, mediante a negociabilidade de ações. Daqui resulta a importante função de contrapeso assumida pela regra da livre transmissibilidade das ações.

Acresce a tudo isto que, nas sociedades anónimas, a responsabilidade dos sócios encontra-se limitada, conforme previsto no artigo 271.º, pelo valor das ações que subscreveram. Pelo contrário, nas sociedades por quotas, em virtude da especial relação de confi ança que vigora entre os sócios, resulta do artigo 197.º/1 que (…) os sócios são solidariamente responsáveis por todas as entradas con-vencionadas no contrato social (…).

Do exposto resulta que as ações, por contraposição com as quotas, são muito mais aptas a circular. Esta tendência justifi ca que, nos termos do artigo 219.º/7, não possam ser emitidos títulos representativos de quotas. Pelo con-trário, as ações devem ser representadas, conforme disposto no artigo 46.º/1 CVM, através do seu registo em papel ou em conta caso se tratem, respetiva-

91 João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, 2001, Coimbra, p. 304. 92 João Labareda, Das acções..., p. 212. Como defende Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 522, “uma cláusula como esta exclui a transmissibilidade das ações durante esse período de tempo, o que a lei não permite”. 93 Maria João R. C. Vaz Tomé, “Algumas notas sobre as restrições contratuais à livre transmissão de ações”, Direito e Justiça, Vol. V, Gráfi ca de Coimbra, 1991, p. 212.94 João Calvão da Silva, ob. cit., p. 305.95 Artigos 3.º/6, 105.º, 120.º, 137.º, 161.º/5 e, no caso das sociedades coligadas, artigos 490.º/5 e 499.º/1 e 2. Ainda é admitida nos casos dos artigos 317.º e ss. e 94.º a 96.º.

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mente, de ações tituladas ou ações escriturais. Desta forma, a representação das ações num documento permitirá sujeitar a sua transmissão ao regime da circu-lação dos títulos de crédito96.

A regra da livre transmissibilidade das ações refl ete, por isso, a constituição, por defi nição, da sociedade anónima como paradigma da sociedade de capi-tais97. Neste sentido, “o que importa já não é tanto a pessoa do sócio (…) mas o seu contributo patrimonial (…) para a atividade societária”98. No que toca às sociedades por quotas, o caráter supletivo de muitas das normas que acompa-nham o seu regime, implica que, em função das escolhas dos sócios, elas tanto possam surgir como sociedades capitalísticas99 como sociedades personalísticas. Em todo o caso, não será forçoso concluir que o modelo, em abstrato, dese-nhado pelo legislador para este tipo de sociedades corresponde a este último uma vez que será este a vigorar na hipótese das partes não afastarem aquelas normas.

2. Limitações à livre transmissibilidade das ações

No que concerne às sociedades anónimas, “as necessidades da vida demons-traram a impraticabilidade e até a falácia deste modelo de total anonimato, não podendo o Direito divorciar-se das próprias relações sociais que pretende regular”100.

Por isso, veio o legislador consentir, conforme disposto no artigo 328º/1 in fi ne que, em certos casos, a transmissibilidade das ações – atente-se, nomina-tivas101 – possa ser limitada mediante previsão no contrato de sociedade. Por-

96 Jorge Simões Cortez, As formalidades da transmissão de quotas e ações no Direito Português: dos princípios à prática, p. 328, consultável em https://www.mlgts.pt/xms/fi les/Publicacoes/Artigos/2012/formalidades_transmissao_quotas_accoes_Direito_Portugues_dos_principios_a_pratica.pdf. 97 Por oposição, tipicamente, às sociedades em nome coletivo que assumem o lugar de sociedades de pessoas. 98 Pedro Maia, ob. cit., p. 37.99 Será o caso de, ao abrigo do artigo 229.º/2, os sócios consagrarem a liberdade de cessão de quotas mesmo perante terceiros estranhos à sociedade. 100 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 213.101 Tituladas ou escriturais. Porém, repare-se que foi publicado, em Diário da República, a 25 de setembro, o Decreto-Lei nº 123/2017, previsto no artigo 3.º da Lei nº 15/2017, de 3 de maio, que instituiu a proibição de emissão de valores mobiliários ao portador, aplicável desde dia 4 de maio de 2017, e impôs a conversão dos valores mobiliários ao portador em circulação em nominativos. Estabeleceu-se que a implementação desta conversão teria de ser feita até ao passado dia 4 de novembro, sob pena de, a partir dessa data, os seus titulares estarem impedidos de os transmitir

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tanto, ainda que se possa entender que a sociedade anónima constitui, por defi nição, uma sociedade de pendor mais capitalista, casos há em que esta tem interesse em que o seu domínio se concentre em determinados sócios102, ocor-rendo então uma “matização personalística do cunho capitalístico”103.

Neste sentido, o elemento pessoal prevalecerá sobre o elemento capitalís-tica nos casos em que, por exemplo, a sociedade é constituída por um grupo de pessoas que se encontram unidas por laços familiares, pertencem a uma mesma comunidade de conhecimentos técnicos ou partilham das mesmas crenças ideo-lógicas104 mas também pode ocorrer naqueles outros casos em que sociedade procura impedir a entrada de elementos com intenções especulativas, propó-sitos ou opiniões contrárias àquelas que as dominam, com vista à manutenção da sua natureza de grupo fechado105. Neste sentido, as cláusulas contratuais limitativas da livre transmissibilidade das ações têm como fi nalidade a tutela do interesse social106 que se refl ete, em suma, na criação de obstáculos, pela socie-dade, à intervenção de pessoas que esta considere indesejáveis.

Estando previstas no contrato de sociedade (artigo 272.º/b)), estas cláu-sulas são dotadas de uma efi cácia erga omnes. Contudo, existem outras fon-tes que podem condicionar a transmissibilidade das ações: a lei e os acordos parassociais107-108.

As restrições transmissivas contratuais, reguladas nos artigos 328.º e 329.º, não podendo existir, sob pena de nulidade, para “além do que a lei permite”,

e de exercer os seus direitos a receber os resultados associados aos valores mobiliários que não tenham sido convertidos.102 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 215. 103 M. Nogueira Serens, “Notas sobre a sociedade anónima”, Stvdia Ivridica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 6.104 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 202.105 Adriano Pais da Silva Vaz Serra, “Ações nominativas e ações ao portador”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.ºs 175, 176, 177 e 178, Lisboa, Ministério da Justiça, 1968, p.215.106 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 218. Como refere Jorge Simões Cortez, ob. cit., p. 328, “para a generalidade dos autores o interesse social consiste no interesse comum dos sócios enquanto tais na obtenção e repartição dos lucros resultantes da prossecução de determinada atividade (…), cabendo (…) à maioria deles a defi nição em cada momento daquilo que corresponde o interesse social (…)”.107 O recurso aos acordos parassociais permite estipular limites que a lei não admite fi gurarem no contrato de sociedade, nomeadamente a consagração da intransmissibilidade das ações durante determinado período. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, “Notas sobre os acordos parassociais relativos à transmissão de ações: em especial, os acordos ditos de «bloqueio»”, Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. II, Direito Privado, Processual e Penal, Coimbra Editora, 2011, p. 32.108 Neste último caso, porém, as cláusulas terão efeitos meramente obrigacionais.

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encontram-se sujeitas a um princípio de numerus clausus. As ações sujeitas a estas cláusulas não podem ser objeto de negociação organizada uma vez que, para efeitos do artigo 204.º/1/a) CVM, não são ações livremente transmissíveis.

As limitações contratuais permitidas por lei só podem reconduzir-se a i) cláusulas de consentimento, ii) cláusulas de preferência e iii) cláusulas de con-dicionamento. Note-se que o alcance da tipicidade destas limitações é muito menor do que aquele que parece resultar duma leitura apressada da lei, o que resulta, sobretudo, da sua “redação folgada”109.

Do artigo 328.º/4 decorre que estas cláusulas só são oponíveis a adqui-rentes de boa fé caso sejam transcritas nos títulos ou nas contas de registo das ações. Neste sentido, a validade destas cláusulas não se encontra dependente da sua transcrição, porém, quem adquira as ações desconhecendo as limitações a que a sua transmissão se encontrava sujeita não pode ser prejudicado por elas e a sua aquisição não deixará de ser plenamente válida e efi caz. No que toca a adquirentes de má fé, estas cláusulas ser-lhes-ão sempre oponíveis. Há, por isso, quem110 considere – e com razão, na nossa opinião – que a ratio para a consa-gração da sujeição das limitações à transmissibilidade das ações ao princípio da tipicidade reside na “possibilidade de dotar as cláusulas restritivas de efi cácia face a terceiros de acordo com (…) esquemas próximos dos direitos reais (…)”. Neste sentido, a transcrição daquelas cláusulas no contrato social conferir-lhes-á “a publicidade necessária” para as tornar oponíveis “a terceiros, com efi cácia real, erga omnes”111.

A consagração de restrições estatutárias à transmissibilidade das ações no contrato constitutivo da sociedade exige, naturalmente, a concordância de todos os fundadores. Mas estas cláusulas também podem ser inseridas no contrato mediante a sua alteração posterior, o que reclama o consentimento de todos os acionistas cujas ações sejam por ela afetadas nos termos do artigo 328º/3.

As limitações introduzidas podem respeitar apenas a ações correspondentes a certo aumento de capital pelo que, neste caso, a deliberação terá de ocorrer simultaneamente com a do aumento. Deixará de ser necessário o acordo unâ-nime dos acionistas uma vez que as ações afetadas não pertencem a nenhum deles112.

Situação diferente será aquela em que a alteração do contrato de sociedade tem em vista apenas a atenuação ou extinção das restrições transmissivas, caso

109 Pedro de Albuquerque, ob. cit., p. 822. 110 Paulo Câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1996, pp. 334 e 335.111 João Calvão da Silva, ob. cit., p. 308.112 João Labareda, ob. cit., pp. 284 e 285.

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em que é dispensado o consentimento de cada acionista visado, exigindo-se para o efeito a deliberação por maioria qualifi cada, em primeira convocação, tal como dispõem os artigos 328/.º3, 383.º/2 e 3 e 386.º/3 e 4. A consagração de uma maioria menos exigente justifi ca-se “em virtude de se represtinar o princípio da liberdade de cessão das ações”113.

2.1. Cláusulas de consentimento

Nos termos do artigo 328.º/2/a), o contrato de sociedade pode subordinar a transmissão das ações nominativas ao consentimento da sociedade. Esta dispo-sição deve ser conjugada com o que resulta do artigo 329.º

O contrato deve, sob pena de nulidade da cláusula de consentimento, con-ter as especifi cações decorrentes do artigo 329.º/3. Neste sentido, o contrato de sociedade deve fi xar um prazo, não superior a 60 dias, para a pronúncia da sociedade sobre o pedido de consentimento (al. a)); estipular a liberdade da transmissão das ações no caso da sociedade não se pronunciar dentro do prazo defi nido ao abrigo da alínea anterior e a obrigação de a sociedade, no caso de recusar licitamente o consentimento114, fazer adquirir as ações por outra pes-soa nas condições de preço e pagamento do negócio para que foi solicitado o consentimento ou, tratando-se de transmissão a título gratuito, ou provando a sociedade que naquele negócio houve simulação de preço, a aquisição far-se-á pelo valor real, determinado nos termos previstos no artigo 105.º/2 (al. c)).

Para assegurar o cumprimento do disposto na al. b) decorre, então, que do pedido dirigido115 à sociedade para o consentimento da transmissão, deve cons-tar a identidade do proposto adquirente, bem como as condições do negócio, “sem o que a sociedade não está habilitada a pronunciar-se sobre o consen-timento, não podendo, pois, nesse caso, o silêncio ser tido como declaração tácita de autorização para a cessão”116.

Perante a violação da cláusula de consentimento, a transmissão considerar--se-á, na mesma, válida, porém, será inefi caz face à sociedade, que continuará a

113 João Calvão da Silva, ob. cit., p. 307.114 A licitude da declaração de consentimento depende do motivo da recusa se encontrar especifi cado no contrato de sociedade ou, por outro lado, da circunstância deste motivo ser concretização de um interesse relevante da sociedade.115 Que poderá ser formulado quer pelo cedente, quer pelo cessionário. Em sentido contrário, Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 559, que entende que o pedido só pode ser formulado pelo cedente. 116 João Labareda, ob. cit., p. 291.

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considerar o cedente – e já não o cessionário – seu sócio117. O consentimento pode ser dado tanto em momento anterior como em momento posterior à transmissão118.

Nos termos do artigo 329.º/1 o consentimento a que pode fi car subor-dinada a transmissão das ações nominativas é o consentimento da sociedade, não sendo possível a atribuição deste poder a outro acionista ou a um terceiro. A concessão ou recusa do consentimento é, perante o silêncio dos estatutos, da competência da Assembleia Geral. De acordo com a taxatividade do regime dos impedimentos de voto, conforme estabelecido no artigo 384.º/6, tanto o alienante como, no caso de ser sócio, o adquirente das ações, poderão votar na deliberação social que aprecie o pedido de consentimento para a transmissão em causa119.

Mediante disposição estatutária pode esta competência ser atribuída a outro órgão, como o caso do conselho geral ou da direção, no caso da sociedade ado-tar esta estrutura. No caso contrário poderá também ser o conselho de adminis-tração ou o administrador único se for esse o caso. Já não parece razoável aceitar que a competência em causa seja conferida ao conselho fi scal, nas sociedades que o tenham, por razões de aparente incompatibilidade com o tipo de funções que este órgão exerce120.

Nos termos do artigo 329.º/2, perante a não especifi cação, nos estatu-tos, dos motivos da recusa do consentimento, é lícito à sociedade recusá-lo com fundamento em qualquer interesse relevante da sociedade, por exemplo, porque a entrada do transmissário, porque se dedica a uma atividade concor-rente à desenvolvida por aquela sociedade, prejudicaria o interesse comum dos sócios121. Situação que se afi gurará frequente dada a difi culdade de precisão122, por parte da sociedade, destes motivos. Por outro lado, ser-lhe-á sempre mais conveniente não proceder a esta especifi cação no sentido em que terá mais liberdade para uma apreciação casuística e, portanto, para melhor tutela do interesse social. Esta solução contrasta, desde logo, com o regime vigente para as sociedades por quotas, de acordo com o qual, dado o seu caráter tendencial-mente personalístico, se admite a recusa ad nutum do consentimento.

117 João Labareda, ob. cit., p. 287.118 Ibidem, p. 288 e Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 350.119 Pedro de Albuquerque, ob. cit., p. 824. Em sentido contrário, valem aqui as apreciações feitas, sobre a mesma problemática, no tocante às sociedades por quotas.120 João Labareda, ob. cit., p. 289. 121 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 350.122 Adriano Pais da Silva Vaz Serra, ob. cit., p. 226.

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Da leitura conjunta dos artigos 328º/1/a) e 329.º/2 pode-se retirar que os estatutos não podem dispensar o órgão social competente de fundamentar a sua recusa de consentimento à alienação projetada. De acordo com o artigo 328.º/1 as limitações à transmissibilidade das ações só podem ocorrer dentro dos termos permitidos por lei. O artigo 329.º/2, por sua vez, dispõe que a lici-tude da recusa do consentimento se encontra dependente da circunstância do motivo da recusa constar do contrato de sociedade ou, não constando, quando a recusa ocorre tendo por base qualquer interesse relevante da sociedade. Dis-pensando-se o órgão competente da fundamentação da recusa, estar-se-ia a permitir que a limitação da transmissibilidade ocorresse também fora destes termos, nomeadamente quando motivada por interesses extrassociais, pois que não haveria forma de controlar estes motivos. Daqui se retira a natureza impe-rativa do disposto no artigo 329.º/2, entendimento que é sustentado pela sua letra: “devendo indicar-se sempre na deliberação o motivo da recusa” (itálico nosso)123.

No caso da transmissão incidir sobre determinada quantidade de ações, não será lícito ao órgão social competente prestar o assentimento para uma parte e não para outra. Doutra forma, o alienante correria o risco do terceiro adquirente não estar interessado em receber apenas uma parte. Por outro lado ainda, a sociedade passaria a estar adstrita à obrigação de fazer adquirir por outra pessoa a parte do lote cuja alienação recusou dar consentimento, o que seria, desde logo, incongruente com a letra do artigo 329.º/3/c), nos termos da qual o negócio para que foi solicitado o consentimento corresponde ao negócio nos termos apresentados pelo alienante, abrangendo, nomeadamente, determi-nada quantidade de ações. Ora, a alteração desta quantidade implica, necessaria-mente, a alteração do negócio que estava inicialmente em causa124.

Perante a circunstância da sociedade recusar o consentimento para a trans-missão, a saída do acionista não fi cará prejudicada uma vez que, de acordo com o artigo329.º/3/c), a sociedade tem a obrigação de apresentar uma alternativa de aquisição ao sócio. Pode o acionista só estar disposto a abandonar a sociedade caso consiga transmitir as suas ações a determinada pessoa125, pelo que se deve entender que aquele não se encontra obrigado a transmiti-las ao adquirente

123 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., pp. 207 e 208.124 Ibidem, p. 204.125 Quando o que está em causa é um negócio com vista à transmissão de todas as suas ações, naturalmente.

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encontrado pela sociedade. Não cabe à sociedade provocar a saída do sócio só porque este manifestou a vontade de transmitir a sua participação social126.

Caso a sociedade prove que, no negócio para o qual foi suscitado o seu consentimento, houve simulação de preço, dispõe o referido artigo que a aqui-sição pela pessoa encontrada pela sociedade deve ser feita pelo seu valor real, determinado de acordo com o artigo 105.º/2. Este artigo deve ser interpre-tado restritivamente sob pena de, nos casos em que o preço real do negócio é inferior ao correspondente ao preço real das ações, se permitir ao acionista benefi ciar da simulação127. Assim, havendo simulação de preço, a aquisição das ações só se fará pelo seu valor real, apurado nos termos do artigo 105.º/2, quando o preço real, ainda que diferente daquele que foi declarado, é superior ao valor das ações apurável nos termos deste artigo, solução que se justifi ca como “medida punitiva da deslealdade do acionista”128.

Em relação ao tipo de transmissões que podem ser objeto de limitações através de cláusulas de consentimento, incluem-se, desde logo, as transmissões inter vivos. Pese embora o facto do legislador não se ter referido expressamente a este tipo de transmissões, também não as excluiu. Podem ainda estas transmis-sões ter como causa negócios jurídicos a título oneroso ou gratuito, resultando claramente esta intenção legislativa do disposto no artigo 329.º/3/c). Por fi m, elas podem incidir sobre transmissões a favor de terceiros ou entre acionistas. No primeiro caso, a ameaça da perturbação do interesse social é naturalmente justifi cável pois a sociedade está perante um adquirente que lhe é totalmente estranho. No segundo caso, a transmissão das ações a quem já é sócio pode alterar o equilíbrio de forças dentro da sociedade. Ora, o interesse social surge, muitas vezes, intimamente ligado à necessidade de manutenção da posição rela-tiva dos sócios dentro da sociedade. Umas vezes ele pressupõe a concentração do poder num só acionista ou num número reduzido de acionistas e, noutras vezes, ele realiza-se através do cenário precisamente oposto.

Mais discutível já é a questão de saber se estas cláusulas são ou não aplicáveis à sucessão mortis causa. A questão coloca-se, sobretudo, visto a regulação deste tipo de transmissão, em sede de sociedades por quotas, ser feita autonomamente (artigos 225.º a 227.º) face ao previsto para a transmissão inter vivos (artigos 229.º e ss.). Não se encontram razões para excluir do âmbito deste preceito as trans-missões mortis causa podendo a sociedade ver-se igualmente ameaçada “quando

126 Augusto Teixeira Garcia, “A cláusula de preferência quanto à transmissão de ações: algumas notas”, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 393.127 João Labareda, Das acções...., p. 293.128 Ibidem, p. 293.

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à morte de um sócio um seu herdeiro ou legatário pretende suceder-lhe na sua qualidade de acionista” 129, verifi cando-se, por isso, um interesse tão legítimo como aquele que ocorre na recusa do consentimento perante uma transmissão inter vivos. Por outro lado, e em bom rigor, a sucessão mortis causa não deixa de ser uma forma de transmissão. Pelo contrário, o mesmo não pode ser extensível à al. b) que se refere, expressamente, a casos de alienação, pressupondo, necessa-riamente, a transmissão inter vivos. Neste caso, o pedido de consentimento terá de ser dirigido à sociedade pelos sucessores do sócio de cujus. Não estará em causa um pedido para uma verdadeira transmissão mas, pelo contrário, para a continuação das ações na titularidade destes130.

2.2. Cláusulas de preferência

Conforme resulta do artigo 328.º/2/c), o direito de preferência só pode ser estabelecido a favor dos outros acionistas131. Cabe perguntar se este direito pode ser estabelecido a favor de algum ou alguns acionistas ou, pelo contrário, terá de ser estabelecido a favor de todos132. Uma interpretação literal do preceito leva a crer que este direito terá de ser estabelecido a favor de todos os acionistas133.

Coloca-se a questão de saber quem poderá exercer aquele direito quando todos os sócios se apresentarem à preferência. Perante o silêncio do pacto, não deve o intérprete conformar-se com a solução que confere a preferência ao primeiro sócio que manifeste a sua vontade no sentido de adquirir as ações134, sendo antes de defender a aplicação analógica do disposto no artigo 458.º/2135.

Controversa também é a problemática inerente à interpretação deste direito de preferência. Deverá este direito ser entendido em sentido próprio136 e, desta forma, estando em causa uma preferência “tanto por tanto”, a alienação das ações far-se-á perante o recebimento de uma contrapartida que será, em regra, o preço estabelecido pelo próprio alienante? Ou, pelo contrário, deverá este

129 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 210.130 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 352.131 Esta cláusula não pode, por isso, ser estabelecida a favor da sociedade, mesmo que esta detenha ações próprias. 132 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 527.133 A lei refere-se a um direito de preferência dos outros acionistas e não de outros acionistas. 134 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 205.135 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 352.136 Neste sentido, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 352 e Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., pp. 528 e 529. Para este último autor, estará abrangida não só a compra e venda como outros contratos com ela compatíveis, como decorre do artigo 423.º CC.

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direito ser entendido em sentido impróprio137, abrangendo não só as transmis-sões onerosas como também as transmissões gratuitas?

No sentido do primeiro entendimento, pode-se invocar o signifi cado que a expressão “direito de preferência” tem ao abrigo de outras normas138e, por outro lado, a circunstância do legislador ter acolhido a possibilidade do con-trato de sociedade limitar transmissões gratuitas (artigo 328.º/2/a) e c))139. Esta Doutrina tenderá, por isso, a entender, em suma, que pressupondo o pacto de preferência regulado no Código Civil negócios translativos de caráter one-roso, então a cláusula de preferência estipulada com referência à transmissão de participações sociais também só funcionará perante alienações onerosas. Não obstante, e com o devido respeito, teremos de concordar com aquela opinião oposta, afi rmada por Augusto Teixeira Garcia, que deteta o vício deste racio-cínio, no sentido em que “a primeira premissa já pressupõe a conclusão”140.

As cláusulas de preferência no âmbito societário são guiadas por interes-ses totalmente diferentes daqueles que presidem à sua estipulação no âmbito civil e esta originalidade não deve – nem pode – ser desvalorizada. Ora, no âmbito civil estas cláusulas concretizam, sobretudo, interesses patrimoniais. De um lado, o interesse do benefi ciário em obter um lugar de prioridade que lhe permita a aquisição de determinado bem e, do outro, o interesse do obrigado à preferência que, decidindo-se a negociar, considera que a propriedade do bem é menos valiosa, para si, do que o respetivo contravalor141. É esta a razão pela qual o funcionamento da preferência se encontra dependente do benefi ciário dela surgir em condições de proporcionar o valor patrimonial daquele bem, sendo por isso indiferente a concreta identidade do preferente.

A preferência civilística visa, sobretudo, a tutela da propriedade. Como fomos reforçando e comprovando ao longo deste trabalho, as limitações à transmissibilidade das ações visam, em grande medida, controlar a composição pessoal da sociedade. As cláusulas de preferência não são, por isso, exceção, de forma que se pode afi rmar que, no âmbito societário, a sua consagração visa antes a tutela da empresa social, circunstâncias em que a identidade do benefi -ciário da preferência assume um lugar de destaque. Pelo contrário, não se trata

137 Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., pp. 400 e ss.138 Conforme referido por Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 352, os artigos 423.º, 1380.º/1, 1535.º/1, 1555.º/1 e 2130.º/1 CC. Circunstância à qual acresce a presunção, do artigo 9.º/3 CC, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Neste sentido, Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 217, nota 17.139 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 352.140 Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., p. 400.141 Ibidem, p. 401.

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“tanto de se garantir uma posição de privilégio para a futura e eventual nego-ciação de certo bem” 142.

Conclui-se assim que “a cláusula de preferência societária, porque o seu âmbito de funcionamento é subjetivo, não objetivo, leva implícita a consi-deração da sua potencial aplicação a toda e qualquer transmissão”143. Ora, sob pena de frustração desta fi nalidade, aquela cláusula deve ser aplicada a toda e qualquer transmissão, onde se incluem não só as transmissões a título oneroso, como as transmissões a título gratuito e, até, aquelas em que a contrapartida não é um bem fungível. De outro modo o legislador teria acabado “por deixar entrar pela janela o que se quis proibir que entrasse pela porta”, abrindo-se assim espaço para o recurso, com sucesso, a negócios simulados144.

A cláusula que atribui o direito de preferência tem efi cácia real145 e isto mesmo em relação a terceiros de boa fé, desde que esteja transcrita nos títulos ou nas contas de registo das ações, conforme resulta do artigo 328.º/4. Não tão clara é a questão de saber se o direito de preferência atribuído aos acio-nistas tem ou não efi cácia real, ou, mais concretamente, se será admissível o recurso, ao sócio preferente, a uma ação de preferência146 no caso da alienação da coisa a um terceiro ou se, pelo contrário, o sócio que não dá preferência fi cará somente obrigado a indemnizar os sócios preferentes pelos danos even-tualmente causados147.

Em sentido negativo pronuncia-se Soveral Martins148 sustentando que os direitos de preferência dos acionistas em causa não são verdadeiros direitos legais de preferência uma vez que a sua fonte é o contrato de sociedade e não a lei.

No entanto, tendemos aqui a concordar com Augusto Teixeira Garcia149 que entende que o facto da preferência estatutária funcionar ilimitadamente, renovando-se cada vez que um sócio pretende transmitir a sua participação, permite que ela opere, em termos de frequência, em termos idênticos aos das preferências legais.

142 Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., p. 402.143 Ibidem, p. 403.144 Ibidem, pp. 404 e 405.145 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 532.146 Em sentido contrário, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, ob. cit., p. 354, Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 217, nota 18 e João Labareda, Das acções …, p. 296.147 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 532.148 Ibidem, p. 535.149 Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., p. 387.

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Ainda assim, pensamos que tem razão Soveral Martins150 quando afi rma que, para que este direito fosse dotado de efi cácia real, ele teria de cumprir com o disposto no artigo 421.º CC e, portanto, ter-se-iam de considerar as ações como bens móveis sujeitos a registo, o que, em bom rigor, não é o caso e, por outro lado, teriam as partes de convencionar expressamente a efi cácia real daquele direito. E em todo o caso, não se pode entender que o registo do con-trato de sociedade signifi ca o registo das ações que se pretendem transmitir151 ou, por outro lado, que o registo das ações – como o registo em conta das ações escriturais, por exemplo – não consiste no registo exigido pelo artigo 421.º/1 CC, que pressupõe, necessariamente, a natureza de registo público.

A cláusula de preferência é a única limitação à transmissão de ações que, de acordo com o artigo 3285.º/5, pode ser invocada em processo executivo ou de liquidação de patrimónios.

2.3. Cláusulas de condicionamento

De acordo com o artigo 328.º/2/c) o contrato de sociedade pode subor-dinar a transmissão de ações e a constituição de penhor ou usufruto sobre elas à existência de determinados requisitos, subjetivos ou objetivos e positivos ou negativos, que estejam de acordo com o interesse social. Desde logo, resulta desta disposição que i) esses requisitos têm de estar previamente defi nidos no contrato de sociedade152 e que ii) esses requisitos têm de ser conformes ao inte-resse social153/154.

No que toca a requisitos subjetivos – que digam respeito à pessoa do adqui-rente ou do sócio alienante –, podem estar em causa, por exemplo, cláusulas que estipulem que o adquirente pertença155 a uma mesma família, resida em determinado local, tenha determinada idade156, seja um antigo sócio, trabalha-

150 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 535151 Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., p. 388.152 Por isso têm de se encontrar concretizados. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 535.153 Veja-se que, ao contrário do que ocorre ao abrigo do disposto no artigo 329.º/2, não se exige um interesse social relevante. 154 Não se exige o interesse social concretamente defi nido no contrato de sociedade, pelo contrário, bastará “um interesse social potencial”. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 539.155 Tratam-se de requisitos positivos. Seriam negativos se impusessem, por exemplo, que o adquirente não exerça uma atividade concorrente. 156 Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., p. 265 e Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 209.

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dor ou cliente157. Parecem não colocar-se problemas de validade e efi cácia des-tas cláusulas, mesmo quando delas resulte uma circunscrição “pura e simples” do universo dos potenciais adquirentes. Ainda assim, e como forma de tutela do sócio alienante, deve-se entender que, a partir de certo grau de restrição, a sua validade dependerá das mesmas condições a que a cláusula de consentimento está sujeita, pelo que será de aplicar o previsto no artigo 329.º/3158.

Entendemos também que não é de aceitar a validade de cláusulas que esta-beleçam requisitos cuja verifi cação se encontre dependente duma apreciação por parte da sociedade, como seria o caso, por exemplo, do adquirente ser uma pessoa honesta159. Devem “ser retiradas consequências interpretativas do prin-cípio de livre transmissibilidade de ações, manifestando-se por forma a impe-dir interpretações extensivas de restrições contratuais à transmissibilidade; estas deverão, por regra, ser interpretadas restritivamente”160. Por outro lado, no que toca às cláusulas de condicionamento, “tão vasto é o âmbito da limitação consentida que, de alguma maneira, se atinge a própria tipicidade das cláusulas restritivas, pretendida pela lei, pois não é sequer possível alinhar o conjunto de situações concreta”161. Há que preservar a teleologia da regulamentação e recu-sar a previsão de requisitos indeterminados cuja verifi cação, aliás, nem seria fácil de comprovar. Os requisitos subjetivos devem estar limitados por condições cuja verifi cação possa ser aferida em termos objetivos e concretos, evitando-se assim conceder à sociedade o poder de autorizar ou recusar o consentimento162.

No que toca aos requisitos objetivos, parecem estar em causa requisitos referentes ao objeto da transmissão e, por exclusão dos requisitos subjetivos, que não digam respeito à pessoa do adquirente ou do sócio alienante163. Poder-se-ia questionar se o decurso de um certo período de tempo, nomeadamente aquele período de tempo posterior à constituição da sociedade, em que a presença e a coesão dos sócios fundadores é essencial para o sucesso inicial da sociedade, constituiria ou não um requisito objetivo164. Acontece que a exigência deste requisito implicaria que, durante aquele período de tempo, ninguém pudesse vir a adquirir aquelas ações. Não nos parece, por isso, de admitir esta limitação

157 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 537.158 Evaristo Ferreira Mendes, ob. cit., pp. 265 e 266.159 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 210.160 Paulo Câmara, ob. cit., p. 415. 161 João Labareda, Das ações …, pp. 293-300.162 A estipulação prévia da margem de discricionariedade é uma importante forma de tutela quer dos sócios quer dos terceiros adquirentes que não correrão o risco de encetar negociações condenadas, desde o início, ao fracasso, como refere Augusto Teixeira Garcia, ob. cit., p. 389.163 Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., p. 538.164 Maria João R. C. Vaz Tomé, ob. cit., p. 210.

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pois ela implicaria uma verdadeira exclusão, ainda que temporária, da transmis-sibilidade das ações, o que é expressamente proibido pelo artigo 328.º/1.

IV – Considerações fi nais Cumpre, neste momento, sintetizar as conclusões a que chegámos. No que toca à transmissão mortis causa de quotas, e ao permitir que o con-

trato de sociedade estabeleça a não transmissão da quota aos sucessores do fale-cido, o legislador optou por sobrepor a tutela dos sócios supérstites à tutela daqueles. Esta solução parece não oferecer espanto, dados os especiais interesses em causa e o mecanismo de compensação que permite colocar os sócios numa posição de igual valor.

Somos da opinião que os sucessores do sócio de cujus não devem participar na deliberação com vista à amortização ou aquisição da quota, uma vez que este direito se encontra excluído pelo n.º 2 do artigo 227.º e, por outro lado, também não se encontra abrangido pelo n.º 3, nem sequer por via de uma interpretação extensiva.

Desde a morte do sócio até ao momento da amortização ou aquisição da quota, os sucessores do sócio falecido são titulares da quota, embora a título precário. Só este entendimento é compatível com o regime do artigo 227.º.

No âmbito da cessão de quotas, o consentimento social como requisito da sua efi cácia para com a sociedade traduz-se numa importante forma de controlo do substrato pessoal das sociedades por quotas. Não obstante, o contrato de sociedade pode dispensar este consentimento, alargar o seu âmbito de aplicação ou subordinar os efeitos da cessão a requisito diferente do consentimento da sociedade.

Entendemos que a tutela do interesse social reclama, de iure condendo, o impedimento do sócio alienante participar na deliberação sobre o pedido de consentimento social.

No que toca à transmissão de ações, a consagração do princípio da liber-dade de transmissão traduz o entendimento de que as sociedades anónimas correspondem, por defi nição, a sociedades de capitais.

Porém, casos há em que a identidade do transmissário assume um peso considerável, à semelhança do que ocorre nas sociedades por quotas, de cunho mais personalístico. Daqui resulta a importância dos termos fl exíveis e gene-rosos com que o legislador permitiu a estipulação contratual de limitações à transmissão de ações. Ainda assim, não é possível não alertar para os efeitos perigosos que tamanho espaço para o exercício da autonomia privada pode provocar, nomeadamente ao nível da criação de sociedades anónimas total-

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mente fechadas. Por esta razão, as disposições legais referentes às cláusulas de consentimento, preferência e condicionamento devem ser interpretadas com cautela e, no limite, de forma restritiva.

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