Tratado dos Três Impostores Moisés Jesus Maome e O Espírito de Spinoza - Jean Maximilian Lucas

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* * J J EAN - - M MAXIMILIEN L L UCAS * * * * * * * * TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES M M OISÉS - - J J ESUS - - M M AOMÉ * * * * * * O O E E SPÍRITO DO S S ENHOR S S PINOZA

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HEREM PRONUNCIADO CONTRA SPINOZA EM AMSTERDÃ - Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, mal-dito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; não queira Adonai perdoar a ele, que então semeie o furor de Adonai e seu zelo neste homem e caia nele todas as maldições escritas no livro desta Lei.

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INTRODUÇÃO

Manuel Dias Duarte

Se o ateísmo é a atitude natu-ral e espontânea do ser huma-no, a crença nos deuses ape-nas se torna um hábito quan-do legitimada pelo poder eincutida pela educação.No Ocidente, tais práticascomeçaram bem cedo, no sé-culo VIII a.C, com a difusãodas primeiras teologias antro-pomórficas, nas quais os deu-ses homéricos, com as suasvirtudes e os seus vícios, sãoos principais personagens.Mudados os tempos, mudadasas vontades, em consequênciado impacto da sabedoria natu-ralista das Escolas jônicas, osteólogos do período pré so-crático apressaram-se a subs-tituir as velhas narrativas mí-ticas por novas teologias as-trais (Pitágoras, mas princi-palmente Platão).Porém, os solistas do séculoV a.C. continuando na linhade Xenófanes de Cólofon (sé-culo VI a. C) a investigar anatureza das coisas e, parti-cularmente, dos deuses, sou-

beram desde cedo chamar aatenção para a origem políticae social da religião e para aimportância do papel dos le-gisladores-teólogos (os pro-fetas e adivinhos).Crítias tornar-se-á famoso aodefender a ideia de que osdeuses foram inventados pe-los reformadores políticospara impedir que os homensnão praticassem às escondidaso que o Direito lhes proibiacoactivamente.Desde então – e até ao fim daAntiguidade Clássica (muitodepois de Luciano, por exem-plo) – entre os filósofos dalinhagem Jónica, os sábios ousofistas naturalistas sempresouberam encaminhar toda adiscussão sobre a origem, anatureza, o valor e os objeti-vos das religiões, para o ter-reno histórico, psicológico esociológico.Neste contexto, foram desuma importância todas ascríticas que se teceram emtorno das opiniões, sentenças

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e atitudes políticas daquelesque se apresentaram comoprofetas ou reformadores reli-giosos.Em plena Idade Média, nomeio de sanguinários confli-tos político-religiosos, denovo se reavivaram as antigascríticas contra as teologiasantropomórficas, desta feita,cristã, muçulmana e judaica,partindo-se da análise da açãoe do pensamento dos seusfundadores.Célebre ficaria a obra que deupelo nome de De trilius im-postorilius antepassada dopresente Tratado dos Três Im-postores: Moisés, Jesus,Maomé.Desde o século XIII até aoséculo XVIII, numerosos fo-ram os autores a quem se atri-buiu a paternidade de tal es-crito.Com Averróis e o imperadorFrederico II (ou o seu secretá-rio Pierre des Vignes) à cabe-ça, seguiram-se-lhe TomásEscoto1, Boccacio, Erasmus, 1 Em Averroès et Vaverroisme, 1852,citando o Dictionnaire historique etcritique de P. Bayle, a lenda atribui aAverróis a afirmação: "Há três religi-

Pomponazzi, Maquiavel, Pe-dro Aretino, Miguel Servet,Rabelais, Jérôme Cardan, Gi-ordano Bruno, Campanella,Vanini, Hobbes, Espinosa,Toland e até o barão de Hol-bach. Como vemos, uma plêi-ade de pensadores humanis-tas, de libertinos eruditos e defilósofos naturalistas.De concreto, sabemos que opapa Gregório IX acusou Fre-derico II, em 1239, de blas-femo por defender que Moi-sés, Cristo e Maomé não pas-savam de três grandes im-postores.De acordo com E. Renan,Tomás Escoto foi acusado porÁlvaro Pais (in Colírio da fé.Parte V) de "celerado", "ím-pio", "imundo concubinário","máximo entre os hereges",pois defendeu que Cristo nãopassou de um mago, fazedorde milagres. Adepto da tesedos "três impostores", segun-do Álvaro Pais, heresia quepululou nas Escolas de Lis-boa, defendida publicamente.

ões... uma das quais é impossível, é ocristianismo; uma outra é uma religiãode crianças, é o judaísmo; a terceira éuma religião de porcos, é o islamismo".

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Escoto acabou preso e conde-nado à morte. (veja-se: Ma-nuel Dias Duarte, História dafilosofia em Portugal. cone-xões políticas e sociais, Lis-boa, Livros Horizonte, pgs.27/28).Como só se conhecem duasversões do De trilius imposto-rilius, chegou a admitir-seque tal obra medieval nuncaexistiu, tendo apenas feitofortuna o título saído da opi-nião ou de Frederico II, gran-de admirador do racionalismoe da ciência árabe e adversá-rio do Papado, ou de Aver-róis, filósofo republicano eseguidor do naturalismo aris-totélico.Essas duas versões conheci-das são, a mais antiga, ummanuscrito em latim, datadode 1688, e atribuído a JohanJoachim Muller, com o títuloDe imposturis religionumbreve compendium e que sófoi impresso por volta de1753; a segunda, feita, deacordo com a tradição, a par-tir de um manuscrito roubadona biblioteca dos príncipes daSaxónia, é a célebre La vie etl'esprit de M. Benoit Spinoza,

publicada em 1719 e reedita-da a partir de 1721 com o tí-tulo de Traité des trois inpos-teurs e hoje consensualmenteatribuído a Jean-MaximilienLucas (1636-1697).Também conhecida pelo títuloTraité des trois imposteurs:Moise, Jesus, Mahomet/L'esprit de Spinoza, a obradeve a sua fama, por um lado,por ser composta de extractosprovenientes dos Dialoguesde Vanini, da Ética e do Tra-tado teológico político de Es-pinosa; por outro, pela sumaimportância que viriam a ad-quirir as ideias críticas do fi-lósofo luso-holandês na Ale-manha de Lessing, na filoso-fia política de muitos socia-listas e comunistas utópicos,particularmente ingleses, e nacrítica da religião revelada.Os resultados das investiga-ções de Louis Massignon, da-dos a público em "La legendeDe Tribus impostoribus et sesorigines islamiques" (in Re-vue d’histoire dês ReligionsLXXXII, Julho 1920, pp. 74-78), vieram mostrar que, senão a obra, pelo menos a ideiasaiu da pena do chefe qarmata

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Abu Tahir al-Djannabi (prin-cípios do século X), que afir-ma numa circular confidenci-al destinada aos seus seguido-res: "Neste mundo três indi-víduos corromperam os ho-mens, um pastor, um médicoe um cameleiro. E este came-leiro foi o pior escamoteador,o pior prestidigitador dostrês". Estávamos então no al-vores da Idade Contemporâ-nea, com as Revoluções Ame-ricana e Francesa em incuba-ção, revoluções feitas emnome da igualdade, da liber-dade e da fraternidade. A obranunca foi editada em línguaportuguesa. Porquê apresentá-la agora e finalmente ao pú-blico lusófono?Nenhum historiador concor-dará que a Idade Média tenhaterminado em 29 de Maio de1453, dia em que os Turcosentraram em Constantinopla.Não obstante, muitos desseshistoriadores não deixariamde concordar que o 11 de Se-tembro de 2001 marca verda-deiramente – mais do que aqueda do muro de Berlim – ofim da Modernidade.O fim da Modernidade anun-

ciaria o fim inadiável da filo-sofia e do pensamento dico-tômico, feito de oposições ede contradições. Referimo-nos à velha tábua pitagórica-aristotélica: ímpar/par; ma-cho/fêmea; finito/infinito;perfeito/imperfeito, desenvol-vida posteriormente pela lógi-ca formal e pela dialética(tese/antítese/síntese).Com a Pós-modernidade, es-taríamos, pois, a assistir (im-potentes ou satisfeitos) ao fimda divisão do mundo políticoe social em dois blocos anta-gônicos (esquerda/direita; ca-pitalismo/comunismo, etc),reaparecendo em sua substi-tuição a velha divisão por"culturas" ou "civilizações"caracterizadas cada qual pelareligião dominante (cristã,islâmica, judaica, confuciana,hindu ou outra).O fim da história e o conflitoinevitável de civilizações queparecem perfilar-se no hori-zonte do século XXI, com oregresso às guerras político-religiosas anteriores à Moder-nidade, só serão possíveis sechegar ao seu termo a destrui-ção da razão, destruição que

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tem vindo a ser realizada emnome da fé, do sentimento, doela vital, do instinto de sobre-vivência e da vontade.Como no final da AntiguidadeClássica e nos alvores do Me-dievo, a razão é intimada aceder o seu lugar à fé e a filo-sofia à religião, tão belicososse mostram os atuais funda-mentalismos cristão, judaico eislâmico.Seriamente ameaçada, recu-sando-se a ser mera serva daTeologia, à Filosofia, não tar-

da, só lhe restará refugiar-sedentro de novos círculos deentusiastas, tal como ocorreunos séculos XVI, XVII eXVIII, começando as suasobras, impressas em pequenastiragens, a passar de mão emmão. A não ser que o debatese reabra e que a discussão,inspirada no exemplo dosadmiradores de Espinosa, segeneralize.Começando por uma reflexãoexigente apoiada em obras dereferência.

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Se do afamado Spinosa não se pôde ter

A arte de um pincel para as feições pintar

A Sabedoria, por imorredoura ser,

Os seus escritos sempre irá guardar.

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AVISO

Nada haverá, talvez, que dêaos espíritos fortes um pre-texto mais plausível para in-sultar a religião do que a ma-neira como agem os seus de-fensores. Por um lado, tratamas objeções com o mais ex-tremo desprezo, e, por outro,exigem, com o mais ardentezelo, a supressão dos livrosque contêm essas objecções,que consideram tão desprezí-veis.Há que convir que este proce-dimento prejudica a causa quedefendem. Com efeito, se es-tivessem seguros da sua bon-dade, acaso temeriam que elasucumbisse se fosse, apenas,sustentada por boas razões?E, se estivessem cheios da-quela firme confiança, pelaverdade inspirada naquelesque crêem combater por ela,recorreriam a falsas vantagense a vias nefastas para a fazertriunfar? Não descansariamtão-só na sua força, e, segurosda vitória, não se disporiam aum combate igualitário contrao erro? Teriam qualquer pro-blema em conceder a toda a

gente a liberdade de compararas razões de uma e de outraparte, assim ajuizando de quelado se encontra a verdade?Retirar essa liberdade nãoleva os incrédulos a imaginarque se temem os seus raciocí-nios, e que se pensa ser maisfácil suprimi-los do que mos-trar-lhes a sua falsidade?Mas, apesar de estarmos con-vencidos de que a publicaçãodo que escrevem de maisforte contra a verdade, longede a prejudicar, serviria, aoinvés, para tornar o seu triun-fo mais estrondoso, e a der-rota deles mais vergonhosa,não obstante, não ousamos ircontra a corrente, tornandopúblico O Espírito do Sr. Be-nedito de Espinosa.Imprimimos tão poucosexemplares que a obra serátão rara como se nunca tives-se deixado de ser um manus-crito.Só às pessoas mais sagazes,capazes de o refutar, será dis-tribuído o escasso número deexemplares. Não duvidamos

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de que se empenharão nocombate do autor deste escritomonstruoso, destruindo, deuma ponta a outra, o ímpiosistema de Espinosa no qualse fundam os sofismas do seudiscípulo. Eis o objectivo dapublicação deste tratado, noqual os libertinos vão beberos seus capciosos argumentos.Editamo-lo sem quaisquercortes, nem amaciamentos,para que esses senhores não

possam dizer que castramosas dificuldades, para facilitara respectiva refutação. Aliás,as injúrias grosseiras, asmentiras, as calúnias, as blas-fêmias, que serão lidas comhorror e execração, refutam-se a si próprias, e só podemconduzir à confusão daqueleque as enunciou com tantaextravagância quanta impie-dade.

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PREFÁCIO DO COPISTA

Baruch ou Benedito de Espi-nosa adquiriu um renome tãopouco honroso, tanto pela suadoutrina como pela singulari-dade dos seus sentimentos emmatéria de religião, que quemqueira escrever sobre ele, ou aseu favor, tem de se escondercom tanto cuidado e ter tantascautelas como se estivesse àbeira de cometer um crime.No entanto, não faremosmistério de confessar que co-piamos este escrito de acordocom o original, cuja primeiraparte trata da vida dessa per-sonagem e a segunda dá umaideia do seu espírito.Na verdade, o autor é desco-nhecido, ainda que aquele queo compôs tenha sido um dosseus discípulos, como o pró-prio esclarece.

Todavia, se fosse legítimo de-duzir algum fundamento deconjecturas, poder-se-ia afir-mar, quiçá com certeza, quetoda a obra é da lavra do fale-cido Senhor Lucas, tão famo-so pelas suas quintessências emais ainda pelos seus costu-mes e pela sua maneira deviver.Seja como for, a obra é sufici-entemente estranha para me-recer ser examinada por pes-soas de espírito, o que justifi-ca o trabalho de fazer umacópia.Eis o único fim que nos pro-pusemos, deixando aos outroso cuidado de fazerem as re-flexões que julgarem propo-sitadas.

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HEREM PRONUNCIADO CONTRA SPINOZA EM

AMSTERDÃ

“Os senhores do Mahamad

fazem saber a vossas mer-

cês: como há dias que, ten-

do notícia das más opiniões

de Baruch de Espinosa,

procuraram por diferentes

caminhos e promessas reti-

rá-lo de seus maus cami-

nhos; e que, não podendo

remediá-lo, antes, pelo

contrário, tendo a cada dia

maiores notícias das hor-

rendas heresias que prati-

cava e ensinava, e das

enormes obras que pratica-

va; tendo disso muitas tes-

temunhas fidedignas que

depuseram e testemunha-

ram tudo em presença de

dito Espinosa, de que ficou

convencido, o qual tendo

tudo examinado em presen-

ça dos Senhores Hahamín,

deliberaram com o seu pa-

recer que dito Espinosa seja

excomungado e apartado de

toda nação de Israel como

atualmente o põe em He-

rem, com o Herem seguin-

te: Com a sentença dos

Anjos, com dito dos Santos,

com o consentimento do

Deus Bendito e o consenti-

mento de todo este Kahal

Kados, diante dos Santos

Sepharin, estes, com seis-

centos e treze parceiros que

estão escritos neles, nós

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Excomungamos, aparta-

mos, amaldiçoamos e pra-

guejamos a Baruch de Es-

pinosa, como o herem que

excomungou Josué a Jeri-

có, com a maldição que

maldisse Elias aos moços, e

com todas as maldições que

estão escritas na Lei. Mal-

dito seja de dia e maldito

seja de noite, maldito seja

em seu deitar e maldito

seja em seu levantar, mal-

dito ele em seu sair e mal-

dito ele em seu entrar; não

queira Adonai perdoar a

ele, que então semeie o fu-

ror de Adonai e seu zelo

neste homem e caia nele

todas as maldições escritas

no livro desta Lei. E vós, os

apegados com Adonai, vos-

so Deus, sejais atento todos

vós hoje. Advertindo que

ninguém lhe pode falar

oralmente nem por escrito,

nem lhe fazer nenhum fa-

vor, nem estar com ele de-

baixo do mesmo teto, nem

junto com ele a menos de

quatro côvados, nem ler

papel algum feito ou escrito

por ele”.

6 de Ab de 5.416

(27 de julho de 1656)

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A VIDA DO FALECIDO SENHOR DE SPINOSA

POR UM DE SEUS DISCÍPULOS

1. Nosso século é muito es-clarecido, mas nem por isso émais eqüitativo em relaçãoaos grandes homens. Emboralhes devam suas mais belasluzes, e dessas se aproveitampor sorte, não podem suportarque os louvem, seja por in-veja ou por ignorância; e ésurpreendente que se façaocultar, para escrever suavida, como se faz para come-ter um crime; particularmentese esses grandes homens setornaram célebres por viasextraordinárias e desconheci-das das almas comuns. Porque então, sob o pretexto defazer honrar as opiniões rece-bidas, por mais absurdas eridículas, eles defendem suaignorância, e sacrificam asmais sadias luzes da razão, epor assim dizer, a própriaverdade? Porém, por mais

risco que alguém corra nestacarreira tão espinhosa, eu te-ria bem pouco proveito daFilosofia desse grande ho-mem de quem eu empreendoescrever a vida, e as máximas,se temesse engajar-me. Eureceio pouco a fúria do povo,tendo a honra de viver numarepública que deixa aos seussujeitos a liberdade de senti-mentos, e na qual os própriosdesejos seriam inúteis parasermos felizes e tranqüilos, seas pessoas de comprovadaprobidade não fossem vistassem ciúmes.Se esta obra, que consagro àmemória de um ilustre amigo,não for aprovada por todomundo, pelo menos que a sejapor aqueles que amam so-mente a verdade e que tenhamalguma espécie de aversão aovulgar impertinente.

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I

JUVENTUDE E EXCOMUNHÃO

2. Baruch de Spinosa era deAmsterdã, a mais bela cidadeda Europa, e de origem muitomodesta. Seu pai, que era ju-deu de religião e português denação, não tendo o meio paradesenvolvê-lo no comércio,resolveu lhe fazer aprender asletras hebraicas. Esta espéciede estudo, que é toda a ciên-cia dos judeus, não era capazde satisfazer um espírito bri-lhante como o seu. Ele nãotinha quinze anos e já formu-lava dificuldades que os maisdoutos entre os judeus resol-viam a duras penas. E emborauma juventude tão grande nãoseja quase nada para a idadedo discernimento, já era sufi-ciente para ele se aperceberde que suas dúvidas embara-çavam seu mestre. Com medode irritá-lo, ele fingia estarmuito satisfeito com suas res-postas, contentando-se emescrevê-las para delas se ser-vir em tempo e lugar maisadequados. Como ele não lianada além da Bíblia, tornou-

se logo capaz de não necessi-tar mais de intérprete. Ele fa-zia reflexões tão corretas queos rabinos somente lhe repli-cavam como os ignorantesque, vendo sua razão exaurir-se, acusam àqueles que lhespressionam demais, de teropiniões pouco conforme areligião. Tão estranho proce-dimento lhe fez compreenderque era inútil instruir-se coma verdade. “O povo não a co-nhece; aliás, acreditar cega-mente nos livros autênticosé”, dizia ele, “muito amar osvelhos erros”. Resolveu entãoconsultar somente a si mes-mo, mas não poupando ne-nhum cuidado para descobri-la. É necessário ter o espíritogrande e de uma força extra-ordinária, para conceber, aosvinte anos, um projeto destaimportância. Com efeito, elelogo fez ver que não tinhanada empreendido temeraria-mente: porque começando aler a Escritura toda de novo,ele penetrou sua obscuridade,

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dando a conhecer os mistéri-os, e revelando a luz atravésdas nuvens, atrás das quaistinham lhe dito que a verdadeestava escondida.Após o exame da Bíblia, eleleu e releu o Talmude com amesma exatidão. E como nãotinha ninguém que o igualassena compreensão do hebreu,ele não encontrou nada difícil,nem nada também que o satis-fizesse. Mas ele era tão judi-cioso, que quis deixar amadu-recer seus pensamentos antesde aprová-los.

3. Contudo, Morteira, homemcélebre entre os judeus, e omenos ignorante de todos osrabinos de seu tempo, admi-rava a conduta e o gênio deseu discípulo. Ele não podiacompreender que um jovemcom tanta perspicácia fossetão modesto. Para conhecê-loa fundo, ele o testou de todasas maneiras, e admitiu, de-pois, que jamais encontrounada a repreender, tanto emseus costumes, quanto na be-leza de seu espírito. A apro-vação de Morteira aumentou aboa opinião que se tinha deseu discípulo, não a ponto de

lhe causar vaidade. Apesar detão jovem, por uma prudênciaprecoce, ele pouco se apoiavana amizade ou nos elogiosdos homens. Além disso, oamor à verdade era de talmodo sua paixão dominante,que ele não via quase nin-guém. Mas, qualquer precau-ção que tomasse para se es-quivar dos outros, há encon-tros que não se podem ho-nestamente evitar, emborasejam eles freqüentementeperigosos.4. Entre os mais ardentes e osmais dedicados em estabele-cer relações com ele, dois jo-vens, que se diziam ser seusamigos mais íntimos, suplica-ram para que ele lhes dissesseseus verdadeiros sentimentos.Eles lhe mostraram quequaisquer que fossem ele nãoteria nada a temer da partedeles, a curiosidade tinhacomo único objetivo esclare-cer suas dúvidas. O jovemdiscípulo, surpreendido porum discurso tão pouco visto,ficou algum tempo sem res-ponder-lhes; mas, vendo-seacossado por sua inoportuni-dade ele lhes disse rindo, que“eles tinham Moisés e os Pro-

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fetas que eram verdadeirosisraelitas, e que eles tinhamdecidido tudo; que os seguis-sem sem escrúpulos, se eleseram verdadeiramente israe-litas”. “A crer neles”, respon-deu um dos jovens, “eu nãovejo que haja um ser imateri-al, que Deus não tenha ne-nhum corpo, nem que a almaseja imortal, nem que os anjossejam uma substância real. Oque lhe parece?” Continuouele, dirigindo-se ao nosso dis-cípulo. “Deus tem um corpo?E existem os anjos? É a almaimortal?” “Eu vejo”, disse odiscípulo, “que não encon-trando nada de imaterial ou deincorporal na Bíblia, não hánenhum inconveniente emcrer que Deus seja um corpo,e tanto mais, que Deus sendogrande, assim como fala o reiProfeta2, é impossível decompreender uma grandezasem extensão, e que, por con-seguinte, não seja um corpo.Quanto aos espíritos, é certoque a Escritura não diz demodo algum que sejam sub-stâncias reais e permanentes,mas simples fantasmas, no-meados anjos, porque Deus se 2 Davi (cf. Salmo 48,1).

serve deles para declarar suavontade, de tal maneira que,os anjos e toda outra espéciede espírito, somente são invi-síveis em razão de sua maté-ria muito sutil e diáfana, quesó pode ser vista como vemosos fantasmas num espelho,em sonhos ou à noite; damesma maneira que Jacob viunuma escada, dormindo, osanjos subirem e descerem.

Eis porque não lemos que osjudeus tenham excomungadoos saduceus por não teremacreditado em anjos, pois oAntigo Testamento não diznada de sua criação. Quanto àalma, por toda parte em que aEscritura se refere a ela, apalavra ‘alma’ é empregadasimplesmente para exprimir avida, ou para tudo o que estávivo. Seria inútil procurarnela alguma coisa sobre aqual se possa apoiar suaimortalidade. Pelo contrário,ela está visível em cem luga-res, e não há nada mais fácilde provar; mas este não é otempo nem o lugar de falardisso”.

“O pouco que acaba de di-zer”, replicou um dos amigos,

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“convenceria os mais incré-dulos. Mas isto não é sufici-ente para satisfazer teus ami-gos, que precisam de algumacoisa mais sólida, e acres-cente que a matéria é muitoimportante para ser conside-rado superficialmente. Nóssomente iremos deixá-lo ago-ra com a condição de retomá-la uma outra vez.”.5. O discípulo, que não procu-rava outra coisa do que termi-nar a conversa prometeu tudoo que eles queriam. Mas, naseqüência, ele evitou cuidado-samente todas as ocasiões nasquais ele se percebia que elesprocuravam reatá-la; e se re-cordando que raramente a cu-riosidade do homem tem boaintenção, ele estudou a con-duta de seus amigos, na qualencontrou tanto a repreendê-los, que rompeu com eles enão quis mais lhes falar.

Seus amigos, ao se apercebe-rem do desejo que ele tinha,se contentaram em murmurarentre eles, enquanto acredita-ram que era para testá-los.Mas, ao se verem sem espe-rança de poder dobrá-lo, elesjuraram se vingar; e para fa-

zê-lo mais sensivelmente,começaram por desacreditá-lojunto à opinião popular. Pu-blicaram que “era um abusoacreditar que este jovem pu-desse tornar-se um dia um dosPilares da Sinagoga, que eleparecia mais o seu destruidor,pois tinha somente ódio edesprezo pela lei de Moisés;que eles o haviam freqüenta-do baseados no testemunhode Morteira; mas que tinhamreconhecido que era um ím-pio, e que era um abuso o ra-bino ter dele uma boa opini-ão, seu encontro lhes causavahorror.”.

6. Este falso boato, semeadona surdina, tornou-se logopúblico, e quando viram aocasião propícia para avivá-lo, fizeram seu relatório aosjuízes da sinagoga, aos quaisagitaram de tal maneira queeles pensaram em condená-losem tê-lo entendido.Passado o ardor do primeirofogo (os sacros ministros dotemplo não estão isentos decólera como todos), ele foiintimado a comparecer pe-rante eles. Ele, que sentia quesua consciência não lhe re-

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provava nada, foi alegrementeà Sinagoga, onde os juízes lhedisseram com a face abatida,e como que roídas pelo zelocom a casa de Deus, “queapós as boas esperanças quetinham concebido de sua pie-dade, eles tinham custado acrer no maldoso boato quecirculava sobre ele, que ochamaram para saber a verda-de, e que era com um apertono coração que o citavampara dar conta de sua fé; queele era acusado do mais negroe do maior de todos os cri-mes, que é o desprezo pelalei; que eles desejavam ar-dentemente que ele pudessese justificar; mas, se estivesseconvicto, não existiria suplí-cio suficientemente severopara puni-lo.”.Em seguida, eles lhe rogarama dizer se era culpado; e,quando o viram negar, seusfalsos amigos, que estavampresentes, avançaram, depuse-ram descaradamente que “eleso tinham ouvido ridicularizaros judeus, como gente su-persticiosa, nascidos e educa-dos na ignorância, que nãosabiam o que é Deus, e queno entanto tinham a audácia

de se dizerem seu povo, semlevar em consideração as ou-tras nações. Quanto a lei, elatinha sido instituída por umhomem na verdade mais hábilque eles em matéria de políti-ca, mas que não era quasenada mais esclarecido queeles em Física e nem mesmoem Teologia; que com umaonça de bom senso se podiadescobrir a impostura, e queera preciso serem tão estúpi-dos quanto os hebreus dotempo de Moisés, para confia-rem neste galante homem.”

7. Isto, acrescido por seus li-bertinos ao que tinha dito deDeus, dos anjos e da alma, eque seus acusadores não es-queceram de revelar, abala osespíritos, e lhes fazem gritarAnátema, antes mesmo que oacusado tenha tempo de sejustificar.Os juízes, animados por umsanto zelo para vingar sua leiprofanada, interrogam, pres-sionam, intimidam. Ao queresponde o acusado, “Quesuas caretas lhe causavam pi-edade, que confessaria o quefoi dito no depoimento de tãoboas testemunhas, se para

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sustentá-lo não fosse necessá-rio somente razões incontes-táveis.”.Entretanto, Morteira sendoavisado do perigo em que es-tava o seu discípulo, correuimediatamente à sinagoga,onde sentou junto aos juízes,e lhe perguntou “se ele selembrava do bom exemploque havia lhe dado? Se suarevolta era o fruto do cuidadoque teve com sua educação?E se ele não temia tombar en-tre as mãos do Deus vivo?Que o escândalo já era gran-de, mas que ainda havia tem-po de se arrepender.”

Depois que Morteira esgotousua retórica, sem poder abalara firmeza de seu discípulo,com um tom mais ameaçador,e como chefe da Sinagoga,lhe pressionou a se determi-nar pelo arrependimento oupela pena, e assegurou-lhe deexcomungá-lo, se não desseagora mesmo provas de arre-pendimento.O discípulo, sem se espantar,replicou-lhe que “conhecia opeso de suas ameaças, e queem troca do trabalho que eletivera para lhe ensinar a lín-

gua hebraica, queria tambémlhe ensinar a maneira de ex-comungar”. A estas palavras,o rabino em cólera vomitoutodo seu fel contra ele, e apósalgumas frias reprovações,encerra a assembléia, saiu daSinagoga, e jurou que só vol-taria a ela com o raio na mão.Mas, por mais juras que tives-se feito, ele não acreditavaque o seu discípulo tivesse acoragem de esperá-lo. Ele seengana em suas conjecturas; aseqüência dos fatos lhe fezver que se ele estava bem in-formado da beleza do espíritode Spinosa, ele não estava desua força. Após o tempo quese empregou para mostrar-lheo abismo em que estava aprecipitar-se tendo passadoinutilmente, fixaram o diapara excomungá-lo.

8. No mesmo instante em quesoube, ele se dispôs a se reti-rar, e bem longe de se assus-tar, disse a quem lhe trouxe anotícia: “Em boa hora! Não seestá forçando-me a nada queeu não tivesse feito por mimmesmo, se eu não tivesse te-mido o escândalo. Mas, já quequerem dessa forma, entrocom alegria no caminho que

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me é aberto, com o consoloque minha saída será maisinocente do que foi a dosprimeiros hebreus fora doEgito, embora minha subsis-tência não esteja melhor asse-gurada do que a deles. Eu nãolevo nada de ninguém, e dequalquer injustiça que se mefaçam, posso me gabar quenão têm nada a reprovar-me.”.9. O pouco convívio em geralque teve por este tempo comos judeus o obrigou a fazê-locom os cristãos, pelo que tra-vou amizade com pessoas in-teligentes que lhe disseram dodano que era não saber nem ogrego, nem latim, por maisversado que fosse no hebrai-co, no italiano e no espanhol,sem falar no alemão, no fla-mengo e no português, queeram suas línguas naturais.Ele compreendia suficiente-mente por si próprio como lheeram necessárias estas línguascultas; mas a dificuldade es-tava em encontrar o meio deaprendê-las, posto que nãopossuísse nem bens, nem li-nhagem, nem amigos nosquais apoiar-se. Como pensa-va constantemente nisso ecomentava com todos, Van

Den Enden, que ensinava comsucesso o grego e o latim, lheofereceu seus cuidados e suacasa, sem exigir-lhe outro re-conhecimento senão o de aju-dá-lo durante algum tempo ainstruir seus alunos, quandose tornasse capaz de fazê-lo.

10. Entretanto, Morteira, irri-tado pelo desprezo que seudiscípulo manifestava por elee pela sua lei, transformousua amizade em ódio, e sabo-reou, fulminando-lhe, o pra-zer que encontram as almasvis na vingança.

A excomunhão dos judeusnão tem nada de muito espe-cial. Todavia, para nada omi-tir do que possa instruir oleitor, eu citarei aqui as prin-cipais circunstâncias. O povoestando reunido na Sinagoga,esta cerimônia que eles de-nominam de Herem, inicia-seacendendo uma grande quan-tidade de velas negras, eabrindo o Tabernáculo, ondeguardam os Livros (Tábuas)da Lei. Após, o coro, situadonum lugar um pouco elevado,entoa com voz lúgubre as pa-lavras da execração, enquantoum outro coro toca um corno,

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e viram-se as velas para asfazer cair gota a gota em umacuba cheia de sangue. Opovo, animado por um santohorror e uma raiva sagrada àvista deste negro espetáculo,responde amém em tom furi-oso, e que testemunha os bonsserviços que acreditam estarprestando a Deus, se despeda-çassem o excomungado; oque sem dúvida fariam se oencontrassem nesse momentolá, ou ao saírem da Sinagoga.Sobre isto, cabe assinalar queo som do corno, as velas vira-das, e a cuba cheia de sangue,são circunstâncias que so-mente se observam em casode blasfêmia, e que, fora esta,contenta-se em fulminar a ex-comunhão, como se fez comSpinosa, que não foi acusadode ter blasfemado, mas sim deter faltado ao respeito comMoisés e com a Lei.

A excomunhão é de tal im-portância entre os judeus quenem os melhores amigos doexcomungado ousariamprestar-lhe o menor serviço,nem mesmo lhe falar, semincorrer na mesma pena. As-sim, aqueles que receiam adoçura do isolamento, e a im-

pertinência do povo, preferemsofrer qualquer outra penaque o Anátema.11. Spinosa, que tinha encon-trado um asilo onde acredita-va estar a salvo dos insultosdos judeus, não pensava emoutra coisa que avançar nasciências humanas, na qual,com um gênio tão excelentequanto o seu, não podia duvi-dar que fizesse em muitopouco tempo um progressobem considerável.

Entretanto os judeus, trans-tornados e confusos por terfalhado o golpe, e ver queaquele a quem eles tinhamousado perder, estava fora deseu alcance, imputaram-lheum crime do qual não haviampodido convencê-lo. Falo dosjudeus em geral, pois, aindaque aqueles que vivem do al-tar não perdoem jamais, nãoousaria dizer que Morteira eseus colegas eram os seusmaiores inimigos fossem osúnicos acusadores nesta oca-sião. Ter-se subtraído a suajurisdição, e subsistir sem suaajuda, são dois crimes quelhes pareciam irremissíveis.Morteira, sobretudo, não po-

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dia gostar, nem tolerar que oseu discípulo e ele vivessemna mesma cidade, depois daafronta que acreditava ter so-frido. Mas como fazer paralhe expulsar? Ele não era che-fe da cidade, como o era daSinagoga. No entanto, a malí-cia é tão poderosa, quandoassociada a um falso zelo, queeste velhote o conseguiu.12. Eis como ele o fez. Ele sefez escoltar por outro rabinode mesmo temperamento, foiencontrar os magistrados, aosquais representou que se eletinha excomungado Spinosa,não havia sido por razões co-muns, mas por execráveisblasfêmias contra Moisés econtra Deus. Exagerou a im-postura por todas as razõesque um ódio santo pode suge-rir a um coração irreconciliá-vel, e demandou como con-clusão, que o acusado fossebanido de Amsterdã.Vendo o ímpeto a maneira dorabino e com qual animosida-de ele declamava contra seudiscípulo, era fácil julgar queera menos um zelo piedosoque uma secreta raiva que oincitava a se vingar.

Assim, os juízes ao se aper-ceberem disso, procuraramesquivar-se de suas queixas,enviando-as aos ministros.Porém estes, após examina-rem o assunto, se sentiramembaraçados. Na maneira queo acusado se justificava, nãoencontravam nada de ímpio.Por outro lado, o acusador erarabino, e o cargo que ele ocu-pava os fazia lembrarem-sedo seu, de tal forma que, tudobem considerado, eles nãopodiam consentir em absolvera um homem, que seu seme-lhante queria perder, sem ul-trajar o ministério. E esta ra-zão, boa ou má, lhes fez darsua conclusão em favor dorabino.Tanto é verdade que os ecle-siásticos, de qualquer religiãoque seja, gentios, judeus,cristãos, maometanos, sãomais zelosos de sua autorida-de do que da equidade e daverdade, e que estão todosimbuídos do mesmo espíritode perseguição.

13. Os magistrados, que nãoousaram contradizer-se porrazões fáceis de adivinhar,condenaram o acusado a um

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exílio de alguns meses. Poreste meio o rabinismo foivingado. Mas é verdade queassim foi menos pela intençãodireta dos juízes, do que parase livrarem das queixas im-portunas do mais irritante edo mais incômodo de todos oshomens. De resto, esta deci-são, bem longe de prejudicara Spinosa, ao contrário, se-cunda o desejo que ele tinha

de deixar Amsterdã. Tendoaprendido das humanidades oquanto um filósofo deve sa-ber, ele tinha a intenção de sedesprender da multidão deuma grande cidade, quandovieram inquietá-lo. Assim nãofoi a perseguição que o expul-sou; mas o amor ao isola-mento, onde não duvidava emabsoluto que encontraria averdade.

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II

MATURIDADE: DE 1661 A 1673

14. Esta forte paixão, que nãolhe dava descanso, o fez dei-xar com alegria sua pátria acidade que lhe havia vistonascer, por um povoado cha-mado Rijnsburg, onde, longede todos os obstáculos, que sópoderia vencer pela fuga, en-tregou-se inteiramente à Filo-sofia. Como havia poucosautores que fossem do seugosto, recorreu as suas pró-prias meditações, estando de-terminado a provar até ondeelas poderiam desenvolver-se.No que deu uma tão alta idéiada grandeza de seu espírito,que há seguramente poucaspessoas que tenham penetradotão longe quanto ele nas ma-térias em que tratou.

15. Permaneceu dois anosneste retiro, onde, apesar detoda precaução que tomassepara evitar qualquer contatocom seus amigos, os seusmais íntimos amigos iam vê-lo de tempos em tempos, esomente o deixavam a duraspenas. Seus amigos, cuja

maioria era composta porcartesianos, lhe propunhamdificuldades, que eles preten-diam que não pudessem serresolvidas a não ser pelosprincípios de seu mestre. Spi-nosa evitou que incorressemnum erro em que os sábiosestavam então, satisfazendo-lhes com razões inteiramenteopostas. Mas, estranho é oespírito do homem e a forçados preconceitos; seus ami-gos, ao retornarem para suascasas, estiveram a ponto deserem espancados por teremafirmado em público queDescartes não era o único fi-lósofo que merecia ser segui-do.16. A maior parte dos minis-tros, preocupados com a dou-trina deste grande gênio, zelo-sos do direito, que acredita-vam possuir, de serem infalí-veis em sua escolha, clamamcontra um boato que os ofen-de, sem nada esquecer doquanto sabem para sufocá-lona fonte. Mas, apesar de seus

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esforços, o mal crescia de talmaneira, que estava a pontode estourar uma guerra civilno império das letras, quandodeterminaram que se rogassea nosso filósofo explicar-seabertamente em relação aDescartes. Spinosa, que nãoqueria nada mais do que apaz, concordou de bom gradodedicar-se a este trabalho al-gumas horas de seu lazer e ofez imprimir em 1663.Nessa obra, ele prova geome-tricamente as duas primeiraspartes dos Princípios do se-nhor Descartes, como diz noPrefácio pela pluma de um deseus amigos. Mas, o que querque tenha dito de bom a res-peito do célebre autor, os par-tidários desse grande homem,para desculpá-lo da acusaçãode ateísmo, fizeram depoistudo o que puderam para quecaísse o raio sobre a cabeçade nosso filósofo, usandonesta ocasião a política dosdiscípulos de Santo Agosti-nho, que para se lavarem dacrítica que se lhes fazia, de seinclinarem para o calvinismo,escreveram contra esta seitaos livros mais violentos. Masa perseguição que os cartesia-

nos incitaram contra o senhorSpinosa, e que durou toda asua vida, bem longe de abalá-lo, fortificou-o na procura daverdade.17. Ele imputava a maiorparte dos vícios dos homensaos erros do entendimento, ecom medo de cair neles, seafunda ainda mais na solidão,deixando o lugar onde estavapara ir a Voorburg, onde acre-ditou que teria mais repouso.Os verdadeiros sábios queencontravam algo a questio-nar, assim que não o virammais, prontamente o desenter-raram, e o sobrecarregaramcom suas visitas neste últimopovoado, como haviam feitono primeiro. E ele, que nãoera insensível ao sincero amordas pessoas de bem, acedeu àinsistência para que deixasseo campo e fosse para algumacidade onde eles pudessemvê-lo com menos dificuldade.Ele foi habitar então em Haia,que preferiu à Amsterdã, poiso ar lhe era mais saudável, eali morou o resto de sua vida.18. De início ele só foi visita-do por um pequeno númerode amigos, que o faziam mo-

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deradamente. Mas este lugaragradável não ficava nuncasem viajantes, que procura-vam ver o que merecia servisto, os mais inteligentesdentre eles, quaisquer quefossem suas condições, acre-ditavam ter perdido a viajemse não tivessem visto Spinosa.E como os efeitos respondemao renome, não havia sábioque não lhe escrevesse parater esclarecidas suas dúvidas.Testemunha disto é o grandenúmero de cartas que fazemparte do livro que foi impres-so após sua morte. Mas tantoas visitas que recebia quantoas respostas que devia dar aossábios que lhe escreviam detoda parte, e suas obras mara-vilhosas, que fazem hoje nos-sa alegria, não ocupavam su-ficientemente este grande gê-nio. Ele empregava todos osdias algumas horas a prepararlentes para microscópios etelescópios, no que era exce-lente, de forma que se a mortenão lhe tivesse sobrevindo, éde se crer que tivesse desco-berto os mais belos segredosda ótica. Ele era tão entusias-mado pela busca da verdade,que, apesar da saúde muito

débil e da necessidade de la-zer, o fazia, no entanto tãopouco, que ficou três mesesinteiros sem sair de casa; atéao ponto de recusar ensinarpublicamente na Academia deHeidelberg, por medo desteemprego lhe distrair de seudesígnio.19. Após ter-se esforçadotanto para retificar seu enten-dimento, não há porque seadmirar de que tudo o quetenha produzido é de um ca-ráter inimitável. Antes dele aSagrada Escritura era umsantuário inacessível. Todosos que haviam falado dela, ohaviam feito como cegos.Somente ele fala dela comoum sábio em seu Tratado deTeologia e Política, pois écerto que jamais homem al-gum conheceu tão bemquanto ele as antiguidadesjudaicas.

Embora não exista ferida maisperigosa que aquela da male-dicência, e nem menos fácilde suportar, jamais se lhe ou-viram falar com ressenti-mento contra os que o despe-daçaram. Mesmo com muitostendo se esforçado por des-

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crever esse livro com injúriasplenas de fel e amargura, nolugar de se servir das mesmasarmas para destruí-los, ele secontentou em esclarecer ostrechos dos quais eles tinhamdado um falso sentido, te-mendo que sua malícia ofus-casse as almas sinceras. Seesse livro lhe suscitou umatorrente de perseguidores, nãofoi porque é somente hoje quese interpreta mal o pensa-mento dos grandes homens, eque a grande reputação é maisperigosa que a má.

20. Ele teve a vantagem deser conhecido pelo senhorpensionário J. De Witt, quequis aprender com ele as ma-temáticas, e que com freqüên-cia lhe dava a honra de con-sultá-lo sobre matérias im-portantes. Mas tinha tão pou-co empenho pelos bens dafortuna, que depois da mortedo senhor De Witt, que lhedava uma pensão de duzentosflorins, depois de mostrar odocumento de seu mecenas aseus herdeiros, que alegavamdificuldades em mantê-la,lhes entregou este com tantatranqüilidade como se tivesseoutros fundos com que contar.

Esta maneira desinteressadaos fez refletirem, e eles lheconcederam com alegria oque tinham acabado de negar-lhe.E era esta a sua melhor fontede subsistência, pois do painão herdara mais do que cer-tos negócios emaranhados.Ou, antes, os judeus com osquais este bom homem tinhanegociado, pensando que seufilho não teria a paciência dedesfazer os emaranhados, oenredaram de tal maneira, queele preferiu abandonar tudo,que sacrificar seu repouso auma esperança incerta.

21. Era tal a sua inclinação anão fazer nada para ser perce-bido ou admirado pelo povo,que após sua morte, recomen-dou que não se colocasse oseu nome em sua Moral, di-zendo que tais sentimentoseram indignos de um filósofo.

22. Sua reputação era tal quenão se falava em outra coisanos círculos intelectuais. Opríncipe de Condé, que estavaem Utrecht ao começar as úl-timas batalhas da guerra de1672, lhe envia um salvo-conduto com uma carta gentil,

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para o convidar a ir vê-lo.Spinosa tinha o espírito muitobem formado e sabia bem oque devia a pessoas de tãoalto grau, para ignorar nesteencontro o que era devido àsua Alteza. Mas como jamaisdeixava sua solidão a não serpara a ela retornar o mais ra-pidamente, uma viajem dealgumas semanas o deixouindeciso.

Enfim, após algumas delon-gas, seus amigos o determina-ram a pôr-se a caminho. En-tretanto, uma ordem do rei deFrança havia chamado o prín-cipe a outro lugar; e o senhorde Luxemburgo, que o rece-beu em sua ausência, lhe fezmil agrados, e lhe assegurouda benevolência de sua alteza.Esta multidão de cortesãosnão surpreende em absolutonosso filósofo. Ele tinha umaeducação mais próxima dacorte, que de uma cidade co-mercial, como aquela em que

havia nascido, e da qual po-demos dizer que ele não tinhanem os defeitos, nem os víci-os. Ainda que esse gênero devida fosse inteiramenteoposto à suas máximas e aseu gosto, ele se sujeitou a elecom tanta complacênciaquanto os próprios cortesãos.O Príncipe, que queria vê-lo,mandou várias vezes que oesperasse. Os curiosos que oapreciavam, e encontravamsempre nele novos motivospara apreciá-lo, estavam en-cantados com que sua alteza oobrigasse a esperar.Após algumas semanas,quando o Príncipe comunicouque não poderia retornar aUtrecht, todos os curiososdentre os franceses se des-gostaram; pois, malgrado asofertas obsequiosas que lhefez o senhor de Luxemburgo,nosso filósofo no mesmoinstante despediu-se deles eretornou a Haia.

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III

APOLOGIA DE SPINOSA: VIRTUDES E FEITOS

23. Ele possuía uma qualida-de tanto mais estimávelquanto que raramente se en-contra num filósofo: era ex-tremamente limpo, e jamaissaía sem que se notasse emseus trajes o que distingue ohomem íntegro do pedante.“Não é”, dizia ele, “este arsujo e negligente que nos tor-na sábios; ao contrário”,acrescentava, “esta negligên-cia afetada é a marca de umaalma baixa na qual a sabedo-ria não se encontra em abso-luto, e na qual as ciências nãopodem engendrar mais do queimpureza e corrupção”.Não só as riquezas não o ten-tavam como também não te-mia as conseqüências desa-gradáveis da pobreza. A Suavirtude o havia colocado aci-ma de todas estas coisas; eembora não estivesse nas bo-as graças da fortuna, jamais aadulou nem murmurou contraela. Se sua fortuna foi dasmais modestas, sua alma, emrecompensa, foi das maiores e

das melhores dotadas de tudoaquilo que faz os grandeshomens. Ele era liberal numaextrema necessidade, em-prestando do pouco que tinhapela bondade de seus amigos,com tanta generosidade comose estivesse na opulência.Tendo sabido que um homemque lhe devia duzentos florinstinha ido à bancarrota, bemlonge de se chatear, disse sor-rindo: “é preciso retirar domeu ordinário3 para repararesta pequena perda; é a estepreço”, acrescentou ele, “quese compra a firmeza”. Eu nãorelato esta ação como algo deespetacular. Mas, como nãohá nada em que o gênio apa-reça mais do que nestes tiposde pequenas coisas, eu não apude omitir sem escrúpulo.

24. Ele era tão desinteressadoquanto menos desinteressadoseram os devotos que maisgritavam contra ele. Nós jávimos uma prova de seu de- 3 Nota Ádvena – Mantença cotidiana.

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sinteresse; vamos agora re-portar uma outra, que não lhefará menos honra. Um de seusamigos íntimos, homem emboa situação financeira, que-ria dar-lhe de presente doismil florins, para que pudesseviver mais comodamente, elerecusa com sua polidez habi-tual, dizendo-lhe que não osnecessitava. Com efeito, eratão moderado e sóbrio, quemesmo com bem poucosbens, não lhe faltava nada. “Anatureza”, dizia ele, “conten-ta-se com pouco, e quando elaestá satisfeita, eu também es-tou”.

Mas não era menos justo quedesinteressado, como vere-mos. O mesmo amigo quequis lhe dar dois mil florins,não tendo esposa e nem fi-lhos, planejou fazer um tes-tamento a seu favor e lhe ins-tituir seu legatário universal.Ele lhe falou disso e quis seuconsentimento. Porém, longede dar sua aprovação, o se-nhor Spinosa lhe argumentatão vivamente que ele estariaagindo contra a eqüidade econtra a natureza, se em pre-juízo de seu próprio irmão,ele dispusesse de sua suces-

são em favor de um estranho;por mais amigo seu que fosse,que seu amigo se rendesse aestes sábios conselhos e dei-xasse todos os seus bens aquem devia naturalmente serseu herdeiro, mas com a con-dição, todavia, de que esteassinasse uma pensão vitalíciade quinhentos florins a nossofilósofo. Admiremos tambémaqui o seu desinteresse e suamoderação; ele considera estapensão muito alta, e a reduz atrezentos florins. Belo exem-plo, que será pouco seguido,sobretudo pelos eclesiásticos,pessoas ávidas do bem alheio,que, abusando da fraquezados velhos e dos devotos queeles envaidecem, não somenteaceitam sem escrúpulo as he-ranças com prejuízo dos her-deiros legítimos, mas recor-rem mesmo à sugestão paraobtê-las.

25. Mas, deixemos estes tar-tufos e retornemos ao nossofilósofo. Por não ter tido asaúde perfeita durante toda asua vida, havia aprendido asofrer desde sua mais tenrajuventude; assim, homem al-gum jamais entendeu melhoresta ciência do que ele. Não

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buscava o consolo mais queem si mesmo, e se era sensí-vel a alguma dor, era à dor dooutro. “Crer que o mal é me-nos rude quando ele nos écomum com muitas outraspessoas, é”, dizia ele, “umagrande marca da ignorância, eé ter bem pouco bom senso,utilizar como consolo as pe-nas comuns”.26. É com este estado de espí-rito que derramou lágrimasquando viu seus concidadãosdespedaçarem seu pai co-mum; e ainda que soubessemelhor que ninguém no mun-do do que os homens eramcapazes, ele não deixou deestremecer a vista deste horrí-vel e cruel espetáculo.Por um lado, via cometeremum parricídio sem preceden-tes e uma ingratidão extrema;por outro, via-se privado deum ilustre mecenas e do únicoapoio que lhe restava. Erademasiado para abater umaalma comum; porém, umaalma como a sua, acostumadaa superar as perturbações inte-riores, não temia sucumbir.Como ele era sempre senhorde si, rapidamente superou

este terrível acidente.A um de seus amigos que,tendo testemunhado esta ati-tude, surpreendera-se, repli-cou nosso filósofo: “De quenos serviria a sabedoria, se,ao cairmos nas paixões dopovo, nós não tivéssemos aforça para nos restabelecer-mos por nós mesmos?”

27. Como não estava com-prometido com nenhum parti-do, não tinha que pagar a ne-nhum. Ele deixava a cada uma liberdade de seus precon-ceitos; mas ele sustentava quea maior parte era um obstá-culo à verdade; que a razãoera inútil, se nós negligenci-ássemos em usá-la, e que seproíbe o seu uso, quando setrata de escolher.

“Eis”, dizia ele, “os dois mai-ores e mais comuns defeitosdos homens, a saber, a pre-guiça e a presunção. Unsafundam debilmente numacrassa ignorância, que os co-loca abaixo das bestas; os ou-tros se erguem como tiranossobre os espíritos dos simples,lhes dando por oráculos eter-nos um mundo de falsas idéi-as, ou falsos pensamentos.

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Eis aí a fonte dessas crençasabsurdas das quais os homenssão presunçosos, e o que osdivide a uns e outros, e que seopõe diretamente ao objetivoda natureza, que é o de torná-los uniformes, como criançasde uma mesma mãe. Eis por-que, ele dizia, que somenteaqueles que tinham se liberta-do das máximas de sua infân-cia, poderiam conhecer a ver-dade, que era necessário fazeresforços extraordinários parasuperar as impressões do há-bito e apagar as falsas idéias,das quais o espírito dos ho-mens estão cheios, antes queseja capaz de julgar as coisaspor si mesmo. Sair desteabismo era”, segundo dizia,“um milagre tão grandequanto o de ordenar o caos.”28. Não há porque então sur-preendermo-nos por ele terfeito durante toda sua vidaguerra à superstição. Além deser dotado para isso por umainclinação natural, os ensina-mentos de seu pai, que erahomem de bom senso, contri-buíram muito para reforçá-la.Este bom homem havia lheensinado a não confundi-lacom a sólida piedade, e que-

rendo pôr a prova o seu filho,que não tinha ainda dez anos,ordenou-lhe ir receber um di-nheiro que lhe devia certamulher velha de Amsterdã.Ao entrar na casa dela, viuque estava a ler a Bíblia; elafez-lhe sinal para que a espe-rasse terminar sua prece.Quando ela terminou, o me-nino disse-lhe de seu encargo,e esta boa velha tendo conta-do seu dinheiro, disse: “Eis”,mostrando-lhe o dinheiro so-bre a mesa, “o que eu devo aseu pai. Possa você ser um diahomem tão honesto quantoele; ele jamais se afastou daLei de Moisés, e o céu não tebendirá, enquanto não o imi-tares”. Ao acabar estas pala-vras ela pegou o dinheiro paracolocá-lo na bolsa da criança.Mas ele, que se recordava deque esta mulher tinha todas asmarcas da falsa piedade, daqual o seu pai já o tinha ad-vertido, quis contar o dinheirodepois dela, malgrado a suaresistência; e encontrandodois ducados faltando, que apiedosa velha havia deixadocair numa gaveta por umafresta feita para isto abaixo damesa, ele confirmou seu pen-

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samento. Inflado pelo sucessodesta aventura, e de ver queseu pai lhe aplaudiu, ele ob-servava esta espécie de gentecom mais cuidado que antes,e delas fazia troças tão finasque todo mundo se surpreen-dia.

29. Em todas as suas ações avirtude era o objetivo. Mas,como não fazia desta umapintura horrível, à imitaçãodos estóicos, ele não era ini-migo dos prazeres honestos.

É verdade que os do espíritoeram o seu estudo principal, eos do corpo o tocavam pouco.Mas quando se encontravacom essas espécies de diver-timentos, das quais não po-demos honradamente dispen-sar, ele as tomava como umacoisa indiferente e sem per-turbar a tranqüilidade de suaalma, que preferia a todas ascoisas imagináveis.

Mas o que mais estimo nele éque, tendo nascido e sido cri-ado no meio de um povogrosseiro, que é a fonte dasuperstição, ele não tenhamamado a amargura, e quetenha purgado seu espíritodessas falsas máximas das

quais tantos se vangloriam.Estava inteiramente curadodessas opiniões insípidas eridículas que os judeus têm deDeus. Um homem que sabia oobjetivo da sã filosofia, e que,com o consentimento dosmais hábeis de nosso século,a punha melhor em prática;tal homem, digo, não era dese temer que ele pudesse ima-ginar de Deus o que este povoimagina.Mas, por não crer nem emMoisés e nem nos Profetas,quando se acomodam, comoele diz, à rudeza do povo, éuma razão para condená-lo?Eu li a maior parte dos filóso-fos, e asseguro de boa fé queabsolutamente não há quemdê as mais belas idéias da di-vindade do que aquelas que ofalecido senhor Spinosa nosdá em seus escritos. Ele dizque: “quanto mais conhece-mos a Deus, mais nós somosmestres de nossas paixões;que é neste conhecimento noqual encontramos a perfeitaaquiescência do espírito e overdadeiro amor de Deus, noque consiste nossa salvação,que é a beatitude e a liberda-de.”

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30. São estes os principaispontos que segundo nossofilósofo são ditados pela ra-zão, tocante à verdadeira vida,e ao soberano bem do ho-mem.

“Comparemos com os dog-mas do Novo Testamento, everemos que é tudo a mesmacoisa. A Lei de Jesus Cristonos conduz ao amor de Deuse do próximo, o que é propri-amente o que a razão nosinspira, segundo o sentimentode Spinosa. Donde é fácil in-ferir que a razão pela qualSão Paulo chama a religiãocristã uma religião racional,é que a razão a prescreveu, eé o seu fundamento: o que sechama uma religião racionalé – conforme relato de Orígi-nes –, tudo o que está subme-tido ao império da razão.Acrescente-se que um dos an-tigos Padres Teofrasto, asse-gura que devemos viver e agirsegundo as regras da ra-zão.4”

4 Nota Ádvena - Este parágrafo pareceter sido interpolado pois diz justamenteo oposto do que pensava Spinosa a pro-pósito da Bíblia. E o mais surpreenden-te: religião racional... contradiz tudo oque vai se ler daqui para a frente.

Eis aí os sentimentos que se-gue nosso filósofo, apoiadopelos pais da igreja e pela Es-critura. Entretanto, ele é con-denado; mas o é aparente-mente por aqueles a quem ointeresse leva a falar contra arazão, ou que jamais a conhe-ceram. Eu faço esta pequenadigressão para incitar os sim-ples a sacudir o jugo dos in-vejosos e dos falsos sábios,que, não podendo suportar areputação das pessoas debem, as acusam falsamente deter opiniões pouco conformesà verdade.31. Para retornar a Spinosa,ele tinha em suas conversasuma aparência tão simpática,e fazia comparações tão justasque insensivelmente faziatodo mundo aderir à sua opi-nião. Era persuasivo, aindaque não ostentasse falar nempolidamente e nem elegante-mente. Ele se tornava tão in-teligível, e seu discurso eratão repleto de bom senso queera quase impossível alguémnão entendê-lo, ou não ficarsatisfeito.

32. Estes belos talentos atraí-am a sua casa todas as pesso-

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as razoáveis; e, a qualquertempo que fosse, ele se en-contrava sempre com o mes-mo humor agradável. De to-dos aqueles que o freqüenta-ram, não havia absolutamentenenhum que não lhe testemu-nhasse uma amizade particu-lar. Todavia, como não hánada mais fechado do que ocoração do homem, viu-se aseguir que a maior parte des-sas amizades era enganosas,aqueles que mais lhe deviam,sem nenhum motivo, nemaparente nem real, o trataramda maneira mais ingrata domundo. Esses falsos amigos,que aparentemente o adora-vam, o caluniavam às ocultas,seja para cortejar os podero-sos, que não amam as pessoasde espírito, seja para adquirirreputação, armando insídias.

Um dia, tendo sabido que umdos seus maiores admiradoresesforçava-se para sublevar opovo e os magistrados contraele, respondeu sem emoção:“Não é de hoje que a verdadecusta caro; não será a maledi-cência que me fará abandoná-

la”. Eu gostaria de saber se jáfoi visto alguma vez maisfirmeza, ou uma virtude maispura? Ou se jamais algum deseus inimigos fez algo que aomenos se aproximasse de talmoderação? Mas eu vejo bemque sua infelicidade foi serdemasiado bom e muito es-clarecido.

33. Descobriu a todo mundo oque se queria manter oculto.Achou La Clef du Sanctuaire,no qual antes dele somenteviam mistérios vãos. Eis por-que, apesar de ter sido o ho-mem de bem que foi não pôdeviver em segurança.

34. Ainda que nosso filósofonão fosse uma pessoa dasmais severas, daquelas queconsideram o casamentocomo um impedimento para oexercício do espírito, ele nãocontraiu matrimônio no en-tanto, seja porque temia omau humor de uma mulher,seja porque o amor à Filosofiao ocupasse por inteiro por seentregar inteiramente à Filo-sofia e ao amor à verdade.

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IV

MORTE E PANEGÍRICO

35. Além de não ser de umacompleição muito robusta, suagrande aplicação ajudou aindamais a debilitá-lo; e como nãohá nada que consuma maisque o trabalho noturno, seusincômodos tornaram-se quasecontínuos, por causa da ma-lignidade de uma pequena fe-bre lenta, que contraiu durantesuas ardentes meditações. Sebem que, após ter definhadodurante os últimos anos de suavida, ele a terminou no meiode seu curso. Assim, ele viveuquarenta e cinco anos ou emtorno disso, tendo nascido noano de 1632, e tendo cessadode viver em 21 de fevereiro de1677.36. Que se deseje saber tam-bém alguma coisa de seuporte e de seus traços; ele erade estatura mais para médiado que para grande, com umaaparência muito agradável eque insinuava-se de formaimperceptível. Era de estaturamediana. Tinha os traços dorosto bem proporcionais, apele bem morena, o cabelo

negro e cacheado, as sobran-celhas da mesma cor, os olhospequenos, negros e vivos, umafisionomia muito agradável eum aspecto português. Quantoao espírito, ele o tinha grandee penetrante, e era de um hu-mor totalmente complacente.Ele sabia temperar tão bem asbrincadeiras, que os mais de-licados e os mais severos lheencontravam atrativos parti-culares.37. Seus dias foram breves;mas podemos dizer, no en-tanto, que viveu muito, tendoadquirido os verdadeiros bensque consiste na virtude, e nãoteria mais nada a desejar, apósa alta reputação que conquis-tou com seu profundo saber.38. A sobriedade, a paciênciae a veracidade não eram maisdo que suas virtudes menores.Ele teve a felicidade de mor-rer no cume de sua glória, sema ter maculado com nenhumamancha, deixando ao mundodos sábios e doutos o desgostode verem-se privados de uma

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luz que não lhes era menosútil do que a luz do sol. Por-que, ainda que não tenha tidoa sorte de ver o fim das últi-mas guerras, em que os senho-res dos Estados Gerais recupe-raram o governo de seu impé-rio meio perdido, seja pelasorte das armas, seja por umamá escolha ; isto não foi paraele uma felicidade pequena,por ter escapado da tempesta-de que seus inimigos lhe pre-paravam.Eles o tinham feito odiosopara o povo, porque ele lhestinha dado o meio de distin-guir a hipocrisia da verdadeirapiedade e de extinguir a su-perstição. Nosso filósofo tementão muita sorte, não so-mente pela glória de sua vida,mas pelas circunstâncias desua morte, que olhou com umolhar intrépido, segundoaqueles que estiveram pre-sentes, como se estivesse sa-tisfeito de sacrificar-se porseus inimigos, afim de que suamemória não fosse maculadacom um parricídio.39. Somos nós, os que fica-

mos, que estamos lamentando;são todos aqueles que seusescritos tenham retificado, e aquem sua presença era aindaum grande socorro no cami-nho da verdade. Mas, já quenão se pode evitar a sorte detudo o que vive, procuremosmarchar sobre suas pegadas,ou ao menos, reverenciá-locom nossa admiração e lou-vor, se não podemos imitá-lo.É o que eu aconselho às almassólidas, assim como seguirsuas máximas e suas luzes, detal forma que as tenham sem-pre ante os olhos e lhes sirvamde regra às suas ações. O quenós amamos e veneramos nosgrandes homens, está semprevivo e viverá por todos os sé-culos.40. A maior parte daquelesque viveram na obscuridade esem glória permaneceram en-terrados nas trevas e no es-quecimento. Baruch de Spino-sa viverá na recordação dosverdadeiros sábios e em seusescritos, que são o templo daimortalidade.

Jean-Maximilien Lucas

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O Espírito do

Senhor Baruch

de Spinoza

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CAPÍTULO I

DE DEUS

I. Se bem que o conheci-mento da verdade interesse atodos os homens, muito pou-cos, contudo, a conhecem,porque a maior parte julga-seincapaz de a procurar pelosseus próprios meios, ou nãose quer dar a esse trabalho.Assim, não deve espantar queo mundo esteja cheio de opi-niões vãs e ridículas, nadasendo mais propício à suapropagação do que a ignorân-cia. Com efeito, só ela é afonte única das ideias falsasque temos acerca da divinda-de, da alma, dos espíritos e detodos os erros que delas de-pendem. Prevalece o costumede nos contentarmos com ospreconceitos nos incutidos ànascença e de nos remetermosa pessoas pagas para defenderas opiniões recebidas e, porconseguinte, interessadas emtransmiti-las ao povo, sejamelas verdadeiras ou falsas.II. O que torna o mal semremédio é que, depois de se

terem estabelecido as ideiasfrouxas que temos de Deus,ensina-se ao povo a crê-las,sem as examinar, e a sentiraversão pelos verdadeiros sá-bios, que poderiam mostrar-lhe os erros nos quais estáatolado.Os partidários destes absurdostiveram tanto sucesso nesseaspecto que se tornou perigo-so combatê-los. Importa-lhestanto que o povo seja igno-rante que não aceitem que olibertem. Assim, vemo-nosobrigados a disfarçar a verda-de ou a sofrer a fúria dos fal-sos sábios e das almas inte-resseiras.III. Se o povo pudesse com-preender em que abismo élançado pela ignorância, rapi-damente se livraria do jugodessas almas venais que, pormero interesse, tudo fazempara aí o manterem. Bastar-lhe-ia, para o efeito, servir-seda razão; é impossível que aodeixá-la agir não se descubra

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a verdade. É certo que, para oimpedir de a usar, se lhe aapresenta como um guia queconduz à perda daqueles quese entregam nas suas mãos, ecomo um fogo-fátuo, cujaluminosidade enganadora levaao precipício.Mas estas pessoas, cujo mis-ter consiste em declamarcontra a razão, não deixam,depois do alarido contra ela, ede terem defendido que estácompletamente pervertida, defazer todos os esforços paratê-la do seu lado e para con-vencer que aqueles que nãopartilham os seus pontos devista não são razoáveis.Assim, caindo em contradi-ções perpétuas, torna-se difí-cil saber o que pretendem. Oque é certo é que a recta razãoé a única luz que o homemdeve seguir, e que o povo nãoé tão incapaz de usá-la quantose tenta persuadi-lo. Se se fi-zessem tantos esforços pararectificar os seus falsos racio-cínios, e para dissuadi-lo dosseus velhos preconceitos,quantos se faz para mantê-lonuns e confirmá-lo nos ou-tros, ele abriria os olhos pou-

co a pouco, tornar-se-ia dis-ponível para a verdade eaprenderia que Deus em nadacorresponde ao que imagina".IV. Com efeito, não são ne-cessárias altas especulaçõesou penetrações profundas nossegredos da natureza; umpouco de bom senso bastapara perceber que Deus não énem colérico nem ciumento;que a justiça e a misericórdiasão falsos títulos que se lheatribui; e que, por fim, nadado que os Profetas e osApóstolos disseram constituia sua natureza ou a sua essên-cia.Para falar sem cosmética edizer as coisas como são, nãohá dúvida de que essa gentenão era nem mais hábil nemmais instruída sobre esses te-mas do que o resto dos ho-mens. Pelo contrário, o quedizem é tão grosseiro que épreciso ser povinho para lhesdar crédito.A coisa é óbvia; mas, paratorná-la mais notória, veja-mos se há algum indício deque tivessem sido feitos deuma massa diferente dos ou-tros homens.

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V. No que respeita ao berço eàs funções básicas da vida,estamos todos de acordo deque nada tinham de sobre-humano; que nasceram dehomens e de mulheres e quelevavam a vida como nós.Mas, relativamente aos seusespíritos, pretende-se queDeus os dirigia através deuma inspiração imediata, eque o seu entendimento esta-va muito mais esclarecido doque o nosso.É preciso confessar que opovo tem uma forte tendênciapara se cegar. Diz-se-lhe queDeus amava mais os Profetasdo que o resto dos homens;que comunicava em privadocom eles, e o povo aceita-ocomo se a coisa tivesse sidodemonstrada.E, sem considerar que todosos homens se assemelham,que todos têm um mesmoprincípio, para o qual todos oshomens são iguais, acreditamque essa gente era de umatêmpora extraordinária, feitade propósito para debitar osoráculos de Deus. Mas, semcontar que não tinham nemmais espírito do que o co-

mum, nem o entendimentomais perfeito do que o restodos homens, o que encontra-mos nos seus escritos que nosinduz a ter essa opinião sobreeles?A maior parte do que disse-ram é tão obscuro que se tor-na incompreensível, estánuma sequência tão desorde-nada que se vê bem que, elespróprios, não se compreendi-am e que eram deveras igno-rantes. O que deu lugar àcrença que temos sobre elesfoi o facto de se gloriarem deque tudo o que anunciavamao povo lhes vinha direta-mente de Deus. Crença ab-surda e ridícula, porquantosão os próprios a confessarque Deus só lhes falava emsonhos. Uma vez que os so-nhos são naturais, para maisem estado de adormecimento,é preciso que um homem sejabem fútil, ou insensato, parase gloriar de que Deus lhe falanessa altura, e que aquele quelhe dê crédito seja tambémmuito crédulo, para acreditar,contra toda a evidência, queos sonhos sejam oráculos.Mesmo supondo que Deus

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tivesse comunicado por so-nhos, visões ou outras vias,ninguém, contudo, seria obri-gado a acreditar, porque ficasempre a dúvida de queaquele homem tivesse sidoenganado por um qualquerimpostor, ou que se tivesseiludido a si próprio, ou, en-fim, que tivesse o propósitode enganar os outros.Assim constatamos que, naantiga Lei, não se tinha amesma estima pelos Profetasque se tem hoje. Quando asua tagarelice, que acabava, amaior parte das vezes, pordesviar o povo da obediênciadevida aos seus reis legítimos,fartava, obrigavam-nos a ca-lar-se mediante diversos su-plícios. Jesus Cristo sucumbiuassim, por não ter, como Moi-sés5, um exército para defen-der as suas opiniões.Acrescente-se que os Profetasestavam tão habituados acontradizer-se entre si, que,por vezes, de entre quatro-centos, não se encontrava um

5 Moisés mandou matar de uma só vezvinte e quatro mil homens por se teremoposto à sua Lei. (Nm. XXV. Vol.2a9).<< E Jesus nunca existiu.>>

único verdadeiro6. Para alémdo mais, é certo que o objec-tivo das profecias, como o dasleis dos mais célebres legisla-dores, era a perpetuação dasua memória, fazendo crer aopovo que conferenciavam emprivado com Deus.Os políticos mais espertossempre recorreram ao expedi-ente, ainda que tal manha nemsempre tenha funcionado comaqueles que, ao contrário deMoisés, não tinham maneirade porvir à sua segurança.VI. Isto aceite, examinemosas ideias que os inspirados eos profetas tiveram sobreDeus, e veremos quão gros-seiras e contraditórias eram.A fazer fé no que dizem, Deusassemelha-se ao homem, que,segundo eles, fez à sua ima-gem.Como ele, tem olhos, orelhas,narinas, uma boca, braços,mãos, pés, um coração e en-tranhas. É susceptível dasmesmas paixões, amor, ciú-me, ódio, alegria, tristeza, 6 No primeiro Livro dos Reis (Cap.XXII v. 6), Acab, rei de Israel, consul-tou quatrocentos profetas, que se enga-naram todos nas suas profecias.

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prazer, dor, esperança, temor,aversão, cólera, fúria, vingan-ça... Eis a grosseria das suasideias.Veja-se a contradição. Elesdizem que Deus é um puroespírito que em nada se asse-melha ao corpóreo. No en-tanto, Miqueias vê-o sentado,Daniel, vestido de branco e naforma de um ancião, e Eze-quiel7 como um fogo.Nem mesmo o seu Espíritoescapou à forma corpórea.João Baptista vê-o na formade uma pomba, e os Apósto-los na de línguas de fogo.Aliás, atribuem-lhe membroshumanos, e dizem que fez ohomem à sua imagem e se-melhança, como acabámos deindicar. Ensinam que é invisí-vel8, que jamais foi visto porqualquer homem", o qual, seo visse, não poderia sobrevi-ver"; todavia, Jacob, Job,Moisés, Arão, Nadab, Abiliu,os setenta anciãos de Israel,Manoah e a sua mulher, amaioria dos Profetas, e umainfinidade de outros homens,viram-no em vida, os outros 7 I Rs, XXII, 19; Rs, VII, 9; Rs, I, 27.8 Ex... XX. 5.

vê-lo-ão no outro mundo9,onde o veremos face a face10,seremos seus semelhantes evê-lo-emos tal como é.Por um lado, dizem-nos queDeus é bom, amável, carido-so, afectuoso, piedoso, benig-no, misericordioso, paciente,que não tem qualquer prazerna morte do mau mas antes nasua conversão.Por outro, que é severo, terrí-vel, assustador, um fogo queconsome, que tem prazer emfazer perecer os maus, que seri, goza com a sua desgraça, eque não lhes responde quandoclamam por si. No Génesis, ohomem é representado comosenhor de fazer o bem e denão pecar, São Paulo, pelocontrário, ensina que ele nãotem qualquer poder sobre aconcupiscência, sem uma gra-ça particular.É dito, no Êxodo11, que a ini-quidade dos pais será punidapor Deus, nos filhos, até àquarta geração e, em Ezequi-el12, que a pena dos pais não

9 Ez... XVIII, 20.10 Nm., XXIII, 19.11 Jr. XVIII, 7-10. II. 13.12 Gn. VI 6. 7. I Sm. XV. 11 Jn., III, 10.

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passará para os filhos.Samuel diz, segundo o Livrodos Números, que Deus nun-ca se arrepende, Jeremias eJoel, ao contrário, dizem, um,que ele se arrepende do bem edo mal que tinha declaradoque faria a uma nação, ou aum reino, o outro, que ele searrepende de provocar aflição.Para além do mais, ele arre-pendeu-se de ter feito o ho-mem, de ter feito de Saul rei"e do mal que disse que iriafazer aos Ninivitas.Eis as opiniões que esta gen-te, com sonhos, inspirações,êxtases, visões, revelações,tem de Deus. Eis aquilo em

que querem que acreditemos.Mas, para acreditar em taiscontradições, seria preciso sertão grosseiro e tão estúpidoquanto aqueles que, apesardos artifícios de Moisés,acreditavam que um bezerroera o Deus que os tirara doEgipto.Sem nos demorarmos nas di-vagações de um povo instruí-do na servidão e no meio desuperstições, fechemos estecapítulo concluindo do quedissemos que a ignorânciaproduziu a credulidade, a cre-dulidade a mentira, de ondetodos os erros reinantes saí-ram.

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CAPÍTULO II

RAZÕES QUE LEVARAM OS HOMENS

A REPRESENTAR UM SER INVISÍVEL,

OU O QUE SE CHAMA HABITUALMENTE DEUS

I. Aqueles que desconhecemas causas físicas têm um re-ceio natural, que provém dadúvida em que estão, sobre seexiste um poder capaz deprejudicá-los ou de ajudá-los.Daí, o pendor para inventa-rem seres invisíveis, ou seja,os seus próprios fantasmas,que invocam na adversidade,que louvam na prosperidade eque acabam por transformarem Deuses.Como as visões dos homenschegam ao infinito, forjaramum número indiscriminado dedivindades e imaginaram quelhes eram favoráveis, ou não,consoante o que, eles própri-os, faziam bem ou mal.Por exemplo, quando a natu-reza os afligia com tempesta-des, secas, pestes e outrosacidentes do mesmo tipo,acreditavam que esses males

aconteciam por terem irritadocom as suas ofensas essas di-vindades.Este temor quimérico dos po-deres invisíveis é a sementedas religiões, que cada ummolda a seu modo". Os políti-cos, interessados em que opovo estivesse imbuído detais medos, fizeram da crençaem Deuses vingadores dasleis divinas e humanas viola-das uma lei fundamental dosseus Estados, e pela antecipa-ção de um terrível futuro le-varam os seus súbditos a obe-decer-lhes cegamente.II. Uma vez encontrada afonte dos Deuses, os homensacreditaram que aqueles selhes assemelhavam, e que,como eles, tudo faziam comuma finalidade. Pois são unâ-nimes a afirmar que tudo oque Deus fez foi para o ho-

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mem, que o homem é feitotão só para Deus'.Sendo este preconceito geral,vejamos por que é que oshomens têm tanta inclinaçãopara segui-lo, para se mostrarcomo foi daí que lhes ocorreuuma ideia do bem e do mal,do mérito e do pecado, dolouvor e da vergonha, da or-dem e da confusão, da belezae da fealdade...III. Não é este o lugar paradeduzir estas ideias da nature-za do espírito humano; basta-rá para o nosso intuito queestabeleçamos como funda-mento um princípio que nãopossa ser negado por nin-guém. Esse princípio é o deque todos os homens nasce-ram na ignorância profunda,relativamente às causas dascoisas, e que tudo o que sa-bem é que têm uma tendêncianatural que os leva a procuraro que lhes é útil e cómodo e aevitar o que lhes é prejudicial.Do que resulta, primeiro, queos homens sintam o poder dequerer, ou desejar, e imagi-nem, erroneamente, que issolhes basta para os tornar li-vres. Erro no qual caem ainda

com maior facilidade por nãose darem ao trabalho de pro-curar as causas que os deter-minam a querer, ou a desejar,pois são incapazes de pensarno assunto, ou de reflectir,mesmo em sonhos.Segue-se, em segundo lugar,que, se tudo o que os homensfazem tem um fim, que é pre-ferido relativamente a tudo omais, estes só têm como ob-jectivo conhecer as causasfinais das suas acções; ao co-nhecê-las, ficam satisfeitos,não procuram mais, e imagi-nam que já não há lugar paraa dúvida.Encontrando, depois, neles, efora deles, uma quantidade demeios para chegar ao que de-sejam, tendo, por exemplo,olhos para ver, ouvidos paraescutar, uma língua para falar,dentes para mastigar, mãospara tocar, pés para andar...,frutos, legumes, animais paranutri-los, um sol para ilumi-ná-los, formaram este raciocí-nio: que nada há na naturezaque não tenha sido feito paraeles, e de que não possamdispor.Aliás, considerando que não

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fizeram o mundo, julgaram-secom fundamento suficientepara imaginar um ser supre-mo que o tivesse feito paraeles, tal como é. Pois, após seterem convencido de que estemundo não se poderia terfeito a si próprio, concluíramtratar-se da obra de um oumais Deuses, que o destina-ram para o prazer e o uso ex-clusivos do homem.Por outro lado, sendo-lhesdesconhecida a natureza dosDeuses, os homens supuse-ram-nos susceptíveis dasmesmas paixões e das mes-mas fraquezas que eles, e,nessa base, imaginaram quesó tinham feito o mundo paraos homens, os quais lhes eramextremamente caros. E comotodas as inclinações são dife-rentes, cada um se esforçoupor adorar Deus segundo oseu humor, para atrair as suasbenesses ou para pôr a totali-dade da natureza ao serviçodos seus apetites.IV. Por este meio, tornado opreconceito em superstição,enraizou-se de tal maneiraque os mais grosseiros se su-puseram capazes de penetrar

as causas finais, como se de-las tivessem um conheci-mento perfeito; de modo que,em vez de mostrarem que anatureza não fazia nada emvão, acabaram por mostrarque Deus e a natureza sonha-vam tanto quanto os homens.Para que não nos acusem deexagero, vejamos, se não seimportarem, até onde levaramos falsos raciocínios nestamatéria.Tendo verificado que, nomeio de muitas comodidadesque a natureza lhes permitiausufruir, um número infinitode incómodos, tais como astrovoadas, os tremores de ter-ra, as doenças, a fome, asede... vinham perturbar asdoçuras da vida, em vez deconcluírem que a naturezanão fora feita só para eles,atribuíram todos esses malesà cólera dos Deuses, que re-presentaram irritados contraeles por causa dos seus peca-dos. E, ainda que a experiên-cia quotidiana lhes ensinasseo contrário, e que uma infini-dade de exemplos lhes pro-vasse que os bens e os maleseram partilhados igualmente

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por bons e maus, não pude-ram desenvencilhar-se de umpreconceito tão antigo e in-veterado. A razão para tal éque lhes era mais fácil per-manecer na sua ignorâncianatural do que renunciar aovelho sistema das causas fi-nais, para inventar um maisverosímil.V. Este preconceito levou-osa outro, que consiste em acre-ditar que os juízos de Deusseriam incompreensíveis, ra-zão pela qual o conhecimentoda verdade estaria acima doespírito humano. Erro no qualainda permaneceríamos, nãotivessem as matemáticas eoutras ciências destruído estepreconceito.VI. Não são necessários lon-gos discursos para fazer verque a natureza não se rege pornenhum fim e que todas ascausas finais não passam deficções humanas. Bastar-nos-á, para o efeito, mostrar, empoucas palavras, que essadoutrina retira a Deus as per-feições que lhe são atribuídas.Eis como o provamos:Se Deus age com vista a umfim, seja por si mesmo seja

por outrem deseja o que nãotem, e é necessário reconhe-cer que houve um tempo noqual Deus, não tendo aquiloem vista do qual agiu, desejoutê-lo, o que supõe um Deusindigente.E, para nada omitir do quepossa sustentar este argu-mento, oponhamos-lhe o ra-ciocínio daqueles que seguema opinião contrária, e veremosque está apenas fundado naignorância.Se, por exemplo, uma pedracai em cima de alguém e omata, é necessário, afirmam,que essa pedra tenha caídocom o propósito de matar essehomem, o que não poderiaacontecer senão por Deus oter querido. Se lhes respon-dermos que foi o vento quefez cair a pedra precisamenteno momento em que o ho-mem passava, perguntam-vosporque é que o homem passa-va, precisamente, ao mesmotempo que caía a pedra? Selhes replicardes que o ventona altura estava impetuoso,pois o mar estava agitado nosdias anteriores, ainda que nãoparecesse haver no ar qual-

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quer agitação, e que esse ho-mem, tendo sido convidado acomer em casa de um amigo,se dirigia ao encontro, aindavos perguntam, pois nunca serendem, porque é que essehomem tinha sido convidadopelo amigo nessas condiçõese não noutras? Fazendo, as-sim, uma infinidade de per-guntas, para tentar forçar aconfissão de que só a vontadede Deus, que é o asilo dos ig-norantes, é a causa dessa que-da. Igualmente, quando vêema estrutura do corpo humano,ficam em admiração, e, comoignoram as causas de uma talmaravilha, concluem que éuma obra sobrenatural, naqual as causas que são donosso conhecimento não po-deriam ter qualquer papel.Eis a razão pela qual quemquiser conhecer a fundo ascausas dos milagres, e pene-trar, como verdadeiro sábio,nas causas naturais, sem sedivertir a admirá-las comoignorante, passa por ímpio ouherético, em virtude da malí-cia daqueles que o vulgo re-conhece como os intérpretestanto da natureza quanto deDeus.

Estes espíritos mercenáriosestão bem cientes de que aignorância que mantém opovo no espanto é o que lhespermite subsistir e conservaro seu crédito.VII Os homens, tendo metidona cabeça a opinião ridículade que tudo o que vêem foifeito para eles, fizeram da re-dução de todas as coisas aoseu interesse, ajuizando o seuvalor pelo lucro que delas ti-ram, um princípio da religião.Do que formaram essas no-ções que lhes servem paraexplicar a natureza das coisas,a saber, o bem, o mal, a or-dem, a confusão, o calor, ofrio, a beleza, a fealdade, queno fundo não são aquilo queimaginam.Como, por outro lado, fazemgala de ter o seu livre-arbítrio,acharam-se no direito de de-cidir sobre o louvor e a ver-gonha, o pecado e o mérito.Chamam de bem a tudo o queos favorece e que diz respeitoao culto divino e mal, pelocontrário, ao que não convémnem a um nem a outro.Aqueles que ignoram a natu-reza das coisas, e que dela só

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têm a ideia que formam com aajuda da imaginação, queconfundem com o entendi-mento, representam para sipróprios uma ordem do mun-do à medida do que imagina-ram.Pois os homens são feitos detal modo que crêem as coisasbem ou mal ordenadas conso-ante têm facilidade ou traba-lho a imaginá-las, quando ossentidos lhas representam.Com efeito, como nos com-prazemos, sobretudo, no quecansa menos a imaginação,persuadimo-nos, facilmente,de que temos razão em prefe-rir a ordem à confusão, comose a ordem fosse outra coisaque um puro efeito da imagi-nação dos homens. De modoque, ao dizer que Deus feztudo com ordem, está-se aatribuir-lhe, como ao homem,a faculdade da imaginação. Anão ser que, em favor da ima-ginação humana, se pretendaque Deus criou o mundo damaneira mais fácil de imagi-nar, ainda que haja centenasde coisas que ultrapassam, emmuito, as forças da imagina-ção, e uma infinidade de ou-

tras que a lançam na desor-dem, por causa da sua fraque-za.VIII. Em relação às outrasnoções, são puros efeitos des-sa mesma imaginação, quenão têm qualquer realidade, eque mais não são do que osdiferentes modos de que estafaculdade é capaz.Por exemplo, se o movimentoque os objectos imprimemnos nervos, por meio dosolhos, é agradável aos senti-dos, diz-se que esses objectossão belos. Que os odores sãobons ou maus, os sabores do-ces ou amargos, o que se tocaduro ou macio, os sons rudesou harmoniosos, se os odores,os sabores... tocarem e pene-trarem agradável ou desagra-davelmente nos sentidos.Até houve quem chegasse aacreditar que Deus era capazde ter prazer com uma melo-dia, e que os movimentos ce-lestes seriam um concertoharmonioso. Prova evidentede que cada um acredita queas coisas são como se lhe afi-guram, ou antes, que o mundoé puramente imaginário.Por isso, não é maravilha que

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não se encontrem dois ho-mens com a mesma opinião, ehaja mesmo quem se vanglo-rie de duvidar de tudo. Pois,ainda que os homens tenhamum corpo, que se assemelhaem muitas coisas, difere numasérie de outras, assim, o queparece bom a um, parece maua outro, o que agrada a este,desagrada aquele. Do que éfácil inferir que os sentimen-tos só diferem em relação àfantasia; que o papel do en-tendimento é pequeno e que,por fim, as coisas do mundonão passam de um puro efeitoda imaginação.Mas, se em vez de se remeterpara a imaginação se consul-tassem as luzes do entendi-mento e as matemáticas, e quenão se ultrapassasse o que sepode conceber com o auxíliodas luzes naturais, toda agente chegaria à verdade, e osjuízos seriam mais uniformese mais razoáveis do que têmsido.IX. É, portanto, evidente quetodas as razões, que o vulgocostuma apresentar, quandose mete a explicar a natureza,não passam de modos de

imaginar, que provam tudo,menos o que pretendem. E,como se dá a essas razõesnomes tão reais como seexistissem noutro lado quenão na imaginação, chamo-lhes, não seres de razão maspuras imaginações; não ha-vendo nada mais fácil do queresponder aos argumentos quese fundam nessas noções eque se nos contrapõem comose segue.A ser verdade que o universoseja um fluxo e uma sequên-cia necessária da natureza di-vina, de onde viriam as im-perfeições e os defeitos quenele encontramos?Por exemplo, a corrupção,que tudo enche de mau chei-ro, a quantidade de objectosdesagradáveis, tantas desor-dens, tantos males, tantos pe-cados e tantas outras coisassemelhantes? Nada é, digo,mais fácil de refutar do queestas objecções.Pois não se deve atribuir maisperfeição às coisas do queaquela que convém à sua na-tureza e à sua essência, e elasnão são nem mais nem menosperfeitas, tão-só por agrada-

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rem ou desagradarem aossentidos, ou serem úteis ouinúteis, à natureza humana.Aliás, só se pode julgar a per-feição de qualquer ser na me-dida em que se conhece a es-sência e a natureza. Mas, paracalar aqueles que perguntampor que é que Deus não crioutodos os homens, sem excep-ção, de tal modo que se dei-xassem levar apenas pelas

luzes da razão, basta dizer quelhe sobejava matéria para dara cada ser o grau de perfeiçãoque lhe fosse mais conveni-ente, ou, para falar com maiorpropriedade, porque as leis danatureza eram tão amplas eextensas que podiam servir àprodução de todas as coisasde que é capaz um entendi-mento infinito.

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CAPÍTULO III

O QUE É DEUS

Até aqui, combatemos os pre-conceitos populares sobre adivindade, mas ainda não dis-semos o que Deus é.Se nos perguntarem, respon-demos que é um ser absolu-tamente infinito, do qual umdos atributos é ser uma subs-tância eterna e infinita, por-quanto a extensão, ou a quan-tidade, só é finita, ou divisí-vel, quando a imaginamoscomo tal.Pois a matéria sendo em todoo lado a mesma, o entendi-mento não distingue nelapartes.Por exemplo, a água, en-quanto água, é imaginada di-visível, e as suas partes sepa-radas umas das outras; se bemque, enquanto substância cor-pórea, não seja nem separávelnem divisível.Enfim, a água, enquanto água,está sujeita à geração e à cor-rupção, ainda que, como

substância, não esteja sujeitanem a uma nem a outra.Assim, a matéria e a quanti-dade nada têm que seja indig-no de Deus.Pois se tudo está em Deus, ese tudo decorre necessaria-mente da sua essência, é pre-ciso absolutamente que sejatal como o que contem; umavez que seria contraditórioque seres completamentemateriais estivessem contidosnum ser que em nada o fosse.E, para que não se julgue quese trata de uma opinião nova,Tertuliano, um dos primeirosadeptos dos Cristãos, afirmou,contra Apeles, que o que nãoé corpo nada é.E, contra Praxeas, que toda asubstância é um corpo, semque tal doutrina fosse conde-nada nos quatro primeirosConcílios Ecuménicos e Ge-

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rais'13.II. Estas opiniões são sim-ples, e mesmo as únicas queum bom e são entendimentopossa formar sobre Deus. Noentanto, poucos se contentamcom uma tal simplicidade. Opovo grosseiro está acostu-mado à adulação dos sentidose espera um Deus que se as-semelhe aos reis da terra. Estapompa e circunstância, que oscircunda, deslumbram-no detal modo que tirar-lhe toda aesperança de, após a morte,vir a engrossar o número doscortesãos celestes, usufruindodos mesmos prazeres de aquiem baixo na corte dos reis, éretirar-lhe a sua consolação ea única coisa que o impede dedesesperar nas misérias davida.Quer-se um Deus justo e vin- 13 Foram eles: 1 - O de Nicéia, realiza-do em 325 sob o imperador Constanti-no, o Grande e o papa Silvestre; 2 - Oprimeiro de Constantinopla, no ano de381, nos reinados de Graciano, Valenti-niano e Teodósio, no papado de Damá-sio; 3 - O primeiro de Éfeso, no ano de431, sob o império de Teodósio, oNovo, e Valentiniano, e do papa Celes-tino; 4 - O de Calcedónia, no ano de451, sob os imperadores Valentiniano eMarciano e o papa Leão 1.

gativo, que castigue e recom-pense à maneira dos reis, e,por conseguinte, um Deussusceptível de todas as pai-xões e de todas as fraquezashumanas. Atribui-se-lhe pés,mãos, olhos e ouvidos, e nãose quer que um Deus assimconstituído tenha matéria.Diz-se que o homem é a suaobra-prima e mesmo a suaimagem, mas não se quer quea cópia seja semelhante aooriginal. Enfim, o Deus dopovo actual está sujeito amais formas do que o Júpiterdos pagãos.O que é mais estranho é que,quanto mais estas tolices secontradizem e chocam o bomsenso, mais são veneradaspelo vulgo. Ele crê, obstina-damente, no que disseram osProfetas, ainda que esses visi-onários mais não fossem, en-tre os Hebreus, que o que osaugures e os adivinhos erampara os pagãos, e o que, paranós, são os astrólogos e osfanáticos.Consulta-se a Bíblia, como seDeus nela se explicasse pontopor ponto, apesar de estarcheia de fábulas impertinentes

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e ridículas.Testemunha o que aí se contasobre uma serpente e umaburra que falaram; sobre umamulher transformada em es-tátua de sal; sobre um reiconvertido em fera; sobre umNazareno que esquarteja umleão, mata mil homens comuma mandíbula de burro, ar-ranca as ombreiras e a barradas portas de uma cidade e ascarrega aos ombros, rompe ascordas mais fortes, com asquais estava preso, deita abai-xo um grande edifício, for-çando os pilares nos quaisestá apoiado, tudo isto graçasa uma força maravilhosa quereside nos seus cabelos; sobreum Profeta a quem os corvostraziam de comer duas vezespor dia, que sobreviveu comuma única refeição durantequarenta dias e quarenta noi-tes de marcha, dividiu aságuas de um rio batendo-lhescom o seu manto, e o atraves-sou a seco, que, enfim, foielevado aos céus por um tur-bilhão, num carro de fogo pu-xado por cavalos de fogo; esobre um outro Profeta quepermaneceu três dias e trêsnoites no ventre de um peixe,

onde respirava com tal à-vontade que pôde cantar umcântico.Apesar de todos estes contospueris, e uma infinidade deoutros semelhantes, de queeste livro abunda, obstinam-se a canonizá-lo e não se queratentar que ele é composto deum mero tecido de fragmen-tos cosidos juntos em temposdiversos e apresentados aopúblico segundo a fantasiados rabinos14, que só os exibi-ram depois de terem aprovadouns e rejeitado os outros, se-gundo os julgaram confor-mes, ou repugnantes, à Lei deMoisés15.Sim, tal é a loucura e a estu-pidez dos Cristãos, que prefe-rem passar a vida a idolatrar

14 O Talmud indica que os Rabinosponderaram se retirariam o Livro dosProfetas e o do Eclesiastes do númerodos Livros da Bíblia. Deixaram-nosficar pois neles encontraram algumaspassagens elogiosas para a Lei de Moi-sés. Teriam feito o mesmo com as pro-fecias de Ezequiel, que deveriam tersido banidas do Catálogo Sagrado, seum certo cónego não tivesse a habilida-de de conciliá-las com a Lei.15 Gn., III, 1-5. - Nm., XXII, 29-.10. -Gn.. XIX, 26. – Dn., IV, 32-.36. – Jz.,XIV, XV, XVI. - 1 Rs. XVII. XIX, 2.Rs.II. - Jn., II.

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um livro que receberam deum povo ignorante, um livrosem ordem, nem método, queninguém percebe, de tal modoé confuso e mal concebido, eque só serve para fomentar asdivisões entre eles, tal é, di-zia, a sua loucura, que prefe-rem adorar este fantasma doque escutar a lei natural queDeus, quer dizer, a Natureza,enquanto princípio do movi-mento, inscreveu no coraçãodos homens.Todas as outras Leis não sãosenão ficções humanas e pu-ras ilusões forjadas, não pelosDemónios ou pelos maus Es-píritos, mas pela espertezados príncipes e dos eclesiásti-cos, aqueles, para aumenta-rem a sua autoridade, estes,para enriquecerem pelo débitode uma infinidade de quime-ras que vendem a alto preçoaos ignorantes.Em relação às Leis dos Cris-tãos, elas não estão fundadassenão num livro16 cujo origi-nal não se encontra em ladonenhum, cujas cópias, quepossuímos, diferem, em millugares, umas das outras. So- 16 A Bíblia

bre um livro, enfim, que sócontém coisas sobrenaturais,quer dizer, impossíveis, e cu-jas recompensas e castigosque aí são propostos para asboas e as más acções só di-zem respeito a uma vida futu-ra, tal é o receio de que afraude se descubra nesta. Éque nunca ninguém voltou dooutro mundo para nos dar no-tícias.Assim, o povo, sempre a os-cilar entre a esperança e o te-mor, é mantido no cumpri-mento do seu dever, pela opi-nião que tem de que Deus sófez os homens para os tornareternamente felizes ou infeli-zes. Foi esta opinião, nascidada esperança e do temor, quedeu lugar a uma infinidade dereligiões de que iremos falar.

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. CAPÍTULO IV

O QUE SIGNIFICA A PALAVRA RELIGIÃO.

COMO E PORQUE SE INTRODUZIU UM NÚMERO

TÃO GRANDE NO MUNDO

I. Antes de esta palavra Reli-gião, ter sido introduzida nomundo, era-se obrigado a se-guir as leis naturais, quer di-zer, a conformar-se à rectarazão. Só este instinto era oelo ao qual os homens esta-vam presos. Este elo, simples,unia-os de tal modo que asdivisões eram raras.Mas, desde que o medo oslevou a suspeitar de que hou-vesse Deuses, e potências in-visíveis, elevaram altares aesses seres imaginários. E,renunciando às luzes da natu-reza e da razão, que são asfontes da verdadeira vida, li-garam-se, entre si, através devãs cerimónias e de um cultosupersticioso dos fantasmasda sua imaginação.É destes elos sagrados, for-mados pelo receio, que vemessa palavra Religião, quetanto dá que falar no mundo.

Os homens tendo, portanto,admitido, assim, potênciasinvisíveis, que teriam todo opoder sobre eles, adoraram-nas, para as comover, e ima-ginaram, ainda, que a nature-za era um ser subordinado aessas potências.A partir daí, representaram-nacomo uma grande massa, oucomo uma escrava, que agiasegundo as ordens dadas poressas potências. Desde o mo-mento em que esta falsa ideiasurgiu nos seus espíritos, maisnão tiveram do que desprezopela natureza e reservaramtodos os respeitos para essespretensos seres, aos quaischamaram Deuses.Daí veio a ignorância, na qualestão mergulhados tantos po-vos, e da qual os verdadeirossábios, por mais profunda queseja, os poderiam libertar, se oseu zelo não fosse impedidopor aqueles que conduzem

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esses cegos e que só vivem deimposturas.Mas por pouca que seja a es-perança de sucesso nesse em-preendimento, não se deve,por isso, abandonar o partidoda verdade. Mais que não sejapor consideração por aquelesque se protegeram dos sinto-mas de um tão grande mal, épreciso que uma alma genero-sa diga as coisas como são.II. O temor, que fez os Deu-ses, fez também a Religião; edesde que os homens mete-ram na cabeça que existiamanjos invisíveis, que eram ascausas da sua boa ou má for-tuna, renunciaram ao bomsenso e à razão, e tomaram asquimeras por divindades, quecuidariam do seu comporta-mento. Depois de forjaremDeuses, quiseram saber deque natureza eram, e imagina-ram que deveriam ser damesma substância que a alma.Depois, persuadindo-se deque esta se assemelharia aosfantasmas que aparecem nosespelhos, ou durante o sono,acreditaram que os seus Deu-ses eram substâncias reais,mas tão finas e subtis que,

para as distinguir dos corpos,chamaram-lhes Espírito, ain-da que corpos e espíritos se-jam, na verdade, uma mesmacoisa. Não diferem entre si,pois ser espírito e incorpóreoé uma coisa incompreensível.A razão é que todo o espíritotem uma figura que lhe é pró-pria e está compreendido numlugar determinado, quer dizerque tem limites, e, por conse-guinte, que é um corpo, aindaque estreito, solto e subtil.III. Os ignorantes, ou seja, amaioria dos homens, tendodeterminado, deste modo, asubstância dos seus Deuses,trataram de investigar por quemeio esses seres invisíveisproduziriam os seus efeitos.Mas, não conseguindo, porcausa da ignorância, acredita-ram em conjecturas, ajuizan-do cegamente do futuro pelopassado, se bem que não en-contrassem, aí, nem ligaçãonem dependência.Em tudo o que empreendiam,encaravam o passado e augu-ravam o futuro em termos debem ou de mal, consoanteesse empreendimento tivessetido sucesso ou não. Assim,

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tendo Formião derrotado osLacedemónios na batalha deNaupacto, os Ateniensespromoveram um outro capi-tão, depois da sua morte, porter o mesmo nome; Aníbal,tendo sucumbido às armas deCipião, o Africano, os Roma-nos, em virtude desse bomsucesso enviaram para amesma província um outroCipião, contra César, o quenão serviu nem aos Atenien-ses nem aos Romanos. Assim,após duas ou três experiênci-as, várias nações ligaram lu-gares, objectos, nomes e boaou má sorte. Outras serviram-se de certas palavras misterio-sas, às quais chamaram en-cantamentos, e supuseram-nasde uma tal eficácia que pode-riam, pela sua virtude, fazerfalar as árvores, fazer um ho-mem de um bocado de pão emetamorfosear tudo o que selhes deparasse.IV. Inventadas, desta sorte, aspotências invisíveis, os ho-mens, primeiro, reverencia-ram-nas como fazem com osseus soberanos, isto é, atravésde marcas de submissão e derespeito, como sejam os pre-sentes, as orações e outras

coisas do género. Digo pri-meiro, pois a natureza nãoensina a usar nessas ocasiõessacrifícios sangrentos, que sóforam instituídos para a sub-sistência dos sacrificadores edos ministros destinados aoserviço desses belos Deuses.V. Esta semente de religiões,a saber, a esperança e o temor,à força de passar pelas pai-xões, os juízos e os diversosconselhos dos homens, pro-duziu esse grande número decrenças bizarras, que são acausa de tantos males, detantas crueldades bárbaras ede tantas revoluções que ocor-reram nos Estados.A honra e os grandes provei-tos que se atribuíram ao sa-cerdócio, como depois ao mi-nistério e aos cargos eclesiás-ticos, aliciaram a ambição e aavareza das pessoas manho-sas, que aproveitaram a estu-pidez dos povos e captaramtão bem as suas fraquezas,que se tornou insensivelmenteum doce hábito incensar amentira e detestar a verdade.VI. Uma vez a mentira esta-belecida, e os ambiciosos fis-gados pela doçura de estar

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acima dos seus semelhantes,trataram de construir uma re-putação, fingindo ser amigosdesses Deuses invisíveis queo vulgo reconhecia. Para ob-ter maior sucesso, cada umforjou-os a seu modo e tomouuma tal licença para multipli-cá-los que se encontrava um acada passo.VII. A matéria informe domundo chamou-se deus Caos.Conferiu-se idêntica honra aocéu, à terra, ao mar, ao fogo,aos ventos e aos planetas. Omesmo se fez com os homense as mulheres; mas, também,o bezerro, o cão, o cerdo, ocrocodilo, a serpente, a cebo-la, os pássaros, os répteis, emsuma, todo o tipo de animaise de plantas tiveram o seu lu-gar privilegiado. Cada rio,cada fonte tinha o nome deum deus, cada casa tinha oseu, cada homem tinha o seugénio.Enfim, tudo estava cheio,tanto acima como sob a terra,de espíritos, de sombras edemónios. Como não bastasseinventar divindades em todosos lugares imagináveis, jul-gou-se ofender o tempo, o

dia, a noite, a concórdia, oamor, a paz, a vitória, a con-tenção, a ferrugem, a honra, avirtude, a febre, a saúde...Julgou-se, dizia eu, ultrajaressas belas divindades se nãose lhes erguesse templos ealtares. Depois, começou-se avenerar o próprio génio, quealguns invocavam com onome de musa. Uns, com onome de fortuna, adoravam asua própria ignorância. Ou-tros baptizavam os seus debo-ches com o nome de cúpido, asua cólera, com o nome defúria; numa palavra, nada ha-via que não tivesse um nomede um deus ou de um demó-nio.VIII. Os fundadores das reli-giões, cientes de que a basedas suas imposturas era a ig-norância dos povos, nada es-queceram para a sustentar. Aadoração das imagens, nasquais fingiram que os Deusesmoravam, pareceu-lhes bas-tante adequada para esseefeito, e dedicaram todos oscuidados para lhe conferir umfundamento duradoiro. Paratal, ergueram altares aos Deu-ses, que dignavam manifestar-

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se aos homens nos seus si-mulacros, construíram-lhestemplos soberbos, em suahonra, instituíram sacrifícios,festas, cerimónias, estabelece-ram sacrificadores, padres,ministros para os servirem,atribuíram a esses ministros,para além das dízimas, osmelhores pedaços dos animaissacrificados, a melhor partedos frutos, dos legumes, dosgrãos oferecidos nos seus al-tares, e impeliram assim essasalmas baixas e venais a pro-mover um culto que lhes erade tão grande utilidade. E es-tes sacrifícios, de que os Deu-ses só recebiam o fumo, estasdízimas, estas oferendas, fo-ram depois considerados coi-sas santas, destinadas a serusadas nos mistérios sagra-dos, para que ninguém tivessea audácia de cobiçá-las, nem atemeridade de lhes tocar.Para melhor ludibriar os po-vos, estes padres intitulavam-se profetas e faziam crer queantecipavam o futuro, graçasao comércio, de que se van-gloriavam, com os Deuses.Como não há nada mais natu-ral no homem do que o desejo

de saber o seu destino, estesimpostores eram demasiadoespertos para não aproveita-rem essa tendência e para ne-gligenciarem uma circunstân-cia tão favorável aos seusobjectivos. Uns estabelece-ram-se em Delos, outros emDelfos e noutros lados, onde,mediante oráculos ambíguos,respondiam às perguntas quelhes faziam. Até as mulheresestavam metidas nisso. Comefeito, os Romanos recorriam,nas grandes calamidades, aosOráculos das Sibilas17.Os loucos e os insanos passa-vam por entusiastas e aquelesque fingiam ter comércio comos mortos eram designadosnecromantes. Outros liam ofuturo no voo dos pássaros ounas entranhas dos animais.Por fim, os olhos, as mãos, orosto, um objecto extraordiná-rio, tudo lhes parecia de bomou mau augúrio. O que provaque a ignorância aceita a im-pressão que se quiser, desdeque se tenha o segredo paraaproveitá-la.

17 Os quais traziam as previsões sobreos destinos do Império Romano

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CAPÍTULO V

SOBRE MOISÉS

I. Os ambiciosos, que sempreforam grandes mestres na artede enganar, seguiram o mes-mo caminho na instituiçãodas suas leis. Para obrigar opovo a submeter-se de boavontade, persuadiram-no,aproveitando a ignorância quelhe é natural, de que as ti-nham recebido de um deus oude uma deusa.Foi este o procedimento doslegisladores. Todos atribuírama genealogia das suas leis auma qualquer divindade eprocuraram convencer os ou-tros de que eles próprios erammais do que homens. Distoficará convencido quem seder ao trabalho de ler, sempreconceitos, o que vamosdizer sobre os quatro maiscélebres de entre eles, a saber,Moisés, Numa Pompílio,Jesus Cristo e Maomé.II. O célebre Moisés, neto deum grande mago, como relataJustino, o Mártir, tendo-se

tornado chefe dos Hebreus,que foram corridos do Egiptopor um édito, porque espalha-vam a sarna e a lepra de queestavam infestados, foi umdos que usaram com maiorhabilidade este estratagema.Depois de seis dias de mar-cha, numa dolorosa retirada,ordenou a esses miseráveisbanidos que consagrassem osétimo a Deus, por um repou-so público, a fim de os con-vencer de que este Deus o fa-vorecia, que aprovava o seudomínio, e evitar que alguémtivesse a audácia de lho dis-putar. Nunca houvera gentemais ignorante do que aquela,nem, por conseguinte, maiscrédula.Dada a esplêndida oportuni-dade de fazer valer os seustalentos raros, levou-os aacreditar que Deus lhe apare-cera, que fora por sua ordemque tomara a chefia, que tinhasido escolhido para os gover-nar, que eles formariam o seu

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povo particular, privilegiado,à exclusão de qualquer outranação, desde que acreditas-sem e fizessem o que lhesdissesse. E, para acabar de osconvencer da sua missão di-vina, fez alguns truques sub-tis, que eles tomaram comomilagres. Assim, estes pobresinfelizes, ofuscados com assuas ilusões, exultantes porserem adoptados pelo senhordos Deuses à saída de umadura servidão, aplaudiramMoisés e juraram obedecer-lhe.III. Uma vez confirmada asua autoridade, pensou emperpetuá-la; e, com o pretextode estabelecer um culto su-premo para servir Deus, dequem se dizia o lugar-tenente,fez de Aarão, seu irmão, e dosseus filhos, os chefes do palá-cio real, quer dizer, do lugaronde se emitiam os oráculos,longe da vista e da presençado povo.Depois, fez o que sempre foifeito nas novas crenças, querodizer, prodígios e milagres,que deslumbravam os simplese a alguns estonteavam, masque davam pena aos mais in-

teligentes, que liam nas en-trelinhas dessas imposturas.De tempos a tempos, fazia umretiro, sozinho, com o pre-texto de ir conferenciar emprivado com Deus; e, por essepretenso comércio directocom a divindade, era respei-tado e obedecido sem limites.No entanto, por mais hábilque fosse este legislador, teriatido dificuldade em se fazerobedecer, se não tivesse a for-ça na mão. A intrujice sem asarmas raramente funciona.Com efeito, de entre um nú-mero tão grande de súbditos,que tivera a arte de dominar,havia alguns suficientementeesclarecidos para se apercebe-rem dos seus artifícios, e sufi-cientemente corajosos paralhe contestarem que, sob afalsa aparência da justiça e daigualdade, tinha arrebanhadotudo; que, estando a autorida-de soberana vinculada ao seusangue, mais ninguém podiaalcançá-la; que, por fim, maisdo que pai, era tirano.Nestas ocasiões, Moisés, há-bil político, trucidava semquartel esses espíritos fortes,e não poupava um único que

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criticasse o seu jugo. Comestas precauções, e pintandoos seus suplícios com o nomede vinganças divinas, mante-ve sempre o poder absoluto.E, para acabar como come-çou, isto é, como intrujão eimpostor, cavou um abismo,durante os retiros, e nele seprecipitou, para que o seucorpo não fosse encontrado ese acreditasse que Deus o ti-nha levado.Não ignorava, contudo, que amemória dos Patriarcas que oantecederam era objecto degrande veneração, apesar dese conhecerem as respectivassepulturas. Mas isso era pou-co para contentar uma ambi-ção como a dele; precisava deser venerado como um deus,de quem a morte não se pude-ra apoderar. Com efeito, era oque já prenunciava o que dis-sera no início do seu reinado:que era o eleito de Deus, oDeus de Faraó.Depois dele, Rómulo, Elias,Empédocles, e aqueles quecomo eles tiveram a tola vai-dade de eternizar o nome, es-conderam o momento damorte, para que os cressem

imortais.Rómulo afogou-se nos pânta-nos das cabras, para que, nãoaparecendo o seu corpo, seacreditasse que tinha sido ele-vado aos céus e deificado.Empédocles, célebre filósofo,precipitou-se nas fumarolas ecrateras do monte Etna parafazer crer, como Rómulo, quefora elevado ao céu. E Elias,levado num redemoinho aoscéus em um carro de fogo pu-xado por cavalos de fogo18.

18 2 Rs, II.

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CAPÍTULO VI

SOBRE NUMA POMPÍLIO

I. Numa Pompílio, Sabinodos quatro costados, homemsábio em matéria de Leis, foiescolhido para suceder a Ró-mulo. Apesar de o povo ro-mano o ter eleito, por unani-midade, e a eleição ter sidoconfirmada por todos os se-nadores, quis, ainda, que seconsultassem os Deuses sobreessa escolha, e só aceitou arealeza depois de estes teremindicado a sua aprovação,mediante presságios celestes.Empenhou-se, durante umreinado de mais de quarentaanos, em suavizar os costu-mes cruéis dos Romanos, di-rigindo os seus espíritos paraa religião.Considerou que a forma maissegura de reinar de modo ab-soluto sobre homens igno-rantes, grosseiros e supersti-ciosos, como eram os primei-ros habitantes de Roma, con-sistia em inspirar-lhes o maiortemor possível dos Deuses.

Para consegui-lo, julgou ne-cessária a ficção de um mila-gre qualquer; e, como lidavacom um povo que já admitiacomo artigos de fé as respos-tas dos oráculos e as previ-sões dos augures e dos astró-logos, não lhe foi difícil con-vencê-los.Persuadiu-os, facilmente, deque a ninfa Egéria lhe ditaraas Leis e as instituições quelhes impunha; e, com essafraude, conseguiu subjugá-loscom cadeias tanto mais fortese respeitáveis quanto eramconsideradas sagradas e divi-nas.II. Mas, se bem que, nessestempos grosseiros, a creduli-dade dos Romanos fossegrande, nada era comparadacom a dos mesmos Romanosem épocas civilizadas. Comefeito, estes apropriaram-sedos Deuses, das crenças e dassuperstições de todas as na-ções que tinham vencido.

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Em particular, adoptaram ateologia dos Gregos que acre-ditavam que Minerva tinhanascido da cabeça de Júpiter eBaco da sua coxa; que Eristó-nio e Mirra tinham sido con-cebidos, por este pai dos Deu-ses, sem mães, e que, ao in-vés, Vulcano e Marte eramfilhos de Juno, sem pais; queQuinaco, Eaco, Hércules,Alexandre e uma infinidadede outros eram filhos de Jú-

piter, e que Perseu nasceradeste deus e da virgem Danae.A fecundidade de uma virgemnada teve de incrível paragente que admitia como ver-dades divinamente reveladasuma infinidade de coisas ain-da mais absurdas e contradi-tórias. Aliás, talvez lhes vies-se esta opinião dos Egípciosque acreditavam que o espí-rito de Deus, pneuina qeon,podia engravidar uma mulher.

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CAPÍTULO VII

SOBRE JESUS CRISTO

I. Jesus Cristo, que não igno-rava nem as máximas nem aciência dos Egípcios, divul-gou esta opinião e julgou-aadequada ao propósito quecogitava. Considerando quãocélebre se tinha tornado Moi-sés, por ter comandado ummundo de ignorantes, decidiupartir da mesma base e fez-seseguir por uns tantos idiotas,que convenceu de que o Espí-rito Santo era o seu pai e umavirgem a sua mãe19.

19 Celso diz, segundo Orígenes. queJesus Cristo era oriundo de uma peque-na povoação da Judeia, e que tinha tidocomo mãe uma pobre aldeã que depen-dia completamente do seu trabalho. Quetendo sido acusada de cometer adultériocom um soldado chamado Pantera, foiposta na rua pelo noivo, que era carpin-teiro de profissão. Que depois dessaafronta, errando de lugar em lugar, deuà luz secretamente Jesus. Mais tarde.Jesus, por necessidade, viu-se obrigadoa trabalhar como assalariado no Egipto,onde aprendeu alguns desses segredosde que os Egípcios tanto se gabam,voltou à sua terra natal onde, todo or-gulhoso dos milagres que sabia fazer, seproclamou a si mesmo Deus.

Estas boas pessoas, acostu-madas a viver de sonhos e defantasias, embarcaram nessafábula e acreditaram em tudoo que ele quis, tanto mais queum nascimento acima da or-dem da natureza era inédito.Com efeito, nascer de umavirgem, pela acção do Espí-rito Santo, estava, para eles,acima do que os Tártaros di-zem sobre o seu Gengis Khane os Siameses do seu Som-mona-Codom, que tiveram,como Jesus Cristo, virgenscomo mães, mas com a dife-rença de que estas concebe-ram por virtude dos raios doSol.Este prodígio ocorreu numtempo em que os Judeus,fartos do seu Deus, como já otinham estado dos seus juí-zes20, queriam ter um visível,

20 No quarto Livro de Samuel (Cap.VII), os israelitas, descontentes dosfilhos de Samuel que os Julgavam, pedi-ram um rei, a exemplo de outras nações,que pretendiam imitar.

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como as outras nações.Como o número de tolos éinfinito, encontrou súbditospor todo o lado; mas a suaextrema pobreza constituíaum obstáculo invencível à suaelevação.Os Fariseus, ora encantadoscom a coragem de um homemda sua seita21, ora invejososda sua audácia, depreciavam-no ou elevavam-no, de acordocom o humor inconstante dapopulaça. Assim, por maisque se falasse da sua divinda-de, o seu objectivo era inatin-gível por causa da indigênciaem que vivia. Mesmo que ti-vesse feito os milagres que selhe atribuem, sem dinheiro esem exército, teria de acabarpor perecer.Mas, com finanças e tropas, éprovável que tivesse tido omesmo sucesso que Moisés,Maomé e aqueles que tiverama ambição de se elevaremacima dos outros. Se foi maisinfeliz, não foi menos hábil, ealgumas passagens da sua

21 Jesus Cristo era da seita dos Fari-seus, quer dizer dos miseráveis. Aopasso que a dos Saduceus era a seita dosricos.

história atestam que o maiordefeito da sua política consis-tiu em não ter cuidado sufici-entemente da sua segurança.No restante, não vejo que te-nha tomado medidas inferio-res às destes dois legisladores,cuja memória permaneceu oárbitro da crença de tantospovos.

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CAPÍTULO VIII

DA POLÍTICA DE JESUS CRISTO

I. Haverá algo mais subtil doque o que ele retorquiu sobreo assunto de uma mulher apa-nhada em adultério? Quandoos Judeus lhe perguntaram sedeveriam lapidar aquela infe-liz, em vez de responder simou não, e assim cair na arma-dilha que os seus inimigos lheestendiam, a negativa indodirectamente contra a Lei, aafirmativa tornando-o culpadode rigor e crueldade, o que lheteria afastado os espíritos; aoinvés, dizia eu, de respondercomo o faria uma alma vul-gar, disse: que aquele que estásem pecado lhe lance a pri-meira pedra22'. Resposta hábile que manifestava a sua pre-sença de espírito.II. Numa outra ocasião, per-guntaram-lhe se era permitidopagar o tributo a César, ounão. Outra pergunta para oapanhar em falso.

22 Jo, VIII. Mt, XXII. 17-22. - Mt.,XXII, 17-22.

Pois, se respondesse que não,tornava-se culpado de lesa-majestade, e, se respondesseque sim, poria em causa a li-berdade da sua nação. Ele nãorespondeu nem que sim nemque não; mas disse aos que ointerrogavam: mostrem a mo-eda que se entrega como tri-buto. Depois, ele próprio, in-terrogando-os, perguntou aquem pertencia a imagem e ainscrição visíveis na moeda.A César, responderam. Dai,portanto, a César, replicou, oque pertence a César, e aDeus, o que pertence a Deus.Mediante tal resposta bizanti-na, passe a expressão, elidiu adificuldade e evitou a arma-dilha, na qual qualquer outroteria caído.III. Livrou-se, ainda, comgrande habilidade, de umaoutra armadilha que os Fari-seus lhe montaram. Pergunta-ram-lhe com que autoridadese imiscuía na instrução e ca-tequese do povo. Desde logo

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entrando na mente deles, per-cebeu que só procuravamacusá-lo de mentiroso, umavez que, se respondesse queera por uma autoridade hu-mana, não pertenceria ao cor-po sagrado dos sacrificadoresda Lei antiga, nem daquelesque tinham a seu cargo a ins-trução do povo, ou que, se segloriasse de pregar por ordemexpressa de Deus, a sua dou-trina seria oposta à Lei deMoisés.Para se livrar desse embaraço,teve a ideia de os embaraçar aeles, perguntando-lhes emnome de quem é que julga-vam que João baptizava. OsFariseus que, por motivos po-líticos, se opunham ao bap-tismo de João, ter-se-iamcondenado a si mesmos, con-fessando que baptizava emnome de Deus. Por outrolado, se o não confessassem,expunham-se à raiva da po-pulaça, que acreditava nooposto. Para sair desta situa-ção crítica, responderam nadasaber, ao que Jesus Cristo re-plicou que também ele nãoera obrigado a dizer-lhes comque autoridade, e em nome dequem, pregava.

IV. Tais eram as manhas e asdesfeitas do destruidor da an-tiga Lei, e pai da nova. Taiseram as sementes da nova re-ligião, que foi erguida sobreas ruínas da antiga, na qual,para dizer as coisas com umespírito desinteressado, nadahá de mais divino do que nasseitas que a precederam. Oseu fundador, que não era,propriamente, um ignorante,apercebendo-se da extremacorrupção da república dosJudeus, julgou que o seu fimestava próximo e acreditouem que uma outra deverianascer das suas cinzas.O medo de ser ultrapassadopor outros, mais ambiciososdo que ele, levou-o a consa-grar-se, à pressa, através demeios completamente opostosaos de Moisés. Este começoupor criar a fama de ser terrívele formidável aos olhos dasoutras nações. Jesus Cristo,pelo contrário, atraía-as com aesperança das vantagensnuma outra vida, as quais se-riam obtidas, dizia, desde quese acreditasse nele; ao passoque Moisés só prometia bensterrenos aos seguidores da suaLei, Jesus Cristo levou-os a

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esperar bens que não teriamfim.As Leis de um só tinham emconta o exterior, as do outrovão até ao interior. Louvamou condenam mesmo os pen-samentos e em tudo se opõemàs de Moisés. Do que se de-preende que Jesus Cristoacreditou, com Aristóteles,que a Religião e os Estadossão como os outros indivídu-os que se engendram e cor-rompem; e, como nada se faz,senão a partir do que se cor-rompeu, nenhuma Lei sucedea outra, se não lhe for emtudo oposta.Mas, como é muito difícilconvencer os homens a passarde uma Lei para outra, e amaioria dos espíritos é muitotenaz em matéria de religião,Jesus Cristo, imitando outrosinovadores, recorreu aos mi-lagres, que sempre foram oescolho dos ignorantes e oasilo dos ambiciosos.V. Desta maneira, fundado oCristianismo, Jesus Cristo,aproveitando-se dos erros dapolítica de Moisés, obteve omaior sucesso nas medidasque tomou para tornar a sua

Lei eterna. Os profetas he-breus pensavam honrar Moi-sés, prevendo um sucessorque se lhe assemelhasse, ouseja, um Messias cheio devirtudes, poderoso nos bens eterrível para os inimigos.Contudo, as suas profeciastiveram o efeito contrário:uma quantidade de ambicio-sos aproveitou-se para se in-titular o Messias prometido, oque deu azo a revoltas queduraram até à destruiçãocompleta desta república an-tiga.Jesus Cristo, mais hábil doque os Profetas moisaicos,para cortar as veleidades da-queles que se insurgissemcontra ele, predisse que um talhomem seria um grande ini-migo de Deus, faria as delíci-as dos Demónios23, seria oesgoto de todos os vícios e adesolação do mundo. Depoisdestes belos elogios, não ha-verá, em minha opinião nin-guém que queira proclamar-seAntiCristo; e não consigoimaginar melhor segredo doque esse para eternizar uma 23 Mt., XXIV, 4; 3; 24; 2.5; 26. 2 Ts, II,3 I0. 1 Jo, 18.

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Lei - se bem que não hajanada de mais fabuloso do queo que se diz desse pretensoAnti-Cristo.São Paulo dizia, em vida, queele já tinha nascido, por con-seguinte, que se estaria navéspera do advento de JesusCristo24. No entanto, passa-ram mais de mil e seiscentosanos desde a previsão do nas-cimento desse precursor, semque ninguém tivesse dado porele.Confesso que houve quemroubasse estas palavras a Ebi-on e Cerinto, dois grandesinimigos de Jesus Cristo, porterem combatido a sua divin-dade. Mas também se podedizer que, se esta interpreta-ção está conforme ao sentidodo apóstolo, o que não é crí-vel, essas expressões apontamem todos os séculos uma infi-nidade de Anti-Cristos, nãohavendo verdadeiro sábio quejulgue ofender a verdade, di-zendo, com Bonifácio VIII25 e

24 Ts., II, 7.25 O Papa Bonifácio VIII dizia que oshomens têm as mesmas almas que osanimais, e que essas almas humanas ebestiais viviam tanto tempo umas comoas outras. Que o Evangelho, tal como

Leão X26 que a história deJesus Cristo é uma fábula eque a Lei não passa de umconjunto de fantasias que aignorância pôs em voga e queo interesse sustenta.VI. Presume-se, não obstante,que uma religião que subsistesobre tão tíbios fundamentos,e da qual homens ignorantesaté à estupidez foram os pre-dicadores, é uma religiãocompletamente divina e so-brenatural - como se se igno-rasse que ninguém é maispropenso a dar crédito a opi-niões absurdas do que asmulheres e os idiotas. Não é,portanto, maravilha que JesusCristo não tenha escolhidosábios e filósofos comoApóstolos.

todas as outras Leis, ensinava váriasverdades e várias mentiras. Por exem-plo, uma Trindade, que é falsa, a con-cepção de uma virgem, que é impossí-vel, a encarnação e a transubstanciação,que são ridículas. Acredito tanto naVirgem, dizia, quanto numa burra, ouno seu filho quanto no potro de umaburra.26 O Papa Leão X, entrando um dianum gabinete onde os tesouros estavamamontoados, exclamou: «Essa fábula deJesus Cristo bem nos ajuda a enrique-cer.»

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Ele sabia que a sua Lei e obom senso eram diametral-mente opostos, razão pelaqual clama, em tantos lugares,contra os sábios e os excluido seu reino, no qual só ad-mite os pobres de espírito, ossimples e os imbecis27.É bem verdade que os espíri-tos razoáveis não se senteminfelizes por não terem de seimiscuir com insensatos.VII. Ultrapassaríamos todosos limites que prescrevemospara este escrito, se quisésse-mos relatar aqui todos os ou-tros traços da sua política.Aqueles que queiram saber

27 A crença e a doutrina cristãs sãoestranhas e violentas para a razão e ojuízo do homem. São contrárias a toda afilosofia e discurso da razão, como sepode ver em todos os artigos da fé, quenão podem ser compreendidos nementendidos pela inteligência humana,aliás, afiguram-se-lhe impossíveis eestranhos. O homem, para neles crer eaceitar, deve submeter a sua razão, su-jeitando o seu entendimento à obediên-cia da fé, diz S. Paulo; que se quiserconsultar e ouvir a filosofia, e medir ascoisas com o compasso da razão, aban-donará tudo e de tudo zombará, comode uma loucura, É o que Charron con-fessa num livro intitulado As Três Ver-dades (p, 180 da Edição de Bourdeaux,1593).

mais só têm que ler o NovoTestamento. Aí verão comque cuidado evitava fazer osmilagres na presença de in-crédulos e de pessoas esclare-cidas, e com que habilidadesoube decalcar a sua Lei na deMoisés. Primeiro, protestouque, longe de pretender aboliresta última, vinha, proposita-damente, para a realizar. Mas,à medida que a tropa daquelesque o seguiam aumentava,dispensou-se de cumpri-la,dispensou os seus discípulos,e fazia a sua apologia quandoum deles a violava. Imitandoassim os novos príncipes, queprometem confirmar os pri-vilégios dos seus súbditos,quando o seu poder ainda nãoestá suficientemente consoli-dado, mas que violam essaspromessas assim que se sen-tem com força bastante para ofazerem impunemente.Ou melhor, agindo comoaqueles hábeis monarcas que,sob pretexto de confirmar eexplicar as ordenações dosseus antecessores, abolem-nascompletamente e põem, im-perceptivelmente, as novasLeis no seu lugar.

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CAPÍTULO IX

DA MORAL DE JESUS CRISTO

I. No que respeita à moral deJesus Cristo, se se distinguir aque lhe era particular da quetinha em comum com os filó-sofos, concluir-se-á que a suatinha dois defeitos considerá-veis.Um, exigir dos homens coisasabsolutamente impossíveis econtra a sua natureza, teste-munham-no a obrigação de sedetestar a si mesmo, de amaros inimigos, de não oferecerresistência aos maus...O outro, o facto de ela parecerter sido imaginada para man-ter um bando de pedintes e deapátridas, tal como o eram osseus Apóstolos e os seus dis-cípulos.Com efeito, não está cheia deimprecações contra a durezados ricos? Não encontramosnela lições para viver às cus-tas de outrem? Formuláriosde bênçãos para as cidades,burgos, aldeias, casas, pessoasque recebessem bem o bando,

e de maldições contra aquelesque não o quisessem receber?II. Em relação à outra parteda sua moral, o que há nela demais divino do que nos es-critos antigos? Ou melhor, oque é que se encontra que nãoseja um empréstimo, ou, pelomenos, uma imitação?Santo Agostinho28 confessater encontrado todo o iníciodo Evangelho segundo SãoJoão em alguns dos escritosdeles. Acresce o facto de queeste apóstolo estava de talmodo disposto a pilhar osautores que não teve proble-mas em roubar aos Profetasos seus enigmas e visões paracompor o seu apocalipse.De onde viria a conformidadeda doutrina do Antigo Testa-mento e da de Platão, senãode os rabinos, e daqueles quecompuseram as Escrituras apartir de um amontoado de

28 Confissões, VII, 9; 22.

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fragmentos, terem pilhadoesse grande filósofo?Decerto, o nascimento domundo tem mais verosimi-lhança no Timeu de Platão doque no Génesis. Todavia, nãose pode afirmar que tal sedeva a que Platão tenha lidoos livros judaicos durante asua estada no Egipto, não ostendo ainda Ptolomeu manda-do traduzir, segundo SantoAgostinho29.A descrição que Sócrates faza Símias, no Fédon, tem infi-nitamente mais graça do queo paraíso terrestre; e o An-drógino30 é, sem comparação,melhor engendrado do quetudo o que o Génesis narrasobre a extracção de Eva deuma das costelas de Adão.Haverá maior semelhança doque aquela entre os dois in-cêndios, o de Sodoma e Go-morra, e o que Faeton provo-cou? José e Hipólito? Nabu-codonosor e Licaão? Tântaloe o rico mau? O maná dosIsraelitas e a ambrósia dosDeuses? Santo Agostinho31-', 29 Confissões, VII, 9; 2230 Platão, Banquete, pg. 19031 Cidade de Deus, VI, XIV.

São Cirilo e Teofilacto com-param Jonas a Hércules, ape-lidado Trinoctium, por terpassado três dias e três noitesno ventre de uma baleia. ORio de Daniel, representadono capítulo 7 das suas profe-cias, é uma imitação mani-festa do peritlegeton de que sefala no Diálogo sobre aImortalidade da Alma.O pecado original e a Caixade Pandora têm grandes pare-cenças, o sacrifício de Isaac ede Jefta é semelhante ao deIfigénia, no lugar da qual pu-seram uma corça. O que sediz de Lot e da sua mulher éem tudo idêntico ao que seconta sobre Baucis e Filémon.Por fim, é voz corrente que seencontra entre os autores dasEscrituras e Hesíodo e Home-ro uma grande relação.III. Mas voltemos a JesusCristo. Celso mostrava, deacordo com Orígenes32, queele roubara a Platão as suasmais belas sentenças: Umcamelo passaria mais depres-sa pelo buraco de uma agulhado que um rico entraria no

32 Contra Celso. VI. Lc, XVIII, 4.

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Reino de Deus33.E à seita dos Fariseus, à qualpertencia, que quem neleacredita deve a crença naimortalidade da alma, na res-surreição, no inferno, e amaior parte da moral, na qualnada se encontra de mais ad-mirável do que na de Epicte-to, Epicuro e uma série deoutros.Este último era apresentadopor São Jerónimo como umhomem cuja virtude envergo-nhava os melhores Cristãos,observando que as suas obrassó falavam de ervas, frutos,abstinências, e cuja volúpiaera tão temperada que as suasmelhores refeições consistiamapenas num pouco de queijo,pão e água. Com uma vida tãofrugal, este filósofo, aindaque completamente pagão,dizia que valia mais ser in-fortunado e razoável do querico e opulento, mas despro-vido da recta razão; acres-centando que é raro encontrarnum mesmo sujeito fortuna esabedoria, e que só podere-mos ser felizes e viver comprazer se a nossa felicidade 33 Lucas, XVIII, 25.

for acompanhada pela pru-dência, pela justiça e pela ho-nestidade, que são as qualida-des da verdadeira e sólidavolúpia.Quanto a Epicteto, não creioque tenha existido homem,nem mesmo Jesus Cristo, tãoaustero, tão firme, tão cons-tante e tão despojado de pai-xões.Nada afirmo que não seja fá-cil de provar. Mas, com receiode ultrapassar os limites queme impus, apenas apresenta-rei, de entre as belas acçõesda sua vida, um exemplo dasua constância.Sendo escravo de um libertochamado Epafrodito, capitãoda guarda de Nero, este bru-tamontes tinha como fantasiatorcer-lhe a perna. Aperce-bendo-se do prazer que issolhe dava, Epicteto dis-se-lhe,com um sorriso, que estavavisto que a brincadeira aindaacabaria por lhe partir umaperna. Com efeito, tendo acoisa acontecido como previ-ra. Pois bem!, prosseguiu,com o mesmo rosto sorriden-te, não lhe tinha dito que mepartiria a perna?

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Já se viu constância seme-lhante? E poder-se-á dizer queJesus Cristo tenha chegado aesse ponto? Ele que chorava etranspirava com medo ao mí-nimo sinal de alarme, e quedeu provas, no momento damorte, de uma baixeza dealma nunca vista na maioriados mártires.Se a injúria do tempo não nostivesse roubado o livro queArriano34 escrevera sobre avida e a morte do nosso filó-sofo, estou certo de que terí-amos muitos outros exemplosda sua paciência. Não duvidode que se dirá desta acção oque os ignorantes dizem dasvirtudes dos filósofos, que setrata de uma virtude que temcomo mãe a vaidade, e que,na realidade, não é o que pa-rece. Mas, também, não igno-ro que aqueles que têm estediscurso o reservam para acarne, sabendo que é aí quebem ou mal eles têm o direitode tudo dizer.Também sei que, quando es-tas catedrais, estes vendilhões

34 Flávio Arriano – Filósofo e historia-dor romano, foi discípulo de Epicteto eautor do livro Encheirídion de Epicteto.

de ar, vento, fumaça, decla-mam com toda a força contraos vingadores da recta razão eda virtude ultrajada, conside-ram bem ganho o dinheiroque os Estados lhes pagampara instruir o povo; de talmodo é verdade que estãoafastadíssimas, dos costumesdos autênticos sábios, as ac-ções dos ignorantes que osdifamam e que parece só te-rem estudado para chegar aum lugar que lhes dê o pão,oficio que idolatram e de quese regozijam quando o obtêm,crendo então ter atingido umestado de perfeição, ainda quenão passe, para aqueles que odetêm, de um estado de amorpróprio, de bem-estar, de or-gulho, de volúpia, no qual amaioria segue tudo menos asmáximas da religião queapregoa.Mas, deixemos essa gente,que não sabe o que é a virtu-de, para examinarmos o dog-ma da divindade do seu mes-tre.

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CAPÍTULO X

DA DIVINDADE DE JESUS CRISTO

I. Os mais ignorantes dos He-breus, tendo dado a maior di-vulgação à Lei de Moisés,foram também os primeiros acorrer atrás de Jesus Cristo. Ecomo o seu número é infinito,e que se entendem bem, não éde espantar que os seus errosse tenham espalhado tão fa-cilmente. Não que não hajamuito que passar com os ino-vadores, sobretudo quandoestes são pobres e sem poder;mas a glória esperada suavizaas dificuldades.Assim, os discípulos de JesusCristo, apesar da miséria doséquito, muitas vezes reduzi-dos a comer grãos de trigo35

que faziam cair das espigas,excluídos vergonhosamentedos lugares36 onde esperavamrepousar, só começaram a re-botar quando o viram nasmãos dos carrascos, impossi-bilitado de lhes dar os bens, o

35 Lc. VI, 1.36 Lc, IX, 52-53

luxo, as grandezas que lhestinha prometido.Após a sua morte, os discí-pulos, no desespero de veremfrustradas as suas esperanças,perseguidos pelos Judeus quelhes queriam dar o mesmotratamento que ao mestre, fi-zeram da necessidade virtudee espalharam-se pelos quatrocantos onde, com base no re-lato de uma mulher37, debita-ram a história da sua ressur-reição, depois a da filiaçãodivina e todas essas fábulasque determinaram que o im-perador Juliano abandonassea seita dos Nazarenos, querdizer, o Cristianismo, que selhe afigurava uma ficçãogrosseira do espírito humano,por não estar fundada senãonuma narração de prodígios.A dificuldade que tinham emprogredir no seio dos Judeuslevou-os a procurar os Genti-os e a tentar ter mais sucesso 37 Jo. XX, 18.

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com eles do que com os dasua nação. Mas, como paraisso precisavam de mais ciên-cia do que possuíam, os Gen-tios, tendo vários filósofosdemasiado amigos da verdadepara irem em conversa fiada,recrutaram um jovem com umespírito audacioso e activo,um pouco mais instruído doque os pescadores, ou, me-lhor, mais tagarela.Este jovem, tendo-se associa-do a eles em virtude de umgolpe do céu que o cegou,pois sem isso a manha nãoteria tido sucesso, atraiu paraJesus Cristo algumas almassimples, por meio do relatodessa visão e do da sua pre-tensa ascensão aos céus, domedo das penas do inferno,tiradas das fábulas dos poetasantigos, da esperança de umaressurreição gloriosa e de umparaíso que não é mais su-portável do que o de Maomé.De modo que, uns e outros,arranjaram maneira de confe-rir ao seu mestre a honra depassar por um Deus, o que elepróprio em vida não conse-guira.No que a sua sorte não foi

melhor que a de Homero: seisdas cidades38 que tinham ex-pulso e desprezado este poetaem vida disputaram, depoisda sua morte, a glória de te-rem sido a sua cidade natal.II. Por aqui se vê que o Cris-tianismo depende, como todasas coisas, dos caprichos doshomens, cuja opinião deter-mina a sua qualidade, conso-ante o humor do momento.Mas, aliás, se Jesus Cristofosse Deus, seguir-se-ia,como diz São João39', queDeus tinha sido feito carne eteria assumido a natureza hu-mana, o que encerra umacontradição tão grande comoa de afirmar que o círculo as-sumira a natureza do quadra-do, ou que o todo se trans-formara em parte. Com efeito,o que haverá de mais absurdodo que imaginar, como osCristãos, que o Altíssimo,como eles dizem, o único serinfinitamente perfeito, tivessedescido do mais alto da suaglória para vir morar no meiode seres que diferem infinita-

38 Sete cidades disputaram, depois dasua morte, a linha do seu nascimento39 5 Jo, I, 1-14.

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mente mais dele do que osmais vis insectos diferem dosmaiores monarcas do univer-so?Que tenha assumido a fraca,desprezível, miserável nature-za desses seres, apenas pararesgatá-los da escravatura eda tirania de um dos seussúbditos rebeldes, que man-tém acorrentado, como se nãohouvesse outra maneira de oslivrar desse inimigo do géne-ro humano, que nada podesem ele, senão a de se degra-dar a si próprio, de um modotão estranho, ainda por cima,para só salvar um desses mi-seráveis de entre um milhãoque deixa perecer?Que se tivesse rebaixado aesse ponto, só para vingar asinjúrias que recebera dessasformigas, desses vermes, epara pedir satisfações como sepudesse ter ficado ofendido?

Que, por fim, para obter dasua divindade irritada o per-dão pelas pretensas ofensas esatisfazer a sua justiça infini-ta, que exigia a sua morte, setenha entregue a si próprio aosuplício mais cruel e infame,em vez deles, como se, su-pondo que tivesse realmenteficado ofendido, não fossesenhor, ou de abdicar dos seusdireitos, ou de reconciliar es-ses pecadores com a sua di-vindade, de uma outra manei-ra, mesmo, de lhes concederum perdão gracioso?Mas tenho vergonha de perdermais tempo com contradiçõestão óbvias.Passo, portanto, para Maomé,que bem merece que se faledele, pois fundou uma Lei emmáximas completamenteopostas às do legislador dosCristãos.

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CAPÍTULO XI

SOBRE MAOMÉ

I. Mal tinham os discípulosde Jesus Cristo apagado a Leimosaica, para introduzir acristã, já os homens, seguindoo seu capricho habitual, sesubmetiam às Leis de umnovo legislador, que se impôspelas armas, como o fizeraMoisés.O título especioso de Profetae de Enviado de Deus40 tam-

40 Um amigo do célebre Golius, tendo-lhe perguntado o que é que os Muçul-manos diziam do seu Profeta, este sábioprofessor de árabe enviou-lhe o extractoque se segue, o qual contém um resumoda vida desse impostor, tirada de ummanuscrito turco. «O Senhor Maomé Mustafa, de gloriosamemória o maior dos Profetas, nasceuno ano quarenta do império de Anurs-chirwan, o justo. A sua Santa Nativida-de deu-se no décimo segundo dia e nasegunda série do mês de Rabia. Ora,após passar o quadragésimo ano deidade, foi inspirado divinamente, rece-beu a coroa da profecia e o manto dalegação, que lhe foram trazidos, da partede Deus, pelo fiel mensageiro Gabriel,com a ordem de chamar os homens parao islamismo. Depois dessa inspiração deDeus, permaneceu em Meca durantetreze anos. Com cinquenta e três anos,

bém não lhe faltou. Igual-mente, não lhe faltou habili-dade para fazer milagres epara se aproveitar da fraquezado povo, que gosta do mara-vilhoso.Primeiro, viu-se, como osoutros, escoltado por uma po-pulaça ignorante, à qual de-bitava os novos oráculos querecebia do céu. Esta gentesensual e grosseira, agrilhoa-

no oitavo dia do Mês de Rabia, umasexta-feira, refugiou-se em Medina.Ora, foi aí que, dez anos após seu retiro,no vigésimo dia do décimo primeiromês, sexagésimo terceiro ano da suavida bendita, chegou ao prazer da pre-sença divina. Uns dizem que nasceuainda em vida do pai Abdalla, outrosdepois da morte deste. A Senhora Ami-na, sua mãe, filha de Wahibe, deu-lhecomo ama a Senhora Haliina da Iribo deBeni-Saad. Abdo'lminutalib, seu avô,atribui-lhe o nome bendito de Maomé.Teve quatro filhos e quatro filhas. Osfilhos foram Kasim, Ibrahim. Thajib eThahir, e as filhas Fathima, OmmoKeltum, Rakia e Zeineb. Os companhei-ros deste augusto enviado de Deus fo-ram Abubeker, Omar, Osman e Ali,todos de sagrada memória.»

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da pelos prazeres correspon-dentes aos seus gostos, queesse impostor lhe prometianum paraíso, no qual a felici-dade daqueles que tivessemcumprido a sua Lei consisti-ria, em parte, no que mais es-timula os sentidos, espalhou oseu renome por todos os la-dos, e exaltaram-no de talmodo que o dos seus anteces-sores diminuiu pouco a pou-co.II. Assim que começou a ele-var-se e o seu nome a tornar-se célebre, Coreis, poderosoárabe, invejoso por um ho-mem vindo do nada ter a au-dácia de enganar o povo, de-clarou-se seu inimigo e atra-vessou-se-lhe no caminho.Mas, a família de Coreis ten-do perdido, Maomé passou aser seguido por uma multidãode povos que, crendo-o divi-no, abraçaram às cegas a suanova Lei.Livre de um inimigo tão te-mível, só temeu o seu compa-nheiro. Com medo de queeste descobrisse as suas im-posturas, pensou em precaver-se; para o fazer com seguran-ça, divertiu-o com belas pro-

messas e jurou-lhe que sóqueria ser poderoso para par-tilhar com ele um bem paracuja aquisição tanto contribuí-ra. Atingimos, disse-lhe, ocume da nossa ascensão. So-mos seguidos por um grandepovo que conquistámos; masé preciso consolidá-lo com oartifício que tão airosamenteinventaste. Ao mesmo tempo,convenceu-o a esconder-se nafossa dos oráculos, no fundoda qual fingia habitualmente avoz de Deus. Esse pobre ho-mem, enganado pelas docespalavras deste falso, fingiu,como de costume, o oráculo;e, quando ouviu a voz deMaomé, e o rumor da multi-dão que o seguia, pôs-se agritar como combinado: Eu,que sou o vosso Deus, clamoque instituí Maomé Profeta detodas as nações. Dele apren-dereis a minha verdadeira Lei,porque os Judeus e os Cris-tãos alteraram a que lhes dei.De há muito que este homemfazia esse papel; mas acaboupor ser pago com uma grandeingratidão. Pois Maomé, ou-vindo a voz que o proclamavahomem divino, virou-se paraessa gente, enfatuada pelo seu

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falso mérito, e ordenou-lhe,em nome de Deus, que o re-conhecera como o seu Profe-ta, que enchesse de pedras ofosso de onde tinha saído emseu favor um testemunho tãoautêntico, em memória da pe-dra que Jacob erguera outrora,numa ocasião semelhante, emsinal de que Deus lhe tinhaaparecido.Tal foi o funesto fim dessemiserável que tinha contri-buído para a exaltação deMaomé; e foi sobre esseamontoado de pedras que oúltimo dos mais célebres im-postores instituiu a sua Lei41.

41 Naudé relata este facto de um modoalgo diferente. Diz que Maomé conven-ceu o mais fiel dos seus criados a descerao fundo de um poço próximo de umgrande caminho, para que gritassequando passasse com a multidão que oacompanhava normalmente, Maomé é obem-amado de Deus, Maomé é o bem-amado de Deus, e, tal tendo acontecidocomo combinado, agradeceu de repentea divina bondade por um testemunhotão ilustre e pediu ao povo que o seguiapara encher imediatamente esse poço esobre ele construir uma pequena mes-quita, em memória de um tal milagre. Ecom tal invenção, esse pobre criado foimorto e enterrado sob uma chuva decalhaus que lhe retirou o meio de vir adescobrir a falsidade do milagre. Mas aterra e as canetas boateiras tiveram ecosdo acontecimento.

Esse fundamento era tão sóli-do que, depois de mais de milanos de reinado, não se vêemsinais de abalo.III. Assim se elevou Maomé.Mais feliz do que Jesus Cris-to, viu em vida os progressosda sua Lei. Mais feliz, mes-mo, do que Moisés, o qual,por excesso de ambição, ante-cipou os últimos dias, morreuem paz, cumulado de glória ecerto de que a sua doutrinasobreviveria à sua morte, por-que a adaptara ao tempera-mento dos seus sectários, nas-cidos e educados na ignorân-cia e na sensualidade.Eis, leitores, o que se podedizer de mais notório sobreestes quatro célebres legisla-dores. Eles foram como ospintámos. A vós cabe decidirse são dignos de que os imi-teis, e se vós tendes desculpapara vos deixardes conduzirpor guias que a ambição en-grandeceu e que a ignorânciaeterniza.Para dar mais peso ao quedissemos sobre as religiões,os legisladores, os políticos,

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os supersticiosos e a tola cre-dulidade do povo, ser-nos-iafácil mostrar que os nossospontos de vista estão perfei-tamente conformes aos dosmelhores autores, tanto anti-gos como modernos, que es-creveram sobre estes temas.Mas, como tais testemunhosocupariam demasiado espaço,limitar-nos-emos a expor oque escreveram dois célebresModernos42 sobre estes arti-gos.Ainda que ambos fossemeclesiásticos, e, por conse-guinte, terem de pactuar coma superstição, não deixará deser manifesto que, através dosarranjos e do seu estilo católi-co, dizem coisas tão livres etão fortes quanto as nossas.Ides vós próprios julgar, lendonas páginas a seguir, o queextraímos fielmente das suasobras.

42 Pierre Charron e Gabriel Naudé.

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Os capítulos seguintes,

do XII ao XVII,

reproduzem palavra a palavra

as obras

“Três Verdades”

de Charron

e, “Sobre a Sabedoria”

e “Considerações Políticas

sobre os Golpes de Estado”

de Naudé.

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CAPÍTULO XII

SOBRE AS RELIGIÕES

I. Há cinco religiões que tive-ram grande crédito e reputa-ção, como principais e mes-tras, introduzidas uma a se-guir à outra, de acordo com aordem seguinte, e o que émais espantoso é terem sidoconcebidas praticamente namesma região:A Natural começou com ogénero humano na Palestina;A Gentílica, inventada depoisdo dilúvio e pouco depois dea horda temerária que cons-truía a Tone de Babel ter sidodispersada pela confusão daslínguas, posta em prática naCaldeia cerca de dois milanos antes de Jesus Cristo, éassim mais recente do que aNatural e o Mundo;A Judaica, concebida no tem-po de Abraão, por ele próprio,cerca de cem anos depois daGentílica, na Palestina, ouseja no mesmo lugar da Natu-ral;

A Cristã, concebida por JesusCristo, cerca de quatro milanos depois do nascimento domundo, no país da Palestina;E a Maometana, na Arábia,seiscentos anos depois daCristã.Estas cinco religiões capitais,as mais famosas do mundo,abrigam várias e diversas es-pécies de religiões: a Gentíli-ca, principalmente; como tevegrande extensão, impacto eduração, pois não só admitiadiversos meios de servir ehonrar a divindade como sedividira em várias seitas comopiniões e crenças diferentes.Podem encontrar-se três for-mas principais, que São Pauloparece ter querido designar,ao compará-la com a Judaica.Nem Grega, nem Judia, nemBárbara, nem Cita. A dosBárbaros, sem Lei, sem regra,ou cerimónia certa e prescrita,adora e serve qualquer falsadivindade, de cada um segun-

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do a sua fantasia.As duas outras têm os seussacrifícios e serviços prescri-tos e certos, mas diversa-mente. A Cita tem-nos cruéise sangrentos. A Grega (assimse dá este nome geral, mas omais célebre, a qualquer seitaque não seja a Bárbara ou aCita) tem-nos mais políticos ehumanos; e também aqui di-versificados, segundo as na-ções e os seus autores. OsGregos, nomeadamente, ins-truídos pelos seus poetas efilósofos, os Egípcios pelosseus sacerdotes, os Gaulesespelos seus druidas, os Roma-nos pelos seus Livros das Si-bilas, e as Leis de Numa, osPersas pelos seus magos, osHindus pelos seus brâmanes egimnosofistas.A Cristã ultrapassa todas asoutras nesse aspecto. E muitose teria de fazer para enume-rar e inventariar todos osmembros e respectivas dife-renças que pertencem aoCristianismo. Primeiro, peloque respeita à diferença entrealgumas nações, quanto acertos pontos da doutrina, eprincipalmente quanto ao

culto e serviço de Deus: gre-ga, latina, etíope, síria, armé-nia, hindu, moscovita e ou-tras. Depois, no tocante àsopiniões sobre a doutrina e acrença, tantas heresias e tan-tas seitas. Finalmente, em re-lação às cerimónias e aosmeios externos, há uma gran-de variedade de ordens, pro-fissões e maneiras de viver. Etodas essas grandes diferençasestiveram, e ainda estão, sob abandeira comum do seu che-fe, e sob a designação decristão.II. Estas religiões discutementre si e querem proibir eautorizar pelas mesmas ra-zões. Cada uma alega os seusmilagres, os seus santos, assuas vitórias; neste âmbito,são armas comuns. Em parti-cular, cada uma arroga-se,contra as outras, de um direitoou prerrogativa. A Natural, dasua origem, antiguidade esimplicidade; a qual, supon-do-se suficiente, consideratudo o mais adição e sobre-carga, matéria para discussõese debates. A Gentílica, maispolida, vangloria-se das ciên-cias, dos belos discursos e dosregulamentos morais e políti-

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cos, pelos quais, e com umestilo gracioso, é representadaa imagem da virtude: toda arepública está bem constituídae dirigida, A Judaica, e de-pois a Maometana, alegam aseu favor, a simplicidade deum Deus, tanto na crençaquanto na representação ex-terna, contra a Trindade cristãe a Pluralidade gentílica. Masa Judaica ainda se vangloriada antiguidade e da nobrezadas suas gentes e da raça, dosmilagres e favores celestes,tanto na sua instituição e fun-damento quanto no seu pro-gresso, e da grande sequênciade Profetas. A Maometana, amais recente, sente-se inchadacom a sua prosperidade e asgrandes vitórias, tendo arrui-nado, em pouco tempo, agrandeza das outras, mesmoda Cristã, que prevalecia iso-lada no momento do seu sur-gimento; a tal ponto que todaa gente a teme.III. Por outro lado, cada umaé vítima das críticas das ou-tras: a Natural, que não setrata propriamente de umareligião, sendo vaga, incerta,e nada tendo a prescrever ou aordenar; a Gentílica, por cau-

sa dos sacrifícios com corposhumanos, da adoração de coi-sas mudas, da infame multi-dão, genealogia e relações dosseus Deuses, e do vil e ingratoesquecimento do verdadeiroDeus soberano; a Judaica, queé cruel com os Profetas, e quese trata de uma religião su-persticiosa, odiosa e desagra-dável a todas as nações; aCristã, que atribuiu um filho eum companheiro a Deus, ado-ra imagens, e que a vida dosCristãos está toda infectadapelo jogo, a sorte, os adultéri-os e as blasfémias; a Mao-metana, por causa da grossei-ra e carnal vaidade que trans-porta, o Corão estando cheiode tolices insuportáveis, e porcausa do seu progresso e doseu procedimento, todo mar-cado pela espada, pelas guer-ras, pelos homicídios e pelossaques.Entretanto, os professoresodeiam-se mutuamente, des-prezam-se e desdenham, con-siderando os outros cegos,malditos, condenados e per-didos; isto é, perseguem-secomo cães furiosos e enraive-cidos.

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CAPÍTULO XIIISOBRE A DIVERSIDADE DAS RELIGIÕES

I. Ainda assusta mais a gran-de diversidade de religiões,que existiu e existe, do que aestranheza de algumas, tãofantasiosa e exorbitante. Émaravilha o entendimentohumano ter podido ser tãofortemente embrutecido eembriagado com imposturas.Pois parece nada haver nomundo, em cima ou em baixo,que não tenha sido deificado,num sítio qualquer, e que nãotenha encontrado um lugar deadoração.II. Todas concordam comcertas coisas, têm quase osmesmos princípios e funda-mentos, acordam-se quanto àtese, têm progresso idêntico eandam em compasso. Tam-bém tiveram origem quasenos mesmos climas e ares.Todas encontram e oferecemmilagres, prodígios, oráculos,mistérios, sagrações, profetas,festas, certos artigos de fé ecrença necessários para a sal-vação. Todas começam pe-quenas, fracas, humildes,

mas, pouco a pouco, por umséquito e uma aclamaçãocontagiosa dos povos, com asficções a animar, firmaram-see legitimaram-se, de tal modoque todas são consideradascom veemência e devoção,mesmo as mais absurdas. To-das defendem e ensinam queDeus se apazigua, se verga ese conquista com orações,presentes, votos, promessas,festas, incenso. Todas acredi-tam que o principal e maisagradável serviço aos olhosde Deus, o poderoso meio deo apaziguar e de suscitar assuas boas graças, seja penar,inventar, impor e assumir umatarefa difícil e dolorosa.Como testemunho, em todo olado, em todas as religiões,tantas ordens, companhias econfrarias destinadas a certose diversos exercícios, assazpenosos e de profissão exclu-siva, rasgam e esquartejam oseu corpo, e pensam que as-sim merecem muito mais doque o comum dos outros, que

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não se metem nessas afliçõese tormentos como eles. Todosos dias surgem novas, e nuncaa natureza humana deixará, eacabará, de inventar meiospara se castigar e atormentar.O que decorre da opinião deque Deus tem prazer e satis-fação com o tormento e adesgraça das suas criaturas, oque justifica os sacrifícios,que foram universais antes donascimento da cristandade,exercidos não só sobre ani-mais inocentes, que erammassacrados com efusão doseu sangue, como um pre-sente precioso para a divinda-de, mas (coisa estranha daembriaguez humana) sobre ascrianças, pequeninas, inocen-tes, e os homens feitos, tantocriminosos quanto homens debem, costume praticado comgrande religiosidade por todasas nações; gestos que, entreoutras cerimónias e sacrifí-cios, despacham para o seudeus Zalmonix, de cinco emcinco anos, um homem deentre os seus, para lhe pediras coisas de que precisam.E, para que morra imediata-mente, expõem-no a umamorte reprovável, lançando-o

sobre as pontas de três dardosverticais. Atiram vários emfila, até que um deles se es-pete mortalmente e expire su-bitamente, sendo esse consi-derado eleito e sem mácula eos outros não. Persas, comoprova Amestris, mãe de Xer-xes, que de uma só vez enter-rou vivos catorze jovens dasmelhores casas, segundo areligião do país. AntigosGauleses, Cartagineses, queimolavam a Saturno as suascrianças, na frente dos pais edas mães; Lacedemónios, quemimavam a sua Diana, chi-coteando rapazes, muitas ve-zes até à morte. Gregos, comotestemunha o Sacrifício deIfigénia, Romanos, comotestemunham os dois Décios.Quae fuit tanta iniquitas Deo-run, ut placari à Pop. Rom.non possent, nisi tales virioccidissent. Maometanos, quecortam o rosto, o estômago,os membros, para gratificar oProfeta. As Novas índias,Orientais e Ocidentais, e aTemistitano, alimentam osseus ídolos com o sangue decrianças.Que alienação do senso, jul-gar que se lisonjeia a divinda-

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de com a desumanidade, quese paga a bondade divina coma nossa aflição e se satisfaz asua justiça com a crueldade.Justiça, portanto, esfomeadade sangue humano, sangueinocente, vertido e espalhadocom tanta dor e tanto tor-mento, ut sic Dii placentur,quemadmodum ne hominesquidem saeviunt43

De onde poderá vir tal opini-ão e crença de que Deus temprazer com o tormento e adesfeita das suas obras e danatureza humana? De acordocom essa opinião, de que na-tureza terá Deus de ser?III. As religiões também têmas suas diferenças, os seusartigos próprios, e à parte,pelos quais se distinguemumas das outras, e cada uma éescolhida, e se rotula como amelhor e a mais verdadeira, ese reprovam umas às outras,e, assim, se condenam e re-jeitam.IV. Mas, como nascem umaapós a outra, a mais recente,sempre construída sobre a suaantecessora, não a melhora,

43 Séneca

nem a condena, de uma pontaa outra, senão não lhe dariamouvidos e não teria crédito,mas limita-se a acusá-la, oude imperfeição, ou de ter che-gado ao seu termo, e que, as-sim sendo, vem sucedê-la eaperfeiçoá-la, e, desse modo,vai minando-a, pouco a pou-co, enriquecendo-se com osdespojos, como a Judaica fez,com a Gentílica e a Egípcia, aCristã, com a Judaica, a Ma-ometana, com a Judaica e aCristã ao mesmo tempo.Em contrapartida, as antigascondenam completamente asmais jovens, e tomam-nas porinimigas capitais.V. Todas as religiões são es-tranhas e horríveis para o sen-so comum, pois propõem eestão construídas com peçasque, umas afiguram-se ao juí-zo humano baixas e indignas,que um espírito um poucomais forte ridicularizaria; ou-tras, excessivas, estrondosas,milagrosas e misteriosas, so-bre as quais o homem nadapode saber.Ora, o espírito humano só écapaz de coisas medíocres,despreza e desdenha as pe-

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quenas, espanta-se e estreme-ce com as grandes; o que tor-na improvável que não seafaste, desgoste e despeite dequalquer religião na qual nadahaja de medíocre e vulgar.Pois, se for forte, desdenhá-la-á e tomá-la-á como tema derisota; se for fraco e supersti-cioso, espantar-se-á e escan-dalizar-se-á. Praedicamus Je-sum Crucifixum, Judaeisscandalum, gentibus stultiti-am.O que explica a existência detantos descrentes e irreligio-sos, os quais consultam e es-cutam excessivamente o seupróprio juízo, querendo exa-minar e julgar os assuntos dareligião, segundo o seu alcan-ce e capacidade, e tratá-lacom os seus utensílios própri-os e naturais.É preciso ser-se simples, obe-diente e complacente para seestar apto a aceitar a religião,a acreditar e submeter-se àssuas leis, por reverência eobediência, sujeitar o seu en-tendimento e deixar-se levar eguiar pela autoridade pública,captivantes intellectum in ob-sequiam fidei.

VI. Mas, fora necessário pro-ceder assim, de outro modo areligião não teria o respeito,nem sequer a admiração, quelhe é devida. Ora, é precisoque ela seja dificilmente, au-tenticamente e reverente-mente, aceite e jurada. Se fos-se conforme ao gosto huma-no, e natural, sem estranheza,seria mais facilmente, mascom menos reverência, aceite.VII. Ora, sendo as religiões eas crenças estranhas ao sensocomum, ultrapassando, emmuito, o alcance e a inteligên-cia humanos, não devem, nempodem, ser aceites, nem per-manecer em nós por meiosnaturais e humanos (senãotantas almas grandes, de hojee de outrora, teriam lá chega-do), mas é preciso que sejamtrazidas e instaladas por re-velação extraordinária e ce-leste, tomadas e recebidas porinspiração divina, e comovindas do céu. Assim proce-dem todos aqueles que as se-guem e nelas acreditam eusam deste jargão que nãoprovém dos homens, nem denenhuma criatura, mas deDeus.

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VIII. Para falar verdade, semnada dourar ou mascarar, nãoé nada disso; elas são, diga-seo que se disser, dirigidas pormãos e meios humanos. Tes-temunha-o a maneira como asreligiões foram recebidas nomundo, e ainda são recebidas,todos os dias, pelos particula-res. A nação, o país, o lugardecidem a religião; segue-seaquela do lugar onde se nas-ceu e cresceu; somos circun-cidados, baptizados. Somosjudeus, Muçulmanos, Cris-tãos, antes de sabermos quesomos homens. A religiãonão é da nossa escolha oueleição. Provam-no a vida eos costumes tão mal acorda-dos com a religião, as oportu-nidades tão humanas e tãoligeiras que vão contra o teorda religião de cada um. Seestivesse sustida e plantadacom uma estaca divina, nadade mundano nos faria oscilar;essa estaca não se partiriacom tanta facilidade; se hou-vesse toque e raio da divinda-de, apareceria por todo o ladoe teria efeitos palpáveis e mi-lagrosos.Se tivésseis uma só gota defé, removeríeis montanhas.

Mas que proporção e conve-niência há entre a convicçãoda imortalidade da alma e deuma recompensa futura tãogloriosa e feliz, ou tão infelize angustiante, e a vida quelevamos? A simples apreen-são das coisas de que se dizacreditar tão firmemente fariaperder o tino.Já a ideia e o temor de morreràs mãos da justiça, em públi-co, ou por via de outro aci-dente vergonhoso e deplorá-vel, fez perder o tino a mui-tos, e levou-os a posições as-saz estranhas. É este o preçoda religião que ensina o futu-ro? Será possível acreditar naverdade, esperar essa imorta-lidade bem-aventurada, e te-mer a morte, passagem neces-sária para aquela? Temer eantecipar esse castigo infernale viver como o fazemos?Trata-se de historietas, coisasmais incompatíveis do que ofogo e a água. Eles afirmamque nelas crêem; fazem crerque crêem, e querem conven-cer os outros, mas é tudo fal-so, e eles não sabem o que éacreditar. São trocistas e pro-vocadores, dizia um antigo.

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CAPÍTULO XIVDAS DIVISÕES ENTRE CRISTÃOS

I. O que sempre achámos es-tranho e pestilento na religiãocristã, que mais nos surpreen-deu e ofendeu, foram as gran-des divisões que sempre hou-ve, e há, no seu seio. Pois,não só os estrangeiros e osdescrentes, seus inimigos, fi-zeram questão de não a segui-rem e de por ela não alinha-rem, mas os seus serviçaisescandalizaram-se, e algunsaproveitaram-se para os seusmaus desígnios.Ficamos a saber, pelo Livrodos Actos dos Apóstolos, epor várias passagens de SãoPaulo que, desde o começo dacristandade e já no tempo dosApóstolos, que foram a Igrejaprimitiva, havia uma fortediferença, cismas e divisões,não só de organização mastambém de doutrina. Poucodepois São Clemente de Ale-xandria, mestre de Orígenes,escrevia que os Judeus e osGentios criticavam aos Cris-tãos que estes se atribuíssem averdade e o conhecimento da

salvação. Todos se entreacu-savam e se condenavam porerros e heresias. Pelo que sódeveriam acreditar e procurara verdade neles próprios, sen-do tão discordantes.Depois, o imperador Juliano,o Apóstata, verificando asdissensões entre Cristãos(afirma o seu historiadorMarcelino), procurava fo-mentá-las para os enfraque-cer, de modo a que não pu-dessem revoltar-se contra elee vencê-lo.A seguir, o imperador Valen-te, cristão, mais tarde conver-tido ao arianismo, alegava(diz a História Eclesiástica),como desculpa da sua aposta-sia, as grandes diferenças,cismas e debates existentesentre os Cristãos. Depoisdestes, St. Agostinho afirma-va que, na sua época, a Igrejade Jesus Cristo tinha chegadoa uma tal altura, em matériade autoridade, que todos osseus inimigos e maledicentestinham sido confundidos e

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calados, e que nada mais lhesrestava dizer contra os Cris-tãos senão que estes não esta-vam de acordo e que os Gen-tios que ainda existiam nadatinham a objectar senão assuas dissensões.Não deixa de ser estranho quea religião cristã, única verda-deira no mundo, a verdaderevelada por Deus, não estejaunida na fé, só existindo umDeus e uma verdade, mas es-teja, ao invés, dilacerada emtantas partes e dividida emtantas opiniões e seitas con-trárias, de tal modo que nãohouve artigo de fé, ou pontodoutrinal, que não tenha sidodebatido e usado em váriossentidos, tendo havido tantaheresia e tanta seita contrária.E o que aumenta a estranhezaé que, nas outras religiões fal-sas e bastardas, Gentílica,Pagã, Judaica, Maometana,tais divisões e parcialidadenão se dão. E, caso haja divi-sões, são em pequeno núme-ro, ligeiras e de pouca impor-tância, como na Judaica e naMaometana, ou, tendo sidonumerosas como na Gentílica,entre os filósofos, pelo menosnão provocaram efeitos e

abalos tão fortes e estrondo-sos no mundo. Tudo isso nadaé, ao pé das grandes divisõesperniciosas que, no início esempre, marcaram a cristan-dade.II. Pois, se atentarmos nosefeitos produzidos pelas divi-sões da cristandade, é coisaassustadora. Primeiro, relati-vamente à administração e aoEstado, deram-se frequente-mente alterações e subversõesdas repúblicas, dos reinos edas raças, divisões de impéri-os, até uma mudança univer-sal do mundo, com investidascruéis, furiosas e mais do quesangrentas, para escândalo,vergonha e reprovação dacristandade. Sob a capa dozelo e da dedicação à religião,cada parte odeia mortalmenteas outras, e parece-lhe possí-vel praticar todos os actos dehostilidade, coisa que não sevê nas outras religiões.Só aos Cristãos é permitidoserem homicidas, pérfidos,traidores e atacarem-se entresi por todas as formas de de-sumanidade, contra os vivos,os mortos, a honra, a vida, amemória, os espíritos, as se-

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pulturas e as cinzas, pelofogo, ferro, libelos assaz pi-cantes, maldições, banimen-tos do céu e da terra, dester-ros, espoliação de ossos e demonumentos, desde que sejapara a segurança ou o incre-mento do seu partido e o re-trocesso do outro; e tudo istosem compostura, com uma talraiva que são atropeladasquaisquer considerações deparentesco, aliança, amizade,mérito, obrigação.Aquele, que ontem houverasido elevado aos píncaroscom louvores, descrito comogrande, sábio, virtuoso, sen-sato, passando, hoje, para ou-tro partido, é desacreditado,proclamado ignorante, mal-vado, infeliz.Aqui se vê onde está o zelo eo ardor da religião, fora disto,e mesmo que se observemtodos os preceitos, só há frie-za. Os que se dedicam commoderação e contenção sãosuspeitos de tibieza e falta dezelo. É uma falta abominávelmostrar uma cara simpática etratar amavelmente os do par-tido contrário.De tudo isto, uns ficam es-

candalizados, como se a reli-gião cristã ensinasse a odiar ea perseguir, e nos servisse deintermediário para negociar efazer valer as nossas paixõesde ambição, avareza, vingan-ça, ódio, despeito, crueldade,rebeldia, sedição. As quais,aliás, não são facilmente con-troláveis, tendo sido desper-tadas pela religião.Muitos consideram que nãose deve atribuir esta situaçãoà religião, mas aos religiosos;e estes dizem que, de acordocom a regra da caridade, e odiscurso da razão às faltas doentendimento e do juízo, quese chamam erros, e opiniõesfalsas, que não se deve serdominado pelo ódio e o rigor,mas pela piedade e compai-xão; e tratar essas pessoas er-róneas e descrentes como setrata os coxos, os surdos, oscegos, os frenéticos, que nãose odeia, mas se lastima; tem-se piedade e presta-se-lhessocorro. Basta comportar-seassim com eles, tanto maisque não se aprovam as suasopiniões. Não se deve nemevitá-los, nem cumprimentá-los, o que seria uma expres-são de ódio, de incivilidade e

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de inimizade, e ainda menosmanifestar qualquer forma dehostilidade contra a pessoa,mas expressar uma desapro-vação, um desacordo abertode opiniões e de crenças.A outros parece-lhes que háboas razões para se procederassim, a saber, que os cristãosaderem e abraçam a sua reli-gião como uma verdade dadapela mão de Deus, da qual sãociosos e extremamente cuida-dosos; assim, quem quer queseja que faça alguma coisacontra ela para a perturbar,ofender, injuriar, detestam-noe lançam-se a ele como a uminimigo, confesso e capital,de Deus, da sua salvação, e detudo o mais. A seu ver, nesteaspecto, não podem, nem de-vem, comportar-se com friezae moderação, sem trair a cau-sa de Deus e a sua própria.E, se o mesmo não se passanas outras religiões, é porqueos outros não dão a mesmaimportância às suas religiões,nem fazem delas um tal caso,

por saberem que a religião écoisa humana, recebida damão de homens.Não dizendo respeito à admi-nistração e ao Estado, mas àalma e à consciência, resul-tam outros efeitos ainda pio-res, que são problemas deconsciência, interesse cegopela religião, desordens doscostumes e da disciplina, a talponto que, por fim, vários,fartos e maçados de tantasdivisões e contrastes, não sa-bendo o que escolher e defen-der, abandonam tudo, man-têm-se neutros e acabam pordesprezar e abandonar a reli-gião.Pois, estamos fartos de saberque a apostasia, o ateísmo, airreligião são os produtos e ospequenos bastardos das here-sias. Aliás, sabemos que asdivisões, que se deram nacristandade de Oriente, servi-ram de pretexto e, muitas ve-zes, abriram as portas aMaomé e ao seu Corão.

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CAPÍTULO XV

SOBRE OS SUPERSTICIOSOS, SOBRE ASUPERSTIÇÃO E A CREDULIDADE DO POVO

I. O supersticioso não deixaem paz, nem Deus, nem oshomens; concebe Deus, lúgu-bre, despeitado, difícil decontentar, enfadonho, a irri-tar-se, demorado a apaziguar-se, examinando as nossas ac-ções, à maneira humana deum juiz assaz severo, espian-do e apanhando-nos em falso;o que comprova pelas formascomo o serve.Treme de medo, não se podefiar ou assegurar, temendonada ter feito de bem e teromitido alguma coisa, porcuja omissão tudo o mais denada valerá; duvida de queDeus esteja satisfeito, procu-ra, por todos os meios, bajulá-lo para o apaziguar, tê-lo doseu lado, importuna-o comorações, votos, oferendas, in-venta milagres, com facilida-de acredita e aceita os supos-tos milagres de outros, enten-de e interpreta todas as coisasnaturais como feitas de pro-pósito e enviadas por Deus,

cai em tudo o que se diz,como um homem assaz solí-cito, duo Superstitiosis pro-pria, nimius timor, nimiuscultus44.Mas o que é isto, senão, comafinco, vileza e sordidez, jo-gar com Deus, de modo maismecânico do que se faria comum homem honrado? Geral-mente, toda a superstição e afalta em matéria de religiãoresulta de não se ter suficienteestima a Deus: puxamo-lo erebaixamo-lo a nós, julgamo-lo segundo nós próprios, car-regamo-lo com os nossoshumores. Que blasfémia!II. Ora, este vício, e doença, équase natural e temos umaforte inclinação para ele.Plutarco deplora a enfermida-de humana que nunca sabemanter-se meã e firmar-se embases próprias. 44 Duas coisas são inerentes ao su-persticioso: demasiado temor e ex-cessiva adoração.

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III. Ela também é popular,vem da fraqueza da alma, daignorância ou do desconhe-cimento, assaz grosseiro, deDeus; por isso se encontramais frequentemente nas cri-anças, nas mulheres (pro de-voto foemineo sexu), idosos,doentes, vítimas de qualqueracidente violento. Em suma,nos bárbaros. Inclinant naturaad superstitionem Barbari.45

IV. Para além destas semen-tes e inclinações naturais paraa superstição, vários esten-dem-lhe a mão e incremen-tam-na, pelo ganho e proveitoque daí retiram.Os grandes e os poderosos,apesar de saberem o que sepassa, também não a queremperturbar, nem impedir, cons-cientes de que é um instru-mento muito adequado paraconduzir o povo; de onde ad-vém que, não só fomentam eacalentam aquela que já estána natureza, mas, quando pre-cisam, forjam e inventam no-vas, como Cipião, Sertório eoutros qui faciunt animoshumiles formidine Divum, de-pressosque primunt ad ter- 45 Plutarco em Sertório.

ram. Nulla res multitudinemefficacius regit, quam Su-perstitio46.V. O povo (entendo por estetermo o vulgo reunido, a tur-ba e a escória populares,gente, seja sob que capa for,de baixa, servil e mecânicacondição) é um animal comvárias cabeças, vagabundo,errante, leviano, sem com-portamento, sem espírito nemjuízo.Se Postel o persuadir de queJesus Cristo só salvou ho-mens e a madre Joana devesalvar as mulheres, crê-lo-á,sem pestanejar. Se David Jor-ge se afirmar filho de Deus,adorá-lo-á. Se um alfaiateentusiasmado e fanático sedisfarçar de rei, em Munster,e afirmar que Deus o destinoupara castigar todas as potên-cias da terra, obedecer-lhe-á erespeitá-lo-á como o maiormonarca do mundo. Se o Pa-dre Domptius lhe anunciar oadvento do Anti-Cristo, queterá a idade de dez anos, ecornos, testemunhá-lo-á semreceio. Se impostores e char-latães se intitularem Irmãos 46 Curtio

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da Rosa-Cruz, segui-los-á acorrer. Se lhe contarem queParis deverá em breve ruir,fugirá. Que toda a gente deve-rá ser submergida, construiráarcas e barcos o mais depres-sa possível, para não ser apa-nhado desprevenido. Que omar deverá secar e que carro-ças poderão ir de Génova aJerusalém, preparar-se-á paraa viagem.Se lhe contarem as fábulas deMelusina, do Sabat dos Bru-xos, dos Lobisomens, dosDuendes, das Fadas, dos Pa-redros, admirar-se-á. Se amatriz atormentar uma jovem,dirá que está possuída, oudará crédito a um padre igno-rante, ou mau, que o afirme.Se um qualquer alquimista,mágico, astrólogo, lullista47,cabalista, começar, pouco apouco, a lisonjeá-lo, tomá-lo-á pela pessoa mais sábia ehonesta do mundo. Se um Pe-dro Eremita vier pregar a cru-zada, fará relíquias com ospêlos da sua mula.Se, por brincadeira, lhe disse-

47 Jean-Baptiste Lulli. O termo aquiestá empregado com a acepção de“sodomita”.

rem que uma pata ou um pás-saro estão inspirados pelo Es-pírito Santo levá-lo-á a sério.Se a peste ou a tempestadedevastarem uma província, deimediato acusará os batoteirosou os mágicos. Em suma,mesmo que o enganem hoje,continuará a deixar-se apa-nhar amanhã, nunca tirandoproveito das experiências pas-sadas para se orientar nas pre-sentes ou futuras; e nestascoisas consistem os principaissignos da sua grande fraquezae imbecilidade.VI. Quanto à sua inconstân-cia, temos um belo exemplonos Actos dos Apóstolos,onde se relata que os habi-tantes de Listria e de Derbenmal tinham avistado SãoPaulo e São Barnabé, que le-vaverunt vocem suam Lycao-nicè dicentes: Dii símiles factihominibus descenderunt adnos; et vocabant BarnabamJovem, Paulum quoque Mer-curium;48 e contudo, semtransição, depois eis que lapi-

48 Elevaram as vozes e disseram emlíngua licoaniana; os Deuses desceramaté nós sob a forma de homens; e cha-mavam a Barnabé, Júpiter, e a Paulo,Mercúrio.

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dant Paulum, traxerunt eumextra Civitatem, existimantesmortuum esse.49

Os Romanos adoram Sejanode manhã, e, à tarde...

Ducitur unco Spectandus(Juvenal, Sátiras, 10)50.

Os Parisienses fizeram omesmo com o Marquês deAncre; depois de terem rasga-do a veste do padre em JesusMaria, para conservarem osbocados como relíquias, ri-ram-se delas dois dias passa-dos. Se o povo entra em cóle-ra será como o jovem de Ho-rácio,Iram colligit et ponit temere,

et mutatur in horas,(ad Pison)51.

Se se lhe depara alguma auto-ridade, quando está na suamais efervescente rebelião esedição, fugirá, deixando tudopara trás; se encontrar um in-digente temerário, que lhereacenda a confiança e deite

49 Tendo lapidado Paulo arrastaram-nopara fora da cidade julgando que estavamorto.50 Foi arrastado com um gancho paragáudio do povo.51 Enfurece-se e acalma-se facilmente eestá sempre a mudar.

lenha para a fogueira, comose diz vulgarmente, voltarámais furioso do que antes; emsuma, podemos atribuir-lhe oque Séneca (de Vita Beata.Cap. 28.) dizia de todos oshomens, fluctuat, aliud exalio comprehendit, petita re-linquit, relicta repetit, alter-nae inter cupiditatem suam, etpaenitentiam vices sunt52.

52 Está sempre com dúvidas, inventanovas intenções, abandona o que pedirae volta a pedir o que acabara de aban-donar: o desejo e o arrependimentodominam-no à vez e possuem o con-trolo da sua alma.

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CAPÍTULO XVI

SOBRE A ORIGEM DAS MONARQUIAS

I. Se considerarmos os pri-meiros passos de todas asmonarquias, veremos que to-das começaram com umastantas invenções e embustes,pondo a religião e os milagresà cabeça de uma longa sériede barbaridades e crueldades.Tito Lívio foi o primeiro anotá-lo: Datur haec venia an-tiquitati, ut miscendo humanadivinis, primordia Urbiumaugustiora faciat53.O que demonstraremos, nasequência, como verdadeiro,mas que, para já, tem de semanter genérico; começare-mos a nossa prova pela defi-nição das quatro primeiras emaiores monarquias.A fama da rainha Semirami-de, que fundou o império dosAssírios, foi bem montada,para persuadir o povo de que,tendo sido exposta na infân-cia, os pássaros tiveram o

53 Aceita-se que a Antiguidade, mistu-rando coisas humanas e divinas, tornemais augustas as fundações das cidades.

cuidado de a alimentar, le-vando-lhe uma bicada comofazem com os seus filhotes, equerendo ainda confirmaressa fábula com as últimasacções da sua vida, ordenouque se espalhasse que, depoisde morta, fora transformadaem pomba e voara, com umgrande bando de aves que atinha vindo buscar ao quarto.Ainda tomou a decisão defingir e de mudar de sexo, e,de mulher que era, tornar-sehomem, assumindo o papeldo filho Nino e imitando-oem todas as acções. E, paraobter maior sucesso nesseempreendimento, teve a ideiade introduzir um novo tipo deroupa no seu povo, que eramais adequado para cobrir eesconder o que mais facil-mente podia fazer reconheceruma mulher. Brachiaenim accrura velamentis, caput tiarategit, et ne novo habitu ali-quid occultare videretur, eo-dem ornatu populum vestirijubet, quem morem vestis

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exinde gens universa tenet54,e por este meio primis initiisSexum mentita, puer creditaest. (Justiniano. Initio.)55.Ciro, que instituiu a monar-quia dos Persas, quis tambémtirar partido da vinha que oseu avô Astíages tinha vistonascer ex naturalibus filiae,cujus palmite omnis Ásiaobumbrabatur56, e do sonhoque ele próprio teve quandotomou as armas e escolheuum escravo como companhei-ro das suas investidas; mas,ainda fazia melhor uso dahistória de que uma cadela otinha alimentado e aleitado nafloresta, onde fora abandona-do por Harpagão, até que umpastor, tendo-o encontradopor acaso, o levou à mulher eo tratou carinhosamente emcasa.Para Alexandre e Rómulo,

54 Pois cobriu os braços e as pernas comum vestido e a cabeça com um turbante;A fim de não dar a entender que escon-dia qualquer coisa por baixo destasnovas vestes, ordenou que o seu povousasse vestes idênticas, moda que per-manece até hoje.55 No início, tendo-se travestido, foiconfundida com um rapaz.56 Da sua filha, cuja sombra dos ser-mões cobria toda a Ásia.

como os seus objectivos erammais elevados, foi necessárioensaiar mais e pôr em práticaestratagemas muito mais po-derosos. Eis a razão pela qualcomeçaram como os outrospela fábula sobre a origem;levaram-na, todavia, ao ex-tremo, o que deu a Sidónio aoportunidade de dizer:

Magnus Alexander, nec nonRomanas habentur

Concepti serpente Deo57.Pois Alexandre fizera crer queJúpiter tinha o costume devisitar e satisfazer-se com asua mãe Olímpia, na forma deuma serpente. E, quando veioao mundo, a deusa Dianaacompanhou com tal afinco oparto que se esqueceu de so-correr o templo que tinha emÉfeso, o qual, nesse intervalo,foi completamente consumidopor um incêndio acidental.Que mais? A fim de melhorfirmar a opinião sobre a suadivindade na crença dos seussúbditos, dispôs os sacerdotesde Júpiter Amon no Egipto, utingredientem Teinplum statim 57 O grande Alexandre e o Romano sãosupostos terem sido concebidos de umaserpente e de um deus.

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ut Amnonis Filium salutarent(Justiniano. I. 11)58; e, paramelhor representar a persona-gem, Rogat num omnes Patrissui intersectores sit ultus;respondent Patrem ejus necposseinterfici, nec mori59.Chegou mesmo aos artifícios,ordenando a Parménio quedemolisse todos os templos eabolisse as honras que os po-vos do Oriente prestavam aJasão, ne cujusquam nomen inOriente venerabilius quamAlexandri esset60.Acrescentemos que, certosprisioneiros, tendo-lhe reve-lado o segredo do remédiocontra as setas envenenadasdos índios, deu a entender quefora Deus que lho revelara emsonhos. Mas essa insaciávelcupidez, tendo-o levado a fa-zer-se adorar, reconheceu, porfim, pelas censuras de Calís-tenes, pela obstinação dos La- 58 Que, no momento em que ele entrasseno templo, o saudassem como filho deJupiter Amon.59 Ele perguntou se não se tinha vingadode todos os homicidas do seu pai, e elesresponderam que o seu pai não podianem ser morto, nem morrer.60 Para que não houvesse nome no Ori-ente mais venerável do que o de Ale-xandre.

cedemónios e pelos ferimen-tos que sofria todos os diasem combate, que todas as su-as forças não seriam sufici-entes para poder estabeleceresta nova apoteose e que épreciso uma fortuna muitomaior para adquirir um pe-queno lugar no céu do quepara domar cá em baixo edominar a terra toda.Se se quiser juntar a estashistórias a da morte de seupai, Filipe, que congeminoucom sua mãe, Olímpia, etambém a de Clito, que matoucom as suas próprias mãos,porque este adquirira demasi-ada autoridade entre os solda-dos, chegar-se-á à conclusãode que Alexandre praticavaem segredo o que César maistarde fez às claras: Si violan-dum est jus, regnandi causa.61

Quanto a Rómulo, construiu oseu crédito com as históriasdo deus Marte, que teria fre-quentado regularmente a suamãe Réa; com a da loba que oalimentou; com o embustedos abutres, a morte do seuirmão, o asilo que criou em

61 Se é necessário violar o direito, é parareinar.

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Roma, o rapto das Sabinas, oassassínio de Tácio, que dei-xou impune e, finalmente, ada sua morte, afogando-se emáguas pantanosas, para fazercrer que o seu corpo fora ele-vado aos céus, uma vez quenão o poderiam encontrar naterra. Ora, se juntarmos a es-tes golpes de estado de Ró-mulo os que Numa Pompílio,seu sucessor, efectuou com ahistória da sua ninfa Egéria edas superstições que instituiudurante o seu reinado, seráfácil ajuizar:

Quibus auspiciis illainclita Roma

Imperium Terris animosaequavit Olympo

(Virgílio)62

Se pretendêssemos examinartodas as outras monarquias etodos os Estados que são infe-riores a estes quatro, poderí-amos encher um grosso vo-lume com semelhantes histó-rias. Por isso, bastará, comoprova definitiva da nossa má-xima, examinar o que Maomé

62 Por estes meios esta famosa Romadominou toda a Terra e levou a suaambição até às alturas do Olimpo.

fez para a instituição nãotanto da sua religião quantodo Império, que é hoje o maispoderoso do mundo.É claro que, como todos osgrandes espíritos (Postellus etAlii) tiveram sempre o enge-nho de aproveitar as desgra-ças mais notórias que lhesaconteceram, este fez a mes-ma coisa; de modo que, ven-do que estava na iminência decair de bem alto, tratou deconvencer os amigos de queos paroxismos mais violentosda sua epilepsia eram êxtasese sinais do espírito de Deusque estava nele; persuadiu-ostambém de que um pombobranco que vinha comer grãosde trigo na sua orelha era oAnjo Gabriel, que lhe vinhaanunciar, da parte do próprioDeus, o que devia ser feito;depois, serviu-se do mongeSérgio para compor um Co-rão, que fingia ter-lhe sidoditado pela própria boca deDeus; finalmente, chamou umfamoso astrólogo para queeste preparasse os povos comas previsões sobre as mudan-ças de estado que deveriamenfrentar e a nova Lei que umgrande Profeta deveria insti-

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tuir, para que recebessemmais facilmente a sua, quandoa publicasse.Mas, tendo-se apercebido deque o seu secretário AbdallaBensalon, contra o qual seirritara injustamente, começa-ra a descobrir e a publicar taisimposturas, degolou-o, umanoite, em sua casa e mandouque esta fosse incendiada,com a intenção de convencero povo, no dia seguinte, deque tal acontecera pelo fogodo céu, como castigo pelastentativas do secretário demudar e adulterar algumaspassagens do Corão.Não seria ainda esta a últimafineza, pois outra viria com-pletar o mistério, tendo eleconvencido o mais fiel dosseus criados a descer ao fundode um poço, próximo de umcaminho amplo, para gritarquando passasse na compa-nhia de uma grande multidãoque costumava acompanhá-lo,Maomé é o bem-amado deDeus, Maomé é o bem-amadode Deus. E, tendo acontecidocomo combinado, agradeceusubitamente a divina bonda-de, por um testemunho tão

notável, e pediu a toda a genteque o seguia que enchesse opoço com pedras e aí erguesseuma mesquita em sinal de umtal milagre.E, em virtude dessa invenção,o pobre criado foi sepultadosob uma chuva de calhaus,que lhe retiraram a possibili-dade de alguma vez descobrira falsidade do milagre.

Excepit sed Terra sonum,calamique loquaces63.

63 Mas a terra e as canetas boateirasreceberam o eco. (Petrónio nos Epi-grainas).

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CAPÍTULO XVIISOBRE OS LEGISLADORES,

SOBRE OS POLÍTICOS, E COMO ELESSE SERVEM DA RELIGIÃO

I. Todos os antigos legislado-res, querendo acreditar, afir-mar e fundar conveniente-mente as leis que davam aosseus povos, não encontrarammelhor maneira de o fazer doque publicar, e fazendo crercom todo o engenho possível,que as tinham recebido deuma qualquer divindade, Zo-roastro, de Oromasis (Ahura-mazda), Trimegisto, de Mer-cúrio, Zamolxis, de Vesta,Carondas, de Saturno, Mino,de Júpiter, Licurgo, de Apolo,Drago e Sólon, de Minerva,Numa, da ninfa Egéria,Maomé, do Anjo Gabriel; eMoisés, que foi o mais sabidode todos, descreve-nos noÊxodo como recebeu a suadirectamente de Deus.Face à ruína total e aboliçãodo reino dos Judeus, mansittamen, diz Campanella, reli-gio mosaica cum superstitio-ne in Hebraeis et Mahumeta-nis, et cum reformatione pra-

eclarissima in Christianis64.Foi, julgo, o que levou Car-dano a aconselhar os Prínci-pes, que, em virtude de baixanascença ou desprovidos dedinheiro, partidários, forçasmilitares, soldados, não pu-dessem governar os seus Es-tados com suficiente esplen-dor e autoridade, a procura-rem apoio na religião, comofizeram outrora, e com grandesucesso, David, Numa e Vespa-siano.

II. Mas, como nunca houvemais do que dois meios capa-zes de levar os homens acumprir o seu dever, a saber,o rigor dos suplícios previstospelos antigos legisladorespara reprimir os crimes, deque os juízes viessem a terconhecimento; e o temor dosDeuses e da sua ira, para im-

64 Todavia a religião mosaica continuoucomo superstição entre os Judeus e osMuçulmanos, e sofreu uma bela reformanos Cristãos. In Aforismos Políticos.

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pedir aqueles que, por falta detestemunhas, não pudessemser convenientemente denun-ciados, de acordo com o quediz o Poeta Palingenius (inLibra):

Semiserum vulgusfraenandum est relligione

Poenarum que inetu,nam fallax atque malignum.

Illus ingenium est semper, necsponte movetur Ad rectunp.65

Deste modo, os próprios le-gisladores reconheceram quenada dominava com maiorviolência os espíritos do queeste último meio, o qual, de-parando-se com uma qualqueracção, leva subitamente qual-quer perseguição ao extremo;a prudência transforma-se empaixão, a cólera, mesmo quefraca, converte-se em raiva,toda a civilidade esvai-se emconfusão, os próprios bens e avida deixam de ser considera-dos, se for preciso perdê-lospara defender a divindade deuns tantos dentes de macaco, 65 É pela religião e pelo medo dos suplí-cios que é necessário refrear a populaçameio selvagem, pois o seu espírito ésempre enganador e maligno, e de simesmo não atina com o que é de direito.

de boi, de gato, de cebola, oude outro ídolo ainda mais ri-dículo, nulla siquidem resejficacius multitudinem movetquam Siiperstitio.66

III. Os legisladores e os polí-ticos serviram-se da religiãode cinco maneiras principais,nas quais se podem compre-ender todas as outras:A primeira, mais comum evulgar, foi convencer os po-vos de que estavam em con-tacto com os Deuses, paramelhor conseguirem o objectoda sua vontade. Como vemosque, para além dos antigos járeferidos, Cipião quis dar aentender que nada fazia sem oconselho de Júpiter Capitoli-no, Sila, que todos os seusactos eram favorecidos porApolo de Delfos, de quemtrazia sempre consigo umapequena imagem; e Sertório,que a sua corça lhe trazia to-das as novidades sobre as de-cisões do Concílio dos Deu-ses.Mas, para chegarmos a histó-rias que nos são mais próxi- 66 Nada há que faça agir mais eficaz-mente a populaça que a superstição.Quinto Curtius, Livro IV.

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mas, não há dúvida de queJacques Bussularius dominoualgum tempo em Pavia, porsemelhantes meios, João deVicença em Bolonha, e Jeró-nimo Savonarola em Floren-ça, sobre quem temos o se-guinte comentário de Maqui-avel: “O povo de Florençanão é estúpido, não obstante,o irmão Jerónimo Savonarolalevou-os a acreditar que fala-va com Deus67. Não passarammais de sessenta anos queGuilherme Postei quis fazer omesmo em França, e, há pou-co ainda, Campanella, na AltaCalábria; mas não consegui-ram, tal como os precedentes,por não terem a força nasmãos; pois, como diz Maqui-avel, esta condição é necessá-ria a todos aqueles que quei-ram instituir uma nova religi-ão.IV. A segunda invenção usa-da pelos políticos para recor-rerem ao poder da religiãoconsistiu em fingir milagres,descobrir sonhos, inventarvisões e produzir monstros eprodígios:Quae vitae rationem vertere

67 Sobre Tito Lívio.

possent;Fortunasque omnes magno

turbare timore.68

Assim, vemos que Alexandre,tendo sido informado, por al-guns médicos, da existênciade uma panaceia contra assetas envenenadas dos seusinimigos, fez crer que Júpiterlho tinha revelado em sonhos.E Vespasiano arranjava pes-soas que fingiam ser cegas ecoxas para curá-las pelo to-que. Por isso, também Clóvisacompanhou a sua conversãocom tantos milagres; CarlosVII exagerou os poderes deJoana de Arc e o actual impe-rador, os do padre de JesusMaria, esperando talvez ga-nhar uma batalha tão grandequanto a de Praga.V. A terceira tem como fun-damento os boatos, as revela-ções e profecias que se põema correr com o objectivo deaterrorizar o povo, espantá-lo,abalá-lo, ou, ao contrário,para o acalmar, fortalecer, en-corajar, conforme as ocasiões.E, a este propósito. Postel dá

68 Que possam mudar a maneira deviver e perturbar todas as fortunas porum grande temor.

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conta de que Maomé manti-nha um famoso astrólogo, quemais não fazia do que pregaruma grande revolução e umagrande mudança que adviria,tanto na religião como no im-pério, com uma longa série detodo o tipo de prosperidades,a fim de abrir, com esse es-tratagema, o caminho ao pró-prio Maomé e preparar os po-vos para receberem, commelhor vontade, a religiãoque ele queria introduzir, aomesmo tempo que intimidavaaqueles que não estivessemdispostos a aceitá-la, atravésda suspeita de que poderiamestar a combater contra a or-dem do destino, opondo-se aonovo favorito do céu, estetendo à partida essa vanta-gem:Cui militat aether et conjurativeniunt ad Clássica ventfi.69

Foi por meio dessas insanescrenças que Fernando Cortezocupou o Reino do México,onde foi recebido como sefosse o Topilchin (Topiltzin),cuja chegada todos os adivi-

69 Por quem o céu combate e os ventosde um comum acordo vêm ao som dastrompas.

nhos previram. E FranciscoPizarro, o do Peru, onde en-trou com o aplauso geral detodos os povos, que o toma-ram pelo enviado de Viraco-cha para libertar o seu rei docativeiro.O próprio Carlos Magno che-gou longe em Espanha, graçasa um velho ídolo, que, comopreviram os adivinhos, deixa-ra cair uma grande chave quesegurava na mão; e, também,os Árabes ou Sarracenos con-seguiram, sob o comando doConde Juliano, invadir o Rei-no de Espanha. Praticamentenão se pensou enfrentá-los,porque se tinha visto, umpouco antes, as suas facespintadas numa tela encontradanum velho castelo próximo dacidade de Toledo, no qual seacreditava que tinha sido fe-chada por um grande Profeta.E ouso afirmar, como muitoshistoriadores, que, sem essasbelas previsões, Maomé IInão teria conquistado comtanta facilidade a cidade deConstantinopla. Mas haveráexemplo mais revelador doque o que aconteceu em 1613,a propósito de Ascosta, cida-de principal da Ilha Magna, a

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qual, tendo-se revoltado con-tra o Sofi, foi tomada semgrande dificuldade pelo seulugar-tenente Arcomat, emvirtude de uma certa profecia,transmitida por tradição, quedizia que se a cidade não seentregasse a Arcomat seriaArcomatada, quer dizer, quese não se rendesse à Dissipa-ção seria dissipada. Ao passoque, se tivesse querido defen-der-se, talvez não tivesse sidoconquistada, visto que, se-gundo o relato de Garcias abHorto, médico português, queaí fora escrito trinta ou qua-renta anos antes, a cidadecontinha cinco léguas de mu-ralha, cinquenta mil armas defogo70 e rendia ao Sofi quinzemilhões e seiscentos mil es-cudos, cada ano, de rendi-mento garantido.É, portanto, um caminho am-plamente aberto aos políticos,para enganar e seduzir a tolapopulaça, servir-se dessas 70 Nota Ádvena – Há quem traduza otermo “fogo” a significar “residência deuma família, lar, casa de morada”. Emface ao contexto do parágrafo – defen-der-se – salvo melhor juízo, “armas defogo” me soa mais adequado. Entre-tanto, na edição francesa de 1775 nãoconsta esta passagem.

previsões, para a levar a temerou esperar, aceitar ou recusar,aquilo que bem entenderem.VI. Mas, o quarto meio, queconsiste em ter pregadores erecorrer a homens bem falan-tes, é o mais curto e eficaz,pois não há nada que não sepossa conseguir sem esse es-tratagema.A força da eloquência, e deuma expressão embelezada eengenhosa, entra com tal pra-zer nos ouvidos que é precisoser-se surdo ou mais espertoque Ulisses para não se su-cumbir ao seu encanto; destemodo, é verdade que tudo oque os poetas escreveram so-bre os dozes trabalhos deHércules tem a sua mitologianos diversos efeitos da elo-quência, por meio dos quaiseste homem dirimia todo ogénero de dificuldades; tive-ram, por isso, razão os Gaule-ses, ao representá-lo commuitas pequenas cadeias deouro, que lhe saíam da boca ese prendiam nas orelhas deuma grande multidão que as-sim arrastava consigo.Para falarmos apenas da nossaFrança, não é do conheci-

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mento geral que essa famosacruzada, levada a cabo comtanto zelo por Godefroy deBouillon, foi preparada e con-seguida pelas arengas e prédi-cas de um único homem ape-lidado Pedro, o Eremita,como a segunda, pelas de SãoBernardo?Que acrescentar? Houve ho-micídio mais vil e mais abo-minável do que o de Luís,Duque de Orleães, perpetra-do, em 1407, pelo Duque deBorgonha? Não obstante,mestre Jean Petit, teólogo egrande predicador, arranjoumaneira de o paliar, abafar edisfarçar com os sermões quefez em Paris no adro de No-tre-Dame, de tal forma queaqueles que queriam defendero partido da Casa de Orleãeseram tidos pelo povo comoamotinados e rebeldes; o queos forçou a recorrer ao mes-mo artifício, pondo-se sob aprotecção desse grande ho-mem de bem Jean Gerson,que os defendeu, e conseguirque o Concílio de Constançadeclarasse a posição sustenta-da por Petit herética e erró-nea.

Mas, como Jean Petit provo-cara um grande mal no reina-do de Carlos VI, houve umFrei Ricardo, Cordoeiro notempo de Carlos VII, que foitambém causa de um grandebem; pois, em dez prédicas deseis horas cada, feitas em Pa-ris, conseguiu que fossequeimado, em fogueiras ex-pressamente ateadas nos cru-zamentos das ruas, tudoquanto havia de mesas, tabu-leiros, cartas, berlindes, bilha-res, dados e outros jogos deazar ou de sorte, que levam eobrigam os homens a jurar e ablasfemar; mas, mal este bomhomem saíra de Paris, já co-meçavam a menosprezá-lo e agozá-lo abertamente, e o povovoltou, com maior afinco, aesses reles divertimentos.Nem mais nem menos do queduravam as metamorfosesestranhas e as conversões, porassim dizer, milagrosas, que,ainda há menos de vinte anos,fazia o Padre Capuchinho Gi-acinto da Casale por todas ascidades de Itália onde prega-va, que só duravam o tempoque o Padre permanecia nascidades para cumprir as suasfunções.

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VII A quinta invenção, quefoi sempre a mais frequente esubtilmente praticada, con-siste em empreender, emnome da religião, o que maisnada poderia validar e legiti-mar.Com efeito, o provérbio ha-bitualmente ursupado pelosJudeus, in nomine Dominicommittitur oinne malum71,não é menos verdadeiro doque a observação do Papa Le-ão, ao Imperador Teodósio,privatae causae pietatisaguntur obtentu, et cupidita-tum quisque suarum religio-num habet velut pedise-quam72.Uma vez que os exemplos sãotão vulgares, de que todos oslivros estão cheios, limitar-me-ei, após ter falado bas-tante dos nossos Franceses,aos Espanhóis, seguindopontualmente Juan de Maria-na, o mais fiel dos seus histo-riadores.Ele diz, então, referindo-se

71 Sob o nome de Deus comete-se toda asorte de mal.72 Tratam-se os assuntos privados acoberto da religião que cada um põe aoserviço das suas ambições.

aos primeiros Godos queocuparam a Espanha, e àsguerras que efectuavam paracorrerem uns com os outros,que estes se serviam da religi-ão como pretexto para reinar,e o seu refrão usual era optii-num fore judicavit religionispretextam73, referindo-se aoRei Sisinando, que pediu aju-da aos Borgúndios arianospara afastar o rei Suintila; e,quando trata dos Reis deChintila, con species religio-nis obtenderetur74; como aodescrever de que modo Ervi-ges perseguiu o Rei Vamba,Optimum visum est religionisspeciem obtendere75; e, quan-do dois irmãos da casa deAragão, violento imperiosiPontificis inandato76, pega-ram em armas um contra ooutro, este bom padre nota,com pertinência, que nadahavia de mais inumano doque violar assim as Leis danatureza, sed tanti fides reli-

73 Considerou que o pretexto da religiãoseria muito bom. Livro VI, Cap. V.74 Quando se fazia parada da religião.Cap. V.75 Foi considerado bastante bom fazerparada da religião. Cap. VII.76 Por uma ordem violenta que um papaimperioso deu. (Era Bonifácio VIII).

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gioque fuere77; e o mesmo,ainda falando da Navarra, queFernando immensa imperandiambitione78, destituiu a suaprópria sobrinha, acrescentacomo desculpa, sed speciesreligionis praetexta facto est,et Pontificis jussa79. Mas porque não teria fim a alegaçãode todas as passagens ondeeste corajoso autor Marianafez considerações semelhan-tes, atesto que o seu livro estátodo cheio delas. Passando aCarlos V, apresentarei comoprova contra ele o que Fran-cisco I dizia, na sua apologiade 1573, que Carlos quer in-vadir os Estados sob as coresda religião.Falando da guerra da Alema-nha, o imperador, a cobro dareligião, e armado com a Ligados Católicos, quer oprimir ooutro e abrir caminho para acoroa, o que foi assaz justa-mente notado pelo Senhor deNevers.

77 Mas a fé e a religião tiveram tantaforça. Livro II. Cap. 1.78 Pela imensa ambição que ele tinha demandar em todos.79 Mas cobriu-se com o pretexto dareligião e das ordens do Papa. LivroXXV, Cap. Ultimo.

Finalmente, quando o faleci-do rei Tiago foi chamado àcoroa de Inglaterra, o rei deEspanha apressou-se a esta-belecer uma estreita aliançacom ele; enviou o Condestá-vel de Castela, assinou oacordo, e Rovídio, senador deMilão, declara que essa alian-ça é uma obra pia, reconheceo rei de Inglaterra como ummui santo príncipe cristão,põe à sua disposição, da partedo seu senhor, todas as forçasmarítimas e terrestres, e cla-ma que o rei de Espanha o fazdivina adinonitione, divinavoluntate, divina ope, non nisimagno Dei beneficio.80

Como é da natureza da maio-ria dos príncipes tratar a reli-gião como charlatães, e dedela se servirem como de umadroga para manter o crédito ea reputação das suas comédi-as, não se deve, parece-me,censurar um político por re-correr a tal expediente, mes-mo que seja mais honesto di-zer o contrário, e que, parafalar correctamente,

80 Por um aviso divino, pela vontadedivina, pela assistência divina, e comouma grande graça de Deus.

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Non sunt haec dicenda palain,

prodendaque vulgo,Quippe hominum plerique

mali,plerique scelesti81.

E já chega, na minha opinião,para realizarmos a nossaapologia junto daqueles quenos acusam de termos idodemasiado longe. Retomemosagora o fio do nosso discurso,que nos desculparão de ter-mos interrompido desta ma-neira. Com efeito, para lá deos extractos de Pierre Charrone Gabriel Naudé, que apre-sentámos, serem excelentes,não podiam convir melhor aofim que nos propusemos nesteescrito, o de combater a su-perstição.Para vos curardes desta doen-ça, lede o que se segue comum espírito aberto, mas ledecom atenção, e sentireis infa-livelmente que se trata dapura verdade.

81 Não se deve descobrir nem revelartais coisas ao povinho, visto que entreos homens há tantos malvados e celera-dos. Palingenius, in Libra.

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CAPÍTULO XVIII

VERDADES SENSÍVEIS E EVIDENTES

I. Moisés, Numa Pompílio,Jesus Cristo e Maomé, tendosido como os apresentámos, écerto que não é, nem nas leis,nem nos seus escritos que sedeve procurar a verdadeiraideia de Deus. As aparições eas conferências divinas doprimeiro, do segundo e doúltimo e a filiação divina doterceiro são imposturas deque vos deveis afastar, seamardes a verdade.II. Deus é um ser simples, ouuma extensão infinita, que seassemelha ao que contém,quer dizer, que é material,sem, contudo, ser nem justo,nem misericordioso, nem in-vejoso, nem nada do que seimagina, e que, por conse-guinte, não é nem castigadornem remunerador.Esta ideia de castigo e recom-pensa só tem cabimento noespírito dos ignorantes, quenão concebem este ser sim-ples, ao qual se chama Deus,senão com imagens que nada

têm a ver com ele. Mas,aqueles que se servem do en-tendimento, sem misturar assuas operações com as daimaginação, e que têm a forçade se desfazer dos preconcei-tos de uma má educação, sãoos únicos a ter uma ideia sã,clara e distinta.Estes encaram-no como a ori-gem de todos os seres queproduz sem distinção, um nãosendo mais do que outro aoseu olhar, e não lhe custandomais a produzir um homemdo que um verme ou uma flor.III. Por isso, não se deveacreditar que esse ser simplese extenso, que é o que habitu-almente se chama Deus, façamais caso de um homem doque de uma formiga, de umleão que de uma pedra, e dequalquer outro ser do que deum feto.Que aos seus olhos nada hajade belo, nem de feio, de bom,nem de mau, de perfeito, nemde imperfeito...

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Que queira ser louvado, soli-citado, procurado, adulado.Que se emocione com o queos homens fazem ou dizem,susceptível de amor e de ódio,em suma, que pense mais nohomem do que no resto dascriaturas, seja lá de que natu-reza forem. Todas estas dis-tinções não passam de purasinvenções de um espírito li-mitado. A ignorância inven-tou-as e o interesse fomenta-as.IV. Assim, qualquer homemque faça bom uso da razãonão acreditará nem no céunem no inferno, nem na alma,nem nos Deuses, nem nosdiabos, da maneira como de-les se fala vulgarmente.Todos estes palavrões foramforjados apenas para cegar oupara intimidar o povo. Fica-reis convencidos disto, se vosderdes ao trabalho de regredirconnosco à fonte do erro queoriginou as falsas ideias queforam associadas a estas pala-vras e se as substituirdes pelasverdadeiras.V. Uma infinidade de astrosque vemos acima de nós leva-ram-nos a admitir a existência

de corpos sólidos onde eles semovem, de entre os quaishouve um destinado à corteceleste, onde Deus é comoum rei no meio dos seus cor-tesãos.Foi aí que se estabeleceu olugar dos bem-aventurados, eonde se finge que as boas al-mas são elevadas, ao abando-narem o corpo e este mundo.Mas, sem nos determos numaopinião tão frívola, que ne-nhum homem de bom sensoadmite, é certo que o que sechama céu mais não é do quea continuação do nosso armais subtil e mais depurado,onde esses astros se movemsem serem sustentados porqualquer massa sólida domesmo modo que a terra, queestá efectivamente suspensano meio do espaço, é movidae agitada.VI. Como se imaginou umcéu que é, ao que se diz, amorada de Deus e dos bem-aventurados, como para ospagãos os Deuses e as Deu-sas, representou-se, comoeles, um inferno ou um lugarsubterrâneo, onde se diz quedescem as almas dos maus

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depois da morte, para aí se-rem atormentadas.Porém, esta palavra inferno,tomada em sentido próprio enatural, não indica senão umlugar baixo, que os poetas in-ventaram para opor à moradados habitantes celestes, a qual

supunham bem alta e elevada.É o que designa a palavra In-ferus ou Inferi, em Latim e oHades em Grego, ou seja, umlugar obscuro, tal como umsepulcro, ou qualquer outrolugar baixo e tenebroso.

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CAPÍTULO XIX

DA ALMA

I. A alma é uma coisa maisdelicada e difícil de tratar doque o céu e o inferno. Porisso, justifica-se que, para sa-tisfazer a curiosidade do lei-tor, dela falemos mais demo-radamente. Para esse efeito,antes de dizer o que é, relata-remos o que pensaram osmais antigos filósofos, e fá-lo-emos em poucas palavras,para que seja retido com mai-or facilidade.Uns disseram que a alma éum espírito ou uma substân-cia imaterial, outros, uma par-cela da divindade. Alguns,um ar muito subtil, algunsoutros, um vento quente, ou-tros, um fogo, outros, umcomposto de água e fogo.Estes, um conjunto fortuito deátomos, e, aqueles, um com-posto de partes subtis, que seevaporam e exalam quando ohomem morre. Houve quem afizesse consistir na harmoniade todas as partes do corpo, e,outros, na parte mais subtil dosangue, que se separa no cé-

rebro e se distribui pelos ner-vos. De modo que a origemda alma, segundo estes últi-mos, é o coração, onde se en-gendra, e o cérebro é o lugaronde realiza as funções maisnobres, por aí estar mais de-purada das partes espessas dosangue. Enfim, houve quemnegasse a existência das al-mas.Eis as principais opiniões queos antigos filósofos tinhamsobre a alma. Para torná-lasmais compreensíveis, distin-guiremos aqueles que a con-sideraram corpórea daquelesque a consideraram incorpó-rea.II. Pitágoras e Platão disse-ram que a alma era incorpó-rea, isto é, capaz de subsistirsem a ajuda do corpo, e quepode mover-se por si mesma.Que todas as almas individu-ais dos animais são partes daalma universal do mundo.Que estas partes são incorpó-reas, imortais e de mesma

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natureza dessa alma universalde que são partes, semelhan-tes a cem pequenos fogos,que têm a mesma naturezadaquele maior de que foramtirados.III. Estes filósofos acredita-vam que o universo estavaanimado por uma substânciaimaterial invisível, que tudosabia, que estava em cons-tante movimento e que, nosseus sistemas, era a fonte detodo o movimento existenteno mundo e de todas as almasque, segundo eles, são partí-culas dessa substância. Ora,como essas almas são muitopuras e infinitamente acimados corpos, não se unem, di-zem, directamente, mas atra-vés de um corpo subtil, de-pois, de um outro mais gros-seiro, e assim sucessivamente,até se poderem unir aos cor-pos sensíveis dos animais, nosquais entram, como em pri-sões ou sepulturas. A morteda alma, acrescentam, é avida do corpo, no qual aquelaestá como que sepultada, eonde só muito fracamenteexerce as suas funções maisnobres. Ao contrário, a mortedo corpo é, segundo eles, a

vida da alma, porque se li-berta da prisão, livra-se damatéria e volta a unir-se àalma do mundo da qual saíra.Assim, segundo esta concep-ção, todas as almas dos ani-mais são da mesma natureza,e a diversidade das suas fun-ções resulta apenas da dife-rença entre os corpos nosquais entram.Aristóteles, para além da almado mundo, admite um enten-dimento universal, comum atodos os homens, que opera,em relação aos entendimentosparticulares, como a luz emrelação aos olhos, de formaque, como a luz torna os ob-jectos visíveis, o entendi-mento universal torna os ob-jectos inteligíveis. Este filóso-fo, que estabelece os quatroelementos como princípios detodas as coisas, não podendorelacionar as operações daalma com nenhum dos ele-mentos, acreditava que haviaum quinto princípio, que seriaa sua origem. Não atribuiupropriamente um nome a essequinto princípio; mas atribuiuum novo à alma, que significaum movimento perpétuo ouuma potência que se move

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eternamente, e define-a comoo que nos faz viver, sentir,conceber e mover. Mas, comonão diz o que é esse ser que éa origem e o princípio dessasnobres funções, não é neleque encontramos o esclareci-mento das dúvidas que temossobre a natureza da alma.IV. Dicearco, Asclépio e, emcerto sentido, Galeno, tam-bém conceberam a alma in-corpórea, mas de outro modo.Com efeito, afirmaram quenão se tratava de outra coisasenão da harmonia de todas aspartes do corpo, ou seja, oque resulta da mistura exactados elementos e da disposiçãodas partes, dos humores e dosespíritos. Assim, dizem, comoa saúde não é parte daqueleque está saudável, ainda queesteja nele, do mesmo modo,ainda que a alma esteja noanimal, não é uma das suaspartes, mas um mútuo acordode todas aquelas que o com-põem. O que nos leva a notarque estes autores crêem aalma incorpórea com basenum princípio oposto à suaintenção. Pois afirmar quenão se trata de um corpo, masapenas de algo inseparavel-

mente ligado ao corpo, querdizer, em boa escolástica, queé completamente corpórea,uma vez que se chama corpó-reo não só o que é corpo, mastudo o que é forma e acidenteque não possa ser separado damatéria.Eis os nomes daqueles queacreditaram ser a alma incor-pórea ou imaterial que, comovedes, não estão de acordoconsigo mesmos e por conse-guinte não merecem crédito.Passemos aos que ensinaramque ela era um corpo.V. Diógenes acreditou que aalma era feita de ar, como seinfere da necessidade de res-pirar, e define-a como um arque passa da boca pelos pul-mões para o coração, onde éaquecido e, a partir daí, dis-tribuído pelo corpo.Zenão, fundador da seita dosEstóicos, acreditou que aalma ou o espírito era umfogo. Leucipo e Demócritotambém o seguiram nestaconcepção, mas acrescenta-ram que, como o fogo, écomposta de átomos que pe-netram facilmente nas partesdo corpo e o fazem mover.

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Hipócrates afirmou que elaera composta por água e fogo,Empédocles pelos quatroelementos.Epicuro acreditou, como De-mócrito, que a alma é com-posta de fogo, mas acrescen-tou que nesta composição en-tra ar com vapor e uma outrasubstância que não tem nomee que é o princípio do senti-mento. Que destas quatrosubstâncias diferentes forma-se um espírito muito subtil,que se espalha pelo corpo, aoqual se deve chamar alma.Aristóxenes, filósofo e músi-co, afirmou que a alma é umacorde de todas as partes docorpo, ou uma harmonia se-melhante à que resulta da di-versidade das vozes e dosinstrumentos que as acompa-nham.Todos estes filósofos, tendonotado que a alma crescia eperecia com o corpo; que erafraca na infância, vigorosa naforça da idade, senil na velhi-ce, sonhadora no sono, em-brutecida na embriaguez,abatida na doença... e, paraalém do mais, que era corpó-rea, acreditaram, como aque-

les que viveram antes de Fe-recides, que era mortal82.VI. Xenócrates, segundo Cí-cero83, negou a existência dealmas, e Dicéarco pôs na bocade um velho chamado Feré-rates que a alma não é senãoum nome vão que nada signi-fica. Que não existe nemalma, nem espírito, nem nohomem, nem nos animais.Que essa potência, em virtudeda qual agimos e temos cons-ciência, é igual em tudo o quevive, que é inseparável docorpo, e que mais não é doque o próprio corpo, modifi-cado de tal modo que subsistepelo temperamento que a na-tureza lhe deu.VII O senhor Descartes de- 82 Ferecides, nativo da ilha de Ciros,que viveu no reinado de Sérvio Túlio,sexto rei de Roma, foi, segundo relatode Cícero (Tusculantis, Livro I), o pri-meiro dos filósofos que sustentou queas almas eram imortais. Foi seguido porPitágoras, seu discípulo, que esteve emItália no reinado de Tarquínio, o Sober-ba. Mais de cem anos depois, Platão,tendo frequentado durante a sua viagema Itália os filósofos pitagóricos, e entreoutros, Filolau, Eurito, Arquitas e Ti-meu, não só acolheu o pensamento dePitágoras sobre a imortalidade da almacomo imaginou novas razões para sus-tentar esse ponto de vista.83 Tusculanas, Livro I, cap. X.

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fende, mas lamentavelmente,que a alma não é material.Digo lamentavelmente, poisnenhum filósofo pensou tãomal sobre este assunto comoeste grande homem. Eis omodo como defende a imate-rialidade da alma.Desde logo, diz, é necessárioduvidar da existência de todosos corpos, e acreditar que nãoexiste uma tal coisa, depoisraciocinar do seguinte modo:não há corpo, portanto nãosou um corpo, por conse-guinte só posso ser umasubstância que pensa.Primeiro, a dúvida que instalaé completamente impossível,pois, se bem que, por vezes,possamos pensar que nãoexistem corpos, é, no entanto,impossível duvidar de queexistam, quando pensamosneles.Segundo, quem acredita que

não há corpos deve certificar-se de que não tem um, nin-guém podendo duvidar de si.Ora se se certificou, a dúvidaé inútil.Terceiro, quando diz que aalma é uma substância, ouuma coisa que pensa, não nosestá a dizer nada de novo,pois é o que qualquer umaceita. A dificuldade está emdeterminar o que é essa subs-tância que pensa; e ele não oexplica.VIII. Para não enviesar, comoele fez, e para dar a ideia maissã possível da alma, fazemosnotar que, antes de mais, elatem a mesma natureza nosanimais e no homem, e que adiversidade das suas funçõesdecorre apenas da diferençados órgãos e dos humores.Posto isto, eis o que, segundopensamos, é a alma.

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CAPÍTULO XX

O QUE É A ALMA

I. É certo que existe no mun-do um espírito muito subtil,ou uma matéria muito depu-rada e sempre em movimento,que tem origem no Sol e queestá espalhada por todos osoutros corpos, mais ou me-nos, segundo a natureza delesou a sua consistência.Eis o que é a alma do mundo,eis o que o governa, o que ovivifica, e cujas partes sãodistribuídas por aquilo que ocompõe.II. Esta alma é o fogo maispuro que existe no universo,não arde por si próprio, masarde e faz sentir o seu calor,graças aos vários movimentosque imprime às partículas dosoutros corpos, onde está in-serto.O fogo visível contém umamaior quantidade desse espí-rito que o ar, este que a água,

e a terra tem muito menos.Entre os mistos, as plantastêm mais do que os minerais eos animais ainda mais.Por fim, este fogo, estandofechado nos corpos, torna-oscapazes de sentimentos; e é oque se chama alma, ou espí-ritos animais, que se espa-lham por todas as partes docorpo.III. Não há, portanto, dúvidade que esta alma, sendo denatureza idêntica em todos osanimais, se dissipa com amorte do homem tal comodos animais. Do que se segue,que o que poetas e teólogosnos cantam sobre o outromundo é apenas uma quimeraque forjaram e debitaram porrazões que não é difícil adivi-nhar.

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CAPÍTULO XXI

SOBRE OS ESPÍRITOS CHAMADOS DEMÓNIOS

I. Apesar de termos faladoamplamente da maneira comoa crença nos espíritos se in-troduziu entre os homens, ede termos mostrado que essesespíritos não passavam defantasmas existentes apenasna imaginação, no entanto,como os homens fizeram des-sa crença um artigo funda-mental da sua religião, consi-derámos pertinente tratar oassunto de uma maneira maisaprofundada.Para o efeito, analisaremos oque os filósofos e os poetasdo paganismo acreditaramsobre os espíritos, mostrare-mos que os Judeus foram aíbuscar as suas crenças e osCristãos herdaram-nas destes.Por fim, provaremos aosCristãos, pelos seus própriosprincípios, que não existe Di-abo.II. Os antigos filósofos nãoestavam suficientemente es-clarecidos para explicar aopovinho o que eram esses

fantasmas; no entanto, nãodeixavam de lhe dizer o quepensavam. Uns, vendo que sedissipavam e não tinhamqualquer consistência, cha-mavam-lhes imateriais, incor-póreos, formas sem matéria,cores e figuras, sem serem,contudo, corpos, nem colori-dos, nem figurados, acres-centando que podiam revestir-se de ar, como de um hábito,quando queriam tornar-se vi-síveis aos olhos dos homens.Os outros diziam que eramcorpos animados, mas feitosde ar ou de uma outra matériamais subtil, que espessavam àvontade quando queriam apa-recer.III. Se estes dois tipos de fi-lósofos se opunham, quanto àconcepção que tinham dosfantasmas, estavam de acordosobre os nomes que lhes atri-buíam: todos lhes chamavamdemónios. No que erravam,tão grosseiramente quantoaqueles que crêem ver a dor-mir as almas dos defuntos, ou

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a sua própria alma, quando seolham num espelho, ou que asestrelas que vêem reflectidasna água são as almas dessasestrelas.IV. Depois desta imaginaçãodisparatada, caíram num erronão menos intolerável, quan-do acreditaram que essesfantasmas tinham um poderilimitado. Crença absurda,mas comum entre os igno-rantes que julgam que o quedesconhecem é um poder in-finito.V. Mal esta ridícula opiniãotinha sido divulgada, já ossoberanos a usavam paraapoiar a sua autoridade. Ins-tituíram uma crença, no to-cante aos espíritos, à qualchamaram religião, a fim deque, como já insinuámos, nasenda de um célebre historia-dor da Antiguidade84, a fim

84 Foi Polibio. É preciso, disse, confes-sar que se fosse possível formar umarepública só com homens sábios, todasas opiniões fabulosas sobre os Deuses eos Infernos seriam completamente su-pérfluas. Mas como não há Estados cujopovo não seja como o vemos, sujeito atoda a espécie de desregramentos e deacções malévolas, é necessário recorrer,para o reprimir, aos medos imagináriosque a religião inculca, e aos terrores

de que, dizia, o temor que ospovos teriam dessas potênciasinvisíveis os subjugassem. E,para lhe dar ainda maior peso,distinguiram os demónios embons e maus, aqueles, paraincitar os homens a cumpriras suas Leis, estes, para osconter e impedir de infringi-las.Mas, para ter uma ideia doque são os demónios, bastaler os poetas gregos, e sobre-tudo o que deles diz Hesíodona sua Teogonia, onde trataamplamente da geração e ori-gem dos Deuses.VI. Os Gregos foram os pri-meiros a inventá-los, e, a par-tir das suas colónias e vitóri-as, transmitiram-nos à Ásia,ao Egipto e à Itália.Foram os Judeus, dispersospor Alexandria e outros luga-res, que tiveram conheci-mento deles. Serviram-se de-les com sucesso, como os ou-tros povos; mas com esta di-ferença: que não lhes chama-ram demónios, como os Gre-gos, aos bons e aos maus es- pânicos do outro mundo, que os antigosintroduziram com tanta prudência paraesse efeito.

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píritos indiferentemente; massó aos maus, reservando a umúnico demónio bom o nomede Espírito de Deus, e cha-mando Profetas os que tinhamesse bom espírito. Para alémdisso, chamavam Espírito Di-vino o que se lhes afiguravaser um grande bem, e Caco-demónio, espírito maligno, aoinvés, o que estimavam umgrande mal.VII. Esta distinção entre bonse maus espíritos levou-os achamar demoníacos aos quenós chamamos lunáticos, in-sensatos, furiosos, epilépticos,bem como aqueles que fala-vam uma linguagem desco-nhecida. Um homem malfeito e mal cuidado estava, naopinião deles, possuído porum espírito imundo, ummudo, por um espíritomudo... Enfim, estes termostornaram-se-lhes tão familia-res que os usavam em todasas ocasiões. De onde se tornaevidente que os Judeus acre-ditavam, como os Gregos,que os fantasmas não erampuras quimeras ou visões,mas seres reais, que existiamindependentemente da imagi-nação.

VIII. Daí que a Bíblia estejarecheada dessas palavras, es-píritos, demónios, demonía-cos. Mas nada diz sobre comoou quando foram criados.Omissão que não se podeperdoar a Moisés, o qual, aoque se diz, se imiscuiu na ex-plicação da criação do céu eda terra, dos homens, dosanimais... E Jesus Cristo nãotem maior desculpa, pois,tendo constantemente faladode anjos e de espíritos bons emaus, nunca disse se erammateriais ou imateriais; o quemostra claramente que ele nãosabia mais do que aquilo queos Gregos tinham ensinadoaos seus antepassados. Que,se sabia mais alguma coisa, étão reprovável que não o te-nha ensinado aos homens,como o é recusar a todos avirtude, a fé e a piedade quegarante poder dar-lhes. Mas,para voltar aos espíritos, nãohá dúvida de que estas pala-vras, demónio, Satã, diabo,não são nomes próprios quedesignassem um indivíduo, eque só os ignorantes puderamacreditar nisso com base napalavra dos Gregos, que asinventaram, e dos Judeus, que

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as adoptaram.Depois de estes terem sidoinfectados, atribuíram essesnomes, que significam mal-vado, enganador, manhoso,adversário, inimigo, acusador,caluniador, destruidor, exter-minador... ora às potênciasinvisíveis ora aos seus própri-os inimigos, ou seja, aosGentios, que diziam habita-rem o reino de Satã, só eles,na sua opinião, habitando ode Deus.IX. Como Jesus Cristo erajudeu, e, por conseguinte, es-tava imbuído destas opiniõesinsípidas que a sua naçãoroubara aos Gregos, lê-se portodo o lado nos Evangelhos, enos escritos dos seus discí-pulos, estas palavras de diabo,de Satã, de inferno, como sefossem uma coisa real e efec-tiva. Quando a verdade é que,como já o mostrámos, nada émais visionário. Mas, se o quedissemos ainda não chegarpara o provar, basta-nos duaspalavras para convencer osmais opiniosos.Todos os Cristãos estão deacordo com que Deus é oprimeiro princípio e a origem

de todas as coisas, que as cri-ou, que as conserva e que sema sua ajuda cairiam no nada.Seguindo esta premissa, écerto que Deus criou o que sechama Diabo e Satã, tal comoo fez com todas as outrascriaturas. E, quer o tenha cri-ado bom ou mau, o que nãovem ao caso, segue-se que, seele subsiste, por pior que seja,como se diz, só pode ser pormeio e permissão de Deus,que o quer. Ora, como sepode conceber que Deusmantenha uma criatura, quenão só o amaldiçoa sem pararmas o odeia mortalmente;mais, que se esforça por de-bochar os seus amigos, peloprazer de o amaldiçoar comuma infinidade de bocas?Como, digo, se pode compre-ender que Deus sustente, con-serve e deixe subsistir o Dia-bo, para que este lhe faça opior possível, o destrone sepuder, e afaste do seu serviçoos seus eleitos e favoritos?Qual é o objectivo de Deuscom isto tudo? Ou, antes, oque se pretende, quando sefala de Diabo e de Inferno? SeDeus pode tudo, e nós nadapodemos sem ele, como é que

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o Diabo acabou por odiá-lo,amaldiçoá-lo e roubar-lhe osamigos? Ou ele está de acor-do, ou não está; se está, écerto que o Diabo, ao amaldi-çoá-lo, está a fazer o quedeve, pois só pode o que Deusquer, e, por conseguinte, nãoé o Diabo, mas o próprioDeus que se amaldiçoa pelaboca do Diabo, o que, na mi-nha opinião, é completamenteabsurdo. Se não concorda, éfalso que seja todo poderoso.E se não é todo poderoso, seránecessário admitir não um,mas dois princípios, um parao bem e o outro para o mal,um, que quer uma coisa, e ooutro, que quer e faz o opos-to. Onde leva um tal raciocí-nio?A confessar, sem réplica, quenão existe nem Deus, nemDiabo, nem alma, nem céu,nem inferno, da maneiracomo os pintam, e que osteólogos, quer dizer, aquelesque debitam fábulas como sefossem verdades divinamentereveladas, são todos, à excep-

ção de alguns, ignorantes,pessoas de má-fé, que abu-sam maliciosamente da cre-dulidade do povo, para insi-nuar o que lhes agrada, comose o vulgo só fosse capaz dequimeras, ou tivesse de seralimentado com essas carnessensaboronas, onde só se en-contra o vazio, o nada, a lou-cura, e nem um grão do sal daverdade e sabedoria.De há muito que estamos en-fatuados com esta máximaabsurda que a verdade não foifeita para o povo e que elenão é capaz de a conhecer;mas, em todas as épocas,também houve espíritos sin-ceros, que se opuseram a umatamanha injustiça, como nós ofizemos neste pequeno trata-do.Os que amam a verdade neleencontrarão, sem dúvida, umagrande consolação; e é só aestes que queremos agradar,sem nos preocuparmos mini-mamente com aqueles paraquem os preconceitos sãooráculos infalíveis.

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FIM