Tratado sobre a Oração - Tertuliano de Cartago

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    TRATADO SOBRE A ORAO

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    TRATADO SOBRE A ORAO

    Tertuliano de Cartago

    Traduo: D. Timteo Anastcio

    Livro: "Tratado sobre a Orao"

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    I

    Cristo ensina uma nova forma de orao

    1. Jesus Cristo, nosso Senhor, que tanto Esprito de Deus, comoPalavra de Deus e Verbo de Deus, (Palavra do Verbo e Verbo daPalavra), instituiu para os novos discpulos do Novo Testamento umanova forma de orao. Convinha, realmente, que tambm nesse planose guardasse o vinho novo em odres novos e se costurasse um panonovo numa veste nova (cf. Mt 9,16-17; Mc 2, 21-22; Lc 5,36-39). Deresto, tudo que viera antes, ou foi inteiramente abolido como acircunciso, ou foi completado como o resto da Lei, ou cumprido como aprofecia, ou levado perfeio como a prpria f.

    2. A nova graa de Deus renovou todas as coisas, fazendo-as passar decarnais a espirituais, mediante o Evangelho, que opera a reviso detodas as coisas antigas. Pelo Evangelho, nosso Senhor Jesus Cristo sefez reconhecer como Esprito de Deus, Palavra de Deus e Verbo deDeus: Esprito, por seu poder eficaz; Palavra, por seu ensinamento;Verbo, por sua vinda. Assim, pois, a orao instituda por Cristo renetrs dimenses: a do Esprito, razo da sua grande eficcia; a daPalavra, em que ela se exprime; e do Verbo...[lacuna]

    Joo j ensinara seus discpulos a orar

    3. Tambm Joo Batista j ensinara seus discpulos a orar. Mas tudo emJoo era preparao vinda de Cristo. Quando Cristo cresceu - e Joo janunciara que era preciso que Cristo crescesse e ele mesmo diminusse(cf. Jo 3,30) - toda a obra do precursor se transferiu para o Senhor,segundo o esprito de Joo. Por isso, nada nos resta das palavras comque Joo ensinou a orar, pois as coisas terrenas deram lugar scelestes. "Quem da terra - diz Joo - fala o que da terra, mas o quevem do cu fala daquilo que viu"(Jo 3,31-32). E o que no celeste noCristo Senhor, inclusive o seu ensinamento sobre a orao?

    Como orar

    4. Consideremos, pois, irmos abenoados, a celeste sabedoria deCristo, que se manifesta, em primeiro lugar, pelo preceito de orar emsegredo (cf. Mt 6,6). Por a Cristo induzia o homem a acreditar que oDeus Onipotente nos v e nos escuta em toda parte, mesmo em casa enos lugares mais escondidos. Ao mesmo tempo, ele queria que a nossaf fosse discreta, de modo que, confiante na presena e no olhar deDeus em toda parte, reservasse o homem s a Deus a sua venerao.

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    5. J no preceito seguinte (cf. Mt 6,7), se manifesta uma sabedoria quese refere tanto f, como ao discernimento da f. Pois, certos de queDeus em sua providncia olha pelos seus, no se deve pensar que paranos aproximarmos dele precisamos de muitas palavras.

    Uma orao breve

    6. Aqui chegamos, por assim dizer, ao terceiro grau da sabedoria. Comefeito, essa brevidade est apoiada na significao de palavras grandese felizes, pois quanto mais curta, mais rica de sentido esta orao. Defato, ela no compreende apenas a exigncia prpria da orao, isto , avenerao de Deus e a splica do homem, mas quase todas as palavrasdo Senhor. Constitui uma lembrana de todo o seu ensinamento, de tal

    modo que nela temos uma sntese de todo o Evangelho.

    II

    "Pai que estais no cu"

    1. Comeamos por um testemunho sobre Deus e pelo efeito da f,quando dizemos: "Pai, que ests no cu". De fato, a no s oramos aDeus, mas tambm mostramos a nossa f, que tem por conseqncia

    cham-lo de Pai. Como est escrito, "queles que crem em Deus, foi-lhes dado o poder de ser chamados filhos de Deus"(Jo 1,12).

    2. Alis, o Senhor, muitas vezes, nos faz saber que Deus Pai. Atmesmo ordenou que a ningum chamemos de Pai sobre a terra (cf. Mt23,9), mas s quele que temos no cu. Portanto, ao orar desta forma,cumprimos tambm um preceito.

    3. Felizes aqueles que reconhecem o Pai. Eis o que Deus censura aIsrael, eis o que afirma, chamando por testemunhas o cu e a terra:

    "Gerei filhos, e eles no me reconheceram"(Is 1,2).

    4. Dizendo, pois, Pai, damos a Deus o seu nome, termo que significaatitude filial e autoridade.

    5. Dizendo Pai, invocamos tambm o Filho. O Senhor disse: "Eu e o Paisomos um"(Jo 10,30).

    6. Nem mesmo a Me Igreja preterida, pois no Filho e no Paireconhecemos tambm a Me, que nos atesta o nome do Pai e do Filho.

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    7. Assim, por esta nica relao de afinidade, adoramos a Deus,cumprimos o preceito e condenamos os que esquecem seu Pai.

    III

    Cristo nos revela o Pai

    1. O nome de Deus como Pai, antes, a ningum fora revelado. Mesmo aMoiss, que perguntara a Deus seu nome, um outro nome foi dito.Quem no-lo revelou foi o Filho. preciso que haja o nome do Filho, parade novo termos o nome do Pai. O Senhor disse: "Eu vim em nome de

    meu Pai"(Jo 5,43). E ainda: "Pai, glorifica o teu nome"(Jo 12,28). Eainda mais claramente: "Eu manifestei o teu nome aos homens"(Jo17,6).

    "Santificado seja o teu nome"

    2. Pedimos, pois, que esse nome seja santificado. No que caiba aoshomens desejar o bem a Deus, como se algum lhe possa dar qualquercoisa. Ou que Deus passe necessidade, sem os nossos votos. Mas muito conveniente que Deus seja bendito em todo tempo e lugar pelohomem. Com efeito, todos os homens devem se lembrar, sem cessar,

    dos benefcios divinos. Este pedido tem a funo de bendizer a Deus.

    3. Quando, alis, deixa o nome de Deus de ser santo e santificado por simesmo? No , acaso, por meio dele, que os outros so santificados? Osanjos em torno de Deus no cessam de dizer: Santo, Santo, Santo! Damesma forma, tambm ns, destinados a viver em companhia dosanjos, se o merecermos, aprendemos desde j na terra, este louvor aDeus, assim como aprendemos o que faremos no futuro, na glria.

    4. Eis o que se refere glria de Deus. Mas, o que que pedimos para

    ns, ao dizer: "Santificado seja o teu nome"? Pedimos, na realidade,que ele seja santificado em ns, que o ouvimos, e tambm naqueles queDeus ainda aguarda com a sua graa. Assim, orando por todos,observamos igualmente um outro preceito evanglico, que de rezarpor todos, mesmo os nossos inimigos (cf. Mt 5,44). No dizendo que onome de Deus seja santificado em ns, estamos dizendo que ele sejasantificado em todos.

    IV

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    "Seja feita a tua vontade no cu e na terra"

    1. Prosseguindo a orao, acrescentamos: "Seja feita a tua vontade nocu e na terra". No pensamos que algum possa impedir que se faa avontade de Deus, e por isso pedimos-lhe a realizao da sua vontade. Oque pedimos que a vontade de Deus se realize em todos os homens.Nesta expresso figurada, o cu nosso esprito, e a terra nossocorpo.

    2. Se, entretanto, devemos entender de modo mais simples, idntico osentido dessa splica. Pedimos que se faa em ns a vontade de Deusna terra, a fim de que possa realizar-se em ns igualmente no cu. Que que Deus quer, seno que andemos conforme os seus ensinamentos?

    Pedimos, pois, que ele nos leve a aceitar o que ele quer e nos d opoder de assim agir, para que sejamos salvos tanto no cu como naterra. Pois o que Deus mais quer a salvao daqueles que adotoucomo filhos.

    3. Tambm segundo a vontade de Deus o que fez o Senhor, pregando,agindo e sofrendo. Na verdade, ele mesmo o diz: "Eu no fao a minhavontade, mas a vontade do Pai"(cf. Jo 6,38). , pois, fora de dvidaque ele fazia a vontade do Pai. E agora ele nos convida a fazer o mesmoque ele, de modo que tambm ns preguemos a palavra de Deus,trabalhemos e suportemos o sofrimento at morte. Mas, parapodermos agir desse modo, precisamos aceitar a vontade de Deus.

    4. Dizendo, pois, "Seja feita a tua vontade", desejamos o melhor parans mesmos, pois no h mal algum na vontade de Deus, mesmo se elepune algum por seus pecados que o contrapem, de certo modo, aoque santo.

    5. Alm disso, com essas palavras, criamos coragem para suportar osofrimento. O prprio Senhor, na iminncia da paixo, para mostrar emsua carne a fraqueza da nossa, assim disse: "Pai, se queres, afasta este

    clice"(Lc 22,42). Mas, depois, lembrado da sua orao, acrescentou:"No se faa a minha, mas a tua vontade". Ele a vontade e o poder doPai. Mas, para mostrar como devemos sofrer por causa dos nossospecados, entregou-se vontade do Pai.

    V

    "Venha o teu Reino"

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    1. Este pedido, como o anterior, refere-se a ns e significa: "Venha emns o teu Reino". Mas, quando que Deus no reina, ele que "tem nasmos o corao de todos os reis"? (Pr 21,1). Na verdade, quando nsdesejamos algo de bom a Deus o pedimos, e a ele atribumos alcanartudo quanto esperamos. Deste modo, se a realizao do reino do Senhorse funda na vontade de Deus e em nossa atitude, como podem algunsquerer para o mundo certas delongas, se o Reino de Deus, querogamos, tende consumao do mundo? Nosso maior desejo reinarquanto antes e no continuar escravos por mais tempo!

    2. Mesmo, pois, que no constasse da orao esse pedido, "Venha o teuReino", ns o teramos feito espontaneamente, na nsia de abraar asalegrias esperadas (cf. Hb 4,11).

    3. As almas dos mrtires, sob o altar, clamam ao Senhor, comimpacincia: "At quando, Senhor, tardars a vingar o nosso sanguecontra os habitantes da terra"? (Ap 6,10). Sim, fora de dvida queDeus decidiu ving-los no fim do mundo.

    4. Venha, pois, Senhor, quanto antes o teu Reino, a fim de se cumprir odesejo dos cristos, para confuso dos pagos e alegria dos anjos. para se cumprir tua vontade que estamos abatidos, que lutamos e,sobretudo, que oramos.

    VI

    "D-nos hoje o nosso po cotidiano"

    1. Com que arte a sabedoria divina dispe as partes desta orao!Depois das coisas do cu, isto , depois do nome de Deus, da vontadede Deus e do Reino de Deus, podemos pedir por nossas necessidadesterrestres. O Senhor, com efeito, j havia declarado: "Procurai em

    primeiro lugar o Reino de Deus, e recebereis a mais as outras coisas poracrscimo"(Mt 6,33).

    2. Na verdade, devemos entender, antes, em sentido espiritual opedido: "D-nos hoje o nosso po cotidiano". O Cristo, com efeito, nosso po, porque o Cristo vida, e o po tambm vida. Alis, eledisse: "Eu sou o po da vida"(Jo 6,35), e um pouco antes: "O po aPalavra do Deus vivo, que desceu do cu"(cf. Jo 6,32). Ademais, comoele disse: "Isto o meu corpo"(Lc 22,19), cremos que o seu corpo est

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    presente no po. Assim, pedindo o po cotidiano, rogamos a Deus viversempre em Cristo e inseparveis do seu corpo.

    3. Mas, se compreendermos em sentido literal estas palavras, nopoderia ser custa do seu carter religioso e do ensino espiritual dadopelo Senhor. Com efeito, ele manda que peamos o po, como a nicacoisa necessria aos que tm f. Dos outros bens, so os pagos quevo busca (cf Mt 6,32-33). Para nos fazer compreender isto, o Senhorusa exemplos e emprega parbolas, como, por exemplo, quandopergunta: "Acaso tira o pai o po dos seus filhos e o atira aos ces?" (Mt15,26; Mc 7,27). E ainda: "Acaso ele d uma pedra ao filho que pedepo?"(Mt 7,9). Ele mostra, assim, o que devem os filhos esperar do pai.E o homem que bate porta do seu amigo em plena noite, ele o faz

    para obter po (cf. Lc 11,5-8).

    4. Com razo, o Senhor acrescenta: "D-nos hoje". Porque j antesprevenira: "No vos preocupeis com o que havereis de comer amanh"(cf. Mt 6,34). No mesmo sentido, ele utiliza aquela parbola do homempreocupado em ampliar seus celeiros para reservar as colheitasabundantes e, assim, gozar de segurana por muito tempo. Mas nessamesma noite ele morreu! (cf. Lc 12,16ss).

    VII

    "Perdoa-nos as nossas dvidas"

    1. bvio que, depois de venerar a generosidade de Deus, roguemostambm a sua clemncia. De que nos serviria o alimento, se aos olhosde Deus no fssemos seno como um touro a engordar para sersacrificado? O Senhor sabe que s ele sem pecado. por isso que elenos ensina a pedir: "Perdoa-nos as nossas dvidas". Pedir perdo j uma confisso, pois quem pede perdo, confessa ter pecado. Assim, a

    penitncia se revela agradvel a Deus, porque ele a prefere morte dopecador (cf. Ez 18,21-23).

    2. Na Escritura, a palavra "dvida" significa pecado, no sentido de sefaltar ao dever. Ao juiz submete-se esta dvida, cujo pagamento exigido por ele. S se pode escapar ao pagamento da divida, se o juiz aperdoar. Como o caso daquele servo a quem o patro perdoou suadvida (cf. Mt 18,23-35). A parbola inteira um exemplo do quedizemos. O senhor liberta o servo da sua dvida, mas este, por sua vez,no perdoa ao seu devedor. Acusado junto do seu patro entregue ao

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    algoz at que pague o ltimo centavo, isto , at mesmo pela falta maisleve (cf. Mt 5,25ss). Tudo isso tem o mesmo sentido daquilo queafirmamos: "Perdoamos aos nossos devedores".

    3. Em outro lugar, o Senhor diz, empregando as mesmas palavras destaorao: "Perdoai, e vos ser perdoado"(Lc 6,37). E quando Pedroperguntou se devia perdoar sete vezes ao irmo, o Senhor respondeu:"Mais ainda, setenta e sete vezes"(Mt 18,21-22). Deste modo, o Senhoraperfeioava a Lei, visto que no livro do Gnesis se declara que Caimser vingado sete vezes e Lamec setenta e sete (cf. Gn 4,15.24).

    VIII

    "No nos submetas tentao"

    1. Completando orao to concisa, o Senhor acrescentou quesupliquemos no s o perdo dos pecados, mas tambm que de todo, osevitemos: "No nos submetas tentao". Isto quer dizer: No permitasque o Tentador nos faa cair.

    2. No pensemos que o Senhor nos quer tentar, como se ignorasse a fde cada um de ns, ou como se ele quisesse nos fazer cair.

    3. o maligno que nos faz cair. Fraco e malvado o Diabo. Assim,quando Deus ordenou a Abrao o sacrifcio do seu filho, no foi paratirar-lhe a f, mas para prov-la (cf Gn 22, 1-18). Queria, sim, fazerdele um exemplo para o mandamento que iria dar mais tarde: os quevos so caros, no os ameis mais do que a Deus (cf. Mt 10,37).

    4. Um dia, o prprio Senhor foi tentado pelo Diabo, mostrando que este, e no ele, o dono e mestre de toda tentao.

    5. Mais tarde, o Senhor confirmou essa passagem, quando disse: "Oraipara no cairdes em tentao"(Mt 26,41). Os discpulos caram natentao, a ponto de abandonar o Senhor, porque preferiram dormir aorar (cf. Mt 26,40-45).

    6. A isto corresponde o final do Pai nosso, que explica o pedido: "Nonos submetas tentao". o que diz a orao: "Mas livra-nos doMaligno"(Mt 6,13).

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    IX

    Esta orao muito rica

    1. Em to poucas palavras, quantas declaraes dos Profetas, dosEvangelhos, dos Apstolos, quantos discursos do Senhor em parbolas,exemplos e preceitos, so relembrados! E quantos deveres religiososso a repassados

    2. Falando do Pai, a orao nos lembra a honra devida a Deus. Narevelao do seu nome, testemunhamos a f. Em face da sua vontade,oferecemos a nossa submisso. Quando se fala do Reino, recordamos anossa esperana. Pedindo o po, rogamos a vida. Pedindo perdo,

    confessamos nossos pecados. Solicitando a proteo divina, mostramo-nos preocupados com as tentaes.

    3. Mas, por que se admirar disso? S Deus podia nos ensinar como querque o invoquemos na orao. Dele mesmo nos vem a regra da orao,que ele animava com o seu Esprito, no instante mesmo em que ela saada sua boca. Assim, pois, por fora de um privilgio especial, ela sobedireto ao cu, recomendando ao Pai o que o Filho ensinou.

    X

    Outros pedidos legtimos

    1. Mas o Senhor, que prev as necessidades humanas, depois de nosensinar esta orao, acrescenta, em outro lugar: "Pedi e recebereis"(Mt7,7; Lc 11,9). Com efeito, existem outras coisas a pedir, segundo ascircunstncias. Primeiro, porm, devemos proferir essa orao doSenhor, que representa o fundamento de nossos outros desejos. Temos,pois, o direito de acrescentar alm desta orao, outros pedidos, sob a

    condio de nos lembrarmos dos preceitos evanglicos. Se estivermosdistanciados desses preceitos, estaremos outro tanto distantes dosouvidos de Deus.

    XI

    Como devemos orar?

    1. A lembrana dos preceitos divinos abre orao o caminho do cu.Deles, o primeiro consiste em que no subamos ao altar de Deus, semantes nos reconciliarmos com um irmo, caso haja entre ns e ele

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    motivo de discrdia ou ofensa. Que sentido teria apresentar-se paz deDeus, sem estar em paz com o irmo? Buscar a remisso das prpriasdvidas, sem abrir mo das alheias? Como aplacar o Pai, se guardarraiva contra o irmo? De fato, Deus nos probe toda ira, mesmo apenasesboada.

    2. Lembremo-nos de Jos. Ao despedir os irmos para que lhetrouxessem o pai, recomendou-lhes: "No se deixem levar pela ira, nocaminho"(Gn 45,24). Com isso, ele nos deu, tambm a ns, umconselho. Com efeito, a nossa maneira de viver chamada de"caminho" (cf. At 9,2). Assim, quando vamos pela estrada da orao,no devemos caminhar para o Pai com sentimentos de clera.

    3. Da vem que o Senhor, de modo bem explcito, ampliando o contedoda Lei de Moiss, sobrepe ao homicdio a ira contra o irmo. Ele nopermite nem mesmo uma palavra m. Se for, porm, inevitvel ficarencolerizado, nossa ira no v alm do pr-do-sol, como nos adverte oApstolo (cf. Ef 4,26). , pois, temerrio, passar o dia inteiro sem orar,enquanto te recusas a perdoar teu irmo, ou ento, perder a tua oraoperseverando em clera.

    XII

    Oremos com o corao puro

    1. Devemos estar livres no somente da clera, mas de todaperturbao da alma, quando nos entregamos orao, que h de serfeita com um esprito semelhante ao Esprito ao qual se dirige. Umesprito no purificado no pode ser reconhecido pelo Esprito Santo.Nem um esprito triste pelo alegre Esprito de Deus. Nem um espritoperturbado, pelo Esprito da liberdade (cf. 2 Cor 5,17). Ningum acolheum adversrio; hospeda-se apenas um amigo.

    XIII

    Puro seja o corao

    1. De resto, que motivo temos para lavar nossas mos antes de ir orar,se o nosso esprito est imundo? At as nossas mos precisam serespiritualmente lavadas, a fim de que se levantem incontaminadas dementira, de violncia, de crueldade, dos atos de envenenamento, de

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    idolatria e de outras manchas que brotam do corao e se realizampelas mos. esta a verdadeira pureza (cf. 1Tm 2,8; Mt 15,20). No setrata daquelas ablues que a maior parte das pessoas observasupersticiosamente para orar. Mesmo se acabam de vir de um banhocompleto, usam a gua.

    2. Como eu refletisse com a maior ateno o sentido dessa praxe,ocorreu-me lembrana o gesto de Pilatos, lavando as mos aoentregar o Senhor condenao (cf. Mt 27,24). Quanto a ns,adoramos o Senhor; no o tramos. Devemos agir de maneira contrriaao exemplo do traidor e no lavar as mos, a no ser por algumacontaminao prpria da condio humana e da qual outros tmconhecimento. De resto, esto j bastante limpas as mos que, em

    Cristo, lavamos uma vez por todas, junto com todo o corpo.

    XIV

    1. Israel, embora lave todo dia o corpo, no est, contudo, purificado.Suas mos esto sempre impuras, eternamente manchadas com osangue dos profetas e com o do prprio Senhor. Por isso, os israelitas,culpados hereditariamente dos mesmos crimes de que tinhamconscincia os seus pais, no ousam levantar as mos para o Senhor,de medo do clamor de um Isaas e de causar horror a Cristo. Quanto ans, porm, no s as levantamos, mas as estendemos e, assim,imitando o Senhor na sua paixo, confessamos o Cristo com a nossaorao.

    XV

    Costumes reprovveis

    1. Uma vez que tocamos num exemplo de prtica vazia de sentidoreligioso, vale a pena apontar outras, que por sua inutilidade merecemjusta censura, e so privadas de qualquer ensinamento de autoridade doSenhor ou de um preceito apostlico. Tais costumes no pertencem auma religio verdadeira, mas superstio. So pretensiosos eexagerados, expresses de um culto mais indiscreto do que espiritual, edevem, com certeza, ser reprimidos, pela prpria semelhana com oscultos pagos.

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    2. o caso, por exemplo, de alguns que antes de orar tiram o manto,como fazem os pagos quando vo cultuar seus dolos. Se fosse precisoagir desta maneira, os Apstolos, ao ensinarem o modo de se vestirdurante a orao, teriam includo este uso; a no ser que algum penseque Paulo deixou o seu manto em casa de Carpo (cf. 2Tm 4,13), por t-lo tirado para a orao. Ser que Deus no escuta pessoas vestidas como manto, se ouviu a prece daqueles trs santos que na fornalha do reida Babilnia oravam com suas vestes e turbantes?

    XVI

    Fatos erradamente tomados como ritos

    1. O mesmo vale para o costume, que alguns tm, de se assentar, logoque termina a orao. No consigo perceber a razo disso; pueril. Quedizer ento? Se o clebre Hermas, autor do livro intitulado "Pastor",depois de sua orao, no se tivesse sentado no leito, mas tivesse feitooutra coisa, exigiramos que se tomasse isto como observnciaobrigatria? Certamente no.

    2. Com efeito, o texto em que diz: "Depois de ter orado, e de me terassentado sobre o leito", deve ser entendido simplesmente como parte

    da narrao e no como disciplina da orao.

    3. Do contrrio, seria impossvel adorar a Deus, seno onde houverleitos

    4. Mais ainda, agiria contra aquela obra, quem se assentasse numacadeira ou num banco.

    5. Se, pois, os pagos se comportam desta forma, assentando-se depoisde adorar suas estatuetas, tal uso merece censura entre ns, por

    ocorrer em rituais celebrados diante dos dolos.

    6. A isto se acrescenta a acusao de irreverncia, que os prpriospagos deveriam entender, se tivessem um mnimo de sabedoria. Se,com efeito, se considera desrespeitoso assentar-se algum diante dumapessoa pela qual tem o maior respeito e venerao, quanto mais serirreligioso assentar-se em face do Deus vivo, ante o qual o anjo daorao se mantm de p? Ou estaramos reclamando diante de Deus,porque a orao nos fatigante?

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    XVII

    Orar com humildade

    1. Na verdade, quando oramos com modstia e humildade tornam-serecomendveis diante de Deus as nossas preces. Nem levantemos muitoalto as mos, mas de modo sbrio e correto, para que o rosto no seerga com arrogncia.

    2. Lembremo-nos daquele publicano, que orava a Deus com humildadeno s nas palavras, mas tambm com o rosto inclinado para a terra, esaiu justificado, ao contrrio do fariseu cheio de insolncia (cf. Lc 18,9-14).

    3. preciso que manifestemos submisso tambm pelo tom da voz. Dequantos pulmes precisaramos, se fosse pela altura do som da voz queDeus nos ouve? Deus, em verdade, escuta, no a voz, mas o corao,at onde penetra o seu olhar.

    4. O demnio do orculo de Delfos assim falou: "Eu compreendo o mudoe escuto o que no fala". Ser que os ouvidos de Deus precisam desons? Como pde a orao de Jonas chegar ao cu, do fundo dasentranhas da baleia? Como pde passar atravs das vsceras de togrande animal e subir ao cu, dos abismos do mar, atravs da grandemassa de guas? (cf Jn 2,1-11).

    5. Que lucram aqueles que oram com voz mais gritante, senoincomodarem os vizinhos? Alm disso, expondo s claras seu pedido,nada de menos fazem do que ostentar publicamente que esto orando.

    XVIII

    Os que Se abstm do sculo da paz quando jejuam

    1. Vejamos agora um outro costume que prevaleceu. Pem-se alguns ajejuar, participam da orao com os irmos, mas no fim, se esquivamdo sculo da paz que justamente o selo da orao.

    2. Que melhor momento para trocar com os irmos o dom da paz,seno quando a nossa orao se torna mais agradvel a Deus? Eles,ento, participam do nosso jejum, ao mesmo tempo que ajudam osirmos com a sua paz.

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    3. Qual orao pode ser completa, se separada do sculo santo?

    4. Pode o sculo da paz impedir a algum de oferecer culto a Deus?

    5. Que espcie de sacrifcio cultual aquele do qual os irmos saem semo beijo da paz?

    6. Qualquer que seja a razo dada para se subtrair ao sculo da paz,no pode ser mais forte do que a observao do preceito de esconder osnossos jejuns (cf. Mt 6,16-17). Se, com efeito, evitamos o sculo, torna-se patente que estamos jejuando. Se, portanto, algum tem algumarazo, pode, sem violar o referido preceito, abster-se do sculo da pazem sua casa, onde impossvel esconder o jejum. Na assemblia no se

    abstenha do sculo. Mas, em toda parte onde possvel esconder ojejum necessrio lembrar-se do preceito. Assim, estando fora de casa,satisfars ao preceito; estando em casa, satisfars o costume.

    7. Desta forma, tambm no tempo da preparao da Pscoa, em que aprtica religiosa do jejum geral e pblica, omitimos justamente osculo, sem a preocupao de ocultar o que fazemos em companhia detodos.

    XIX

    Procedimento nos dias de "estao"

    1. Situao semelhante acontece nos dias de "estao", em que amaioria se abstm das oraes do sacrifcio eucarstico, porque o jejumestacional deveria ser interrompido com a recepo do Corpo do Senhor.

    2. Pode a eucaristia quebrar um servio reverente prestado a Deus?Acaso no o une mais a Deus?

    3. No ser, acaso, mais intenso teu jejum estacional, se te pes em p,ante o altar de Deus?

    4. Se recebes o Corpo do Senhor e o guardas em reserva, salvam-se asduas coisas: a participao do sacrifcio eucarstico e o cumprimento dojejum.

    5. Se o costume da "estao" deriva da vida militar (somos, com efeito,a milcia de Deus), sabemos que nenhum motivo de alegria ou detristeza sobrevindo no quartel anula a prontido do soldado. Na

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    verdade, a alegria far cumprir o dever com maior boa vontade; atristeza, com maior diligncia.

    XX

    Indumentria das mulheres

    1. Quanto indumentria, pelo menos das mulheres, a variedade decostumes nos obriga a tratar do assunto. Mas nem ns nem qualqueroutro o faremos sem atrevimento, uma vez que se pronunciou o santoApstolo Paulo (cf. 1Cor 11,3-16; 1Tm 2,9). Entretanto, no seremos

    atrevidos, se falarmos conforme o ensinamento do Apstolo.

    2. Na verdade, so claras as prescries a respeito do modo de vestir edos ornamentos. Tambm Pedro, com idnticas palavras, porque nomesmo esprito de Paulo, condena a presuno nos vestidos, aarrogncia no uso do ouro, a impertinncia em cabeleiras mais prpriasde prostitutas.

    XXI

    O uso de um vu

    1. Mas no podemos deixar de tratar de um assunto observado de modovarivel nas igrejas, como se no fosse questo definida: devem ou noas virgens usar vu?

    2. Aqueles que permitem s virgens andar com a cabea descoberta,parecem basear-se no fato de que o Apstolo, ao prescrever aobrigatoriedade do vu, designa as mulheres em geral, no as virgensnomeadamente. Paulo, dizendo mulheres, no se teria referido ao sexofeminino em geral, mas a uma categoria de pessoas, as mulheres

    casadas (cf. 1Cor 11,6-15).

    3. Se, com efeito, nomeasse o sexo feminino em geral, suas prescriesabrangeriam toda mulher, sem exceo. Mas, como se refere s a umacategoria, a omisso exclui a outra.

    4. Podia, com efeito - dizem alguns - ou referir-se s virgens, de modoespecial ou, seno, falar de mulheres em geral, como um todo.

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    XXII

    O vu prescrito por So Paulo

    1. Os que fazem tal concesso, devem repensar o sentido da prpriapalavra. Que significa o termo mulher, desde as primeira letras daSagrada Escritura? o nome genrico do sexo feminino, e no de umacategoria especial. Assim que Deus chamou Eva de mulher, j antesque ela se unisse ao homem (cf. Gn 2,21-25; 5,2). Mulherpara ognero globalmente, e esposa para determinada categoria, de modoespecial. Se, pois, ele d o nome de mulhera Eva, mesmo ainda inupta,o termo mulherse tornou aplicvel tambm virgem. No , pois, de seadmirar que o Apstolo, movido pelo Esprito que inspira toda a Sagrada

    Escritura, inclusive no livro do Gnesis, tenha usado a mesma palavra,isto , mulher, que, a exemplo de Eva, convm igualmente a umavirgem.

    2. O restante, alis, concorda com isso. Pelo fato de no nomear asvirgens, ao contrrio do que faz ao ensinar sobre o matrimnio (cf. 1Cor7,34), Paulo indica suficientemente que se refere a todas as mulheres eao sexo feminino em geral, sem fazer distino entre mulher e virgem,que de todo no cita. Aquele que em outro lugar se lembrou dedistinguir, quando a diferena o exigia (e ele usou dois vocbulosdiferentes para distinguir as duas categorias), no quer que se vejadiferena, quando ele no distingue nem se refere a duas categorias.

    3. Que dizer do fato de que na lngua grega, em que Paulo escreve suascartas, costume usar o termo gynaikas (mulheres) em vez de theleas,em latim feminas? Se, deste modo, aquele termo habitualmente usadopara indicar todo o sexo feminino, e pode ser traduzido em latim porfemina, claro que, dizendo gynaika (mulher), quis nomear todo o sexofeminino, no qual esto compreendidas igualmente as virgens.

    4. Mas h um pronunciamento de Paulo bem evidente: "Toda mulher

    que estiver em orao e profetizar com a cabea descoberta desonra asua cabea"(1Cor 11,5). Que significa "toda mulher", seno mulher dequalquer idade, de qualquer ordem, de qualquer condio? Dizendo"toda" , ele no exclui qualquer categoria de mulher, como no excluiqualquer homem da proibio de velar a cabea. Por isso, com efeito,diz: "Todo homem"(1Cor 11,4). Como, pois, relativamente ao sexomasculino, com a expresso "todo homem", Paulo probe at aos maisjovens usar vu, igualmente, para o sexo feminino, com o termomulher, obriga at a virgem a cobrir-se com o vu. Em ambos os sexos,os de menor idade devem seguir a disciplina dos maiores. Do contrrio,

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    obrigaramos os rapazes ainda virgens do sexo masculino a usar vu, seno so as mulheres virgens obrigadas a isso, visto que os rapazes noso nominalmente citados. Se h distino entre mulher e virgem,tambm existe entre homem e rapaz.

    5. Com certeza, diz Paulo que as mulheres devem usar vu por causados anjos (cf. 1Cor 11,10), porque os anjos se afastaram de Deus porcausa das filhas dos homens (cf Gn 6,2). Quem poder responsabilizars as mulheres adultas, j casadas e privadas da virgindade, deexcitarem a concupiscncia, a no ser que se negue que as virgens somais belas e atraem enamorados? Vejamos mesmo se os anjos nodesejaram seno as virgens, j que a Escritura diz "filhas dos homens",quando podia nomear indiferentemente as esposas dos homens ou as

    mulheres.

    6. Igualmente, ao dizer: "E as tomaram por esposas"(Gn 6,2), aEscritura quer dizer que so recebidas como esposas as mulheres aindano casadas. Se no fossem mulheres nbeis, usaria de expressodiferente. Uma mulher disponvel para contrair casamento se vivaou virgem. Assim, usando o termo "filhas" inclui nessa expressogenrica uma categoria especial.

    7. Quando diz o Apstolo que a prpria natureza ensina que as mulheresdevem usar vu, pois a sua cabeleira lhes serve de cobertura eornamento, no podemos, acaso, concluir que tambm s virgens foideterminada semelhante cobertura e ornamento? Se for vergonhosopara uma mulher raspar a cabea, o mesmo ser para a virgem.

    8. Se existe uma nica condio para a cabea da mulher, h uma nicadisciplina, inclusive para aquelas virgens que ainda tm a proteo dainfncia. J desde pequenina, a menina chamada de mulher. Foiassim, de resto, a observncia do povo de Israel. Mas mesmo que neleno se observasse esse costume, a nossa lei, que amplia e completa adele, exigiria para si esse acrscimo, impondo s virgens o uso do vu.

    Escuse-se dessa norma aquela idade que ainda ignora o sexo. Que elagoze do privilgio da simplicidade infantil. Todavia, Eva e Ado, logo quecomearam a conhecer o bem e o mal, ocultaram sem demora o quedescobriram (cf. Gn 3,7). Assim tambm, as meninas que passaram dainfncia, do mesmo modo que obedecem natureza, obedeam tambm disciplina. Ao se desenvolver o corpo, comeam tambm as funesda mulher. Nenhuma menina mais virgem, desde que se pode casar,porque ento a idade a desposou a um varo, isto , ao tempo [dapuberdade].

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    9. Mas pode algum objetar: Uma jovem se consagrou a Deus. Apesardisto, medida que cresce, ela muda de penteado e todos os seusvestidos, maneira feminina. Fale com toda gravidade e mostre-se altura de uma virgem. Se algo esconde por causa de Deus, proteja-ocompletamente. Se vivemos sob o olhar complacente de Deus,interessa-nos que s a ele nos confiemos, de modo somente deleconhecido, a fim de no recebermos do homem o que s de Deusesperamos. Por que, ento, descobrir diante de Deus o que velas diantedos homens? Sers, por acaso, mais recatada na rua do que na igreja?Se graa de Deus [a tua virgindade] e, como diz Paulo, a "recebeste,por que te glorias, como se no tivesses recebido"? (1Cor 4,7). Por quete mostras ostensivamente e julgas assim as outras? Ou, acaso, pensasque com a tua vaidade, convidas as outras para o bem? Na realidade, se

    te glorias, corres o risco de te perderes, e foras as outras a correrem omesmo perigo. Facilmente se destri o que se assume com desejo deglria. Cobre-te do vu, virgem, se s virgem; deves enrubescer-te.Se s virgem, no suportes o olhar de muitos. Ningum possa olhar comadmirao a tua face; ningum perceba em ti uma farsa. Se velas a tuacabea, finges ser casada. Mas, a bem dizer, no ests mentindo, poiss esposa de Cristo. A ele consagraste a tua carne; vive, pois, segundoa disciplina do teu esposo. Se ele ordena que usem vu as esposasalheias, quanto mais as suas!

    10. Mas objetam: Ningum deve mudar o que foi institudo por seuantecessor. Muitos aprovam com sua prudncia um costume institudopor outro e reconhecem essa tradio. Mas, admita-se que as jovensno sejam obrigadas a trazer o vu; no se deve, contudo, impedir queo ponham aquelas que o quiserem. E se tambm as virgens no podemnegar o que so, contentem-se em gozar da certeza de que Deus estciente da sua virtude. Quanto quelas que se desposarem, possodeclarar com certeza, a meu critrio, que elas devem usar o vu, desdeo dia em que pela primeira vez tocaram o corpo do seu esposo etremeram pelo beijo e pelo aperto da mo direita. Para tais mulheres,tudo j matrimnio: a idade, porque j so maduras; a carne, porque

    j tm idade de casar-se; pelo esprito, porque conscientes de tudo;pelo pudor, porque experimentaram o beijo; a esperana, porque estona expectativa das npcias; a mente, porque querem o casamento.Baste-nos o exemplo de Rebeca: apenas indicado o seu futuro esposo,j se toma esposa notcia de sua chegada e logo se cobre do vu (cf.Gn 24,65).

    XXIII

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    Devemos ajoelhar-nos para orar?

    1. A respeito da atitude de ajoelhar-se durante a orao, h variedadede observncias. Alguns aos sbados omitem a genuflexo. Estedesacordo causa de disputas nas Igrejas.

    2. O Senhor dar a graa, a fim de que eles venham a ceder, ou ento,sigam a sua opinio sem escandalizar os outros. Ns, porm, de acordocom a tradio que recebemos, somente no dia da ressurreio doSenhor evitamos no s ajoelhar-nos, mas tambm toda atitude ou atode culto que exprima tristeza. E adiamos os nossos negcios, para nodeixar ao diabo oportunidade alguma (cf. Ef 4,27). Fazemos o mesmono perodo de Pscoa a Pentecostes, que transcorre como uma s

    celebrao.

    3. De resto, em todos os outros dias, quem hesita em prostrar-se diantede Deus, ao menos na primeira orao, quando desponta a luz do dia?

    4. Nos dias de jejum e das chamadas estaes, a orao no acompanhada de genuflexes ou gestos costumeiros de humildade. Comefeito, no nos limitamos a orar, mas tambm rogamos perdo eprocuramos dar satisfao ao Senhor, nosso Deus.

    XXIV

    O lugar da orao

    1. No h prescrio sobre os tempos da orao, a no ser,naturalmente, a de orar em todo tempo e lugar (cf. Lc 18,1; Ef 6,18;1Ts 5,17; 1Tm 2,8). Mas como orar em todo lugar, se proibido orarem pblico? (cf. Mt 6,5-6). "Em todo lugar", diz a Escritura, quer dizerem toda parte onde for oportuno ou houver necessidade. Nem nos

    parece que os Apstolos agiram contra o preceito, quando no crcereoravam e cantavam a Deus diante dos seus guardas (cf. At 16,25), ouPaulo que deu graas a Deus na presena de todos, num navio (cf. At27,35).

    XXV

    Em que tempo orar

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    1. Quanto ao tempo da orao, no ser suprfluo observar, alm dosmomentos prescritos, as oraes tambm em certas horas que todosconhecem e que marcam as partes do dia: nove da manh, meio-dia,trs da tarde. Tais horas, podemos ver na Escritura, so as maisimportantes.

    2. Foi s nove da manh que, pela primeira vez, o Esprito Santo foiderramado sobre os discpulos reunidos (cf. At 2,1-4).

    3. Pedro tinha subido ao meio-dia ao terrao para orar, e teve a visodos alimentos impuros numa toalha (cf. At 10,9-16).

    4. O mesmo Pedro, s trs horas da tarde, subiu com Joo ao Templo, e

    l restituiu a sade ao paraltico (cf At 3,1-10).

    5. Embora tais passagens sejam simples narrativas que no acarretamprescrio, seria bom consider-las como convite a orar e tambm comonorma, a fim de nos arrancarmos das ocupaes ordinrias em certosintervalos do dia e nos dedicarmos orao. Lemos, com efeito, naEscritura que Daniel orava nessas horas, conforme o ensinamento deIsrael (cf Dn 6,10). Desta forma, ao menos trs vezes ao dia, vamosadorar as Trs Pessoas s quais devemos tudo: o Pai, o Filho e o EspritoSanto. Obviamente, essas oraes acrescentam-se s outras prescritasregularmente, e mesmo sem indicao explcita devem ser recitadas aoraiar do dia e ao cair da noite.

    6. Mas os fiis cristos, antes da refeio e do banho, devem fazerorao. Pois tm prioridade o refrigrio e a nutrio do esprito,relativamente aos do corpo, pois as coisas do cu vm antes dasterrestres.

    XXVI

    A acolhida fraterna

    1. Ao irmo que entra em tua casa, no o despeas sem uma orao."Viste teu irmo, viste o Senhor", conforme se diz vulgarmente.Sobretudo, se for um peregrino. Pode ser um anjo (cf. Hb 13,2).

    2. Mas tambm tu, se fores recebido por irmos, no prefiras osprazeres terrenos aos celestes. Nisto se julgar acerca de tua f. Deoutro modo, como poders, segundo o preceito, dizer: "Paz a esta casa"(Lc 10,5), se no trocas o sculo da paz com os seus moradores?

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    XXVII

    Aleluias e salmos na orao

    1. Os que oram com maior empenho costumam acrescentar s suasoraes o Aleluia e salmos de louvor, cujos finais permitem aospresentes ajuntar responsrios. tima atitude apresentar a Deus,como hstia agradvel, uma orao assim enriquecida reconhecendo amajestade e a honra divinas.

    XXVIII

    A orao em esprito e verdade

    1. Nossa orao hstia espiritual que aboliu os sacrifcios precedentes(cf. 1Pd 2,5; Hb 13,15). Com efeito, disse Deus: "Que me importam osvossos sacrifcios todos? Estou enjoado dos vossos holocaustos decarneiros e no quero a gordura dos cordeiros nem o sangue dos tourose dos bodes. Quem, alis, pediu tais coisas das vossas mos?"(Is 1,11-12).

    2. O Evangelho nos ensina o que Deus exige de ns: "Vir a hora emque os verdadeiros adoradores adoraro o Pai em esprito e verdade.Deus, de fato, esprito"(Jo 4,23-24), e portanto, deseja taisadoradores.

    3. Somos ns os verdadeiros adoradores e os verdadeiros sacerdotes(cf. Ap 1,6; 5,10; 20,6) porque oramos em esprito (cf 1Cor 14,15; Ef6,18), e oferecemos a Deus nossa orao como um sacrifcio que lheagrada, que ele aceita, a hstia que ele previamente pediu e escolheu.

    4. Esta a hstia a levarmos ao altar de Deus, consagrada de todo ocorao, alimentada pela f, adornada pela verdade, ntegra pelainocncia, pura pela castidade, coroada pela caridade, com um squitode boas aes, entre salmos e hinos. Por ela, obteremos tudo da partede Deus.

    XXIX

    Eficcia da orao

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    1. orao em esprito e na verdade, que poder Deus negar, se elemesmo que a exige? Ns lemos, ouvimos dizer e cremos, com inmerasprovas da sua eficcia! Outrora, a orao libertara do fogo (cf. Dn 3,25-30), das feras (cf. Dn 6,17-25) e da fome (cf Dn 14,37) e, no entanto,ainda no recebera do Cristo a forma devida. Entretanto, quanto maiseficaz a orao crist! Ela no faz descer o anjo que proporcionaorvalho ao meio das chamas (cf. Dn 3,49-50), nem fecha a boca doslees, nem leva aos famintos o alimento de camponeses (cf. Dn 14,33-39). Ela no nos d a graa de no sentirmos o sofrimento, no entanto,confere a fora da pacincia aos que sofrem, se afligem, experimentama dor. Com essa fora, ela aumenta a graa, a fim de que os crentessaibam o que esperar do Senhor, conscientes de sofrerem por seunome.

    2. Alm disso, outrora a orao pedia flagelos (cf. Ex 7,10), desbaratavaexrcitos inimigos (cf. Ex 17, 8-15), impedia chuvas benficas (cf. 1 Rs17,1). Agora, porm, a orao dos justos afasta a ira de Deus, pe-seem viglias pelos inimigos, suplica pelos perseguidores. , acaso, deadmirar, que faa descer guas do cu a orao que pde obter chamasde fogo (cf. 2Rs 1, 10-14)? S a orao consegue vencer a Deus, masCristo no quis que ela fizesse mal, e lhe conferiu plena eficcia para obem. Por isso, de nada ele quis saber seno de fazer voltar vida asalmas dos mortos, que j caminhavam pela estrada da morte, dedevolver foras aos fracos, de curar doentes, de purificar possessos, deabrir portas dos crceres e quebrar cadeias dos inocentes. ainda essaorao que lava os pecados, repele as tentaes, extingue asperseguies, d coragem aos covardes, alegra os fortes, conduz casaos peregrinos, acalma as ondas do mar, faz medo aos malfeitores,alimenta os pobres, governa os ricos, levanta os que caram, mantmfirmes os que vacilam, conserva os que esto de p.

    3. A orao o baluarte da f, nela temos as armas e os dardos contrao inimigo que nos espreita de todos os lados. Assim, pois, jamaisandemos desprevenidos. De dia, lembremo-nos de estar de prontido;

    noite, recordemo-nos das viglias. Guardemos com as armas da orao abandeira do nosso imperador, e orando esperemos a trombeta do anjo.

    4. Oram tambm todos os anjos, oram todas as criaturas, oram osrebanhos e as feras que dobram os joelhos. Quando saem dos estbulose tocas, olham para o alto, levantam a cabea e no fecham a boca,mas gritam, fazendo vibrar o ar, cada qual conforme a sua natureza.At as aves despertam, elevam-se para o cu, asas abertas - mosestendidas - uma cruz. Qualquer coisa sussurram. Seria orao. Que

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    mais dizer sobre o dever da orao? O prprio Senhor tambm orou. Aele, glria e poder pelos sculos dos sculos!