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OS PRONOMES DE TRATAMENTO Prof. David Gonçalves Lavrado * No processo de comunicação, obviamente, há dois elementos básicos: o emissor e o receptor. Do latim vieram os pronomes eu (<ego), que indica a pessoa que fala, nós, que significa essa mesma pessoa associada a outra ou outras, tu e o respectivo plural vós como tratamento direto a quem se dirige a palavra. A primeira pessoa do singular (eu) pode ser representada de forma indireta por nomes ou circunlóquios (papai, minha pouquidade, este seu criado etc), para denotar afetividade, modéstia ou humildade. Pouco importa que num livro, o autor, referindo-se a si, escreva eu ou o autor. O fato é que o substantivo funciona como autêntico pronome. Manuel Said Ali assinala o emprego do plural nós em lugar do singular em duas situações diametralmente opostas: "em boca de rei ou prelado é plural majestático, mas, saído da pena de um escritor, nós parece sinal de modéstia". Sendo o pronome tu indiferente à categoria social do receptor, usava-se a 2.ª pessoa do plural para demonstrar ao indivíduo único o sentimento de respeito, prática essa que remonta ao latim. Reduzia-se assim o pronome tu a tratamento familiar ou íntimo. No meio popular, o tratamento entre pai e filho era naturalmente o carinhoso tu. No ambiente da nobreza, porém, os fidalgos, por considerarem a prole sucessora do seu status, procuravam fazer sentir ao filho essa situação privilegiada tratando-o por vós. Às vezes, o afeto extremado por um dos filhos obliterava-lhe o orgulho e tratava o filho por tu. Entre outros parentescos, vós era ainda a marca da nobreza. Segundo Said Ali, "difícil era achar expressão de respeito com que um cônjuge se pudesse referir ao outro sem recorrer aos solenes o senhor, a senhora seguidos do nome ou sobrenome. Hoje não nos parecem chocantes meu marido, minha mulher; feririam aos ouvidos da fidalguia de outrora como expressões grosseiras e plebéias. " Alternavam-se os tratamentos tu e vós, conforme as circunstâncias. Passava-se do singular ao plural por ironia; a exaltação de ânimo poderia rebaixar vós a tu; a grande amizade desprezava a formalidade do tratamento vós. Havia o tratamento denominado de honra e meia, ora tu, ora vós: o fidalgo para o seu serviçal, não podendo este deixar de tratar aquele com a forma de respeito no plural. A honra e meia servia também para agradar as pessoas que habitualmente eram tratadas por tu, como ocorria, por exemplo, quando o fidalgo visava a conquistar uma rapariga da aldeia, fazendo-a sentir-se na situação invejável das damas e donzelas da corte. Dirigia-se aos reis de Portugal, a princípio, com o pronome vós, secundado muitas vezes pelo vocativo Senhor, que realçava o tratamento cerimonioso. Entendeu-se depois que o tratamento direto da 2.ª pessoa magnificado pela pluralização não era bastante para lisonjear o soberano. * Bacharel e Licenciado em Letras Clássicas, Licenciado em Pedagogia, Consultor Técnico de Ensino Superior do IBC.

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OS PRONOMES DE TRATAMENTO

Prof. David Gonçalves Lavrado *

No processo de comunicação, obviamente, há dois elementos básicos: o emissor e o receptor. Do latim vieram os pronomes eu (<ego), que indica a pessoa que fala, nós, que significa essa mesma pessoa associada a outra ou outras, tu e o respectivo plural vós como tratamento direto a quem se dirige a palavra.

A primeira pessoa do singular (eu) pode ser representada de forma indireta por nomes ou circunlóquios (papai, minha pouquidade, este seu criado etc), para denotar afetividade, modéstia ou humildade. Pouco importa que num livro, o autor, referindo-se a si, escreva eu ou o autor. O fato é que o substantivo funciona como autêntico pronome. Manuel Said Ali assinala o emprego do plural nós em lugar do singular em duas situações diametralmente opostas: "em boca de rei ou prelado é plural majestático, mas, saído da pena de um escritor, nós parece sinal de modéstia".

Sendo o pronome tu indiferente à categoria social do receptor, usava-se a 2.ª pessoa do plural para demonstrar ao indivíduo único o sentimento de respeito, prática essa que remonta ao latim. Reduzia-se assim o pronome tu a tratamento familiar ou íntimo.

No meio popular, o tratamento entre pai e filho era naturalmente o carinhoso tu. No ambiente da nobreza, porém, os fidalgos, por considerarem a prole sucessora do seu status, procuravam fazer sentir ao filho essa situação privilegiada tratando-o por vós. Às vezes, o afeto extremado por um dos filhos obliterava-lhe o orgulho e tratava o filho por tu. Entre outros parentescos, vós era ainda a marca da nobreza.

Segundo Said Ali, "difícil era achar expressão de respeito com que um cônjuge se pudesse referir ao outro sem recorrer aos solenes o senhor, a senhora seguidos do nome ou sobrenome. Hoje não nos parecem chocantes meu marido, minha mulher; feririam aos ouvidos da fidalguia de outrora como expressões grosseiras e plebéias."

Alternavam-se os tratamentos tu e vós, conforme as circunstâncias. Passava-se do singular ao plural por ironia; a exaltação de ânimo poderia rebaixar vós a tu; a grande amizade desprezava a formalidade do tratamento vós. Havia o tratamento denominado de honra e meia, ora tu, ora vós: o fidalgo para o seu serviçal, não podendo este deixar de tratar aquele com a forma de respeito no plural. A honra e meia servia também para agradar as pessoas que habitualmente eram tratadas por tu, como ocorria, por exemplo, quando o fidalgo visava a conquistar uma rapariga da aldeia, fazendo-a sentir-se na situação invejável das damas e donzelas da corte.

Dirigia-se aos reis de Portugal, a princípio, com o pronome vós, secundado muitas vezes pelo vocativo Senhor, que realçava o tratamento cerimonioso. Entendeu-se depois que o tratamento direto da 2.ª pessoa magnificado pela pluralização não era bastante para lisonjear o soberano. Convencionou-se, então, que se haveria de dirigir indiretamente à autoridade suprema, isto é, a uma das suas virtudes, predicados ou condições extraordinárias. Assim os súditos, em seus pedidos por mercê, sabiamente, associaram a esse tratamento a expressão Vossa Mercê, referindo-se à graça e favor que o monarca deveria conceder-lhes. Muitas vezes mercê ora denotava o ato de bem fazer, ora o arbítrio de quem o praticava.

Nascia assim o tratamento indireto da 2.ª pessoa, resultante da combinação do possessivo vossa, em concordância com o possuidor vós, e do substantivo abstrato que denotava o atributo do augusto receptor, com o qual se dirigia não à pessoa do soberano ou do nobre, mas à graça e ao favor que dele eram reivindicados, ou a um dos elevados atributos do rei ou do dignitário. O apelo a um predicado do monarca era a forma de agradá-lo e sensibilizá-lo, atingindo-lhe a vaidade e o amor próprio.

Os fidalgos e indivíduos afidalgados, considerando ser insuficiente o pronome vós para expressar o respeito que lhes era devido, começaram a exigir de seus subalternos o tratamento Vossa Mercê. Conseqüentemente, passou-se a dar, de preferência, o título de Senhoria, por influência do italiano, ao el-rei.

O verbo era usado na 3.ª pessoa do singular em toda oração que tivesse por sujeito Vossa Mercê ou Vossa Senhoria, permanecendo, no entanto, afora esses casos excepcionais, o tratamento vós e o verbo na 2.ª pessoa do plural:

" Sempre farei o que Vossa Senhoria mandar; porém a mi me parece que o infante meu irmão no que vos requere, nâo faz menos do que vós (Rui de Pina, D.Duarte 56) Esto que me Vossa Alteza manda fazer se deve a meu juízo antre outras vossas louvadas obras estimar (Duarte Galvão, D. Af. Henr. 31) 1

No português moderno, é inadmissível alternarem-se o pronome de polidez vós e as expressões de reverência. Deve haver uniformidade de tratamento.

Conquanto a expressão Vossa Mercê tenha passado mais tarde a título honorífico, com a concordância na 3.ª pessoa do singular, o tratamento vós subsistia, por etiqueta ou costume. Só no século XVIII acaba esse dualismo, impondo-se Vossa Mercê como título honorífico.

* Bacharel e Licenciado em Letras Clássicas, Licenciado em Pedagogia, Consultor Técnico de Ensino Superior do IBC.1 in Ali, Manuel Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1964, pág. 306.

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Agradando a todos o tratamento Vossa Mercê, o vulgo apropriou-se dessa expressão de reverência, tendo-a abreviado, pela lei do menor esforço, através do tempo, em vossancê, vossemecê, vossecê e finalmente você.

A noção de respeito se conservou nas formas reduzidas, menos na variante você. A fidalguia, porém, exigia, para ela, o emprego da expressão integral de Vossa Mercê.

Na corte, por meados do século XV, entronizou-se a honraria de Alteza em substituição ao tratamento Senhoria, o qual passou a ser, segundo o regimento del-rei D. Manuel, dispensado ao vice-rei da Índia, como representante do monarca. Mais tarde, estendeu-se o tratamento Senhoria a desembargadores, a ministros e a certos fidalgos.

No absolutismo (sistema de governo europeu do século XVI ao XVIII), os reis, alegando estarem amparados pelo direito divino, se investiam de poderes absolutos, sem limite algum, razão por que na Espanha se lhes dava o título de Sua Majestade Católica. Assumindo Filipe II de Espanha o trono português, em 1581, foi adotado o título oficial de Majestade para o rei. O tratamento Alteza ficou sendo dado aos sucessores do monarca.

Sobreveio uma variedade de expressões para marcar a diferença ou igualdade de situação social entre duas pessoas, ou manifestar polidez ou cortesia, como formas de tratamento indireto.

Para a condição ducal, atribuía-se o tratamento Vossa Excelência; na hierarquia eclesiástica, adotaram-se Vossa Reverência, Vossa Paternidade, Vossa Eminência e Vossa Santidade.

Os tratamentos Excelência e Senhoria davam-se também aos que ocupavam certos cargos públicos e às pessoas de notória posição social. Contudo, diversas ordens régias vedavam aos governadores do Brasil o tratamento Excelência. Na monarquia brasileira, aos barões sem grandeza não se aplicava esse tratamento.

Do século XVIII aos dias atuais, emprega-se correntemente a expressão o Senhor e as componentes variações de gênero e número com função de pronome de polidez e respeito. Essa fórmula tem a vantagem de não distinguir categoria social, salvo se ao receptor compete título mais alto. É linguagem cerimoniosa sem a cortesia muitas vezes excessiva de Senhoria e Excelência. É um pronome de tratamento indireto aplicável igualmente a qualquer pessoa a que se deva certa reverência ou polidez. Assim o criado se dirige ao amo, o chefe ao subalterno, o poderoso ao fraco, e vice-versa.

O tratamento você tornou-se equivalente ao familiar tu, sendo aplicado a pessoas de condição igual ou inferior à do emissor. Dirigindo-se a mais de uma pessoa, usa-se o plural vocês, em lugar de vós, decaindo o emprego deste para denotar quer pluralidade de receptores, quer tratamento de polidez. Todavia, é ainda usado nas preces, no estilo oratório e oficial. No Brasil, predomina, no falar quotidiano, o tratamento você, conservando-se o tu em alguns estados, como no Rio Grande do Sul; em Portugal, ouve-se tanto uma forma como outra. No norte do Brasil, é praxe o uso de vosmecê como forma de respeito.

No relacionamento com pessoa digna de nossa amizade, ficamos indecisos entre você e o Senhor. Neste caso, omitimos o tratamento e valemo-nos dos pronomes indiferentes lhe, o, a, seu etc, não vindo expresso o sujeito do verbo: Leu o livro que lhe dei de presente?

As expressões O Amigo, O Caro Amigo, de campo de ação mais limitado, em geral não se interpretam à letra, tampouco o tratamento de reverência que os deputados e senadores, em seus debates ou altercações no plenário, usam paradoxalmente para se ofenderem:

Vossa Excelência é corrupto e ladrão ! Corrupto e ladrão é Vossa Excelência !

No decurso do tempo, as expressões de reverência ou de polidez e o tratamento familiar você (metamorfose do honorífico Vossa Mercê), cristalizaram-se em nossa mente como pronome pessoal, indicando o nobre ou íntimo receptor, porém exigindo a concordância do verbo, dos pronomes oblíquos e possessivos correspondentes com o substantivo da expressão, na 3.ª pessoa, conforme o quadro a seguir:

2.ª pessoa do tratamento indireto Pronomes correspondentesSingular Pessoais oblíquos Possessivos

Vossa Excelência, Vossa Senhoria, o Senhor, a Senhora, você e outros o, a, lhe, se, si, consigo seu, seus, sua, suas

PluralVossas Excelências, Vossas Senhorias, os Senhores, as Senhoras, vocês e outros

os, as, lhes 2, se, si, consigo seu, seus, sua, suas

Não sendo o dignitário o receptor, mas a pessoa de quem se fala, o possessivo da expressão de tratamento será sua: "Sua Excelência votou contra o projeto" falamos de um deputado com outra pessoa.

Quanto à concordância nominal, ocorre a silepse de gênero, isto é, o termo de natureza adjetiva concorda com o sexo do dignitário e não com a forma feminina da expressão.

Na época atual, o pronome vós, aplicado a um único receptor como tratamento cerimonioso, é raramente empregado, a não ser, como já foi dito anteriormente, nas preces, no estilo oratório e oficial. Na correspondência oficial, tem-se observado a primazia do tratamento Vossa Senhoria sobre o direto cerimonioso vós.2 O plural é relativamente recente. Nos "Lusíadas", e mesmo mais tarde, é usado lhe tanto para o singular quanto para o plural.

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É corrente na linguagem falada o axionômico o Senhor com suas variantes de gênero e número, porém na escrita, por efeito de hábitos antigos, recorre-se às expressões de reverência consoante a praxe social ou ao protocolo oficial. No quadro a seguir, constam as principais, aplicadas de acordo com a condição social, a posição ou função do exercício público do destinatário.

EXPRESSÃO DE REVERÊNCIA AUTORIDADE OU DIGNITÁRIO ABREVIATURAsingular plural singular Plural

Vossa Majestade Vossas Majestades

rei, rainha, imperador, imperatriz V.M. VV.MM.

Vossa Alteza Vossas Altezas príncipe, princesa V.A. VV.AA.

EXPRESSÃO DE REVERÊNCIA AUTORIDADE OU DIGNITÁRIO ABREVIATURAsingular plural singular Plural

Vossa Excelência VossasExcelências

Presidente da República 3, embaixador, embaixatriz, ministro de Estado, ministro de Tribunal de Justiça, ministro de Tribunal Eleitoral, ministro de Tribunal de Contas, governador e respectivos secretários de estado, senador, deputado, chefe de polícia, prefeito, oficial militar com patente igual ou superior a general, almirante e brigadeiro, desembargador, juiz de direito, presidente de associação cultural, membro da Academia Brasileira de Letras, pessoa de relevo social, mestre, titulado em doutorado

V.Ex.ª

(No telegrama oficial, usa-se a forma aglutinada VOSSÊNCIA)

V.Ex.as

(No telegrama oficial, usa-se a forma aglutinada VOSSÊNCIAS)

Vossa Senhoria Vossas Senhorias

pessoa de certa cerimônia, oficial com patente igual ou inferior a coronel, funcionário graduado (diretor de departamento, superintendente, chefe de serviço, inspetor, oficial administrativo), funcionário da mesma ou de idêntica categoria do emissor, comerciante, professor

V.S.ª

(No telegrama oficial, usa-se a forma aglutinada VOSSORIA)

V.S.as

(No telegrama oficial, usa-se a forma aglutinada VOSSORIAS)

Vossa Magnificência

Vossas Magnificências reitor de universidade VM.ª VM.as

Vossa Santidade papa V.S.

Vossa EminênciaVossasEminências cardeal V.Em.ª V.Em.as

Vossa Excelência Reverendíssima

Vossas ExcelênciasReverendíssimas

bispo, arcebispo V.Ex.ªRev.ma V.Ex.as Rev.mas

Vossa ReverênciaVossasReverências

eclesiástico, freiraV.Rev.ª V.Rev.as

EXPRESSÃO DE REVERÊNCIA AUTORIDADE OU DIGNITÁRIO ABREVIATURAsingular plural singular Plural

Vossa Reverendíssima

Vossas Reverendíssimas

monsenhor, dignitário eclesiástico, padre

V.Rev.ma V.Rev.mas

Vossa Maternidade Vossas Maternidades religiosa que é madre V.M.a V.M.as

Há para alguns tratamentos um qualificativo adequado, acompanhado da palavra Senhor, que se costumam usar antes do vocativo e endereço:

Excelentíssimo (Ex.mo) para V.Ex.ª;Ilustríssimo (Il.mo) para V.S.ª, Senhor, vós e para os tratamentos dados a eclesiásticos;Eminentíssimo (Em.mo) para V.Em.ª

3Neste caso, a expressão de tratamento deverá ser sempre escrita por extenso e não abreviadamente.

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Há também qualificativos apropriados para certas instituições ou funções: Egrégio, Colendo, Venerando (Tribunal); Meritíssimo (juiz); Magnífico (reitor).

Escrevem-se as expressões de tratamento de reverência ou de polidez, bem como os qualificativos que a elas se referem, com inicial maiúscula.

A fórmula de tratamento o Senhor, com as suas variantes de número e gênero, não deve ser abreviada. Só se usam as abreviaturas Sr., Srs., Sr.a, Sr.as, quando se lhes segue o nome ou cargo exercido pelo destinatário: Sr. Fulano, Srs. Membros da Comissão, Sr.ª Diretora, Sr.as Professoras.

As Instruções para Organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1943 prescrevem que as expressões de tratamento, bem como as correspondentes do vocativo, devam ser escritas com iniciais maiúsculas: Vossa Excelência, Excelentíssimo Senhor, Magnífico Reitor. Contudo, o tratamento indireto familiar você e os pronomes do tratamento direto escrevem-se com inicial minúscula, salvo no começo de período.

O uso das diversas formas de tratamento em que se adjunge o possessivo VOSSA a um substantivo abstrato, que caracteriza precisamente a posição social do receptor, supera hoje ao do pronome vós, com o qual concorda o possesivo, por expressar cabalmente o substantivo a idéia de deferência, respeito e cerimonioso afastamento. O pronome você, que se derivou da expressão de título honorífico Vossa Mercê, tem a preferência global para denotar trato afetivo ou familiar, ofuscando completamente o tratamento direto tu. Outrossim, o plural vocês aposentou o clássico vós na indicação de vários destinatários.

O estudo diacrônico e sincrônico dos pronomes de tratamento permite conjecturar que, brevemente, as formas de reverência deixarão de ser usadas, considerando-se a tendência de tornar despicienda a posição social na comunicação, como corolário do sentimento de igualdade e fraternidade que se vem generalizando hodiernamente. O tratamento você, que comunica muito mais, segundo Carlos Drummond de Andrade,4 apraz a todos na democracia, como seu antepassado Vossa Mercê agradava na monarquia. O tratamento você coloca todos no mesmo nível de convivência, concorrendo para a aproximação afetiva, cordial e solidária dos filhos de Deus. O valor do ser humano não se encontra no espaço social que eventualmente ocupa, mas no seu âmago. Cada qual tem o seu lugar e mister neste mundo, porém a aldeia e a confraternidade são globais.

Quiçá os pósteros empreguem afereticamente o tratamento você, como se ouve hoje, em algumas vezes, na linguagem coloquial:

"Cê vai bem?"

BIBLIOGRAFIA

ALI, Manuel Said. Investigações Filológicas/por/ M.Said Ali; com um estudo de Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Grifo/MEC, Brasília, INL, 1975 (Col.Littera 8).ALI, Manuel Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1964.BERGO, Vittorio. Português e Redação Oficial. D.A.S.P. - Serviço de Documentação, 1962.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ª edição, 39.ª impressão. Rio de Janeiro; Editora Nova Fronteira.ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Brittanica do Brasil Publicações, 1986, vol. 2

4 Prece do Brasileiro, Jornal do Brasil, 30 de maio de 1970, Caderno B, p. 37. In: BENEMANN, J.Milton & CADORE, Luís A. - Estudo Dirigido de Português, 2.ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1975.