Tratamento cirúrgico e médico (5-fluorouracilo) de um ...mendada a crioterapia ou a aplicação...

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219 CASO CLÍNICO Resumo: O carcinoma das células escamosas é dos tumores mais comuns na oftalmologia equina, constituindo a membra- na nictitante uma das estruturas oculares mais afectadas. O seu tratamento varia consoante o envolvimento ocular. No caso da membrana nictitante obriga muitas vezes à remoção, embora esta situação se deva evitar devido ao aumento de predisposição para o desenvolvimento de dessecação corneal no quadrante ventro- medial. Os autores apresentam um caso precoce de envolvimen- to da membrana nictitante encontrando-se afectado o seu bordo e cerca de 0,75 cm da sua face externa na continuação do mesmo. No sentido de preservar o máximo da estrutura, optou-se por um tratamento cirúrgico acompanhado por tratamento médico qui- mioterápico com 5-fluorouracilo com o objectivo de preservar a membrana nictitante bem como de diminuir o risco de recidivas locais. Após oito meses, o animal apresentava uma boa função visual, sem sinais de dessecação da córnea ventro-medial ou de recidiva local. Apesar da utilização de 5-fluorouracilo se en- contrar descrita sobretudo em administração tópica sob a forma de pomada, nesta situação a localização do tumor, contígua à córnea, impediu a sua utilização, optando os autores pela sua administração peri-lesional, que parece oferecer resultados se- melhantes à administração tópica. Summary: Squamous cell carcinoma (SCC) is one of the most common ocular equine neoplasm. The nictitans is specially af- fected being SCC the more prevalent tumour of this structure. The treatment of SCC depends on the ocular involvement. The nictitans’ localization obligates several times to its removal. However, this procedure should be avoided due to the risk of corneal desiccation. In this article, the authors present an early case of SCC involving the border of the nictitating membrane and approximately 0.75 cm of its external face. The aim of the treatment was to preserve the structure, and to prevent the local recurrence. The option was a combined treatment – surgical and medical, with the local administration of 5-fluorouracil. Eight months after the initial treatment, the animal presented a good visual function with no signs of recurrence or local corneal des- iccation. The utilization of 5-fluorouracil is described mostly as an ointment. The localization of the SCC in this clinical case limited the use of this presentation. The authors chose to use its intralesional administration that seems to offer as good results as the ointment presentation. Caso clínico Foi apresentado à consulta no Hospital Veterinário da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro um cavalo, macho castrado, de 15 anos de idade e 420 kg de peso vivo. Na anamnese foi referido que o animal apresentava um corrimento ocular esverdeado no olho direito (OD). No exame oftalmológico do mesmo olho foi detectada uma massa vegetativa ao longo de todo o bordo da membrana nictitante, com cerca de 1,5 cm de diâmetro (Figuras 1 e 2). No exame oftalmológico do olho esquerdo (OS) não foram encontradas quais- quer alterações. Na referida massa foi realizada uma citologia por aspiração, mas apenas foram observados inúmeros eritrócitos e neutrófilos degenerados. Após a sua execução, foi instituída antibioterapia local com sulfato de polimixina B a 0,5% em associação com sul- fato de neomicina em colírio (Conjunctilone®) quatro vezes por dia. No dia seguinte, foi realizada uma cito- logia exfoliativa onde se observaram células com ca- racteres de malignidade, compatíveis com carcinoma (Figura 3). Neste momento optou-se pelo tratamento cirúrgico tendo-se considerado também o tratamento médico, através da administração tópica de 5-fluorou- racilo, caso a suspeita de carcinoma das células esca- mosas se confirmasse no exame histopatológico. Após a submissão a uma anestesia geral, utilizando o proto- colo anestésico combinado de uma solução injectável de xilazina a 2% na dose de 1,1 mg/kg e uma solução de cloridrato de ketamina a 1% na dose de 2,2 mg/kg, ambos por via intravenosa, realizou-se o tratamento ci- rúrgico através da excisão da totalidade da lesão (Figu- ra 4), com uma margem de cerca de 0,5 cm. Seguiu-se a aplicação de crioterapia no local da excisão, durante dois ciclos de 15 segundos (Histofreeze®), permitindo o descongelamento entre estes e protegendo a córnea do frio gerado pela aplicação do tratamento. Após a cirurgia, realizou-se o teste de fluoresceína na córnea, que se revelou negativo. A medicação instituída no período pós-operatório consistiu na administração de Tratamento cirúrgico e médico (5-fluorouracilo) de um carcinoma das células escamosas na membrana nictitante de um cavalo Nictitans squamous cell carcinoma in a horse – surgical and medical (5 – fluorouracil) treatment M. Cotovio 1 *, O.C. Almeida 1 , J.P. Oliveira 1 , J.E. Pereira 1 , J.R. Paulo 1 , M.T. Peña 2 1 Departamento de Ciências Veterinárias, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Quinta de Prados, 5001-911 Vila Real, Portugal. 2 Hospital Clinic Veterinari; Facultat de Veterinária; Universitat Autonoma de Barcelona. 08193 Bellaterra, Barcelona, Espanha. *Correspondência: Tel. +351 259 350563; Fax: + 351 259 350480; E-mail: [email protected]

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CASO CLÍNICO

Resumo: O carcinoma das células escamosas é dos tumores mais comuns na oftalmologia equina, constituindo a membra-na nictitante uma das estruturas oculares mais afectadas. O seu tratamento varia consoante o envolvimento ocular. No caso da membrana nictitante obriga muitas vezes à remoção, embora esta situação se deva evitar devido ao aumento de predisposição para o desenvolvimento de dessecação corneal no quadrante ventro-medial. Os autores apresentam um caso precoce de envolvimen-to da membrana nictitante encontrando-se afectado o seu bordo e cerca de 0,75 cm da sua face externa na continuação do mesmo. No sentido de preservar o máximo da estrutura, optou-se por um tratamento cirúrgico acompanhado por tratamento médico qui-mioterápico com 5-fluorouracilo com o objectivo de preservar a membrana nictitante bem como de diminuir o risco de recidivas locais. Após oito meses, o animal apresentava uma boa função visual, sem sinais de dessecação da córnea ventro-medial ou de recidiva local. Apesar da utilização de 5-fluorouracilo se en-contrar descrita sobretudo em administração tópica sob a forma de pomada, nesta situação a localização do tumor, contígua à córnea, impediu a sua utilização, optando os autores pela sua administração peri-lesional, que parece oferecer resultados se-melhantes à administração tópica.

Summary: Squamous cell carcinoma (SCC) is one of the most common ocular equine neoplasm. The nictitans is specially af-fected being SCC the more prevalent tumour of this structure. The treatment of SCC depends on the ocular involvement. The nictitans’ localization obligates several times to its removal. However, this procedure should be avoided due to the risk of corneal desiccation. In this article, the authors present an early case of SCC involving the border of the nictitating membrane and approximately 0.75 cm of its external face. The aim of the treatment was to preserve the structure, and to prevent the local recurrence. The option was a combined treatment – surgical and medical, with the local administration of 5-fluorouracil. Eight months after the initial treatment, the animal presented a good visual function with no signs of recurrence or local corneal des-iccation. The utilization of 5-fluorouracil is described mostly as an ointment. The localization of the SCC in this clinical case limited the use of this presentation. The authors chose to use its intralesional administration that seems to offer as good results as the ointment presentation.

Caso clínico

Foi apresentado à consulta no Hospital Veterinário da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro um cavalo, macho castrado, de 15 anos de idade e 420 kg de peso vivo. Na anamnese foi referido que o animal apresentava um corrimento ocular esverdeado no olho direito (OD). No exame oftalmológico do mesmo olho foi detectada uma massa vegetativa ao longo de todo o bordo da membrana nictitante, com cerca de 1,5 cm de diâmetro (Figuras 1 e 2). No exame oftalmológico do olho esquerdo (OS) não foram encontradas quais-quer alterações. Na referida massa foi realizada uma citologia por aspiração, mas apenas foram observados inúmeros eritrócitos e neutrófilos degenerados. Após a sua execução, foi instituída antibioterapia local com sulfato de polimixina B a 0,5% em associação com sul-fato de neomicina em colírio (Conjunctilone®) quatro vezes por dia. No dia seguinte, foi realizada uma cito-logia exfoliativa onde se observaram células com ca-racteres de malignidade, compatíveis com carcinoma (Figura 3). Neste momento optou-se pelo tratamento cirúrgico tendo-se considerado também o tratamento médico, através da administração tópica de 5-fluorou-racilo, caso a suspeita de carcinoma das células esca-mosas se confirmasse no exame histopatológico. Após a submissão a uma anestesia geral, utilizando o proto-colo anestésico combinado de uma solução injectável de xilazina a 2% na dose de 1,1 mg/kg e uma solução de cloridrato de ketamina a 1% na dose de 2,2 mg/kg, ambos por via intravenosa, realizou-se o tratamento ci-rúrgico através da excisão da totalidade da lesão (Figu-ra 4), com uma margem de cerca de 0,5 cm. Seguiu-se a aplicação de crioterapia no local da excisão, durante dois ciclos de 15 segundos (Histofreeze®), permitindo o descongelamento entre estes e protegendo a córnea do frio gerado pela aplicação do tratamento. Após a cirurgia, realizou-se o teste de fluoresceína na córnea, que se revelou negativo. A medicação instituída no período pós-operatório consistiu na administração de

Tratamento cirúrgico e médico (5-fluorouracilo) de um carcinoma das células escamosas na membrana nictitante de um cavalo

Nictitans squamous cell carcinoma in a horse – surgical and medical (5 – fluorouracil) treatment

M. Cotovio1*, O.C. Almeida1, J.P. Oliveira1, J.E. Pereira1, J.R. Paulo1, M.T. Peña2

1Departamento de Ciências Veterinárias, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Quinta de Prados, 5001-911 Vila Real, Portugal.2 Hospital Clinic Veterinari; Facultat de Veterinária; Universitat Autonoma de Barcelona. 08193 Bellaterra, Barcelona, Espanha.

*Correspondência: Tel. +351 259 350563; Fax: + 351 259 350480; E-mail: [email protected]

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fosfato de dexametasona a 0,1% (Decadron®) por via tópica, três vezes por dia durante 3 dias, sendo cada aplicação precedida pela realização do teste de fluores-ceína, que se revelou sempre negativo. A antibioterapia tópica instituída previamente foi continuada por mais 7 dias.

O tecido removido foi submetido a um exame his-topatológico (Figuras 5 e 6) cujo resultado foi de um carcinoma das células escamosas (CCE) de baixo grau de malignidade e que se encontrava totalmente contido dentro dos bordos de excisão.

No dia 7, a membrana nictitante e conjuntiva ipsi-lateral apresentavam-se sem sinais de inflamação ou infecção. Neste momento procedeu-se à administração subconjuntival de 2 ml de 5-fluorouracilo (Cinkef-U®) em solução aquosa de 0,5% ao longo do bordo da membrana em três pontos distintos a cerca de 4-5 mm do mesmo. Após oito meses da realização do procedi-mento, a membrana nictitante do OD apresenta-se sem qualquer sinal de recorrência (Figura 7).

Discussão

O CCE é o tumor mais comum da membrana nic-titante em cavalos, embora a sua localização ocular possa ocorrer noutras estruturas em especial a córnea e as pálpebras (Dugan, 1992). O seu aparecimento pare-ce estar relacionado com a incidência de raios solares, ocorrendo sobretudo nas estruturas menos pigmenta-das (Lavach, 1990; Brooks, 1999).

Existem vários tratamentos descritos para o CCE de localização ocular no cavalo. A sua escolha depende da localização específica do tumor bem como da sua ex-tensão nas estruturas envolventes (Lavach, 1990). No geral, encontra-se recomendada a remoção completa do tumor, embora este procedimento possa ser impos-sível de realizar em lesões muito extensas e profundas (Severin, 1996). Nestas situações, poderá estar reco-

Figura 1 - Nesta imagem pode observar-se a localização da massa, discreta, no canto

medial do OD.

Figura 2 - Na imagem pode observar-se em pormenor o envolvimento da membrana

nictitante.

Figura 1 - Nesta imagem pode observar-se a localização da massa, discreta, no canto

medial do OD.

Figura 2 - Na imagem pode observar-se em pormenor o envolvimento da membrana

nictitante.

Figura 3 - Células observadas na citologia exfoliativa, onde se pode apreciar a

anisocariose e o pleomorfismo celular.

Figura 4 - Membrana nictitante durante a cirurgia após a remoção da massa.

Figura 3 - Células observadas na citologia exfoliativa, onde se pode apreciar a

anisocariose e o pleomorfismo celular.

Figura 4 - Membrana nictitante durante a cirurgia após a remoção da massa.

Figura 1 - Nesta imagem pode observar-se a localização da massa, dis-creta, no canto medial do OD.

Figura 2 - Na imagem pode observar-se em pormenor o envolvimento da membrana nictitante.

Figura 3 - Células observadas na citologia exfoliativa, onde se pode apreciar a anisocariose e o pleomorfismo celular.

Figura 4 - Membrana nictitante durante a cirurgia após a remoção da massa.

Figura 5 - Exame histopatológico. Proliferação bem ordenada das células do

revestimento. (100X)Figura 5 - Exame histopatológico. Proliferação bem ordenada das célu-las do revestimento. (100X)

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Cotovio, M. et al.

Bibliografia

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Dugan, S.J. (1992). Ocular neoplasia. Vet Clin North Am Equine Pract, 8(3), 609-626.

King, T.C., Priehs D.R., Gum G.G., Miller T.R. (1991). The-rapeutic management of ocular squamous cell carcinoma in the horse: 43 cases (1979-1989). Equine Vet J., 23(6), 449-452.

Lavach, J.D. (1990). Ch 16 – Ocular Neoplasia. In Lavach, JD, editor Large Animal Ophthalmology. St. Louis: C.V. Mos-by Company. pp 270-288

Paterson, S. (1997). Treatment of superficial ulcerative squamous cell carcinoma in three horses with topical 5-fluorouracil. The Veterinary Record, 141(24), 626-628.

Severin, G.A. (1996). Ch 8 – Conjunctiva. In Severin GA, editor Severin’s Veterinary Ophthalmology Notes. Third Edition ed. Fort Collins: DesignPointe Communications Inc. pp 271-272

mendada a crioterapia ou a aplicação intralesional de fármacos quimioterápicos, como o 5-fluorouracilo ou a cisplatina. Outros tratamentos também descritos são a hipertermia e a radioterapia, embora se encontrem me-nos acessíveis aos clínicos (King et al., 1991; Dugan, 1992; Paterson, 1997; Brooks, 1999).

No caso apresentado, optou-se pela realização con-junta da excisão cirúrgica, crioterapia e aplicação intra-lesional de 5-fluorouracilo com o objectivo de reduzir as probabilidades de recidiva. Um envolvimento mais extenso da membrana nictitante, pode obrigar à sua completa remoção, o que poderá causar dessecação da superfície corneal no quadrante ventro-medial, levan-do ao aparecimento de erosões ou úlceras recorrentes. Para além disso, devido à sua contiguidade com a con-juntiva bulbar e palpebral pode haver necessidade de realização de uma exenteração de forma a permitir a remoção completa da neoplasia (Lavach, 1990).

No caso descrito, após um controlo realizado aos 8 meses, não existem sinais de dessecação corneal no quadrante ventro-medial, possivelmente pela excisão não ter sido muito extensa. Caso contrário, poder-se-ia realizar uma cirurgia de reconstrução da membrana nictitante através da realização de um enxerto de mu-cosa oral.

Figura 6 - Exame histopatológico. Células poliédricas com núcleo grande e vesiculado,

evidenciando alguma queratinização. (4000X) Figura 7 – Aspecto da membrana nictitante 8 meses após o tratamen-to.

Figura 6 - Exame histopatológico. Células poliédricas com núcleo gran-de e vesiculado, evidenciando alguma queratinização. (4000X)

Figura 7 – Aspecto da membrana nictitante 8 meses após o tratamento.

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