Tratamento de Osteomielite da Tibia após Osteotomia com 30 anos de Evolução. André Spranger,...

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Título: Tratamento de osteomielite da tíbia pós osteotomia com 30 anos de evolução: reflexões sobre a opção terapêutica Autores: André Spranger, Pedro Fernandes Serviço de Ortopedia do Hospital Universitário de Santa Maria; Centro Hospitalar Lisboa Norte Director: Professor Dr. Jacinto Monteiro Correspondência Pedro Fernandes Serviço de Ortopedia do Hospital de Santa Maria Av. Professor Egas Moniz Lisboa [email protected] PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com

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Título: Tratamento de osteomielite da tíbia pós osteotomia com 30 anos de evolução: reflexões sobre a opção terapêutica Autores: André Spranger, Pedro Fernandes Serviço de Ortopedia do Hospital Universitário de Santa Maria; Centro Hospitalar Lisboa Norte Director: Professor Dr. Jacinto Monteiro Correspondência Pedro Fernandes Serviço de Ortopedia do Hospital de Santa Maria Av. Professor Egas Moniz Lisboa [email protected]

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Introdução

A osteomielite crónica é um dos maiores desafios na área da cirurgia

ortopédica. Pode ser definida como uma infecção grave e persistente do

tecido ósseo, sendo muitas vezes uma condição recorrente e difícil o seu

tratamento definitivo. A infecção pode encontrar-se localizada ou

disseminada pelo periosteo, cortéx, medula ou osso esponjoso. O agente

patogénico varia de acordo com a idade e estado geral do doente e o

mecanismo de infecção, mas de uma forma geral o microrganismo mais

comum é o S. aureus.

Esta entidade clínica pode resultar do tratamento inadequado de uma

osteomielite aguda, disseminação hematogénea ou contígua dos tecidos

moles (úlceras diabéticas ou associadas a doença vascular periférica),

traumatismo ou iatrogenia (artroplastias). De entre os factores de risco mais

relavantes destacam-se: traumatismo, presença material de osteossíntese,

diabetes, doença vascular periférica, alcoolismo, tabagismo, uso crónico de

esteróides, imunossupressão e anemia falciforme.

A infecção cria um aumento na pressão intramedular, como resultado

do exsudado inflamatório, que por sua vez gera um descolamento do

periosteo; estes fenómenos conduzem a trombose vascular, necrose óssea e

formação de sequestros. Estes sequestros, com material infectado, estão

rodeados de osso esclerótico relativamente avascular. Os canais haversianos

encontram-se bloqueados com tecido fibroso e o tecido ósseo fica rodeado

por periosteo espessado e músculo fibrosado, o que dificulta a penetração

dos antibióticos nestas estruturas relativamente avasculares.

A morbilidade é, habitualmente, significativa podendo haver

disseminação da infecção para os tecidos moles ou articulações envolventes,

com dor e incapacidade, podendo culminar em sépsis e amputação do

membro .

De acordo com Cierny e Mader a osteomielite crónica pode ser

classificada de acordo com o estádio anatómico (tipo 1 – lesão endosteal ou

medular; tipo 2 - osteomielite superficial; tipo 3 - localizada, com

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sequestração e formação de cavidade; tipo 4 – lesão difusa) e com a classe

fisiológica do hospedeiro (A - saudável; B - compromisso sistémico,

compromisso local ou ambos; C - tratamento pior que a doença). Estas

classes anatómicas e fisiológicas combinam-se para originar 12 estádios

clínicos de osteomielite. Este sistema auxilia na determinação e orientação

do tratamento (simples/complexo, curativo/paliativo; conservador/amputação

de membro)

O diagnóstico de osteomielite é clínico, imagiológico e laboratorial,

sendo a biopsia o gold standart pois permite material para análise

microbiológica e histopatológica.

Na abordagem desta entidade salientamos alguns aspectos relevantes

como o tratamento da dor e desidratação, imobilização (quando necessário),

melhoria da classe fisiológica do hospedeiro, terapêutica antibiótica e cirurgia.

A antibioterapia deve ser idealmente baseada no resultado de culturas

e a sua duração na maior parte dos estádios de osteomielite de Cierny e

Mader é de cerca de 4 a 6 semanas (baseado nas 4 semanas habituais de

tempo de revascularização do osso após desbridamento). Salienta-se ainda

que quando o tratamento cirúrgico da osteomielite não é possível ou é

ineficaz pode ser usada antibioterapia supressiva para controlar a doença

(períodos de 6 meses ou superiores).

O tratamento cirúrgico assenta sobre três princípios gerais: (1)

remoção do tecido ósseo desvitalizado e infectado, (2) obliteração do espaço

morto e (3) cobertura com tecidos moles da zona de exposição óssea. O

desbridamento deve ser realizado até o osso estar sangrativo., com remoção

de todos os sequestros, material purulento e tecido fibrosado e necrótico,

podendo haver necessidade de excisão do segmento ósseo infectado. A

obliteração de espaço morto pode ser realizada com tecidos moles, retalho

muscular, enxerto ósseo, espaçador de cimento com antibiótico, enxerto

perónio, transporte ósseo com Ilizarov, entre outros. Estes objectivos podem

ser alcançados em apenas um tempo operatório, dois tempos operatórios

(procedimento de Belfast - desbridamento agressívo com cobertura cutânea,

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por vezes recorrendo a cimento com antibiotico na fase inicial e num segundo

tempo enxerto ósseo autólogo) ou 3 tempos operatórios (procedimento de

Pappineau - excisão de tecido infectado (com ou sem establização: fixador

externo ou cavilha); enxerto ósseo autólogo; encerramento cutâneo).

É também possível o uso de terapia com oxigénio hiperbárico (não

isoladamente mas em combinação com outros métodos) e o uso de cimento

impregnado com antibiótico colocado localmente bem como outros sistemas

mais recentes biodegradáveis que poupam um posterior tempo cirúrgico para

remoção dos implantes.

Weber e Lautenbach desenvolveram uma técnica que inclui

desbridamento radical, reaming intramedular e inserção de tubagem de duplo

lúmen num sistema de irrigação e antibioterapia local que permite ao mesmo

tempo análise microbiológica e do volume da cavidade.

A amputação encontra-se reservada para os casos extremos e sem

resposta ao tratamento, com complicações vasculares e sistémicas, e nas

situações em que há desenvolvimento de epitelioma.

Caso Clínico

Doente com história de tentativa de correcção de tíbia vara aos 16

anos com osteotomia e osteossíntese rígida complicada de síndroma

compartimental e infecção, seguida de pseudartrose do foco de osteotomia.

Aos 19 anos foi efectuado encavilhamento endomedular e retalho rodado do

gémeo interno com consolidação da pseudartrose contudo sem resolução da

infecção. Esta veio a justificar remoção da cavilha 2 anos mais tarde,

mantendo o doente, desde então, supuração activa por dois trajectos

fistulosos a nível do terço médio da perna. Iniciamos o tratamento do doente

aos 40 anos altura em que apresentava fractura patológica do terço médio da

tíbia com 3 meses de evolução com orientação para tratamento em aparelho

gessado sem evidência de evolução para consolidação (Fig.1 e 2). Nos

antecedentes pessoais a referir hábitos tabágicos marcados desconhecendo-

se outras doenças.

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Fig.1 Fig.2

À observação do membro afectado destacava-se sinais inflamatórios

crónicos com atrofia cutânea marcada e supuração de líquido purulento por

dois orifícios anterointernos no terço médio (Fig.3). Em termos de dismetria

apresentava um encurtamento de 2 cm e desvio em varo significativo. A

tibiotársica apresentava rigidez importante com mobilização entre 0º e 30º de

flexão plantar e do ponto de vista neurológico não apresentava

contractilidade dos músculos da loca anteroexterna sugerindo lesão crónica

do nervo ciático popliteu externo.

Fig.3

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A TAC e a RM da perna mostravam extenso foco de osteomielite

abcedado com sequestros ósseos e fractura patológica sem evidência de

consolidação (Fig. 4).

Fig.4

Após discussão das opções terapêuticas foi decidido avançar com

cirurgia reconstrutiva passando por ressecção do foco de osteomielite e

estabilização com fixador circular preparado para transporte ósseo.

Na primeira cirurgia (fig. 5) foi efectuada abordagem do foco de

osteomielite e desbridamento cirúrgico com remoção dos sequestros ósseos.

Por não parecer haver tecido ósseo vascularizado foi contemporizada a

ressecção óssea e montado o fixador externo em compressão.

Fig.5

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Uma semana após cirurgia a ferida operatória apresentou drenagem

purulenta pelo que se optou por ressecção parcial da tíbia, numa extensão de

10 cm e realização de osteotomia proximal e distal para transporte ósseo

trifocal (Fig. 6)

Fig. 6

Foi ainda efectuada terapêutica antibiótica com vancomicina apesar de

não ter sido isolado nenhum agente por provável antibioterapia prévia. A

ferida operatória apresentou uma cicatrização favorável contudo com

deiscência na sua porção média onde foram iniciados pensos com gaze

iodoformada apesar da quase exposição do topo distal do fragmento proximal

a transportar. O transporte foi realizado da forma habitual com 1 mm dia em

cada extremidade, constatando-se o aparecimento de um regenerado atrófico

no foco proximal enquanto que distalmente o regenerado não apresentou

complicações (Fig. 7).

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Fig. 7

No final do transporte abordou-se o foco de atracagem com o

objectivo de desbridar e colocar enxerto colhido da crista iliaca. Aos 8 meses

de fixador externo foi necessário desbridar o regenerado proximal onde se

colocou novamente enxerto esponjoso tendo-se colocado ainda molas de

charneira universais para tentativa de correcção de desvio em varo. O fixador

foi retirado ao fim de 18 meses por intolerância, após 4 semanas de

dinamização, havendo sinais de consolidação a nível do foco de atracagem e

em ambos os regenerados embora pouco exuberantes. Foi colocada

imobilização gessada que se manteve 6 semanas, período em que a carga

foi estimulada. Seis semanas após retirar fixador o doente é readmitido

novamente com fractura a nível do foco de atracagem com drenagem

purulenta de onde se veio a isolar uma pseudomonas. Foi então efectuada

desbridamento do foco de fractura, osteotomia do perónio colocado

respectivo cilindro do peróneo no foco de fractura e colocado novamente um

fixador Ilizarov com a preocupação major de obter um alinhamento das

superfícies perfeito. O doente permaneceu 6 semanas internado com o fim de

completar terapêutica com antibioterapia dirigida. Aos seis meses de fixador

dinamizámos o sistema que foi retirado aos sete meses com consolidação da

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fractura obtendo-se a correcção do alinhamento (Fig. 8). Com actual de 8

meses o doente não voltou a ter manifestação de infecção deambulando sem

auxiliares e sem qualquer dor.

Fig.8

Discussão

Apresentamos este caso, não só pelo desafio que representou mas

sobretudo pela oportunidade de reflectir sobre as opções terapêuticas

tomadas em várias fases do tratamento bem como o seu “timing”. A

osteomielite crónica da tíbia já por si uma situação de difícil tratamento

quanto mais complicada de uma fractura que ocorre num local infectado e

com necrose óssea onde o potencial para consolidar é extremamente baixo

dada a pobreza da biologia local. Na avaliação inicial do doente há ainda a

salientar a presença de um desvio em varo bem como a integridade do

perónio dois factores que em nosso entender não mereceram a devida

ponderação dada a nossa preocupação em remover o osso necrosado e ter a

maior estabilidade possível durante o transporte. A opção do transporte

parece-nos consensual embora bons resultados tenham sido obtidos por

ressecção óssea e transporte lateral do perónio em defeitos consideráveis da

tíbia. Talvez discutível tenha sido a opção de fazer um transporte trifocal

aumentando assim a taxa de complicações e não um transporte bifocal disto-

proximal. Este provavelmente teria evitado os problemas encontrados com o

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regenerado e o agravamento do desvio em varo proximal. Outro aspecto a

discutir prende-se com o facto de termos utilizado uma construção muito

pouco versátil que veio a complicar a aplicação de compressão no foco de

atracagem e ao mesmo tempo dificultar a correção de desvios do eixo.

Explicamos a dificuldade encontrada na consolidação do regenerado

proximal provavelmente o ritmo acelerado do transporte numa região

deficitária em vascularização e onde o retalho muscular efectuado 30 anos

antes poderá ter tido algum papel. Após retirarmos o fixador a refractura

ocorre precisamente pelo alinhamento residual em varo e integridade do

perónio dois factores que sempre condicionaram a evolução desfavorável

deste caso. Só quando estes foram eliminados se conseguiu alcançar a

consolidação do foco de regenerado e de atracagem.

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