Trecho do livro "Amor e memória"

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Prólogo

MAINE2013

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Jack Wiseman, imerso como sempre nas páginas de um livro, só perce-beu a chegada do ônibus quando o alvoroço tomou conta das pessoas que aguardavam no pátio superaquecido da estação. Seu queixo protuberan-te apontado para as janelas do veículo trazia vestígios de lenço de papel manchado por um fiapo de sangue, e a camisa passada e engomada estava escancarada no colarinho, revelando pregas na pele de seu pescoço e uma grossa e desordenada camada de pelos brancos no peito. Ele semicerrou os olhos, viu de relance o exuberante cabelo da neta e se pôs de pé. Rasgou o canto da última folha do Ellsworth American descartado por alguém e enfiou-o entre as páginas de sua antiga edição Loeb de Heródoto, avalian-do com expressão de pesar os centímetros que ainda faltavam ser lidos. Ele nunca fora do tipo de deixar um trabalho inacabado, fato em que supunha estar se agarrando, talvez de forma inconsciente, ao encarar a releitura do mais prolixo dos historiadores clássicos pelo que devia ser a oitava ou nona vez.

Enquanto o ônibus cuspia seus primeiros passageiros, por um ins-tante Jack se perdeu em pensamentos, imaginando os soldados que de-sembarcavam para a licença em casa, chegando de campos de batalha muito remotos, como no livro que estava lendo, da Babilônia e da Bác-tria, seus uniformes camuflados da cor de cinzas e poeira e a estampa serrilhada como os pixels de uma tela de computador. Então, o cabelo de Natalie reluziu na porta do ônibus, e ele ergueu o pequeno volume de capa verde para chamar a atenção dela. Pela expressão de choque que cruzou o rosto da neta logo antes de ela sorrir, ele percebeu que o câncer no pâncreas havia causado mais estragos do que imaginara. Os lábios dela se moveram.

Jack levantou o dedo, sinalizando que ela esperasse. Apertou um bo-tão em seu aparelho de ouvido e exclamou:

– Querida! Você chegou.

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– Oi, vô!O olhar dela estava cansado e as marcas vermelhas em sua bochecha,

por se recostar contra alguma coisa, faziam o avô se lembrar da aparência da neta quando criança, logo após acordar de uma soneca vespertina. Ou talvez ele estivesse lembrando da mãe da menina, uma imagem oriunda de um lugar mais longínquo e um tempo mais distante. Registrou a palidez, o aspecto ferido da pele sob os olhos verdes, e pensou que o mais provável era que ela tivesse vindo para o Maine tanto para fugir de seus próprios problemas quanto para se distrair por completo ao aliviar os problemas dele. E exatamente a possibilidade de ela encontrar consolo ao se preocu-par com o avô é que foi um dos motivos – não que se precise de motivos para querer ver a única neta – de ele ter aceitado com tanta rapidez quando ela ligou dizendo que queria fazer a viagem.

– Você está com fome? – perguntou ele. – Não tem muita coisa em Bangor, mas, se der pra esperar, o Grill está aberto. Eu podia te levar até lá.

– Me levar? Você veio dirigindo?Ele apenas piscou os olhos, mas ficou tentado a usar uma das expres-

sões preferidas da neta durante a infância: dã. Estava mesmo esperando pela pergunta.

– E de que outra forma eu viria pegá-la?– Eu pensei que você tivesse chamado um táxi.– Dave tinha uma corrida. Ida e volta para Portland. Eu não podia

pedir que ele desmarcasse, não na baixa estação. Os negócios andam ruins.– Sério? – Ela balançou a cabeça, em sinal de reprovação, sendo ao

mesmo tempo afetuosa e sincera. – Então não tem nada a ver com teimo-sia nem com orgulho?

– Eles fazem uma ótima torta de abóbora no Grill. Que tal?Ela estendeu a mão até o queixo dele e, num misto de ternura e

repreensão, limpou os restos de lenço de papel que cobriam o corte pro-vocado pelo barbear.

– Por que você não chamou um táxi de Bangor? – perguntou ela, tendo herdado por completo a teimosia dos Wiseman, quiçá o orgulho.

– Um táxi de Bangor! – exclamou ele, verdadeiramente horrorizado com a ideia. – Esses sujeitos só pegam a Rodovia 1! A esta hora do dia, nós ficaríamos presos por muito tempo num engarrafamento de matar.

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Neste ponto, eles já haviam chegado ao carro, uma caminhonete Vol-vo DL que durante vinte e três anos, nos verões, por ocasião de férias ou períodos sabáticos, fizera a travessia, primeiro de Jack e sua mulher, depois de Jack sozinho, da cidade de Nova York até o Maine e na sequência o traje-to de volta. Ele cogitava se valia a pena deixar o Beemote azul para Natalie. Como era de praxe com todos os seus bens – com tudo o que a sorte ou o destino confiavam aos seus cuidados –, ele mantinha o carro de forma impe-cável. Se fosse conservado da maneira adequada, o veículo ainda seria capaz de rodar por muitos anos. Porém, Natalie talvez não quisesse pagar os preços exorbitantes dos estacionamentos nova-iorquinos. Depois que ele partisse, era mais provável que ela nunca mais quisesse percorrer o longo caminho até Red Hook, no Maine. E embora ela fosse sua tzatzkeleh – como para sempre seria –, seu pequeno tesouro, o amor que sentia pela neta era tão desprovido de ilusões quanto de reservas. Pelo jeito como vinha conduzin-do sua vida nos últimos tempos, havia pouca indicação de que ela soubesse como manter seja lá o que fosse.

– Você acha que vai querer o carro? – perguntou ele ao abrir a porta do motorista para Natalie. Deu a volta, abriu a porta do carona, entrou e entregou a chave para ela. – Ou eu ponho um anúncio no jornal?

– Não vende ainda, não. A gente vai precisar dele enquanto eu esti-ver aqui. A não ser que você tenha planos de ir para Nova York.

– Aqui também existem hospitais para doentes terminais. Só que aqui eu estou na minha própria casa, enquanto em Nova York eu seria obrigado a morar num asilo espúrio. Tudo por causa da grata generosidade da Universidade de Columbia.

– Vô, na verdade você não estava morando naquele apartamento. Você passava quanto tempo lá? Três meses por ano?

– Mais para quatro.– Eles precisam hospedar muitos docentes em tempo integral. Você

não pode pôr a culpa neles...– Quarenta e seis anos, Natalie. Eles não teriam morrido se eu ficasse

quarenta e seis anos e meio.Ela ligou o carro e esperou, aquecendo-o da forma como o sistema

exigia. Os dois ficaram sentados, ouvindo o barulho do motor no interior gelado do veículo, dando a Jack tempo suficiente para que se arrependesse

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das palavras amargas. Apesar de ter encarado ou vivido algumas das maio-res calamidades do século XX, tanto no plano pessoal quanto no histórico mundial, até então ele raramente cedera espaço para a amargura. Supunha agora que isso era um sintoma da doença que o estava matando.

– Você podia ficar comigo – disse Natalie, por fim. – Agora que o Daniel foi embora, tem muito espaço.

– Eu estou aqui – declarou Jack. – E agora você também está.– Claro.– Posso perguntar quanto tempo você planeja ficar?– Enquanto você precisar de mim.– Não deve ser muito.– Vô...– Mas que bom que a empresa te deixou vir.– Eu tinha férias acumuladas. – Ela engatou a marcha a ré e, ao mes-

mo tempo, checou o espelho retrovisor e os dois espelhos laterais, só por-que o avô estava ali. Em seguida, suspirou e voltou a pôr a marcha do carro em ponto morto. – Bom, isso não é verdade.

– O que é que não é verdade?– Não estou de férias. Eu pedi demissão.– Você pediu demissão? – Ele bateu com a mão no painel. – Para

tomar conta de mim? Isso é totalmente descabido, Natalie. Não vou per-mitir uma coisa dessas.

– Não foi por sua causa. Eles teriam me dado uma licença.Ela começou a dirigir com calma, acelerando aos poucos, de modo

a não derrapar na pista gelada ou, o que era mais provável, para evitar as críticas dele de que estaria indo muito rápido.

– Então foi por quê?– Porque sim. – Ela parecia irritada. Com a pergunta, consigo mes-

ma e talvez só pelo fato de ter de repetir a história mais uma vez. – Bom, eu estava na sala de uma colega de trabalho e ela estava respondendo a um pequeno interrogatório. Eram as perguntas do advogado da outra parte numa ação judicial.

Ele esperou.– Eram do escritório do Daniel.– Ele escreveu as perguntas?

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– Não. Ele é do societário, e o documento era um documento de contencioso.

– E? – Ele percebeu que ela havia ligado a seta. – Esqueça a Rodovia 1 – disse Jack, de forma abrupta. – Siga em frente até chegar na Quarenta e Seis.

– Está bem.– Ver um documento do escritório do Daniel fez você largar o em-

prego? – perguntou ele, avaliando se o seu cérebro estava ficando devagar e se havia ali uma conexão óbvia que qualquer um, exceto um velho mo-ribundo e abestalhado, era capaz de enxergar.

– Isso me fez perceber que as nossas vidas estavam muito emaranha-das. Ele podia acabar aparecendo no meu escritório para um acordo. Ou talvez eu fosse ao dele para uma reunião de conciliação. Eu simplesmente não quero que isso aconteça.

– Você abandonou um emprego em que ganhava o dobro do que eu juntei no meu último ano como professor titular porque tem medo de dar de cara com o seu ex-marido numa sala de reunião?

– Soa ridículo, né?– Mas é ridículo.– Eu só quero começar de novo.– Fazendo o quê?– Não sei. Eu não quero mais falar sobre isso. Pode ser?Ele fez que sim com a cabeça. Na visão de Jack Wiseman, não falar

sobre as coisas era sempre uma opção, senão a melhor opção. Nesse caso, em particular, porque tudo o que conseguiu pensar em dizer para a neta se resumia a “mas o que foi que aconteceu com você?”. Ela sempre fora tão sensata e resiliente, tão determinada, até mesmo obsessiva. Contudo, des-de o divórcio – não, desde o momento em que optou, inexplicavelmente, pelo casamento precipitado e imprudente com Daniel Friedman – a vida da menina tinha virado de cabeça para baixo.

– Dobre à direita no sinal amarelo – indicou ele, mas a seta já estava ligada. Sob este aspecto, pelo menos, ela ainda sabia que caminho seguir.

O Red Hook Grill, um conjunto de cabines de PVC organizadas como uma armadilha para lagostas junto às cataratas de Caldecott, era o único restau-rante da cidade que permanecia aberto durante toda a baixa temporada.

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No lusco-fusco carregado de tons de cinza daquela tarde gelada, o lugar flamejava como uma promessa extravagante de calor e conforto, e, embora o balcão fosse coberto de fórmica e a torta, de chantilly, a população local dependia dele – assim como Jack – para brindar o interminável buraco ne-gro de um inverno em Down East. Jack fez o pedido de sempre – iscas de peixe com cebolas fritas, no lugar de batatas –, ainda que soubesse que não aguentaria comer mais de um ou dois pedaços. Já fazia um tempo que ele não conseguia ingerir grandes quantidades do que quer que fosse, apesar do que os médicos haviam prometido quando o convenceram a pôr um stent para abrandar a icterícia. Vinha perdendo peso tão rápido que achava que desapareceria antes de ser vencido pelo câncer.

Natalie, em geral, pedia hambúrguer e Coca-Cola zero, mas naquele dia escolheu um milk-shake preto e branco. Quando Louise trouxe a co-mida, ela pôs um canudo dentro do grande copo metálico em que o Grill sempre servia seus shakes e deslizou-o pela mesa em direção a Jack.

– Deve ser mais fácil engolir isso aqui.Ele afagou a mão dela e, por uma questão de boas maneiras e gra-

tidão, tomou um gole da bebida densa e açucarada, como se a estivesse saboreando. Na verdade, detestava milk-shakes.

Ao final da refeição, Louise apareceu com um pedaço de torta prepa-rada naquela manhã, com blueberries congeladas no verão anterior. Cor-tesia da casa.

– Para você aguentar até o próximo verão.Natalie e ela trocaram um olhar. Louise pôs a mão sobre o ombro

de Jack.– Como você está, Jack?– Estou bem, Louise.Então, ele se sentiu obrigado a comer um pedaço da torta. Para seu

paladar comprometido, o gosto era de vinagre e sal.– Muito saborosa – disse ele.– Obrigada, Louise – agradeceu Natalie.Enquanto observavam Louise voltar para a cozinha, ela disse:– Desde que o Daniel foi embora, as pessoas vivem me perguntando:

“Natalie, como você está?”, como se esperassem que eu começasse a chorar ou me descabelar, sei lá. Eu nunca sei o que dizer.

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– É exatamente para esses momentos que a palavra “bem” foi inventada.

– Acho que sim. O papai me liga todo dia e pergunta: “De um a dez, como você está hoje, meu benzinho?” E eu respondo com um número. Nos primeiros dois meses, me mantive firme no um, no dois, mas acabei subindo para cinco, por aí.

– O seu pai faz o mesmo comigo. Todo santo dia.Jack gostava de Neil Stein, seu genro, e era mais próximo dele do que

tinha sido da própria filha. Na verdade, era próximo o bastante para que aquele ritual diário o confortasse em vez de chateá-lo.

– E que número você dá a ele? – perguntou Natalie.– Eu tento ficar acima de seis.– Mesmo com câncer no pâncreas, você responde seis. O idiota do

meu marido me trai e eu fico no um. Bom, isso me torna a pessoa mais egoísta do mundo.

O comentário fez Jack sorrir.– Eu fico feliz que você está aqui, querida. Agora venha cá – disse ele,

empurrando a cadeira para trás. – Vamos sair um pouco e dar uma olhada nas cataratas antes que fique escuro demais para ver qualquer coisa.

– Deve estar bem escorregadio, e além do mais está nevando.Jack vestiu o casaco e as luvas e entregou à neta seu cachecol.– Coloque isto aqui. Não sei onde você estava com a cabeça quando

resolveu trazer um casaco desses para o Maine em janeiro.– Eu queria que você me achasse bonita.– Mas eu sempre te acho bonita.– Então eu é que queria me sentir bonita. Como você sabe, isso ajuda.Porque o fato era que se sentia feia e desprezada por dentro.– Eu entendo. Vamos lá, meu amor.Ele pegou o braço dela enquanto caminhavam pela neve até a beira

da água. Só não sabia se o gesto era para estabilizar a ela ou a si mesmo. Chegaram às quedas, uma misteriosa agitação de água do mar que mudava de direção a cada virada de maré. A maré devia estar quase parada. A água girava em círculos nos espaços estreitos entre as margens, como se em dúvida sobre aonde ir. Natalie jogou um graveto dentro d’água, e os dois ficaram observando-o à deriva, hesitante com o vaivém.

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– Sua vida não terminou, Natalie. Você vai conhecer outra pessoa.– Será? Eu quero o que você tinha com a vovó. Aquele tipo de ro-

mance, dos grandes. Na primeira vez que você a viu, já teve certeza.– Tive certeza? Que interessante. Agora, me diga, do que é que eu

tive certeza?Ele percebeu que havia chocado a neta.– Ah, você sabe... Que ela era a “tal”.– “A tal” – repetiu ele, balançando a cabeça.– A vovó não era a tal?– Sua avó era uma mulher bonita, de bom coração, e eu a amava

bastante. Se ela era “a tal”? Eu não sei. Isso me parece simplista demais.– Vô, o que aconteceu com o Daniel não é muito complicado. Ele

me amava. Depois não me amava mais. Ou talvez ele apenas amasse mais essa outra.

– Pode ser. Ou talvez ele seja um merdinha.– Uau!– Isso é simples o bastante pra você?Ela riu com tanta intensidade que foi obrigada a pegar um lenço de

papel no bolso para assoar o nariz.– Veja – disse ele, apontando para o lugar na água onde tinha des-

pontado a cabeça escorregadiça de uma foca. – É assim que as focas dor-mem. Com o corpo sob a superfície e a cabeça do lado de fora, como um snorkel.

– Ai, meu Deus, você nunca gostou do Daniel.– É, eu nunca gostei do Daniel.– Por que você não disse nada antes de a gente se casar?– Achei que você não fosse me ouvir.Embora ela já estivesse com Daniel Friedman fazia muitos anos, sen-

do o casamento uma possibilidade discutida com frequência, mas sempre postergada, no fim acabaram se casando num impulso, sem aviso prévio ou, até onde Jack sabia, sem qualquer tipo de debate. Os pais de Daniel estavam a caminho de suas férias em Nova Escócia. Jack tinha oferecido a eles o quarto de hóspedes e uma chance de fracionarem a longa viagem desde Nova York, antes que seguissem para pegar a balsa em St. John. Na-talie e Daniel já haviam marcado de passar a semana com Jack, junto com

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Neil. Ao se dar conta de que o que restava de suas respectivas famílias es-tava prestes a se reunir na mesma casa por um dia e uma noite, Natalie de-cidiu, abruptamente, se casar. Jack achou que era uma péssima ideia, mas segurou a língua, imaginando que o jovem rapaz encontraria um meio de escapar. Porém, Daniel, apreciador que era de umas escapadinhas, deixou o barco correr solto, sabendo que seu casco estava danificado. Assim, Jack se viu ciceroneando uma bela e pequena cerimônia à beira-mar, na qual aos núcleos familiares de Natalie e Daniel se juntou um grupo aleatório de conhecidos que por acaso estavam nas proximidades de Red Hook na tarde de 20 de junho. Quando, apenas três meses depois, Daniel chocou a pobre Natalie ao confessar que tinha um caso com uma advogada júnior havia dois anos, Jack não se surpreendeu.

– Você tem razão – concluiu Natalie. – Eu não teria ouvido, porque sou uma idiota. – Ela continuou observando fixamente a foca, e Jack per-cebeu uma expressão preocupada tomar conta dos olhos da neta, familiar a ele desde os tempos em que a menina ainda engatinhava. – Se um tubarão surgir enquanto ela estiver dormindo, será que ela acordará?

Os calafrios começaram a alguns quilômetros de casa, e, quando os dois chegaram ao par de postes caiados que delimitava o início da longa entra-da de garagem feita de cascalhos, todo o corpo de Jack tremia, as pernas sacudiam e os dentes batiam uns contra os outros. Ele uniu as mãos para evitar que ficassem saltitando em seu colo como um peixe num anzol. Mais à frente, o carro emitiu um estalo ao passarem por um amontoado de neve azul-esbranquiçada. Enquanto Natalie seguia adiante até a entrada da casa, Jack manteve os olhos fechados. Não tinha forças nem mesmo para abrir a própria porta, quanto mais para sair dali. Ficou esperando, ouvindo o ranger e bater do porta-malas e o barulho das malas da neta se chocando contra os degraus da varanda.

– Vô? – chamou Natalie. Tinha aberto a porta dele e permaneceu ali, ao redor, vacilante, com um tom de pânico na voz. – Está tudo bem?

– Só estou cansado.– Você está suando.Ele sentiu o suor escorrendo pela testa, formando poças em suas axi-

las e entre as pernas.

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– Eu preciso tirar um cochilo – anunciou ele.Jack permitiu que a neta o tirasse do carro e o ajudasse a entrar em

casa, mas, quando ela tentou acompanhá-lo até o quarto, ele deu um bas-ta. Fechou a porta e, depois de uma tentativa capenga de desabotoar a ca-misa, rastejou para debaixo do edredom e deixou que a febre o dominasse. Dormiu por doze horas seguidas e acordou às seis, sentindo-se melhor do que nas semanas anteriores. Estava bem o bastante até para alimentar e acender o fogão a lenha. Bem o bastante para preparar um café e talvez para tomá-lo.

Natalie desceu logo depois. Em seu camisolão de flanela, com o ca-belo desgrenhado e os olhos inchados de sono, parecia novamente a ga-rotinha com quem ele havia passado tantas manhãs contando histórias como a de Troia, da Guerra do Peloponeso, de Antígona e Polinice, Ulisses e Penélope. Algumas dessas histórias eram totalmente inadequadas para uma criança pequena: histórias de matança, caos e traição. Ela adorava.

– Você está com fome? Quer que eu prepare uma panqueca no for-mato de um N?

Ele quis fazer uma gracinha, mas a proposta acabou parecendo ver-dadeira. Ela sorriu.

– Faz muito tempo que eu não como uma dessas.– Ah! – exclamou ele, ligeiramente em pânico agora que ela parecia

ter aceitado sua proposta boba. Ficou pensando se tinha os recursos neces-sários, quer na despensa, quer em sua estrutura física. – Eu podia...

– Não estou com fome.– Entendi... – disse ele, demonstrando uma decepção disparatada.– Vô, como você está se sentindo?– Estou me sentindo bem melhor – retrucou, olhando para ela. –

Você dormiu bem?– Não muito.– A cama estava...– A cama estava ótima. Eu também não durmo direito em Nova

York.Ela foi até a bancada, encheu uma xícara de café e acrescentou um

pouco do leite que estava na geladeira. Quando se virou de novo para ele, estava segurando um pedaço de papel.

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– Isto aqui é pra você – explicou ela, entregando ao avô um cheque dobrado. Quando ele abriu, viu que estava preenchido com o valor de quinhentos dólares. – É o presente de casamento que você deu pra mim e pro Daniel. Estou devolvendo.

– Querida, isso é uma maluquice. São só mais quinhentos dólares de herança sobre os quais você terá de pagar o imposto – ponderou ele. Em seguida, caminhou até o fogão a lenha, abriu a porta e atirou o cheque à chama.

– Então essa parte do meu plano já era – disse Natalie, parecendo tão perdida que ele quase se arrependeu do gesto que fez.

– Que plano é esse? Devolver seus presentes?– Você não acha que eu devia, já que o casamento só durou três

meses?– Você quer saber o que eu acho? Acho que se o bostinha do seu

marido te troca por uma qualquer depois de você ter dedicado a ele doze anos da sua vida, você tem o direito de usufruir de uma máquina de fazer pão, uma modesta forma de se consolar. Ou de um cheque de quinhentos dólares dado pelo seu avô.

Ela fez um pequeno aceno com a cabeça, num gesto infantil de sub-missão, o que apertou o coração dele.

– Acho que eu preciso de um novo plano – concluiu.Foi então que começou a chorar. De forma suave, demorada, sem di-

zer uma palavra sobre o avô que em breve perderia ou sobre o marido que já perdera. Ele afagou suas costas e, em seguida, como ela não demonstrou sinais de que pararia, foi procurar uma caixa de lenços de papel. Havia se esquecido de comprar mais. Cogitou pegar um rolo de papel higiênico, mas lembrou que em seu quarto havia uma gaveta cheia de lenços antigos de linho, todos engomados. Ao pegar um dos lenços que estavam na pilha, viu na gaveta uma bolsinha de veludo preto surrado. Levantou-a, recor-dando com uma leve pontada o peso dela contra a palma da mão. Houve um tempo em que o conteúdo daquela bolsa representava uma espécie de obsessão. Agora, a bolsa de veludo era apenas uma das coisas amontoa-das nas gavetas da cômoda. Ele gostaria que existisse um meio de ajudar Natalie a entender o caráter frágil, delicado, dos objetos, da memória, até mesmo das emoções diante do tempo e de seu poder devastador, maior do

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que o de Dario na Pérsia ou de Hitler na Alemanha. Porém, ela teria de viver bastante e sofrer algumas perdas para descobrir por si mesma.

Jack ficava apreensivo ao pensar no que Natalie faria depois que ele morresse, sem um emprego fixo para se distrair. Podia imaginá-la sentada sozinha em meio ao inverno do Maine, tornando-se cada vez mais de-primida, perdendo as últimas centelhas que a haviam transformado no grande encanto da vida do avô. Ele novamente sentiu o peso da bolsinha de veludo em suas mãos e depois a levou consigo até a cozinha. Ofereceu à neta um lenço e, em seguida, enquanto ela enxugava os olhos e assoava o nariz, despejou o conteúdo da bolsa sobre a palma da mão e pegou a cor-rente de ouro. O pingente de filigrana dourada balançava. Trazia a imagem de um pavão, em esmalte vidrado, e uma pedra preciosa saía de cada ponta das plumas pintadas.

Natalie se encolheu, como se, em vez de uma bijuteria bonita, em estilo art nouveau, aquilo fosse algo medonho de se contemplar.

– Argh! – exclamou ela.– O que foi?– Eu devia ter te ouvido. Você não queria que eu usasse isso no ca-

samento, mas usei mesmo assim. Agora vou pensar nele sempre que olhar para essa peça e sentir vergonha.

– Isso não é nada justo. Afinal de contas, eu já possuía esse colar muito antes de você e o Daniel terem nascido.

– Você que comprou pra vovó ou ela herdou?– Nem uma coisa nem outra. Era meu.– Não era da vovó?– Não.– Sério? Por que você me falou que era dela? Eu só usei por causa

disso.– Eu nunca te disse que era dela. Por que eu falaria isso, se não é

verdade?Ela franziu os olhos, tentando lembrar.– Ah... – disse Natalie, como que dando o braço a torcer. – E de

quem era o colar? Da sua mãe?– Não.– Então era de quem?

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– Bom, essa é a questão. Eu não sei. – Ele pôde ver certo brilho de interesse no olhar dela, o reacender de uma fagulha que até bem pouco tempo era constante nos olhos de Natalie Stein. Estava decidido a alimen-tar aquela discreta chama com qualquer artigo inflamável que chegasse às suas mãos. – É por isso que eu preciso da sua ajuda.

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