Três Felicidades Ediçao 19092009

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TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO: A experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho - BA Ely Souza Estrela Doutorado em História PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Fevereiro de 2004

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TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:

A experiência dos beraderos de Sobradinho

em Serra do Ramalho - BA

Ely Souza Estrela

Doutorado em História

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Fevereiro de 2004

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA

TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:

A experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho - BA

(Edição Revista)

Ely Souza Estrela

SÃO PAULO

FEVEREIRO DE 2004

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TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:

A experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho - BA

Ely Souza Estrela

Tese apresentada à Coordenação do Programa de Estudos Pós-Graduados do Departamento de

História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à Banca examinadora como

exigência parcial para obtenção do título de Doutora em História. Orientadora: Profª. Drª.

Maria Odila Leite da Silva Dias.

Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias

Departamento de História – PUC/SP

Profa. Dra.Stefania Fraga Canguçu Knotz

Departamento de História– PUC/SP

Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci

Departamento de História – PUC/SP

Profa. Dra. Margarida Maria Moura

Departamento de Antropologia - USP

Profa. Dra. Maria Regina Cunha de Toledo Sader

Departamento de Geografia – USP

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DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado a três cavaleiros honrados:

Leonídio, Bento e Francisco. Eles partiram a galope,

deixando muitas lições e um vazio inestimável.

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RESUMO

A Represa de Sobradinho, localizada no curso do Sub-Médio do Rio São Francisco,

construída em princípios de 1970, atingiu uma população estimada em 72 mil pessoas,

submergindo inúmeros povoados e quatro sedes municipais: Pilão Arcado, Sento Sé,

Remanso e Casa Nova. Para relocar este contingente populacional, a Companhia Hidrelétrica

do São Francisco lançou mão de um ambicioso plano que se consubstanciaria no seguinte: a)

reconstrução das sedes municipais submersas; b) relocação de pequena parcela de famílias na

borda do futuro lago e; c) transferência de aproximadamente quatro mil famílias da zona rural

para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, localizado no município de

Bom Jesus da Lapa.

Conquanto utilizasse métodos que combinavam as falsas promessas e as pressões, a

CHESF não logrou o intento de transferir as famílias da zona rural dos municípios submersos

para o Projeto Especial, sendo obrigada a criar (de forma bastante improvisada) na borda do

lago, vinte e sete “núcleos de reassentamento”, visando abrigar a maioria das famílias

atingidas.

O objetivo deste trabalho é deslindar as experiências e o imaginário criado e recriado

tanto pelas mil famílias dos povoados beraderos do município de Casa Nova, que foram

transferidas para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho e que ali

permaneceram, quanto por uma parcela da população que retornou à borda do lago —

denominada, pelos que ali permaneceram, de os arrependidos. Além de abordar as

experiências e o imaginário da referida população, procuro explicitar as bases nas quais se

assentava a chamada condição beradera de vida, evidenciando as tensões e os embates que

marcaram as relações entre os dois principais atores sociais que se encontraram, frente a

frente, em todo o processo de deslocamento compulsório e relocação, quais sejam: os

beraderos sanfranciscanos e o Estado.

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ABSTRACT

Located half-way down to the mouth of São Francisco River, the Sobradinho Dam was

built in the early 1970s. It affected around 72 thousand people and submerged villages and

four towns – Pilão Arcado, Sento Sé, Remanso and Casa Nova.

In order to resettle such a large number of people, the São Francisco Hydroelectric

Company (herein CHESF) endeavored an ambitious plan. It consisted in (a) rebuilding the

submerged towns; (b) relocating a small number of families on the banks of the lake-to-be and

(c) transferring approximately four thousand families from the rural zone to the Special

Colonization Project on Serra do Ramalho, in the town of Bom Jesus da Lapa.

For as long as it based on duress and false promises, CHESF did not succeed in

transferring the families from the submerged towns onto the Special Project. The Company

was then forced to improvise twenty-seven ‘resettling centers’ on the banks of the lake,

aiming at sheltering most families affected.

This work aims at looking into the experiences and the fantasy conceived and re-

conceived both by the thousand families in the beradero villages in Casa Nova town - who

were transferred to and stayed in the Special Colonization Project on Serra do Ramalho – and

by part of the population who returned to the lake banks – called the ‘the sorry ones’ by those

who remained there. The dissertation also seeks to explain what the beradero life was based

on. Yet, it stresses the cultural dissonances and disparities that characterized the relationship

between the two main social actors, namely the State and the Sanfranciscan beraderos, who

met face to face all throughout the compulsory displacement and relocating process.

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho de pesquisa que resulta em obra desta natureza exige, além de renúncia, a

colaboração e a solidariedade de familiares, amigos e professores. No meu percurso estes

elementos não faltaram. Agradeço, em especial, as sugestões sempre pertinentes e a

colaboração prestimosa da minha orientadora Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias.

As sugestões e colaborações da Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci e da

Profa. Dra. Yara Ahun Khoury que no transcurso da qualificação se mostraram, além de

pertinentes, profícuas, obrigando-me a consultar novas bibliografias e a perseguir novas

fontes, buscando nos “fiapos” das memórias dos entrevistados “vestígios” de suas ricas

experiências.

Entre os colegas da PUC fiz amizades, contando com a estreita colaboração das colegas

Ana Yara Paulino, Regina Ilka, Marta Emísia e Jussara Franca. A amizade com Ana Yara se

tornou ainda mais intensa quando descobrimos laços afetivos que nos ligavam ao Recôncavo

Baiano — meu berço e berço dos familiares de seu pai.

Além dos colegas da PUC, contei com a colaboração dos amigos do Núcleo do

Imaginário do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Foi nas reuniões das

quartas-feiras no Núcleo que o pensamento de autores “herméticos” se tornaram mais

compreensíveis e auxiliaram-me nessa árdua tarefa de compreender e interpretar aspectos da

realidade dos beraderos sanfranciscanos. A condição de neo-sampauleira: indo e voltando,

várias vezes, ao sertão, obrigou-me a faltar em inúmeras reuniões.

No trabalho de perseguição às variadas fontes aqui utilizadas, fiz inúmeras viagens —

uma delas sinistra e de triste memória —, contando em uma outra, com a companhia da

professora Regina Sader e, em duas outras, com a companhia do pessoal do Grupo de Estudos

do São Francisco do Laboratório de Geografia da USP. Os olhares de geógrafos, tanto da

Regina Sader como dos colegas do grupo de estudos acima referido, abriu-me a vista para

alguns aspectos das paisagens sanfranciscanas que até então não dera conta. Agradeço a

Regina e aos colegas do grupo pelas prestimosas observações.

Com a sempre amiga Luciene Aguiar, através de estradas esburacadas, perigosas e

pontuadas de armadilhas (tanto as federais quanto as estaduais), atravessei algumas vezes

parte do sertão baiano. Nesse percurso atrás de fontes (ou seriam miragens?) muitas vezes

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fugidias, conhecei uma outra parte do “Brasil profundo” e minha experiência se tornou ainda

mais rica e as “temporalidades plurais” muito mais concretas.

Aos amigos paulistas Sueli Castro, Roberto Caner, Neusa Mariano, Sinthia Batista, Ugo

Maia, Salete Magnoni, e Conceição Cabrini agradeço, além da amizade sincera, indicações

bibliográficas, material de pesquisa, empréstimo de livros e de equipamentos de informática.

A James Roberto Silva agradeço a formatação criteriosa do texto. Lembro também a

contribuição da amiga Neli Fernandes Couto que, além de municiar-me (via e-mails) com as

fugidias regras da ABNT, deslocou-se de Marília para dar-me apoio durante a impressão. Na

fase final deste trabalho, Rafael Spinelli socorreu-me toda vez que o computador (emprestado

de Conceição Cabrini) “emburrou”, deixando-me em pânico e com a sensação de que os

deuses conspiravam contra mim.

A amiga Belma Gumes agradeço a revisão sempre criteriosa das “minhas mal traçadas

linhas”. Na sua lida, além de rever os possíveis erros ortográficos, dava sugestões e indicava

material de pesquisa. E tudo fez e faz com um desprendimento e uma humildade típica dos

sábios.

Os amigos Higino Canuto Neto e Maria Beatriz Ribeiro merecem atenção especial. O

amigo “juazeirense” Higino, a quem conheci nas asas do nosso querido e saudoso site Coqui,

além de municiar-me com indicações bibliográficas, empréstimos de obras raras e de fazer a

pesquisa na rede, mostrou-se um leitor atento do material produzido, fazendo, às vezes, o

papel que nas editoras é chamado de “produção”. Desde a conclusão dos créditos, a presença

da Bia é marcante no trabalho. Naquele período, abriu-me sua casa (colocando a minha

disposição sua mesa farta) e criou inúmeras situações que favoreceram a discussão e a troca

de informações sobre a temática em estudo. Lembro-me, em especial, das conversas com o

sempre instigante Thiago Allis. Na fase final deste trabalho, além de dividir com a Belma a

revisão de alguns capítulos e com o Higino a “produção” do texto, participou com sugestões

de toda a “tecitura” dos últimos “retoques” do mesmo.

A querida Vânia Bastos Lima fez a revisão da revisão. Apesar de visto e revisto este

trabalho deve apresentar falhas e lacunas, devo salientar eles são de minha inteira

responsabilidade e somente a mim podem ser cobradas e creditadas.

Nessa trajetória conheci muitas pessoas, consolidei amizades e fiz outras tantas. Elas me

ajudaram com total despretensão. Agradeço a Geraldo e Teco Bastos, de Bom Jesus da Lapa,

bem como a Joaquim Lisboa Neto, da Casa de Cultura de Santa Maria da Vitória, os inúmeros

contatos estabelecidos. Foi Joaquim que me pôs em contato com o ex-presidente nacional do

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INCRA, João Mendonça Amorim, a quem agradeço as informações sobre a polêmica extinção

do órgão. E foi Geraldo Bastos que me pôs em contato com o ex-executor do INCRA José

Ganen Marques. Agradeço também ao beradero/ribeirinho Raimundo Pinto a acolhida em

sua casa em Petrolina e as inúmeras informações. As sugestões em relação ao segundo

capítulo foram de grande valia.

No INCRA, em Brasília contei com a colaboração do engenheiro agrônomo Célio

Coelho das Neves e do responsável pelo setor de comunicação social do órgão Eliney

Faulstich. Ambos colocaram a minha disposição material crucial para o entendimento do

Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, bem como de seu processo de

emancipação e “liquidação”. Na superintendência do INCRA em Salvador fui recebida com a

mesma compreensão e tive acesso às plantas e aos mapas do Projeto. Fui recebida com o

mesmo apreço pelos funcionários do INCRA de Bom Jesus da Lapa.

Não posso esquecer os prestimosos “canais” abertos pelo deputado estadual e jornalista

Emiliano José e pela professora de Geografia Humana da Universidade Federal da Bahia,

Guiomar Germani. Os canais abertos por ambos foram fundamentais. Por intermédio de

Emiliano José, entrevistei o ex-governador Roberto Santos e o ex-superintendente do INCRA

da Bahia, José Carlos Arruti. Foi por intermédio da professora Guiomar que travei contato

com o professor João Saturnino.

Agradeço também a equipe da Comissão Pastoral da Terra da Bahia: Ruben de

Siqueira, Luiz Eduardo de Souza, Jackline e Marina Rocha. Não posso esquecer a atenção do

vereador de Casa Nova, José Eduardo Nascimento que me ciceroneou nos povoados

beraderos de Pau-a-Pique e Barra da Cruz. Em Salvador, os colegas Gilmário Moreira Brito,

Augusto César Rodrigues Mendes, Charles d’Almeida Santana e a professora Maria Rosário

de Carvalho municiaram-me com indicações bibliográficas e indicaram-me centros de

pesquisas que foram de grande utilidade para a realização deste trabalho.

Em Caetité, além do apoio dos colegas que votaram pela liberação da minha licença,

devo agradecimentos aos diretores Paulo Moura e Eliane Brito Andrade. Ambos, dentro de

suas possibilidades, colaboraram com meu trabalho e disponibilizam, algumas vezes, o nosso

único veículo para trabalho de campo. A minha presença em Serra do Ramalho num carro

oficial, certamente, inibiu ações que pudessem resultar em intimidações e hostilidades,

justificando-se a cessão do veículo. Nesse sentido, não posso deixar de agradecer ao amigo e

motorista Sr. Adão. Sem que tivéssemos clara consciência, além de motorista, ele

desempenhou o importante papel de segurança.

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Aliás, em Caetité, contei com um grupo de amigos que cuidou, durante minha ausência,

de todos meus interesses. Destaco os nomes de Luciene Aguiar, Eliane Brito de Andrade,

Zoraide de Oliveira e Silva e da figura sempre doce e amiga de D. Jandira Aguiar Ledo. D.

Aguinalda Públio de Castro e Fernando Teixeira devem ser mencionados, pois, todo

momento, deram-me referências e repassaram-me artigos de jornais.

Em Serra do Ramalho, não posso deixar de agradecer as “moças da pensão”, Marli,

Marlene e Branquinha, que sempre me recebiam com deferência e atenção. Agradeço também

ao Padre Bonfim e aos estudantes Lucélia Pardim, Marco Aurélio e Rogério.

Agradeço a minha mãe Licinha, os meus irmãos Jorge e Marta e a cunhada Val a

compreensão em relação as minhas longas ausências, sem contar um certo alheamento, em

relação a assuntos e questões que lhes eram e são caros. Aos irmãos “paulistas” Dina, Zelina e

Cida, e aos cunhados Anísio, José e Roque agradeço o carinho e enorme atenção. Os almoços

domingueiros — já institucionalizados como rituais de memoração e de experimentos

gastronômicos —, a partir da minha presença, transformaram-se em momentos de ativação da

memória familiar em relação, sobretudo, a nossa Travessia.

Na casa da mana Cida e do cunhado Anísio onde fui acolhida com generosidade e

contei com um ambiente propício aos estudos, em consonância com as exigências da

atividade acadêmica.

Agradeço também a acolhida e a compreensão dos sobrinhos Gabriela, Raul, Renato,

Daniela, Marcelo, e Maria Eliza. À Gabriela agradeço, em especial, a cessão de seu ateliê para

que nele abrigasse meu espaço de estudo e de trabalho. À Janilda, que me serviu de

“despertadora oficial”, agradeço a gentileza e atenção. Sem seus préstimos não teria cumprido

os inúmeros e torturantes compromissos matinais.

Este momento também é de memória. Minhas lembranças estão como que povoadas

pelas pessoas que conheci nessa experiência que tanto marcou minha vida e me fez conhecer

um São Francisco contraditoriamente tão rico e tão pobre/tão longe e tão perto. Lembro aqui

as figuras de Orlando Pimenta; de Zeca Marinheiro (um intelectual beradero, cujo sonho é se

aposentar como trabalhador rural e construir uma escola para homenagear sua professora de

primeiras letras); da pequena Cleidicléia que, espontaneamente, foi solicitar os préstimos de

um vizinho para nos ajudar a tirar da lama o carro atolado no “carreiro” que liga Serra do

Ramalho ao Riacho Pitubas; da senhora que nos convidou a almoçar com ela e os filhos,

tendo, apenas, para dividir conosco duas piranhas salgadas penduradas no seu “fumeiro”; de

Josias, o descendente Tuxá que vive entre os Pankaru; de Pedro Bola, o esperançoso e

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solidário ex-sem terra, de Barra (BA); de Getúlio Moura, de Barra do Guaicuí (MG); de Ana

Simoa, de Morro da Garça (MG); de D. Periquita, de Barra (BA); e de Abílio do Jegue, de

Carinhanha (BA). As últimas três figuras, tal a singularidade de suas experiências e de seus

“muito falares e muito saberes”, com certeza, parecem personagem saídos de uma das obras

de Guimarães Rosa. Lembro o espetáculo religioso e cênico da Romaria da Terra e da Águas

de Bom Jesus da Lapa, espaço onde camponeses pobres, sem-terra e religiosos refletem suas

experiências, discutem e deploram as agressões sofridas pelo Velho Chico. Saliento também o

clima franciscano do Palácio Diocesano de Barra e da simpatia com que nos recebeu o bispo

D. Luiz Flávio Cáppio. Menção especial aos músicos da Banda de Pífano da Agrovila 7, de

Serra do Ramalho.

Agradeço a deferência e a simpatia de todos os entrevistados — mesmo daqueles, que a

princípio se mantiveram desconfiados de minhas intenções. Ao abrir o “novelo de suas

memórias” à luz do entrecruzamento entre passado e presente, deram às suas experiências re-

significações outras, colaborando não só para que estas fossem socializadas, mas também para

que parte da história desse país tão plural e diverso se tornasse um pouco mais conhecido de

todos nós.

Por fim, agradeço à CAPES a bolsa de estudos concedida e à Pró-Reitoria de Pesquisa e

Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia a atenção e a deferência.

Agradeço também aos meus ex-alunos (turma de 1999) pelas inúmeras indicações que

fizeram antes mesmo que o projeto de tese fosse se delineando. Quando o acesso à internet era

coisa rara no nosso alto sertão, Catarina Capella providenciou, através da rede, informações

junto ao Programa de Estudos-Pós Graduados do Departamento de História da PUC e, em

conseqüência, devo-lhe, a efetivação de minha inscrição no Programa.

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SIGLAS

AI-5 – Ato Institucional n. 5

ANCAR-BA – Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural

ANI – Associação Nacional do Índio

AP – Ação Popular

BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNB – Banco Nacional do Brasil

BNCC – Banco Nacional de Crédito Comercial

BNH – Banco Nacional de Habitação

CAR – Coordenadoria de Ação Regional

CEAS – Centro de Estudos e Assistência Social

CEEIVASF – Comitê Estadual de Estudos Integrados do Vale do São Francisco

CEI – Centro de Estatística e Informações

CESP – Centrais Elétricas de São Paulo

CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco

CIRA-SR – Cooperativa Integral de Reforma Agrária de Serra do Ramalho

CIRES – Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho

COBAL – Companhia Baiana de Alimentos

CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CSB – Companhia do Sudoeste da Bahia

DESENVALE – Empresa de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu

ELETROBRAS – Centrais Elétricas Brasileiras

EMATER-BA – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - Bahia

ECT – Empresa de Correios e Telegráficos

FETAEB – Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Estado da Bahia

FETAG – Federação dos Trabalhadores da Agricultura

FPM – Fundo de Participação dos Municípios

FSESP – Fundação de Serviços de Saúde Pública

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

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INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INTER – Instituto Jurídico de Terras

ITESP – Instituto de Terras de São Paulo

MAB – Movimento Nacional de Atingidos por Barragens

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MIRAD – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

PDRS – Programa de Desenvolvimento do Reservatório de Sobradinho

PEC-SR – Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho

STR – Sindicato de Trabalhadores Rurais

SUCAM – Serviço de Combate à Malária

TDA – Título da Dívida Agrária

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FIGURAS

1. Tabela com destino da população deslocada, p. 109

2. Mapa do deslocamento de população da área da Represa de Sobradinho para Serra

do Ramalho, p. 110.

3. Planta do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, p.140.

4. Fotografia de charrete, ilustrando meio de transporte, p. 157.

5. Fotografia de casa padronizada construída pelo INCRA, p. 158.

6. Fotografia dos Pankaru “brincando” o Toré, p. 183.

7. Fotografia de casa em ruína na Agrovila 19, p. 187.

8. Detalhe de localização do povoado de Barra da Cruz, p. 204.

9. Fotografia da capela de Barra da Cruz, sinalizando depleção, p. 220.

10. Fotografia de vista do povoado de Barra da Cruz, p. 221.

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Pensava: pra enchê essa barrage

São Pedro tem que abri as bicas do céu. Não é que abriu!

São Pedro acabou de amigagem com a CHESF.

(Eudelina – Serra do Ramalho)

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SUMÁRIO

Apresentação..................................................................................................................17

Introdução - O mundo de ponta cabeça – o deslocamento compulsório .......................21

Capítulo I - Antes do Redimunho – As três felicidades ................................................45

1. As três felicidades.................................................................................................45 2. A terra era a grané.................................................................................................52 3. Caranguejando no rio............................................................................................63

Capítulo II - O redimunho em ação – espanto e esperança ...........................................84

1. O sertão vai virar mar ...........................................................................................84 2. De ouvir dizer .......................................................................................................86 3. A ordem é partir ....................................................................................................90 4. A dupla injustiça ................................................................................................. 103 5. Fisgando o peixe ................................................................................................. 114 6. Está na hora de limpar a área .............................................................................. 127

Capítulo III - Depois do Redimunho – o desengano ................................................... 135

1. O paraíso planejado ............................................................................................ 135 2. O inferno vivido.................................................................................................. 147

2.1. Vida de catingueiro..................................................................................... 149 2.2. Bairro rural versus Agrovila........................................................................ 151 2.3. Cobrando as promessas............................................................................... 159 2.4. Válvula de escape do INCRA ..................................................................... 162 2.5. Fome e penúria............................................................................................ 166

3. Antes do inferno... em Serra do Ramalho........................................................... 174 4. O INCRA tira o corpo fora ................................................................................. 190 Capítulo IV- Em busca da felicidade perdida – a reconstrução de Barra da Cruz.. 194 1. Movidos pela paxão e pelo sonho....................................................................... 194 2. O difícil regresso................................................................................................. 205 3. O consolo é o rio................................................................................................. 220

Considerações finais .................................................................................................... 226 Fontes .......................................................................................................................... 236 Referências ................................................................................................................. 238 Bibliografia.................................................................................................................. 246 Relação de entrevistados ............................................................................................. 251

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APRESENTAÇÃO

Meu primeiro contato com as agrovilas da Serra do Ramalho deu-se em 1997. Estava há

um ano em Caetité e pouco conhecia do seu entorno. Aproveitando a estada nesta cidade de

um amigo paulista, que viera ministrar curso no Departamento de Ciências Humanas —

Campus VI, da Universidade do Estado da Bahia — para o projeto de extensão do qual era

coordenadora, resolvi convidá-lo a dar um passeio ao santuário de Bom Jesus da Lapa,

distante aproximadamente 150 quilômetros de Caetité.

Frustrados diante da perspectiva de não comermos peixe à beira do São Francisco,

resolvemos dar um “pulinho” para almoçarmos em Santa Maria da Vitória — terra do escritor

Osório Alves de Castro —, situada à beira do Rio Corrente. Imbuídos do espírito de aventura

(Não era ele representante dos bandeirantes povoadores daquelas paragens?), ali, decidimos

voltar à Caetité fazendo um trajeto diferente do que havíamos percorrido. Ao invés de

voltarmos pela Rodovia Brasília-Ilhéus, pegamos uma vicinal que nos levou à Carinhanha,

localizada na confluência dos limites entre Bahia-Minas-Goiás; atravessaríamos o São

Francisco de balsa e, em Malhada, pegaríamos outra vicinal que nos levaria à Caetité. A

aventura durou muitas horas além do previsto e nos revelou um Vale do São Francisco

completamente diferente do imaginário que esboçamos, enquanto consultávamos o mapa

rodoviário da região.

A estrada que ligava Carinhanha à Rodovia Brasília-Ilhéus cortava uma área dividida

em lotes mais ou menos regulares completamente devastados, despontando da terra quase

limpa, vez ou outra, um teimoso juazeiro (Zizyphus Joaseiro) ou uma barriguda (Iriartea

Ventricosa) ainda acinzentada. Somente nas proximidades de Carinhanha, às vezes, surgia um

lote onde a mata parecia estar em processo de recomposição. Não fossem as primeiras chuvas

que faziam brotar a “babugem” e o capim, o espaço que se mostrava aos nossos olhos seria

ainda mais sombrio e desolador.

Porém, o que nos chamou mais a atenção foi que, mais ou menos a cada sete

quilômetros, deparávamos com um povoado, formado por casas bastante rústicas e de estilo

padronizado. Eram as agrovilas de Serra do Ramalho, espaço criado com a única função de

abrigar os deslocados de Sobradinho, mas que, devido à recusa de grande parcela destes em

ali se fixar, se tornara abrigo dos desprovidos de terra de vários recantos do Nordeste e do

Brasil.

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De volta a Caetité, contamos a aventura para colegas de trabalho que traçaram um perfil

das agrovilas nada alvissareiro. As agrovilas, segundo essas pessoas, eram um espaço “de

ninguém”, local onde vigoravam a marginalidade e a violência, sendo, portanto, evitadas por

todos que temiam pela sua integridade física.

Aliás, em Caetité e entorno todos os acontecimentos vistos como representativos de

modos não civilizados ou bizarros aconteceram “pelos lados de Serra do Ramalho”.

Fenômenos “fantásticos”, tais como crianças nascidas com duas cabeças, fetos com

características antropomorzóficas, mulheres com a barriga nas costas, teriam sido registrados

“pelas bandas de Serra do Ramalho”. Às vezes, a localidade era palco de fenômenos menos

fantásticos, mas pouco plausíveis. Durante uma aula que ministrei, abordando aspectos da

presença e da cultura indígena no Brasil, um dos alunos teimava em afirmar que “pelos lados

de Serra do Ramalho” havia índios “selvagens”; a contundência era tamanha, que mais um

pouco não afirmava tratar-se de índios antropófagos.

O imaginário construído pelos habitantes da região do entorno das agrovilas me chamou

a atenção, mas, naquele momento, estava por demais envolvida com a elaboração de minha

dissertação de mestrado — Os sampauleiros. Cotidiano e representações — e, embora as falas

sobre as agrovilas ficassem ecoando em minha cabeça, os compromissos com o trabalho

anterior falavam mais alto.

O segundo contato com as famigeradas agrovilas deu-se em 1999. Naquele ano

ministrava uma disciplina optativa abordando especificamente aspectos da presença

indígena nas Américas, quando um aluno trouxe novamente à baila a existência de um

agrupamento indígena na Agrovila 19, localizada no antigo Projeto Especial de Colonização

Serra do Ramalho. Diante da informação, resolvi estabelecer contato, visando levar a turma

para conhecer a comunidade indígena. Nessa agrovila, conheci não só os indígenas Pankaru1,

mas um pouco da história de outras agrovilas e da formação do município recém

desmembrrado de Bom Jesus da Lapa, ficando chocada com todo o processo de implantação

do Projeto e com o grau de abandono e de violência a que foram submetidos seus primeiros

moradores.

1Esta comunidade acredita-se vinculada aos Pankararu e chegaram a Serra do Ramalho por volta da década de 50. Nos anos 80, a comunidade Pankaru da Agrovila 19 mudou seu nome deliberadamente, para diferenciar-se dos Pankararu que vivem no Estado de Pernambuco. Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de Pernambuco, reconhecidas secularmente pelas autoridades constituídas.

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Compreendi também a razão pela qual o imaginário cingido em relação a Serra do

Ramalho comportava a presença de índios selvagens. Antes da criação do Projeto Especial, a

área era formada de mata “fechada”, apresentando uma fauna bastante variada. A presença da

onça pintada na área, bem como nos municípios de Carinhanha, Malhada e Feira da Mata era

comentada em toda a região, atraindo caçadores de vários lugares. A título de curiosidade, na

entrada da cidade de Palmas de Monte Alto, localizada à margem direita do Vale do São

Francisco, encontra-se esculpida, provavelmente em gesso, uma enorme onça pintada,

rememoração dos tempos em que onças e caçadores se enfrentavam nas matas do médio São

Francisco.

Como veremos a seguir, a população de Serra do Ramalho é proveniente de vários

recantos do Nordeste. Dos primeiros contatos ficou evidenciado que não há uma uniformidade

de vozes no que tange ao modo de ver o projeto e de descrever a experiência do

deslocamento; pelo contrário, há em Serra do Ramalho uma polifonia, podendo se diferenciar

três grupos de vozes: a dos originários da área que ficou submersa pela Represa de

Sobradinho, a dos antigos moradores de Serra do Ramalho e a dos indivíduos que vieram de

outros recantos da Bahia, bem como do Nordeste.

Das tantas vozes — emanadas de indivíduos tão fortemente marcados pela experiência

dos deslocamentos —, a tese em curso se concentra, conforme salientarei na introdução,

especialmente nas emanadas dos indivíduos provenientes das áreas submersas pela Represa de

Sobradinho, ou seja, dos indivíduos que experienciaram o destorritorialização própria do

deslocamento compulsório, condição que deu ensejo à criação do Projeto Especial de

Colonização de Serra do Ramalho pelo governo federal. Atento-me para o cotidiano do

deslocamento, ressaltando, mais especificamente, as fricções e as tensões verificadas entre os

atingidos e os agentes do Estado no território recém criado para reassentá-los,manifestações

de que estes atores sociais, para além da questão social, viviam temporalidades diferenciadas,

portando, portanto, visões, atitudes, percepções e interesses bastante contrastantes.

20

O redimunho mudou tudo

Tudo levou de roldão

Submergiu os lameiros

Separou pai e irmão

Trouxe desassossego

Pro nosso sertão.

(José Libório – Ibotirama)

]

21

INTRODUÇÃO

O MUNDO DE PONTA-CABEÇA – O DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO

O anúncio da construção da Represa de Sobradinho, em princípios de 1970, significou

para muitos sertanejos a possibilidade de confirmação da profecia de Antônio Conselheiro: “o

sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”2.

A abundância de água e a possibilidade de seu aproveitamento para irrigação, conforme

propagavam técnicos e políticos, traziam consigo, além do mais, a perspectiva de confirmação

de uma outra profecia também bastante conhecida dos sertanejos sanfranciscanos: a terra

prometida, onde jorraria, em abundância, leite e mel (Cunha, 1988, p. 194).

À medida que o projeto foi implementado, ganhando contornos mais definidos, os

riberinhos e beraderos das áreas atingidas confirmaram a percepção de que, longe da

realização da profecia, a construção da gigantesca e moderna obra apontava para a total

desorganização de seus meios de vida e de seus valores sócio-culturais.

No entanto, os órgãos governamentais argumentavam que a desorganização seria

passageira e, logo que os indivíduos deslocados se estabelecessem, a situação se configuraria

de outra forma, avizinhando-se perspectivas promissoras.

Desse modo, o Projeto Especial de Colonização de Bom Jesus da Lapa3 foi cercado de

enormes expectativas: políticos, burocratas e técnicos nele envolvidos, direta ou

indiretamente, propagandeavam seus benefícios. Nos discursos desses agentes

governamentais, o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho tornar-se-ia uma

espécie de celeiro do Nordeste, gerando emprego e renda, não só para os reassentados como

também para os habitantes de toda a região. As práticas adotadas pelas agências

governamentais para arregimentar e cadastrar as famílias que seriam deslocadas para Serra do

2A forma de escrita acima faz parte do imaginário popular e se tornou consagrada; no entanto, na oratória de Antônio Conselheiro, a profecia aparece de outro modo. Vejamos: “Em 1894 há de vir rebanhos de mil correndo do centro da Praia para o certão então o certão virará Praia e a Praia virará certão.” Citado por Sérgio Guerra, Universos em confrontos – Canudos X Belo Monte, 1999, p. 108. 3 Logo após o remanejamento dos beraderos da área de Sobradinho, o Projeto passou a ser denominado de Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho.

22

Ramalho, como veremos mais adiante, foram, basicamente, de três ordens: promessas

sedutoras, pressões e violência simbólica.

Apesar disso, pouco mais de um quarto das quatro mil famílias atingidas da zona rural

deixaram as bordas do lago em formação. Embora recebido com reticência e certo

estranhamento pela população beradera expropriada da terra e do rio, o Projeto Serra do

Ramalho entusiasmou a população de Bom Jesus da Lapa. Conforme salienta Geraldo

Bastos4, o projeto foi recebido pelos lapenses com bastante expectativa. Cada novo vapor que

chegava trazendo os expropriados e seus pertences, cada novo ônibus que cortava as estradas

de chão ainda pouco curtidas pelo atrito dos veículos automotores, era visto com bons olhos,

pois sinalizavam a chegada de novos consumidores, de progresso e de desenvolvimento para

o município. Porém, com o correr dos anos, o futuro celeiro do Nordeste apresentava um

quadro desolador: a cooperativa faliu, o crédito foi suspenso, as safras minguaram, a irrigação

(em área situada às margens do rio) fracassou, passando o projeto a ser visto pela população

de Bom Jesus da Lapa e do entorno com desconfiança, desconforto e descrédito.

Tendo isso em vista, conforme salienta Bursztyn, quando o movimento em favor da

emancipação político-administrativa das agrovilas tomou corpo, as autoridades do município

de Bom Jesus da Lapa não se opuseram à emancipação das agrovilas5. Afinal, para aquelas

autoridades e para grande parte da população daquele município, as agrovilas de Serra do

Ramalho representavam uma espécie de pesadelo do qual queriam distância.

Devido a uma série de razões que serão explicitadas no corpo do trabalho, muitos

reassentados abandonaram seus lotes, voltando às áreas de onde eram originários ou

deslocando-se para São Paulo e Brasília. Outros recorreram aos meios mais inusitados para

desfazer-se de suas parcelas: venderam-nas a preços muito abaixo do custo —

desconsiderando suas benfeitorias — ou trocaram-nas por bens móveis.

A perspectiva de fracasso total do projeto levou o Instituto Nacional de Reforma

Agrária (INCRA), rapidamente, a redirecionar sua política; famílias de sem-terras vindas de

diferentes pontos da Bahia, do Nordeste e até do Centro-Sul do país receberam lotes e se

estabeleceram nas agrovilas ociosas. Em razão da crescente demanda, novas agrovilas foram

criadas e o Projeto de Serra do Ramalho se “descaracterizou”, tornando-se uma válvula de

escape do INCRA. Cadinho de indivíduos provenientes de diferentes pontos do Brasil.

4 Entrevista concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 14/07/2000. 5 As elites políticas de Bom Jesus da Lapa não se opunham à emancipação das agrovilas desde que o perímetro irrigado da CODEVASF – Projeto Formoso – ficasse dentro dos limites do município. Entrevista de Antônio Ribeiro concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 6/12/2002.

23

Para os moradores das agrovilas que ali se estabeleceram em primeiro lugar — os

provenientes das áreas submersas pela Represa de Sobradinho —, os novos reassentados

constituíram ameaça, criando-se um clima de desconfiança e animosidade entre eles.

Nas agrovilas, nos primeiros anos do Projeto, era notória uma forte divisão entre as

famílias, (no que se refere à procedência de seus moradores): de um lado, baianos oriundos da

região de Sobradinho e, de outro, demais nordestinos que eram vistos como forasteiros6. No

imaginário dos indivíduos provenientes das áreas submersas pela Represa de Sobradinho, os

demais nordestinos aparecem como violentos e responsáveis pela desagregação de uma

ambiência baseada na solidariedade e união, que acreditam ter trazido dos barrancos

sanfranciscanos. Numa clara demonstração de “translação” de hierarquia, os nativos de Serra

do Ramalho desaprovavam o projeto e responsabilizavam os indivíduos de “fora”,

independentemente de sua procedência, por tudo quanto de “estranho” e “errado” acontecesse

nas agrovilas, tornando ainda mais tensas as relações entre os agentes do Estado e os

reassentados em Serra do Ramalho.

As relações entre os atingidos e as agências do Estado envolvidos no processo de

reassentamento suscitam uma série de questões e problemáticas que instigam à pesquisa. Este

trabalho, Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em

Serra do Ramalho, visa compreender a experiência do deslocamento compulsório dos antigos

moradores da região de Sobradinho que se estabeleceram em Serra do Ramalho, destacando

as dissonâncias e desconpassos destes com os agentes do Estado, sem perder de vista as

peculiaridades e as nuanças da condição beradera de vida, recorrendo às dimensões espaço-

tempo7 que saltam de suas narrativas, quais sejam: o ontem-lá (beira do Rio), o hoje-aqui

(Serra do Ramalho), o hoje-lá (Barra da Cruz) e o ontem-aqui (Serra do Ramalho).8

Estes eixos espaço-temporais, digamos assim, bem como o título e todos os subtítulos

foram realçados das falas dos entrevistados e são ilustrativos do rico imaginário que cerca a

vida dos beraderos sanfranciscanos e o Projeto de Serra do Ramalho e suas famigeradas

“grovilas”.

6 Em algumas agrovilas há divisão entre os próprios “forasteiros”. Na Agrovila 10, por exemplo, as ruas são divididas, de um lado moram paraibanos e de outro moram os pernambucanos. 7 Em A condição pós-moderna, de David Harvey (1994), o espaço-tempo ou tempo-espaço aparece intimamente relacionado à questão da compressão. Mais que isso, aqui, a dimensão espaço-tempo significa uma certa maneira de experienciar a realidade e o passado, onde fatos e acontecimentos sempre são lembrados em referência a um espaço determinado. 8 Essas dimensões estão presentes em todos as entrevistas, contudo elas ganharam contornos mais explícitos depois da leitura da dissertação de Ruben Alfredo de Siqueira, O que as águas não cobriram: tempo, espaço e memória, 1992.

24

As três felicidades ou as três vidas, como se expressavam alguns entrevistados, estão

relacionadas à visão de riqueza e de fartura dos tempos vividos nas barrancas do São

Francisco, antes que as intervenções da “besta fera” - a Companhia Hidroelétrica do São

Francisco (CHESF) - modificasse o regime do rio e o seu curso. O desengano refere-se à vida

de reassentado no Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, sobretudo nos

primeiros anos de sua implantação, quando as expectativas que cercavam a área se

esboroaram diante de uma realidade dura e, por que não dizer, cruel, em nada condizente com

as promessas feitas pelos agentes governamentais e as prefigurações realizadas em torno do

projeto.

Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em

Serra do Ramalho é uma tese que busca problematizar a experiência do deslocamento

compulsório, evidenciando as tensões entre o Estado (através das agencias governamentais) e

os beraderos, trazendo também à baila o imaginário construído e re-construído em relação ao

espaço submerso pela construção da Represa de Sobradinho, bem como do local onde foram

reassentados, tendo por base a memória de um conjunto de indivíduos originários dos

povoados de Intãs, Bem-Bom, Barra da Cruz e Pau-a-Pique, todos localizados no município

de Casa Nova. A escolha de indivíduos oriundos desses povoados se deu tão somente porque,

dentre os moradores de Serra do Ramalho provenientes da região de Sobradinho, eles

constituem maioria.

Este trabalho é constituído de quatro capítulos. Embora todos estejam enlaçados entre

si, fogem da linearidade da narrativa positivista, podendo ser lidos em qualquer ordem.

No primeiro capítulo, Antes do redimunho: as três felicidades, abordo a formação

territorial da região de Sobradinho, discutindo as formas de propriedade fundiária

predominantes na região. Esmiuço a condição beradera de vida, destacando a relação de

dependência e a afetividade que o sanfranciscano nutria e nutre pelo rio; a formação dos

povoados (bairros rurais), suas tradições, os costumes e as formas de sociabilidade, até o

momento em que foram surpreendidos pela notícia do deslocamento compulsório.

No segundo capítulo, O redimunho em ação: espanto e esperança, discuto o contexto

em que se deu a construção da Represa de Sobradinho, a formação do convênio entre a

CHESF e o INCRA, o espanto dos riberinhos e beraderos em relação aos desdobramentos da

construção da Represa, as primeiras reuniões com a “equipe social”, as indenizações, as

tentativas de resistência, o deslocamento compulsório. Nesse capítulo, partindo de vozes

diferenciadas, busco interrogar a razão pela qual um grupo de beraderos aceitou a

25

transferência para área distante da borda do futuro lago, enquanto a maioria, num processo de

resistência passiva, se valeu de todos os meios para permanecer na borda do futuro rio-lago.

No terceiro capítulo, intitulado Depois do redimunho: o desengano, deslindo a

organização espacial do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho (PEC-SR) em

seus pormenores, destacando os descompassos e dissonâncias entre os reassentados, os

agentes governamentais e a empresa planejadora do projeto. Em seguida, evidencio aspectos

do cotidiano dos deslocados nas agrovilas, as relações com o gerente-executor, as

reclamações, as reivindicações, etc. Exploro os fatores que levaram à reprovação do projeto e

ao seu abandono por parte de muitos indivíduos que vieram da área de Sobradinho. Evidencio

as transformações por que passou o projeto, resultantes da resistência cotidiana e passiva

empreendida por camponeses despossuídos de meios de vida, bem como os choques entre os

reassentados, reveladores da existência de culturas e temporalidades diferenciadas. Além de

espacializar a Serra do Ramalho, procuro pôr em evidência aspectos de sua história,

salientando que, muito antes da implementação do Projeto, a região era habitada por

indivíduos provenientes de diferentes lugares. Exploro a resistência dos antigos moradores da

Serra, o que aconteceu com os povoados e onde foram reassentados seus moradores. Em

seguida, discuto as razões que levaram alguns reassentados a encaminhar o processo de

emancipação do Projeto e a emancipação propriamente dita.

No último capítulo, A busca da felicidade perdida – a reconstrução de Barra da Cruz,

analiso as razões que levaram os beraderos — denominados pelos que permaneceram na

borda do rio-lago de arrependidos — a partirem de Serra do Ramalho em direção às terras do

antigo povoado de Barra da Cruz, destacando o sentido da palavra paxão e o papel

desempenhado pelo sentimento no retorno dos chamados arrependidos. Surpreendo também a

experiência desses indivíduos nos primeiros dias na borda do lago, os embates com os

grileiros, com os agentes governamentais e com demais autoridades constituídas, sem perder

de vista, contudo, as disputas políticas que envolveram a Igreja, o Estado e as elites locais –

representadas, no caso de Casa Nova, pela figura do prefeito “biônico” Adolfo Viana.

26

Sobre conceitos, linhas de abordagens e fontes

É um imperativo do fazer acadêmico explicitar as referências teórico-metodológicas e

as fontes utilizadas no desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Isso compreende

esclarecer as linhas de abordagens e o corpo conceitual com o qual se buscará interlocução no

decorrer do trabalho, bem como as fontes utilizadas e onde elas foram encontradas.

A compreensão da experiência do deslocamento — as tensões e o embate envolvendo

os atingidos e as agências do Estado — e também da apreensão do imaginário verificado entre

os habitantes de Serra do Ramalho provenientes da área da Represa de Sobradinho exige

diálogo com outras áreas das ciências humanas e a utilização de um corpo conceitual

consistente, que corresponda às perspectivas e problemáticas evidenciadas, bem como de uma

metodologia apropriada ao objeto de estudo. Talvez, aqui, seja oportuno lembrar as palavras

de Hans Georg Gadamer:“é o objeto que determina o método apropriado para investigá-lo”

(1998, p. 21).

Primeiro convém discutir o conceito de experiência. Ele aparece em duas das obras de

Thompson: Miséria da Teoria e A formação da Classe trabalhadora na Inglaterra. Contudo,

em nenhuma delas o historiador se preocupou em fazer uma abordagem teórica mais precisa

do conceito por ele desenvolvido.

Na primeira obra, Thompson refuta as determinações estruturais defendidas por Louis

Althusser e, mais que isso, enceta, no centro da discussão do pensamento marxista, o conceito

de experiência — termo ausente — para usar suas palavras.

O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão

origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante,

no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente,

propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o

qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. A

experiência, ao que se supõe, constitui uma parte da matéria-prima

oferecida aos processos do discurso científico da demonstração. E

mesmo alguns intelectuais atuantes sofreram, eles próprios, com a

gênese de sua matéria-prima, desde que ela chegue a tempo

(Thompson, 1981, p. 16).

27

Nessa perspectiva, a experiência se constitui enquanto consciência social9, consciência

do ser/estar no mundo, de estar inserido na realidade, condição marcada por embate e fricções

negadoras de estruturas que aprisionam os indivíduos no cotidiano. Ela se manifesta ou é

construída no espaço da vida cotidiana, compreendendo “uma resposta mental e emocional,

seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a

muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento” (Thompson, 1981, p. 15).

A enunciação do significado de cotidiano à primeira vista parece um contra-senso.

Afinal, o cotidiano não é a vida do dia-a-dia? O que há de complexo nas atitudes e relações

rotineiras dos indivíduos?

Tanto quanto os outros conceitos, a palavra é polissêmica. Neste trabalho, tenciono

examinar questões pontuais relativas à enunciação do cotidiano que se apresentam úteis à

pesquisa que busco desenvolver. Uma primeira questão que se coloca é: que é o cotidiano?

Nas palavras de Berger e Luckmann, a vida cotidiana “é a realidade por excelência” (1985, p.

38). Desse modo, o homem nasce já inserido na cotidianidade e ela é inexorável, englobando

todas suas ações, comportamentos e atitudes. Para Heller, a vida cotidiana requer do homem o

funcionamento de todas as suas capacidades intelectuais, das suas habilidades manuais e dos

seus sentidos. Ela é heterogênea e seus componentes orgânicos são:“a organização do trabalho

e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a

purificação” (1992, p. 18).

Embora não se contraponha à concepção de Heller, Maria Odila Leite da Silva Dias

salienta que o “estudo do conceito de cotidiano abarca uma frente ampla de áreas

multidisciplinares e envolve uma estratégia de questionamentos de crítica da cultura” (1998,

p. 224). Vislumbrando o conceito de cotidiano na perspectiva da crítica da cultura, a autora

ressalta que pensadores da contemporaneidade deixam entrever que o conceito em apreço,

antes de assumir qualquer outro prisma, sugere: “mudanças, rupturas, dissolução de culturas,

possibilidades de novos modos de ser” (idem, p. 226).

Enquanto lócus e expressão das fricções, das rupturas e dos embates que marcaram o

advento da modernidade, o cotidiano é, ao mesmo tempo, o conceito privilegiado de crítica da

cultura, das contradições das sociedades modernas, revelando-se, também, enunciador da

existência de múltiplas temporalidades. O estudo do cotidiano — em uma perspectiva crítica,

9 “Evidentemente a consciência, seja como cultura não autoconsciente, ou como mito, ou como ciência, ou lei, ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido – as pessoas podem, dentro de limites, viver as expectativas sociais ou sexuais que lhes são impostas pelas categorias conceptuais dominantes”. E.P.Thompson, Miséria da teoria, 1981, p. 17.

28

como salienta Maria Odila Leite da Silva Dias — expressa um modo de compreensão da

realidade que rompe com os conceitos fechados, racionalizantes e “voltados para o estudo das

macroestruturas” (1998, p. 224), abrindo vetores para a compreensão da realidade social na

“contracorrente”, partindo de nuanças e de pontos de vistas que privilegiam os sujeitos sociais

relegados ao segundo plano ou silenciados da história.

Expressão, digamos assim, das relações friccionadas, o imaginário social é gestado nas

relações cotidianas, apresentando-se, quase sempre, através de atitudes, de ações, de

narrativas, de opiniões, de visões, de concepções, de pensamentos, de conhecimentos e de

imagens. Entendido desse modo, o imaginário social construído e reconstruído pelos atingidos

da Represa de Sobradinho se constitui em importante fator de compreensão e de

ressignificação de aspectos da experiência que vivenciaram.

O trabalho de pesquisa que busca a apreensão da experiência e do imaginário social, ou

seja, do modo como os sujeitos sociais vivenciaram ou vivenciam aspectos da realidade e as

expressam, exige constante diálogo com a memória. Efetivar este diálogo implica reconhecer

a memória como o “espaço” de confluências de experiências diversas, sentidas e percebidas

de modos diversos, dispostos, digamos assim, circularmente no tempo, mas amalgamadas em

função do presente. Faz sentido, portanto, lembrar as palavras de Raphael Samuel:

[...] a memória é historicamente condicionada, mudando de cor e de forma de acordo com o que emerge no momento; de modo que longe de ser transmitida pelo modo intemporal da “tradição”, ela é progressivamente alterada de geração em geração. Ela porta a marca da experiência por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer igual (1997, p. 44).

Seguindo a trilha de Alessandro Portelli, neste trabalho procuro evitar o uso da

expressão memória coletiva (1997, p. 16). A propósito:

A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se consideramos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da

29

linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são — assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes — exatamente iguais. (Portelli, 1997, p. 16)

Do ponto de vista de Portelli, as vivências, mesmo aquelas socialmente compartilhadas,

são vistas e sentidas de modo muito particular pelos indivíduos, ou seja, lembranças e

recordações são experiências individuais. As entrevistas que tenho realizado com um conjunto

expressivo de pessoas têm demonstrado a riqueza e variedade de interpretações de suas

experiências, enquanto atingidas pela Represa de Sobradinho, fato que as empurrou à

condição de deslocados compulsórios.

Embora a percepção da desterritorialização se coloque para além da questão espacial, a

mudança no espaço físico é sentida concretamente. Portanto, convém lembrar as palavras de

Abdelmalek Sayad :“a imigração é, em primeiro lugar um deslocamento de pessoas no espaço

e antes de mais nada no espaço físico (...)” (1998, p. 15)

Fenômeno social típico do mundo contemporâneo que ganha ressignificações diversas,

geralmente, a migração “tende a assumir feições próprias, diferenciadas e com implicações

distintas para os indivíduos ou grupos sociais que a compõem e a caracterizam” (Salim, 1992,

p. 119). Para se ter uma idéia,

recente relatório do Banco Mundial calcula que as grandes barragens cuja construção se inicia a cada ano em todo o mundo deslocam compulsoriamente nada menos de 4 milhões de pessoas. Grandes projetos urbanos e de vias de transporte, por sua vez, acrescentam anualmente a este contingente mais de 6 milhões. Entre 1983 e 1993, segundo o mesmo relatório, entre 80 e 90 milhões de pessoas foram reassentados involuntariamente. (Vainer, 1996, p. 5).

Em linhas gerais, os fluxos de população são divididos em dois grandes blocos:

deslocamento ou migração e deslocamento compulsório ou involuntário10. Na perspectiva dos

10 Neste trabalho, utilizarei o termo deslocamento compulsório ou involuntário como fator de diferenciação de outras formas de mobilidade de população consagrada na literatura da temática, mas sem perder de vista a concepção de Jean-Paul Gaudemar, qual seja: “Toda estratégia capitalista de mobilidade é igualmente estratégia de mobilidade forçada.” Mobilidade do Trabalho e acumulação do capital. Lisboa, 1977, p. 17.

30

estudos demográficos, a migração está relacionada basicamente à mobilidade espacial. Não é

outro o entendimento de Everett Lee, quando escreve:

De uma maneira geral, define-se migração como mudança permanente ou semi-permanente de residência. Não se põem limitações com respeito à distância do deslocamento, ou à natureza voluntária ou involuntária do ato, como também não se estabelece distinção entre migração externa e migração interna. Assim, considera-se como ato migratório tanto um deslocamento que se processa de um departamento do lado direito do corredor para um departamento do lado esquerdo, como um deslocamento de Bombaim, na Índia, para Cedar Rapids, Iowa (USA), embora seja natural que o início e as conseqüências desses dois deslocamentos apresentem diferenças imensas (1980, p. 99-100).

Além da questão espacial, as Organizações das Nações Unidas (ONU) considera como

definidor dos deslocamentos de população suas causas e suas motivações. Assim, a migração

“resulta de um ato de vontade do migrante”11 (Vainer, 1986, p. 5). Já, os deslocamentos

compulsórios são

motivados por razões alheias aos grupos sociais que estão neles envolvidos, e que derivam de processos sobre os quais eles têm pouca ou nenhuma influência. A compulsoriedade deriva do fato de que raras vezes ou nunca os deslocados têm a possibilidade efetiva de optar pela manutenção do status quo (Bartolomé, Apud Rebouças, 1997, p. 07).

Nesta perspectiva, o deslocamento compulsório deve ser classificado em função de suas

causas: decorrentes de conflitos militares ou de perseguições étnico-religiosas e decorrentes

de projetos de infra-estrutura. As vítimas desses deslocamentos são denominadas também em

função da motivação: o termo refugiados refere-se aos perseguidos por problemas étnico-

religiosos ou por conflitos político-militares e deslocados, desterrados ou ainda desabrigados

para os que perderam seu local de moradia e de reprodução social em função dos grandes

projetos, que resultaram na construção de obras de infra-estrutura.

O fenômeno dos deslocamentos compulsórios decorrentes da construção de barragens se

faz presente, praticamente, em todos os continentes. Conforme dados do Banco Mundial —

11 Vainer questiona essa concepção de migração, agregando outros importantes fatores às suas causas. A violência como fator migratório: silêncios teóricos e evidências históricas, Travessia, São Paulo, n.25, p.5-9, maio/agosto de 1996.

31

citados pouco acima por Vainer — o contingente deslocado pode atingir a marca de 4 milhões

de pessoas por ano. Osvaldo Sevá, com base em relatos oficiais e em reportagens, compôs um

importante quadro dispondo de todos os “lagos” de hidrelétricas que atingiram os maiores

contingentes humanos12. Em seu trabalho, o autor aponta que as problemáticas enfrentadas

pelos atingidos em diversos lugares se assemelham em vários aspectos àquelas que veremos

ao longo deste trabalho. A propósito diz o autor:

Em várias dessas situações, o que mais marcou o empreendimento foi o acirramento da questão fundiária, da questão indígena, em outros foi a resistência difusa e persistente às relações salariais e mercantis. Houve vários casos de repressão violenta, com comandos policiais destacados para intimidar e forçar a remoção dos moradores (p. ex. na obra de Kariba); num destes, a resistência indígena se associou a um movimento guerrilheiro para bloquear o barramento do Chico river, ilha de Luzon, Filipinas; em outro, no Flanklin river, Tasmânia, Austrália, os opositores conseguiram alterar o panorama eleitoral nacional, e depois, obtiveram o embargo pela via judicial (Sevá, 1990, p. 10).

Esclarecido o que se entende por migração e sua diferenciação do chamado

deslocamento compulsório é importante também historicizar os termos usados neste trabalho,

explicitando as razões de sua utilização. A enunciação da experiência dos indivíduos,

independentemente do seu lugar social, deve ser pautada pelo respeito e pela valorização de

termos êmicos, auto-referenciais ou já assimilados. Dentro desta perspectiva, os termos

riberinhos e beraderos ou barranqueros serão fartamente utilizados para designar os

habitantes do vale do Rio São Francisco. O primeiro será utilizado para designar todo

habitante das localidades situadas às margens desse rio e os últimos serão utilizados para

designar todo indivíduo que, além de viver às margens do Rio São Francisco, tira dele

diretamente o seu sustento e mantém com o mesmo relações de afetividade, conforme exposto

mais adiante.13

Os termos desabrigados, desterrados, deslocados ou ainda atingidos e expropriados são

fartamente utilizados pelos estudiosos dos deslocamentos compulsórios e alguns já foram

assimilados pelos beraderos. No entanto, a maioria não usa um qualificativo autodefinidor de

12 O quadro aponta 12 grandes “lagos”, dá sua localização e a estimativa da população atingida. Mais detalhes, vide: Intervenções e armadilhas de grande porte, Travessia, n.6, janeiro/abril de 1990, p.9. 13 Embora na ampla literatura consultada, não se faça diferenciação entre os termos, nas entrevistas eles nunca apareceram como sinônimos. A diferenciação entre os temos tornou-se clara, a partir de rápida conversa mantida com o sociólogo “ribeirinho” Esmeraldo Lopes (Juazeiro, 28/07/2003).

32

sua condição, preferindo o emprego do substantivo retirada. Explicitando melhor: ele não é

um retirante, mas fez uma retirada. Penso que, com exceção do primeiro qualificativo, todos

os outros traduzem, mesmo que precariamente, a situação da população que, no limite, é o

foco deste estudo. Portanto, os três serão aqui utilizados. O termo retirada será empregado

quando se fizer referência à transferência da população; os termos desterrados, expropriados

ou atingidos para denominar os indivíduos que perderam suas terras nas margens do Rio São

Francisco antes da instalação em Serra do Ramalho; e deslocados ou beraderos deslocados

quando se fizer referência a esses mesmos indivíduos, quando em relação aos demais

moradores de Serra do Ramalho provenientes de outros lugares.

O processo de fixação das vítimas dos deslocamentos, de modo geral, é denominado de

reassentamento involuntário. Neste trabalho não pretendo lançar mão desse termo. Penso que,

por mais que os agentes governamentais (INCRA e CHESF) tenham feito para fixar os

desterrados ou expropriados de Sobradinho no Projeto de Colonização de Serra do Ramalho,

estes resistiram — adotando, muitas vezes, a resistência passiva, nos termos colocados por

James Scott —, obrigando esses mesmos agentes a buscarem alternativas mais adequadas aos

seus interesses. Prova disso é que pouco mais de mil famílias das quatro mil que os agentes

governamentais tinham em vista reassentar em Serra do Ramalho, se fixaram naquele espaço.

Quando fizer referência a qualquer morador de Serra do Ramalho que recebeu título do

INCRA, utilizarei o termo reassentado, evitando denominá-lo de beneficiário ou de colono,

termos comumente utilizados pelos agentes governamentais.

Explicitados os conceitos e os termos que servirão de ancoradouro da pesquisa

intitulada Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em

Serra do Ramalho-Ba, convém voltar o olhar sobre os estudos relacionados aos

deslocamentos compulsórios e às problemáticas que eles encerram.

Convém salientar que grande parte da literatura devotada à questão foi produzida no

âmbito das empresas ou órgãos governamentais responsáveis pelas grandes obras de infra-

estrutura. Em geral, esta produção estava voltada para atender ao chamado “impacto

ambiental”. Somente a partir da década de 1980, conforme chama atenção Vainer (1988) e

Rebouças (2000), que deslocamentos compulsórios motivados pelas construção de barragens

entraram na pauta das Ciências Sociais. Em sendo assim, alguns dos parâmetros/linhas de

abordagens são ainda incipientes; da mesma forma, alguns dos conceitos empregados se

encontram em construção.

33

Diante disso, cabe perguntar: quais as linhas de abordagens e ou os parâmetros

conceituais utilizados pelos estudos empreendidos no campo das ciências sociais sobre os

atingidos de barragens? Seguindo as trilhas apontadas por Rebouças, eis algumas das linhas e

ou parâmetros que se fazem notar.

A primeira linha de abordagem identificada privilegia o estudo das relações dos

camponeses-ribeirinhos atingidos por barragens com as autoridades, buscando descrever as

formas de resistência, de luta e quais suas diferenças em relação aos camponeses tradicionais.

A perspectiva privilegia a análise das reivindicações empreendidas pelos atingidos, apontando

para uma transformação no modo de fazer política. Nessa mesma linha, filiam-se os trabalhos

que pontuam a emergência de uma nova identidade política construída no interior do

Movimento Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragem (MAB). O trabalho Os

expropriados de Itaipu, de Guiomar Inez Germani, sem dúvida, foi um dos pioneiros,

tornando-se um dos expoentes dessa linha de abordagem.

Partindo do estudo da rede de relações sociais que surge a partir da intervenção do

Estado no espaço regional, a segunda linha de abordagem identificada sinaliza para a

existência de diferenciações nas chamadas comunidades tradicionais, fazendo emergir as

comunidades indígenas e quilombolas, por exemplo.

Ainda outra linha de abordagem privilegia o estudo da estrutura fundiária, buscando

acompanhar as mudanças sócio-espaciais empreendidas depois da construção da barragem.

De acordo com Rebouças, essa linha faz interface com as discussões sobre a transformação do

campesinato em relação ao avanço do modo de produção capitalista no campo.

Embora não seja citado e nem conste da bibliografia de Rebouças, o instigante trabalho

de Ruben Alfredo de Siqueira intitulado Do que as águas não cobriram. Um estudo sobre o

movimento dos camponeses atingidos pela Barragem de Sobradinho, inaugura outra linha de

abordagem. O autor analisou e discutiu aspectos do confronto entre o Estado e os

“camponeses-ribeirinhos” de Sobradinho, privilegiando a memória dos atingidos. Na

perspectiva de Siqueira, os “camponeses-ribeirinhos” de Sobradinho, longe de se constituírem

em vítimas passivas da ação de um Estado ditatorial, empreenderam uma resistência cotidiana

que resultou na permanência da maioria do grupo na borda do lago recém-criado, dando

ensejo à criação de mais de uma dezena de “núcleos de reassentamentos”, buscando

reconstituir aspectos da condição de vida beradera.

Certamente, a pesquisa de Lídia Rebouças desponte também como expoente de um

outro parâmetro de abordagem, no qual o espaço é tomado como categoria norteadora do

34

convívio de diferentes ordens culturais, representadas, de um lado, pelos

ribeirinhos/beradeiros e, de outro, pelos planejadores, evidenciando a existência de diferentes

temporalidades e de um imaginário em torno de um projeto de reassentamento. O planejado e

o vivido. Os projetos de reassentamento da CESP no Pontal de Paranapanema, de Lídia

Rebouças, mostra com clareza a existência de diferenças no que tange à concepção do espaço

e dos diversos modos de representá-lo e, mais que isso, mostra que a organização espacial

proposta pelos agentes governamentais — assentada no lote/agrovila — subverte a

organização anterior dos ribeirinhos, provocando da parte destes a rejeição e o abandono das

agrovilas.

Ciente das palavras de Hans Georg Gadamer: “é preciso que cada qual esteja

plenamente consciente do caráter particular de suas perspectivas” (1998, p. 18), muitas vezes,

neste trabalho procurei dialogar com as linhas de abordagens pontuadas acima, mantendo,

entretanto, com os trabalhos O planejado e o vivido, Os projetos de reassentamento da CESP

no Pontal de Paranapanema, de Lídia Rebouças e O que as águas não cobriram, de Ruben

Alfredo de Siqueira, maior dialogidade, para lembrar o conceito de Mikhaill Bakthin. Firme

no propósito de analisar as tensões envolvendo agentes do Estado e os atingidos, verificadas

no Projeto Especial de Serra do Ramalho, através de Siqueira, evidenciou-se que o confronto

era anterior ao deslocamento e que os reassentados já tinham experenciado, em outros

momentos e circunstâncias, a resistência passiva de que lançaram mão nas “grovilas da Lapa”

e quando da reconstrução do povoado de Barra da Cruz, em Casa Nova. A leitura da obra de

Lídia Rebouças também se evidenciou de suma importância. A partir dela, verifiquei que a

rejeição ao espaço planejado não era um fato localizado em Serra do Ramalho, mas uma

constante em projetos de natureza semelhante. A perspectiva de estudo de Rebouças, centrada

em explorar as contradições entre o espaço planejado e o espaço vivido, pôs em evidência que

os agentes planejadores e os reassentados apresentavam diferentes percepções do espaço,

reveladoras de dissonâncias e descompassos, exploradas neste trabalho.

As fontes orais foram imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. A escolha

desse recurso não se deu por causa de sua escassez, nem, tampouco, por acreditar no

ineditismo das informações colhidas, como ressalta Verena Alberti, mas porque a natureza

das problemáticas levantadas assim o exige. Consigna Ki-Zerbo que:

Indubitavelmente a tradição oral é a fonte histórica mais íntima, mais suculenta e melhor nutrida pela seiva da autenticidade. (...) Por mais útil que seja, o que é escrito se congela e se disseca. A escrita decanta,

35

disseca, esquematiza e petrifica: a letra mata. A tradição reveste de carne e de cores irriga de sangue o esqueleto do passado (...) (1982, p. 27)

Tendo isso em vista, a tradição oral ou a oralidade, digamos assim, vem se constituindo

em importante parceira da chamada história oral e em conseqüência da história social. Ambas

estão imbricadas e caso eu não lançasse mão das fontes orais este trabalho não teria sentido.

Mesmo porque os indivíduos que se constituíram em foco e, ao mesmo tempo, parceiros deste

trabalho, são tributários de uma cultura tradicionalmente marcada pela oralidade (Brito, 1999,

p. 20; Santanna, 1997, 40), o que merece ser evidenciado e divulgado. O número de

entrevistados é muito amplo; além dos atingidos, procurei entrevistar grande número de

pessoas que direta ou indiretamente estiveram envolvidas com o processo de construção da

Barragem e do assentamento da população atingida: técnicos, burocratas, dirigentes políticos,

religiosos, agentes pastorais, bem como antigos moradores de Serra do Ramalho e de Bom

Jesus da Lapa, de modo a formar um plantel de diferentes vozes.

A perspectiva era fazer um estudo vigoroso da experiência e do imaginário de

indivíduos que, para além do deslocamento compulsório, vivenciaram o reassentamento em

bases que não lhes permitiram grande margem de manobra, mas que, mesmo nessas

condições, demostraram capacidade para subverter limites e determinações.

Além de outros aspectos evidenciados no corpo da pesquisa, a exploração dessa

oralidade foi capaz de evidenciar a existência de uma consciência crítica da experiência do

deslocamento compulsório, vivenciado pelos camponeses expropriados — sujeitos desta

pesquisa —, que se expressam através de uma matriz narrativa14 própria, que ao final

culpabiliza as agências governamentais por todas as mazelas acontecidas em suas vidas

depois da retirada – do redimunho. A existência dessa matriz mostra não só que as

experiências são específicas, mas também que os sujeitos sociais criam modos particulares de

narrá-las e interpretá-las, visando a certos interesses. Evidenciar essa matriz narrativa,

fortemente marcada pela vitimização ou culpabilização, não deve ser tomado como uma

14 Eder Sader usa o termo matrizes discursivas. “As matrizes discursivas devem ser, pois, entendidas como modos de abordagem da realidade, que implicam diversas atribuições de significado. Implicam também, em decorrência, o uso de determinadas categorias de nomeação e interpretação (das situações, dos temas, dos atores) como na referência a determinados valores e objetivos. Mas não são simples idéias: sua produção e reprodução dependem de lugares e práticas materiais de onde são emitidas.” Quando novos personagens entram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo, 1970-1980, 1988, p. 143.

36

ressalva às narrativas dos camponeses — pois, em muitos aspectos compartilho dela15 —;

deve ser tomado, sim, como um imperativo do fazer acadêmico. A saber:

A primeira coisa que torna a história oral diferente é que ela nos conta menos sobre eventos que sobre significados [... ] O único e precioso elemento que as fontes orais têm sobre o historiador, e quem nenhuma outra fonte possui em medida igual é subjetividade do expositor [...] Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez (Portelli, 1997, p. 31)

Posto isso, convém ressaltar outra particularidade: todos os pesquisadores que

recorreram à história oral para estudar questões relacionadas à construção da Represa de

Sobradinho não identificaram os entrevistados ou empregaram nomes fictícios. A medida é

compreensível. Algumas dessas pesquisas foram desenvolvidas nos estertores da ditadura

militar, quando as arbitrariedades cometidas pelos seus representantes guardavam frescor,

fazendo-se necessária, portanto, a preservação da identidade das fontes. Quem garantiria que

os métodos arbitrários utilizados em todo o processo de construção da Represa, muitos deles

corajosamente denunciados em artigos publicados pelo Caderno do Ceas16, não seriam

revigorados? Quem garantiria que os entrevistados, alguns deles com pendência junto a

CHESF, não sofreriam represálias e retaliações?

Na atualidade, os expropriados de Sobradinho não se intimidam em falar da atuação das

agências governamentais no processo que os levou à experiência do deslocamento

compulsório. Muitos são eloqüentes em culpar as agências governamentais por todos os

desacertos que aconteceram em suas vidas depois do deslocamento compulsório. Assim, com

exceção de três ex-funcionários da empresa Hidroservice, nenhum entrevistado solicitou

resguardo de sua identidade. Conquanto não solicitasse resguardo de suas identidades,

observei reservas e silêncios, em relação, sobretudo, ao papel desempenhado por figuras

regionais ou locais de proeminência, bem como em relação a aspectos da atualidade. Falar

15 Merecem lembrança as palavras de Alessandro Portelli : “A história oral não tem sujeito unificado: é contada de uma multiplicidade de pontos de vista, e a imparcialidade tradicionalmente reclamada pelos historiadores é substituída pela parcialidade do narrador. ‘Parcialidade’ aqui permanece simultaneamente como ‘inconclusa’ e como ‘tomar partido’: a história oral nunca pode ser contada sem tomar partido, já que os ‘lados’ existem dentro do contador. E não importa o que suas histórias e crenças pessoais possam ser, historiadores e ‘fontes’ estão dificilmente do mesmo ‘lado’. A confrontação de suas diferentes parcialidades – confrontação como ‘conflito’ e confrontação como ‘busca pela unidade’ – é uma das coisas que faz a história oral interessante”. O que faz a história oral diferente, Projeto História: Cultura e Representação, PUC-SP, n.14, p.25-39, 1997, p.39. 16 Por exemplo: Paulo Marconi. Sobradinho: ‘um orgulho nacional’?, Caderno do Ceas, Salvador, n.45, set./out. de 1976.

37

sobre o presente, sobretudo em municípios que, por motivos os mais variados, vivem em

constante tensão, traz incômodo, gera desconfiança e incertezas. Não é por outra razão que

meu corte temporal em relação à experiência dos desterrados de Sobradinho compreende o

deslocamento compulsório até a emancipação do Projeto Especial de Colonização de Serra do

Ramalho, em meados de 1989.

Mesmo em relação ao período delimitado, devo reconhecer que seu estudo apresenta

algumas limitações. A implantação do Projeto Serra do Ramalho foi considerada, por todos

que vivenciaram o período, traumática. A narrativa da maioria dos entrevistados sempre foi

carregada de emoção, de denúncia, de indignação e de temores. Quando se sabe que muitos

dos atores envolvidos — técnicos e membros das elites locais — vivem ou têm parentes na

área, faz-se necessário cautela no uso das falas e na caracterização dos entrevistados. Seria um

despropósito que este trabalho resultasse em constrangimento para os entrevistados ou fosse

usado para fins de interesse político pelas forças em confronto no município de Serra do

Ramalho ou mesmo em Casa Nova.

Em geral, traumáticos os deslocamentos compulsórios provocam modificações nas

formas de vida dos atingidos que vão muito além dos aspectos econômicos, sociais e

culturais. No caso de Sobradinho, as perdas afetivas e as perturbações psicológicas deixaram

marcas e são irreparáveis, provocando silêncio e desconfianças. A correspondência entre as

mudanças provocadas pelo deslocamento e o redimunho não é uma simples metáfora.

José de Souza Martins afirma que os camponeses falam com as mãos (1985, p. 123).

Poderíamos dizer que falam com as mãos e com os olhos. Quando determinados assuntos

considerados tabus, por uma razão ou outra, entram em pauta, os beraderos falam de “portas

travessas”; desviam os olhos ou abaixam a cabeça, negando o que acabaram de expressar,

sinalizando que o assunto se encontra em zona perigosa, sombria que é de bom tom dele se

distanciar.

Tendo isso em vista, para além do conteúdo das narrativas, toda a atenção deve estar

concentrada na performance do indivíduo que fala.

A performance é jogo, no sentido mais grave, senão no mais sacral, desse termo. (...) Espelho; desdobramento do ato e dos atores: além de uma distância gerada por sua própria intenção (muitas vezes marcada por sinais codificados), os participantes vêem-se agir e gozam desse espetáculo livre de sanções naturais (Zumthor, 1993, p. 240).

38

Sensível ao silêncio e à performance da desconfiança e da indignação evidenciada em

uma significativa parcela dos entrevistados, resolvi, em alguns momentos, não identificar os

narradores, bem como não nomear os agentes governamentais ou membros das elites locais

envolvidos no contexto de algumas falas. Pelas mesmas razões, não achei conveniente trazer,

para o corpo do trabalho, maiores informações sobre os entrevistados nem identificá-los

através de fotos. Quando sua identificação se fez necessária, lancei mão de nomes fictícios.

Por razões óbvias, mantive a identidade de figuras públicas e de autoridades governamentais.

A abordagem das pessoas e como elas receberam meu interesse pela sua experiência de

vida merecem ser explicitados. Meus primeiros contatos em Serra do Ramalho ocorreram sem

mediação de nenhuma ordem ou instituiçao. Mesmo informada da tensão existente na

localidade, viajei várias vezes para Serra do Ramalho “com a cara e a coragem”.

Embora em cada agrovila a que chegava explicasse para as pessoas abordadas meu

vínculo com a universidade e o interesse que me levava a entrevistá-las, todos resistiam a ver-

me como pesquisadora. Para a população das comunidades rurais, em geral de baixa

escolaridade, a categoria pesquisador não faz o menor sentido. Portanto, atribuíram- me

papéis os mais variados.

Em relação a esse aspecto diz Alessandro Portelli: “ Entretanto, jamais, os seres

humanos, incluindo ‘informantes nativos’, falarão sem tentar idealizar uma teoria sobre o que

eles estão falando, para quem e por quê” (2001, p.22). Para um, eu era a “reportista” que

noticiaria a situação de penúria e violência a que estavam submetidos. Para outros, era a

funcionária do INCRA a quem pediam lotes ou reclamavam contra as injustiças cometidas à

época do reassentamento. Os entrevistados da sede do município de Casa Nova

demonstraram, nas entrelinhas, a esperança de que, sendo funcionária do INCRA, pudesse

reparar as perdas que sofreram no passado. Não foi sem pesar (sentia-me humilhada e

impotente) que me esforcei por desfazer as ilusões17. Em Serra do Ramalho, para um terceiro

grupo, minha presença estava ligada a interesses políticos que não sabiam ao certo precisar.

Ora era tomada como agente do prefeito, ora como agente da oposição. O certo é que todo

17 Aqui talvez seja importante reproduzir as palavras de Ernesto De Martino: “Reabrir um diálogo entre dois mundos, que há muito deixaram de se comunicar, é tarefa difícil e ocasiona humilhações veementes. Humilha-me tratar pessoas de minha própria idade, cidadãos de meu país, como objeto de pesquisa científica, quase de experimentação. Humilha-me quando eles me tomam – como tem acontecido – por um agente fiscal ou por um empresário de espetáculos teatrais viajando pela Lucânia em busca de músicos e cantores. Humilha-me ser compelido em certas aldeias a evitar os comunistas locais, dissimular até mesmo com eles, porque de outro modo o padre nunca contaria a mim coisas que preciso saber.” Apud Alessandro Portelli, Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade, Projeto História, PUC-SP, n.13, p.7-24, 1997, p.10.

39

momento meus reais propósitos estavam sob suspeição. Mesmo as pessoas que me acolheram

em suas casas, mostrando-se simpáticas e solícitas, no fundo, não acreditavam nos meus

propósitos confessados.

Em julho de 2000, pouco antes do início oficial da campanha para prefeito municipal,

viajei para Serra do Ramalho, tencionando fazer contatos na Agrovila 9. Em razão do clima

eleitoral, na sede do município, as desconfianças pareciam maiores que nas demais agrovilas.

Recuei, retornando a Serra do Ramalho em fevereiro de 2001. A situação não era muito

diferente da anterior e o trabalho não se mostrou satisfatório. Nos meses que antecederam ao

termino da pesquisa, estabeleci contato com o pároco local e, através dele, conheci algumas

lideranças comunitárias — professores, militantes da Pastoral da Criança, catequistas, etc. —

que se revelaram mediadores. Um pouco antes de concluir o trabalho de campo, conheci um

grupo de estudantes do curso de Letras do Departamento de Ciências Humanas de Caetité,

onde lecionei, originários de Serra do Ramalho, que, além de abrirem algumas portas,

tornaram minha presença no município menos insólita e descabida.

Na área da Represa de Sobradinho, a situação não parecia menos tensa. Em janeiro de

2001, viajei para a região a fim de colher material e contatar indivíduos que viveram em Serra

do Ramalho. Tinha a intenção de colher entrevistas nos povoados de Bem-Bom, Pau-a-Pique

e Barra da Cruz. Embora a incursão pelo município de Sobradinho tivesse sido bastante

tranqüila, em Juazeiro, fui aconselhada a não visitar os povoados de Casa Nova. Para minha

surpresa, a zona rural do município, segundo essas informações, mantém estreita relação com

o chamado polígono da maconha18. Assim, a investida combinada de forças do Exército e da

Polícia Federal, empreendida naquele ano, embora ficasse restrita aos municípios do Baixo-

Médio São Francisco, deixara certa apreensão na área, sendo desaconselhável viajar pelos

povoados desacompanhada e sem referências. Ainda assim, viajei para a sede do município.

Estava por demais ansiosa para conhecer a experiência das pessoas que abandonaram Serra do

Ramalho, buscando, nos núcleos construídos na beira do lago, a reconstrução de seus antigos

modos de vida. A empreitada se mostrou infrutífera. Os três povoados ficam situados no

extremo do município, distantes mais de cem quilômetros de sua sede e só há comunicação

segura entre eles em dias de feira.

Na verdade os povoados, embora situados no município de Casa Nova, em razão da

distância, estão estreitamente vinculados à cidade de Remanso. Diante das dificuldades,

18 Há um mapa que inclui todo o Médio e Baixo-Médio São Francisco no polígono das drogas, na matéria Cerco ao polígono da maconha, de Rita Conrado. A Tarde, Salvador, 22/6/2003, p. 8.

40

recuei, fazendo apenas algumas entrevistas e consultando o acervo da biblioteca pública

municipal, criada em 1938, logo após o sufocamento do Movimento de Pau-de-Colher19.

Em fevereiro de 2002, voltei ao município e, munida das referências indicadas por uma

agente da Comissão Pastoral da Terra, e por Gilmário Moreira Brito — pesquisador que

esteve na área, investigando o Movimento de Pau-de-Colher —, parti, ciceroneada pelo

vereador José Eduardo Nascimento da Cruz, para o povoado de Pau-a-Pique e de lá para

Barra da Cruz. Em 2003, além de retornar aos povoados de Barra da Cruz e Pau-a-Pique,

viajei para Bem-Bom. A forma como se deu meu acesso aos entrevistados em Bem-Bom

merece esclarecimento. Segundo informações, dentre os povoados do município de Casa

Nova, Bem-Bom é o que guarda maiores relações com o polígono da maconha. Impressão ou

não, na localidade “respira-se um ar” de tensão e desconfiança.

Parti para o povoado munida de uma única referência. Infelizmente, ela não se

encontrava no local. Recorri, então, ao auxilio da proprietária da pensão onde fiquei

hospedada. Embora fosse de uma simpatia a toda prova, D. Miquelina se mostrou bastante

reticente. Disse não se lembrar de ninguém no povoado que tivesse morado em Serra do

Ramalho. Citou o nome de algumas pessoas, acrescentando, a seguir, que todas haviam

mudado para Remanso, e perguntou-me sobre a razão da minha curiosidade. Expliquei-lhe

uma vez mais minhas motivações. Ela não se mostrou convencida. Como eu insistisse,

começou a citar outros nomes, dando a impressão de que moravam longe, em locais

inacessíveis. Disse-lhe que queria contatá-las e, gentilmente, solicitei indicações de suas

casas. Ela me falou por alto onde se encontravam. Procurei-as. Depois de entrevistar a

primeira pessoa indicada, ela me levou à casa de um vizinho que era cunhado da proprietária

da pensão. Pouco mais tarde, o esposo de D. Miquelina veio se juntar ao irmão entrevistado e

contou que o caçula da família tinha sido assassinado em Serra do Ramalho. Infere-se dessa

experiência que falar do passado, melhor dizendo, falar do tempo da “Dona CHESF”, não é

tão temeroso quanto abordar aspectos do passado mais recente, seja em Serra do Ramalho ou

em Bem-Bom. A maioria das pessoas, em ambos os lugares, vive sob o signo da violência, do

silêncio e do medo.

Não obstante as desconfianças, o conteúdo das entrevistas é de uma riqueza

incomensurável. Mesmo aqueles indivíduos que se mostraram ressabiados em relação ao meu

interesse pelas suas experiências de vida — temendo, certamente as conseqüências de minha

41

presença na área —, quando se sentiram mais ou menos seguros de que eu não tinha outro

propósito senão saber do seu modo de vida na beira do Rio São Francisco e do deslocamento

para Serra do Ramalho, tornaram-se receptivos e falantes.

Contudo, não tive a mesma facilidade para contatar técnicos e membros da chamada

equipe social da CHESF nem da Associação Nacional de Assistência Rural (ANCAR-BA).

Passados trinta anos da construção da Represa de Sobradinho e de seus desdobramentos,

identificar essas pessoas foi tarefa das mais espinhosas. Não bastassem as dificuldades

decorrentes de mortes, aposentadorias, transferência para outros órgãos e ou localidades

diferentes, essas pessoas desempenharam, da ótica dos beraderos, dos agentes pastorais e

pesquisadores, papéis não muito louváveis20. Daí, os ressentimentos ainda hoje registrados em

relação a elas. Para citar um exemplo, no povoado de Pau-a-Pique, uma senhora já avançada

em idade, religiosa e de modos piedosos, disse, sem reservas, que deu graças a Deus quando

soube que um dos advogados, responsáveis pelas questões relativas às indenizações, se

encontrava em Recife “entravado numa cadeira de rodas”.

Cientes disso, muitos desses funcionários buscam o anonimato e o silêncio. Para efeito

de ilustração, cito um fato que aconteceu no Centro Administrativo do Estado da Bahia. Um

amigo, através de um colega, teria identificado uma ex-funcionária da antiga ANCAR-BA

que trabalhava na Coordenadoria de Ação Regional (CAR). Fiquei na expectativa. Qual não

foi minha frustração, quando, ao sermos apresentadas, ela negou, peremptoriamente, qualquer

vínculo no passado com o referido órgão. Quando concluía este trabalho, por intermédio da

professora Guiomar Germani, tive contato com o professor João Saturnino — ex-membro da

“equipe social” da ANCAR-BA. A narrativa do professor Saturnino se revelou de grande

importância para esta pesquisa, não só porque corroborou aspectos da memória dos atingidos,

mas, fundamentalmente, porque trouxe à tona aspectos dos “bastidores” das agências

governamentais envolvidas no projeto de construção da Represa de Sobradinho.

Não obstante a defesa da definição do número de entrevistas por alguns pesquisadores,

de antemão, não via e não vejo razão para determinar o número de entrevistas a serem

coletadas. Importante é que o conjunto de entrevistas traga as informações mais variadas

19 Mais detalhes sobre o movimento de Pau de Colher, vide a obra de Gilmário Moreira Brito, Pau de Colher na letra e na voz, 1998. 20 Vejamos a narrativa de uma entrevista tomada por Ruben de Siqueira: “Vicente (Grupo de Aldeia-Sento Sé) – Uma doutora C. falô: ‘O, vocês não vão confiá na beira do rio, não. Vocês vão plantá, a água sobe e desce... Aí, pronto, se ajoguemos lá pro seco (riem). Aquela a gente ia batê nela de cansação [arbusto espinhoso que ao contato irrita a pele], se ela aparecesse aqui. Tenho uma raiva daquela mulher... porque foi quem mais iludiu o

42

sobre os múltiplos aspectos das dimensões espaço-temporais de modo a se formar um painel

de abordagens que nos permita compreender de forma detalhada as problemáticas

evidenciadas. Foram coletadas aproximadamente sessenta e quatro entrevistas, mas pouco

mais de uma dezena foi utilizada exaustivamente neste trabalho.

O conteúdo das entrevistas mais exaustivamente trabalhadas é extremamente rico.

Alguns entrevistados são “narradores natos”, digamos assim, habilidosos, contam suas

experiências com riqueza de detalhes, sem, praticamente, serem estimulados pela

entrevistadora, controlando, inclusive, o curso da narrativa; outros, embora se mostrassem

habilidosos e falassem com desenvoltura, tiveram de ser estimulados.

Além das fontes orais, tive acesso a material bibliográfico e documental de importância.

Consultei ampla literatura espalhada em bibliotecas de importantes centros acadêmicos

(Universidade de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade

Federal da Bahia) e o acervo da Biblioteca do Museu Nacional, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro.

No processo de garimpagem das fontes escritas, consultei o acervo da Biblioteca

Diocesana de Juazeiro, Comissão Pastoral da Terra da Bahia e Sergipe (CPT – Nordeste I),

Comissão Pastoral da Terra da Diocese de Bom Jesus da Lapa (localizada na cidade de Santa

Maria da Vitória), bem como a hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.

Pesquisei também a hemeroteca dos jornais Folha de São Paulo e A Tarde, da Bahia. Todas

as fontes consultadas foram de suma importância. Convém salientar que as matérias e as

reportagens jornalísticas apresentaram muitas limitações, uma vez que enfatizavam, em

consonância com o discurso oficial, basicamente, a construção do “maior lago artificial do

mundo”, relegando a segundo plano a situação dramática por que passava a população

atingida. Não deixei de consultar também o disperso (mas variado) acervo das Casas de

Cultura e bibliotecas públicas das mais longínquas localidades sanfranciscanas.

Informada de que a Empresa Hidroservice, embora bastante reduzida em suas

dimensões e campo de atuação, ainda mantinha escritório em São Paulo, busquei contato com

sua direção, visando consultar seu rico acervo sobre o Projeto Sobradinho — como eram

denominadas as intervenções na área da Represa. Em vão. Sem dar maiores explicações, o

gerente da empresa não autorizou a consulta.

pessoal, não foi boa informante, não”. Do que as águas não cobriram: um estudo sobre o movimento dos camponeses atingidos pela Barragem de Sobradinho, 1992, p. 235.

43

Consultei o acervo do INCRA em Brasília e Salvador, colhendo material que

compreende desde relatórios e plantas a fitas de vídeo e folhetos. Consultei a Biblioteca do

SEI, que aliás tem um rico acervo sobre Sobradinho e Serra do Ramalho e também o acervo

da Comitê Estadual de Estudos Integrados da Vale do São Francisco (CEEVASF), sendo

recebida pessoalmente pelo seu coordenador José Teodomiro Araújo. Estive também na

biblioteca da CHESF em Paulo Afonso e no escritório da empresa em Salvador, colhendo

material que atenderam as perspectivas encetadas pela minha temática/problemática.

Conquanto exista material razoável sobre a construção da Represa de Sobradinho, a

literatura sobre o deslocamento da população da área da Represa para Serra do Ramalho é

escassa. Especificamente sobre a questão, tive acesso apenas a quatro trabalhos. O primeiro

trata-se do Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) assinado por Tânia Cordeiro e

apresentado apresentado no encontro da entidade realizado em Goiânia, intitulado Que

Solução É Essa? O segundo é o artigo O Brasil real reconstituído. Experiência de colonização

em Serra do Ramalho, Bahia, de Marcel Bursztyn, abordando basicamente a estrutura

fundiária da área do Projeto Especial de Colonização. O terceiro, O Estado e a reprodução da

pequena produção: reflexões em torno de um caso de colonização compulsória, consiste na

dissertação de mestrado de Brancolina Ferreira, defendida na Universidade Nacional de

Brasília em 1982. O último que apresentou relação mais direta com a perspectiva que adotei

nesta pesquisa é de autoria de Guiomar Germani intitulado Cuestón agraria y asentamiento de

población en el área rural: La nueva cara de la lucha por la tierra. Bahia, Brasil (1964-1990).

Ao tornar público aspectos da experiência dos atingidos da Represa de Sobradinho que

foram transferidos pelo INCRA/CHESF para o Projeto Especial de Colonização de Serra do

Ramalho, bem como os descompassos e dissonâncias verificados entre os agentes do Estado e

os beraderos, este trabalho se propõe a contribuir para a reconstituição de importantes fatos

que marcaram a história do sertão do São Francisco e também do “projeto

desenvolvimentista” elaborado, grosso modo, entre as décadas de 40 e 50 do século passado e

empreendido pelos governos militares, apontando, uma vez mais, para a história social o

desafio de continuar perseguido as nuanças, as fricções, as rupturas e as urdiduras colocadas

em questão pela vida cotidiana das populações silenciadas.

44

A felicidade era aqui, bem na berada do Rio

Alvarina – Ibotirama

45

CAPÍTULO I

ANTES DO REDIMUNHO – AS TRÊS FELICIDADES

1 - As três felicidades

O modus vivendi e o modus operandi do homem do campo constituem importante

área/viés de estudos para as ciências sociais e econômicas. De modo geral, estes são

apreensíveis/operados através das categorias sócio-econômicas. Dependendo da linha à qual

se filia o pesquisador/estudioso, as categorias sócio-econômicas assumem denominações

variadas: campesinato, agricultura familiar, pequena agricultura, pequena produção mercantil.

É a partir das categorias sócio-econômicas que emergem os qualificativos: camponês,

pequeno produtor rural, agricultor familiar ou simplesmente agricultor. No Brasil, em que

pese polêmicas, as categorias sócio-econômicas carecem de precisão e de aprofundamento.

Contudo, não é meu propósito focar as discussões orientadas para esta questão. A discussão

vem à baila somente por uma questão de operacionalidade. Em que categoria se pode

inscrever os atingidos que viviam as margens do Rio São Francisco antes que fossem

surpreendidos pela Barragem de Sobradinho?

Ressaltando sua filiação ao eixo de análise dos processos econômicos das sociedades

camponesas, em razão do reconhecimento de que o termo campesinato é estranho à

“formação social brasileira”, Paulo Sandroni o rejeita, adotando, para designar as relações

sócio-econômicas verificadas no espaço sanfranciscano, a categoria econômica pequena

produção mercantil. Ele explica:

[...] para designar as formas não capitalistas de produção na agricultura, ao invés do termo camponês ou produção camponesa preferimos a expressão pequena produção mercantil [grifos do original]. Tal preferência deve-se a vários motivos entre os quais destaco os dois mais importantes. Em primeiro lugar, para não confundir processos históricos, econômicos, sociais e culturais tão diferentes como o russo, o alemão, o francês, de um lado, e o brasileiro do outro, uma vez que o termo camponês tem origem naquelas formações sociais européias correspondendo às suas especificidades, e não às da formação social brasileira. Em segundo lugar, a expressão pequena produção mercantil é mais apropriada por

46

enfatizar a determinação econômica dessa forma de produção, isto é, suas articulação com o mercado, e portanto, sua vinculação com a produção capitalista “latu sensu. (Sandroni, 1982, p. 4-5).

Lygia Sigaud (1987), Ana Luiza Martins-Costa (1989), Ana Daou (1988), Ghislaine

Duque (1984), Rubem de Siqueira (1992), Frederico de Cavalcanti Freitas (1990) e Marco

Antonio Ortega Berenguer (1984) adotam a categoria sócio-econômica campesinato,

denominado de camponeses ou camponeses-ribeirinhos os agentes que são os sujeitos/objetos

desta pesquisa.

Do que se pode depreender da obra Camponeses, de Margarida Maria Moura, a

categoria campesinato é ainda bastante fecunda, constituindo-se em importante instrumento

de análise das organizações e relações produzidas no campo. Para a antropóloga, o camponês

guarda singularidades em relação a outros grupos sociais, pelo fato de ter o controle da terra,

sem, contudo, possuir capital; por ser o agente das discórdias no que toca ao papel

desempenhado nas revoluções que implantaram ou derrubaram a ordem burguesa; por contar

no trabalho com a ajuda da família, não remunerando os auxiliares sob á ótica capitalista

(1986, p 8). A antropóloga agrega mais dois fatores diferenciadores do camponês em relação

a outros grupos sociais. Ele luta por formas culturais e sociais próprias de organização, sem

ser nem se colocar como outro povo ou outra cultura; trabalha para o capital, mas não se

confunde com o operário. Em relação ao último aspecto, Moura salienta que o camponês

integra-se à sociedade, subordinando-se “à lógica econômica do capital industrial” (idem).

Também Ciro Flamarion Cardoso estuda o campesinato, traçando-lhe as principais

características: a) acesso estável a terra, seja em forma de propriedade, seja mediante algum

usufruto; b) trabalho predominantemente familiar (o que não exclui, em certos casos, o

recurso à força de trabalho adicional); c) economia fundamentalmente de subsistência, sem

excluir por isso a vinculação eventual ou permanente com o mercado; d) certo grau de

autonomia na gestão das atividades agrícolas, ou seja, nas decisões sobre o que plantar e de

que maneira, como dispor dos excedentes (Cardoso, 1979: 30).

Além do mais, o camponês possui relação direta com a terra e é profundo conhecedor da

natureza, guardando com a ela relação de intimidade e de devotamento. Em suma, o

campesinato é marcado por práticas, saberes, relações e concepções particulares, muitas

vezes, vistas como estranhas pelos demais membros da sociedade que o envolve (Moura,

1986, p. 20).

47

Reconhecendo a vitalidade da categoria campesinato e da sua força histórica, conforme

salienta Moura, neste trabalho opero com ela, pontuando, contudo, a singularidade das

relações protagonizadas pelos beraderos no espaço sanfranciscano. Em que consiste essa

singularidade? Ela reside em um modo de vida e em uma cultura profundamente marcadas

por uma relação de dependência e de afetividade com o rio. Carlos Rodrigues Brandão

surpreendeu em São Luiz do Paraitinga um camponês que lhe confessara ser “muito amoroso

com a terra, eu tenho um grande afeto por ela” (1999, p. 63). Transpondo o velho camponês

para as barrancas sanfranciscanos, certamente ele confessaria seu afeto e amor pelo Velho

Chico, pois são suas águas que fecundam a terra ressequida.

O modus vivendi do beradero estava referenciado não só em um fazer, mas, sobretudo,

em um saber fazer e num sentir muito específico. Ele compreende um conjunto de práticas,

de valores, de relações sócio-econômicas e culturais, bem como sensações e percepções,

colocadas no plano da busca da satisfação das necessidades imediatas, todas elas operadas a

partir do rio. O beradero praticava plenamente o que hoje se convencionou chamar de

pluriatividade.

Convém esmiuçar em que consistia o modo de vida beradero, ou seja, esmiuçar o seu

modus vivendi. De antemão, convém ressaltar o registro de duas visões bastante contrastivas

e, ao mesmo tempo, exemplares, enquanto evidenciadoras dos descompassos e das

dissonâncias verificadas entre os sujeitos sociais das comunidades ditas tradicionais e

“atrasadas” e os dos “adiantados” citadinos. De um lado, temos a visão de especialistas e de

técnicos e, de outro, dos próprios beraderos.

Na concepção dos primeiros, a vida beradera era marcada pela carência e pelo

isolamento.

Embora demonstre empatia pelos beraderos, Sandroni caracteriza a agricultura por eles

praticada como “atrasada, de baixa produtividade, tenuamente articulada com o mercado e em

grande medida voltada para a subsistência dos produtores (...)” (1982, p. 36). No mesmo

diapasão e com a mesma empatia surpreendida em Sandroni, Peltier de Queiroz assim

descreve o barranqueiro sanfranciscano:

[...] é o homem totalmente condicionado ao rio que tudo lhe dá. Vive isolado e auto-suficiente. Analfabeto, sem usufruir qualquer benefício de comunicações de massa, seus contatos humanos restritos ao seu próprio nível, com os vizinhos e nas feiras, sua mentalidade não pode evoluir, conservando-se primitivo, sem poder aquisitivo, sem aspirações, conformado e dominado pelo pavor do desconhecido.

48

Assim, agarra-se ao rio, que lhe assegura a sobrevivência e às crenças, que o confortam. Além de tudo, com justa razão, profundamente sentimental para com o seu rio, por afeição — o VELHO CHICO. Socialmente, é, pois, um ser desvinculado, cultural e economicamente do resto do país (CEEIVASF, 1987)21

As narrativas dos beraderos colocam-se em outra perspectiva, ressaltando aspectos que

técnicos e especialistas negligenciam (apontando mais uma vez para o descompasso cultural):

a natureza dadivosa do rio que tudo lhes oferece em abundância. Quando enaltecem a vida nas

beradas sanfranciscanas, na verdade, é como se dissessem de si e para si: “que me importa se,

do ponto de vista capitalista, recorro às praticas atrasadas de produção? O relevante é que

gozo de autonomia e retiro dela tudo que preciso para a reprodução de minha sobrevivência”.

É partindo desse raciocínio que de suas narrativas despontam a afirmação de que a vida

beradera era marcada pela fartura e pela abundância, ambas contestadas pelas afirmativas de

Wilson Lins que seguem:

O beiradeiro tem a displicência sardônica dos que se cansaram de plantar para o rio comer, mas que continuam plantando (embora sem grandes esperanças) por não terem outra coisa a fazer. Com a comida garantida pelo peixe próximo e nem sempre fácil de pescar, o beiradeiro é meio boêmio na maneira de enfrentar a sua desgraça. Se o peixe custa a beliscar o anzol, ele amarra a linha no dedão do pé e estira o corpo no barranco, para tirar uma soneca enquanto o ‘dourado’ ou ‘caborje’ se decide a ser fisgado (1983, p. 106).

Aliás, o escritor sanfranciscano não nutre pelos beraderos a mesma simpatia devotada

aos “caatingueiros” e “brejeiros” (Lins, 1983, p. 108). Estes, sim, “devotados à terra ingrata”,

verdadeiros titãs dos inóspitos sertões do São Francisco.

A vida nos antigos povoados beraderos é rememorada pela maioria dos entrevistados,

que vivenciou a experiência do deslocamento compulsório da área de Sobradinho — como a

desmentir as desairosas afirmativas de Lins —, com enorme saudosismo. Tudo o que diz

21 Analisando a concepção dos beraderos expressa na carta de Peltier de Queiroz, Lydia Sigaud afirma que ali o beradero é visto como cidadão de segunda categoria e percebido da mesma forma como o colonizador “civilizado” vê o “primitivo” das sociedades tribais. “O ‘barranqueiro’ que aparece nessa carta de [Eunápio Peltier], a rigor, é uma construção ideológica, sem qualquer suporte na realidade da vida social, construção esta montada a partir de sinais negativos escolhidos por oposição a um suposto cidadão de primeira categoria, alfabetizado, ligado aos meios de comunicação, voltado para os contatos diversificados, ou seja, a partir de um conjunto de sinais positivos que compõem a imagem, também desenraizada do concreto da vida social, do cidadão urbano.” Efeitos sociais de Grandes Projetos Hidrelétricos: As barragens de Sobradinho e Machadinho. Comunicação, n. 9, 1987, p. 99/100.

49

respeito à experiência nas barrancas sanfranciscanas é supervalorizada e “cantada em prosa e

verso”.22

Dentre os pontos que se afirmam com superioridade, destacam-se a disponibilidade de

recursos naturais — “livre acesso” à terra e à água — e a abundância de víveres. Desse modo,

enfatizam os entrevistados, a fome, na beira do rio, inexistia, campeando a fartura e a ventura

camponesa23. Não é por outra razão que a maioria dos entrevistados associa a vida nos antigos

povoados beraderos à felicidade. Felicidade que a barragem veio destruir e arrasar, na medida

em que desorganizou a base ecológica da relação entre o rio e o homem. Felicidade, em

contraposição à infelicidade da vida atual marcada pela dependência das chuvas (caso dos

moradores de Serra do Ramalho) e da CHESF (caso dos habitantes da borda do lago), que

regulariza o fluxo do lago em razão de interesses energéticos.

A propósito diz Ruben de Siqueira:“Um levantamento feito em depoimentos como esses

revela que a idealização do passado, parte de uma avaliação pontual negativa da situação

presente e busca seu positivo contrário na situação passada” (Siqueira, 1992, p. 150).

Em entrevista marcada pela valorização da vida “livre e farta” nas barrancas

sanfranciscanas, em comparação ao inferno da vida cativa das agrovilas de Serra do Ramalho,

Avelina enumera as felicidades do beradero. Para ela, essas eram em número de três.

- Era três ...a gente tinha três felicidade”. - Como assim? Quais as felicidades? - A gente tinha três modo de cultivo. Cultivava nas ilhas, nos lameiro e nas catinga. Quondo acabava uma, tinha outra. Nunca faltava comida. Fartura era muita.24

João Paulo, em entrevista tomada por Ruben de Siqueira, vai no mesmo diapasão,

fazendo referência a três movimentos de trabalho.

A gente, quando morava aqui, a gente tinha treis movimento de trabaio na vida da gente. Olhe, porque a gente quando era na seca, a gente tinha a roça da vazante e tinha a pesca na lagoa. Esse tempo a gente não tava sentindo sede, porque, quando caía mesmo a seca, a gente puxava pra vazante de lá, tinha água, ou pra beira do rio, aonde tinha água. A gente mesmo aqui mudava pra dentro da ilha, porque

22 A propósito da supervalorização da vida no espaço beradero, diz Ruben de Siqueira: “Percebe-se uma tendência ao exagero da qualidade do antigo modo de vida, para sublinhar o contraste com a atual, superestimar a perda com a barragem e incriminar os responsáveis”. Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 149. 23 Expressão colhida da obra de Charles d’Almeida Santana, Fartura e ventura camponesa, 2000. 24 Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 26/11/2001.

50

tinha o lameiro, a gente precisava de olhar lá, como tá qui olhando a roça, o lameiro e colhendo o que se tinha, tá vendo. E quando era no inverno, talvez a mesma coisa: cê tinha a roça de sequeiro cheia de planta também, e tinha a pesca do mesmo [grifos do original], da mesma situação, porque o rio enchia e o peixe saía das lagoas e vinha pro alagadiço [...] E quando o rio baixava, a gente, o peixe, a gente tinha aquelas barras, o peixe ficava encantuado ali, a gente pegava o tanto de aquilo e deixava ir embora pro rio. (Siqueira, 1992, p. 130-131).

Complementando, João Paulo diz: “Tinha, não faltava trabaio, dois na seca e um, um depois do outro... E tinha o que comê o ano todo, que se comê o ano todo. Assunte bem, no que acabava a vazante, trabaio de ilha, depois que o rio vinha, já tinha o da outra.” (idem, ibidem).

Da narrativa de João Paulo depreende-se que, além das atividades agrícolas praticadas

nos espaços de produção, compreendendo os lameiros e a catinga, a pesca era atividade

importante, formando um dos tripés que compunham os “movimentos de trabalho” ou as

“felicidades” do beradero do “Velho Chico”.

Além dos espaços de cultivo acima apontados e da atividade pesqueira, pode-se afirmar

que, a condição de vida beradera estava assentada também na “cultura do catado” e na

pecuária extensiva — atividade econômica das mais importantes de toda a zona de catinga e

responsável, convém não negligenciar, pela penetração do vale sanfranciscano. A referência

ao São Francisco como o Rio dos Currais perdurou para além do período colonial, tornando,

em parte, verdadeiro, o conhecido aforismo: “no São Francisco o homem seguia o caminho do

boi”, cortando o sertão e abrindo as chamadas “estradas boiadeiras” (Rêgo, 1945, p. 210).

Voltando à felicidade dos beraderos, o entrevistado Quintiliano arremata: “a felicidade

na bera do rio era muita. De tudo tinha um pouco e o de comê nunca fartava”.25 A percepção

de Celito Kestering sobre as condições de vida da população na área atingida pela Represa de

Itaparica é semelhante à apontada pelos beraderos de Sobradinho, sinalizando que, embora

possa haver exagero e supervalorização em relação a um ou outro ponto de suas narrativas,

elas têm fundamento e refletem um sentimento real de perda.

A propósito:

25 Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 26/11/2001.

51

Eu tive a felicidade de chegar na região do Vale do São Francisco antes da Barragem de Itaparica e vivi de perto toda a cultura do homem ribeirinho e de seu relacionamento com o rio. Lá em Rodelas, eu convivi de perto com a Tribo Tuxá, os índios Tuxá, com os agricultores e com os pequenos proprietários da margem do Rio São Francisco e digo a você que uma das experiências melhores que eu tive na vida — quando cheguei do Sul e entrei em contato com a comunidade sem ninguém de fora (Nós não viemos em equipe). Eu vim sozinho e mergulhei na realidade do homem nordestino lá em Rodelas. Pelo que eu tenho conversado com o pessoal daqui, a vida lá de Rodelas era idêntica à vida dos ribeirinhos aqui do São Francisco [Sobradinho]. Então, eu sei, porque conheço de perto a afinidade do homem com o rio. Várias vezes, eu acompanhei os agricultores na travessia do rio para a gente ir à ilha pegar capim, ver uma vaquinha que ele tinha, tomar o leite de manhã cedo (misturado com farinha). Enfim, todo o relacionamento do homem com o rio. Quando eu cheguei, dava a impressão que o povo não tinha nada, mas o que eu vivi, foram dois anos de fartura. Não tinha dinheiro, mas tinham manga, tinham mandioca, tinham o peixe, tinham tudo. Então, eu conheci em Rodelas a fartura. O pessoal dava a impressão de não ter nada, mas tinha uma vida feliz e farta.26

A narrativa de Celito Kestering coloca em evidência também um importante aspecto

que convém ser ressaltado: a vida beradera era marcada por uma lógica diferenciada daquela

valorizada pelos técnicos e por estudiosos que, veladamente ou não, priorizam o viés das

relações capitalistas de produção, em detrimento de relações outras. Embora “isolado” e

vivendo nos limites de uma economia “tenuamente” ligada ao mercado, portanto, sem

“dinheiro”, como salienta o agente pastoral, o homem beradero vivia a autonomia camponesa

e tinha à “mão” todos os recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência.

Não obstante a escassez de fontes no que tange às relações de trocas e, mais

especificamente, ao sentido moral que elas poderiam ou não conter no espaço beradero, nutro

simpatia pelo esforço de aproximação que Ruben de Siqueira fez entre a “economia moral”27

26 Entrevista concedia à autora em Sobradinho, 26/7/2000. 27 O conceito de “economia moral” surge no contexto dos estudos de Edward Thompson sobre os motins da fome na Inglaterra do século XVII e XVIII, revelando-se muito interessante na compreensão de um momento de transição entre relações de trocas, digamos assim, não-econômicas e as relações de trocas marcadamente capitalistas. Citando Thompson: “uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres (Thompson, 2000, p. 152) . No artigo A Economia Moral Revisitada, Thompson conclama aos pesquisadores que operam com o conceito a esclarecê-lo e situá-lo. No que concerne à condição de vida beradera, vejo proximidade à “economia moral”, no que tange às evidências de relações não capitalistas e marcadas pela valorização da abundância, do sentido de reciprocidade e de uma visão paternalista, mais evidenciada quando são vitimados pelo deslocamento compulsório. Ancorada na percepção “tradicional das normas e obrigações sociais das funções econômicas”, a “economia moral” rejeitava o mercado. Embora não

52

e aquilo que denomina, tomando-o de empréstimo a James Scott, de “ética camponesa”

(Siqueira, 1992, p.191)28. O beradero sanfranciscano, como veremos adiante, não se

encontrava totalmente apartado do mercado, mas, à falta de melhor termo, praticava relações

de trocas que guardavam um sentido muito próximo à concepção de “economia moral”.

Explicitando melhor, recorro às palavras de Thompson: “(...) em seu significado original

(oeconomia) como a organização adequada de uma família, em que cada parte está

relacionada ao todo e cada membro reconhece as suas várias obrigações e deveres” (1998, p.

212), isto é, uma economia com baixa monetarização29, baseada no forte sentido de

comunitarismo, na justeza das relações de trocas e marcada pelo sentido de reciprocidade.

2 - “A terra era a grané...”

A colonização e o povoamento do Vale do São Francisco têm merecido atenção de

inúmeros estudiosos, constituindo-se em tema dos mais estudados, em relação ao sertão

nordestino (Prado Jr., 1942; Pierson, 1972; Andrade, 1973; Lins, 1966; Berenguer, 1984).

Ainda que sobejem informações sobre a penetração e a incorporação do Vale do Velho Chico

à colônia portuguesa e correndo o risco de ser redundante, convém situar alguns aspectos do

processo de povoamento e colonização que hoje compreende a região de Sobradinho,

destacando, contudo, aspectos relativos à tão decantada especificidade da estrutura fundiária

tenha evidências de manifestações de negação do mercado no espaço beradero, não há dúvida de que relações não-econômicas não só eram correntes como valorizadas. 28Convém salientar que o esforço em buscar manifestações da existência de uma economia moral entre os camponeses pobres brasileiros vem se firmando nas últimas décadas. Saliento aqui o trabalho de Frederico Castro Neves: Economia moral versus moral econômica (ou : o que economicamente correto para os pobres?). Sobre a busca de aproximações entre o conceito de “economia moral” e as relações de trocas verificadas entre as vítimas das secas no Nordeste, diz o autor: “A ‘economia moral’, portanto, como expressão de uma resistência geral e plebéia aos avanços dos princípios da ‘economia de mercado’, permanece como categoria de análise cuja validade ultrapassa os limites da obra de Edward P. Thompson e é permanentemente atualizada pelas transformações históricas. Significa dizer que o espaço para uma interpretação ‘moral’ a respeito das formas de produção da riqueza social e de seu mecanismo de distribuição – o mercado – está sempre aberto para aqueles que não se conformam aos modelos estabelecidos de (in)justiça social.” Neves, Economia moral versus moral econômica, 1998, p. 57. 29A baixa monetarização da economia praticada entre os beraderos sanfraciscanos e a relativa autonomia dos mesmos chamaram a atenção de vários pesquisadores. Aqui ressalto as palavras de Frederico Cavalcanti de Freitas: “A relativa autonomia de que desfrutavam as comunidades ribeirinhas explica o porque de sua tênue vinculação com o mercado e conseqüentemente, o baixo índice de circulação de mercadorias. A desarticulação destas comunidades com os centros comerciais era de tal forma que até o momento que precede a construção da barragem, o sistema de trocas era, ali, marcante; sendo a monetarização – índice de circulação de dinheiro – bastante reduzida”. Sobradinho: campesinato e poder local face à intervenção do Estado, 1990, p. 30.

53

do Médio ou do Baixo-Médio São Francisco — especificamente dos municípios de Casa

Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé —, uma vez que o dito acesso livre à terra

consubstancia ou se circunscreve entre as chamadas felicidades do beradero.

O povoamento da área onde estão localizados os municípios atingidos pela Represa de

Sobradinho esteve ligado à expansão da pecuária extensiva e grande parte dela pertencia às

sesmarias de Garcia Dias D’Ávila – Casa da Torre.

O início da apropriação das terras da área do Reservatório deu-se entre 1628-1630, quando foram feitas as primeiras doações sesmariais na região sanfranciscanas. Foram concessões de sesmarias a Francisco Dias de Ávilla, após seu regresso da primeira bandeira à região. Desde marco inicial de ocupação da área, tomada aos indígenas, até a desapropriação e inundação da área pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, decorreram séculos, durante os quais se formou uma estrutura fundiária bastante característica. (Ataíde, 1988, p. 55).

Também no lado esquerdo do rio São Francisco, Guedes de Brito — Casa da Ponte —

e Domingos Sertão receberam extensos “tratos de terras”, estendendo seus domínios em

direção ao interior do Piauí e do Maranhão.

Enquanto os três latifundiários monopolizaram o sertão e investiram na pecuária, houve período em que se formaram grandes blocos territoriais pertencentes a cada um. Terminada a euforia pecuarista, as sesmarias quedaram abandonadas, despovoadas e sem efetiva destinação econômica. Como conseqüência desta nova conjuntura de crise, rompeu-se a unidade dominial primitiva, na área” (Ataíde, 1988, p. 55).

Tempos depois e por razões diferenciadas, essas sesmarias se fragmentaram e enormes

quinhões de terras passaram às mãos de fazendeiros conhecidos na região, tais como Viana,

Sento Sé, Braga, Queiroz, Mariani, Castelo Branco, etc.

Quando da penetração do vale do São Francisco, os colonizadores portugueses

encontraram vários grupos indígenas possivelmente vinculados ao tronco lingüístico macro-

Gê. “Antes da chegada do homem branco, com as suas boiadas e as suas ambições, o vale era

habitado por índios Gês, expulsos pelos vitoriosos Tupis” (Lins, 1983, p. 20). Além dos Gês,

Morais Rêgo registra que os missionários encontraram à margem do São Francisco, próximo à

região de Paulo Afonso, os Cariris (1945, p. 14). Especificamente, no Baixo-Médio São

54

Francisco viviam os coroados ou acaroacis (extintos), pankarorôs ou pankarôs, os tuxás,

trukás e xocós. Alguns desses grupos indígenas resistiram bravamente ao avanço do branco

colonizador e, ainda hoje, seus descendentes continuam resistindo às investidas dos regionais

em relação ao domínio de suas exíguas terras.

Para submeter os indígenas, os colonizadores lançaram mão de aldeamentos

capitaneados por missionários. Em momentos sucessivos, capuchinhos, franciscanos,

carmelitas e jesuítas instalaram, no Vale do Rio São Francisco, aldeamentos indígenas para

catequizá-los a ferro e fogo30.

O homem do interior sanfranciscano, ou seja, o estabelecido junto aos currais, nasceu da

fusão do branco colonizador e dos indígenas submissos, criando-se uma “raça de mestiços

fortes”, na expressão de Lins (1983, p. 23). Nas barrancas do Rio, a presença negra se fez

mais ativa, através dos negros quilombolas (Rêgo, 1945, p. 170). Do amalgamento entre

brancos, negros e indígenas, resultaria uma população predominantemente mestiça: o

“curibeca” (filho de europeu e tupy) e o “caboclo”. Nas beradas do São Francisco predomina

uma população acaboclada e com fortes traços africanos.

Após a submissão e o extermínio dos indígenas, as disputas de terras, de poder político

e de prestígio no vale passaram a envolver os potentados da região. Os casos de violência

envolvendo fazendeiros no vale do São Francisco tornaram-se bastante conhecidos. Em

diferentes momentos históricos as cidades de Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé e Carinhanha

(todas na Bahia) foram palco de um sem número de conflitos envolvendo os coronéis, chefes

políticos que não pensavam duas vezes antes de lançar mão da violência para aplicar a

“justiça” e atacar os inimigos, visando tomar-lhes os pertences ou simplesmente arruiná-los

economicamente (Lins, 1983, p. 79)

As disputas envolvendo coronéis na região perduraram até meados da década de 30,

quando o Estado, através de seu aparelho burocrático/administrativo, passou a marcar

presença nas áreas mais recônditas do país, fazendo valer o seu papel de mediador dos

interesses de diferentes grupos sociais. Embora os conflitos entre os coronéis tenham

declinado logo após a Revolução de 30, as disputas pela posse da terra no Vale do São

30 “As ordens religiosas que, juntamente com os fazendeiros de gado, ocuparam os sertões interiores, foram Carmelitas e Jesuítas, entre outras. Constituiram-se nos promotores de combate ao nomadismo dos índios e dispuseram-se a catequisá-los. Assim formaram verdadeiros povoados dedicados a uma agricultura de subsistência. Estes povoados situavam-se, na maioria das vezes, nas serras úmidas e nas beiras do rio, em contraposição às fazendas que ocupavam as caatingas. [...] Estas missões também serviram de repositórios da mão de obra que era utilizada nas épocas de expansão das necessidades de trabalhadores nas fazendas”. Marco Antonio Ortega Berenguer, Luz e Miséria, 1984, p. 29.

55

Francisco continuaram a manchar de sangue as águas do caudaloso rio, tornando-se ainda

mais violentas depois da construção da barragem como atestam Sigaud (1987) e Sigaud et al.

(1987).

Os conflitos no Vale do São Francisco não envolveram tão somente personagens de carne

e osso; envolveram pessoas jurídicas; suscitaram movimentos; pareceram não ter fim. Nos

primórdios do período colonial, a área localizada à margem esquerda do Rio São Francisco, o

chamado Além São Francisco, foi anexada, por um curto período, à Bahia, passando depois

ao domínio da Capitania de Pernambuco. Em represália à Confederação do Equador, em

1824, a região foi anexada à Província das Minas Gerais e, em 1827, à Bahia, gerando com

isso sentimento de perda e revolta entre os pernambucanos (Machado, 1983, p. 34).

De outro lado, sentindo-se distante e abandonada pela Bahia, a população da margem

esquerda do São Francisco desenvolveu uma consciência separatista que, na década de 80 do

século passado, ganharia corpo através do movimento pela criação do estado do São

Francisco, cuja capital seria Barreiras. O movimento foi derrotado no Congresso Nacional,

mas a bandeira da emancipação da margem esquerda do São Francisco continua latente31.

No que tange à especificidade da estrutura fundiária do Médio São Francisco, ela pode

ser sintetizada na assertiva de Antônio Guerreiro de Freitas: “apesar de livre”, o “sertão tinha

dono” (1999, p. 61). Recorro aos beraderos para esclarecer a aparente contradição.

Antero (Igarapé, Remanso) – Isso aqui era um chão livre, um chãozão livre e aí, você podia andar aí, deitá aí e na hora que você bem pensasse, livrando de uma cobra e de uma raposa, não tinha indivíduo que lhe mexesse. Depois dessa tal Chesf, ficô diferente. Isso aqui era terra demarcada que num tinha marcação, não era marcada, não. Era marcada, mas da Fazenda remanso podia se entra até pra tira um pau e hoje em dia você não vai tirá à força. Vá lá tira um pau lá nas terras do Sr. Fulano, tirá um pau! (Siqueira, 1992, p.151-2).

Da narrativa do beradero depreende-se que no espaço sanfranciscano a terra só era

considerada propriedade de alguém quando “apossada”, ou seja, quando demarcada e

explorada economicamente, em geral, por intermédio de agregados. Do contrário, era “Um

chãozão livre” onde se podia “deitar e rolar”. Essa percepção era mais apropriada em relação

às áreas de catingas. Em geral, vista negativamente, a catinga era considerada livre e,

31 O projeto para convocação de Plebiscito para a criação do Estado de São Francisco, vez ou outra é apresentado na Câmara Federal. O mais recente, foi apresentado através do Projeto de Decreto Legislativo n. 384, de 2003, pelo Deputado Gonzaga Patriota, do PSB do estado de Pernambuco.

56

portanto, acessível a todos aqueles que quisessem dela tirar algum proveito (fazer uma roça

temporária, tirar madeira, colher o mel, etc).

Avelina – Na catinga era da gente (com orgulho). Ely – Na catinga era da família? Quintiliano – Não. O negócio lá era a grané32 D. Avelina – Na catinga... era livre. Quintiliano – Era o seguinte: na catinga, o sujeito fazia uma roça aqui, achava que as terras já tinha fracassado. Falava eu vou fazer roça em tal lugar. Ele fazia uma roça lá e ficava aquilo mermo. Fazia onde queria... nas terras da catinga era a grané. D. Avelina – Era onde queria....era da gente.

A percepção de que a terra da catinga não tinha dono e que seu uso era garantido a

qualquer um, ou seja, à “grané”, parece consensual em todo lado baiano do vale do Médio São

Francisco. No povoado de Bonfim — um dos Distritos dos Brejos da Barra —, enquanto

conversava com uma senhora de idade, exatamente sobre a posse de seu espaço de cultivo,

ouvi, em resposta a minha pergunta sobre de quem era a área situada distante dali

aproximadamente uns quinhentos metros, o seguinte: “A catinga não tem dono”. Essa área

que ela reconhecia não ter “dono”, em contraposição à área de brejo — que fazia questão de

dizer que tinha “dono” — ficava, segundo afirmara anteriormente, dentro dos limites da

propriedade dos Mariani33. Embora situada nos limites da suposta propriedade de um membro

de conhecida família sanfranciscana, a área de catinga, porque não explorada, ou seja, não

“apossada” de fato, “não tinha dono”, sendo tida e havida como “terra de ninguém”, servindo

apenas como área de reserva de lenha e de caça, acessível, portanto, a todos os brejeiros.

A percepção generalizada de que a catinga era “livre e desimpedida” fundava-se (ou

funda-se, como no caso de Barra), entre outros fatores, na imensidão das fazendas —

impossibilitando aos proprietários o seu controle —, bem como pelas mediações estabelecidas

dentro do quadro de relações clientelísticas e de compadrio, vigentes em todo o Médio são

Francisco.

Voltemos à narrativa de Antero: “Era marcada, mas da Fazenda remanso (sic) podia se

entrar até pra tira um pau”. A narrativa é clara: a Fazenda Remanso tinha “dono” e era

demarcada, mas os beraderos tinham acesso aos seus recursos, inclusive, à madeira, de uso,

em geral, controlado pelos fazendeiros.

32 No contexto, a palavra quer dizer que a área era de livre acesso. 33 Conversa informal mantida entre a autora e D. Periquita, 14/7/2000, distrito de Bonfim, Barra.

57

Mas a liberalidade patronal tinha limites. Quando os recursos naturais se prestavam à

exportação — caso da carnaúba — ou eram utilizadas como bem de valor de troca — caso das

lagoas extremamente piscosas ou das minas de sal —, a mão de ferro do fazendeiro se fazia

sentir.

Essas terra aqui até o extremo com Pilão Arcado tudo era do Pombo Castelo. [...] E era ele quem fazia a colheita da palha todinha aí, e apurava a cera, a cera tinha grande utilidade, fazia disco, essas coisa, a cera de carnaúba. Tudo era dele, todo lugar aí. Se o cara cortasse uma palha escondido, um molho de palha, ele mandava mete na cadeia, na hora. Quando tinha uma pessoa morando em qualquer lugar, aqui ou em qualquer parte aí, se ele quisesse botá o cara pra fora de lá dessa fazenda, ele botava. Era ele quem mandava, na cidade, aqui nessa terra. E achava que ele podia, era o representante, achava que era o dono [grifos do original]. Aqui era ele e o finado Zé Brabo...Aqui não tinha nada com Zé Brabo, Zé Brabo era mais pra baixo. Zé Brabo tomava terreno do mundo inteiro. (Siqueira, 1992, p. 174).

Nesses casos, os fazendeiros exploravam diretamente ou através de capatazes ou

administradores os recursos naturais, em geral, lançando mão do trabalho assalariado, ou do

“cambão”34 — caso dos agregados — e da meação, conforme veremos em seguida.

Não obstante os exageros em relação à liberalidade do fazendeiro e ou do “coronel”,

bem como o “esquecimento” quanto às relações de agregacia — analisadas mais adiante —, a

percepção dos beraderos quando à “liberdade de acesso à terra” tinha certa razão de ser.

Afinal, as terras submersas pelo Lago de Sobradinho eram em sua maioria devolutas e mesmo

as propriedades tituladas, em geral, não eram cercadas na sua totalidade. Mas, convém

ponderar que essa acessibilidade à terra de que tanto se gabam foreiros, posseiros ou

agregados se situava muito mais no nível das relações clientelísticas do que propriamente

numa acessibilidade irrestrita, dito de outro modo, ela era sempre mediada pela ação dos

grandes fazendeiros e “coronéis”, sendo maior ou menor, em decorrência dos laços

estabelecidos com a elite política local. Geralmente, os fazendeiros fraqueavam aos seus

clientes acesso livre às suas propriedades e aos recursos naturais nelas existentes, desde que

estes fossem limitados ao uso pessoal, proibindo-se sua exploração comercial. A prática, não

custa reiterar, visava estreitar laços políticos e relações de reciprocidades.

34 Em nenhum momento durante as entrevistas essa denominação foi citada; uso aqui tomando-a de empréstimo de inúmeros estudiosos do campesinato nordestino.

58

Nesse sentido, a acessibilidade à terra no Vale do São Francisco só era franqueada

dentro de um quadro de relações que não punha em questão a estrutura fundiária da região,

mais que isso, ela reforçava as relações de poder e de mando dos latifundiários. Nessa

perspectiva, o questionamento à estrutura fundiária, digamos assim, partia, em geral, de

quadros pertencentes aos próprios fazendeiros ou lideranças emergentes (disputas por causa

das “estremas” e de prestígio político, entre outros). As disputas ocorridas em Pilão Arcado,

envolvendo o coronel Flanklin Lins de Albuquerque e os Correia e pouco mais tarde entre o

primeiro e Leobas França Antunes, são exemplares em relação a isso (Lins, 1983, p. 69-75).

Assim, quando da desapropriação da área para a construção de Sobradinho, os bens

fundiários do Baixo-Médio São Francisco, à falta de termo mais apropriado, compreendiam,

além dos lameiros — faixa de vazante, ilhas e ilhotes, pertencentes à União e chamadas áreas

de Marinha —, terras de domínio particular e área de domínio público, em geral, no interior

das catingas.

Baseado em critério de titularidade — consagrada no direito agrário brasileiro —, o

setor jurídico da CHESF discriminou, segundo Yara Ataíde, três tipos de bens fundiários:

fazendas com cadeia sucessória plena, fazendas das quais existia apenas documentação

referente ao direito de posse e outras que por não resguardarem titularidade, voltaram ao

domínio público. (Ataíde, 1988, p. 71).

Dividindo os exploradores das terras do São Francisco em categorias, Berenguer assim

os classifica:

a) Os latifúndios propriamente ditos: aqueles que, por herança ou concessão, exploram a terra com as fazendas de gado, e em seus domínios aceitavam a presença de lavradores e demais trabalhadores da terra. Estes cobravam pelo uso, destas últimas categorias, uma “renda” da terra que poderia ser em dinheiro, em espécie, ou através de serviços gratuitos instituídos pelo chamado “cambão”, que se constituía basicamente, em serviços gratuitos prestados pelo próprio lavrador, não outro, como pagamento pela ocupação de uma porção de terra. Os latifundiários conheciam o tamanho das suas terras. b) Os proprietários em condomínio: Estes podiam ser fruto de desmembramento das sesmarias, pela herança ou quaisquer outras formas. Exploravam a terra através das fazendas de gado, com a diferença de que desconheciam o tamanho da propriedade, explorando-a o máximo que suas condições econômicas permitissem. Esta categoria dominou, no médio São Francisco vastas áreas até o sul do Piauí. Cercava quanta terra sua capacidade lhe permitisse trabalhar. ‘A propriedade em condomínio é resultado das partilhas de heranças nas velhas fazendas, ou da compra de uma fazenda dessas por várias

59

famílias, onde cada uma recebe um pedaço correspondente ao preço que pagou. A maioria dos proprietários em condomínio possuem tarefas que foram compradas na época pelo preço de CR$ 0, 002 ou CR$0, 005...’ c) foreiro: praticava a agricultura nas ilhas e locais úmidos, por isso pagava uma renda (foro. d) agregado: podia ser um proprietário em condomínio ou foreiro. e) Posseiros: Categoria Difusa. Em Andrade (1973) constitui-se no ocupante por concessão do dono, conseqüentemente, num administrador com plenos direitos. Em Tallowitz (1979) é o invasor de terras, aquele que as ocupa sem autorização. Estas terras (ocupadas pelo posseiro aqui conceituado) são caracterizadas como devolutas. Ainda posseiros pode significar aquele que trabalha em terra alheia, sem por isso pagar uma renda e sem o conhecimento do dono. f) Arrendatário: categoria mais recente. Constitue-se naquele que paga uma quantia fixa pelo aproveitamento da terra de outro, podendo, este pagamento ser em dinheiro ou em espécie. (Berenguer, 1988, p. 33-34)

De acordo com Ataíde, na região de Sobradinho havia noventa e cinco fazendas de

origem sesmarial. Com o seguinte estatuto: trinta e sete com cadeia sucessória plena; sete com

cadeia sucessória incompleta; e vinte e três possuíam documentação proveniente de uma

cadeia sucessória relativamente curta e cuja origem “está na compra de título de glebas do

Estado”35. (Ataíde, 1988, p.74)

As áreas de domínio público constituíam fazendas localizadas no interior da catinga

com testada ou não para o rio e as áreas de vazantes. Em geral, as primeiras eram exploradas

em condomínio ou através de pequenas posses. As últimas, ou seja, as áreas de vazantes ou

lameiros — compreendendo as margens férteis do rio, as ilhas e ilhotes — juridicamente

pertencentes à União, conforme já salientado, estavam sob o domínio das prefeituras

municipais. Os lameiros eram cultivados em pequenas parcelas (variando de meio a três

hectares) e transferidos de pai para filho. Tudo indica que em alguns municípios havia

disputas pelas áreas dos lameiros e o acesso a eles dependia da mediação das elites políticas

locais, como mencionado acima. As injunções políticas marcavam as relações entre os fiscais

e os foreiros. Consta que nos municípios de Remanso e Sento Sé o acesso ao lote em área de

vazante era, inúmeras vezes, usado como moeda de troca nas barganhas políticas e eleitorais,

estando condicionado à vinculação política e de clientela do pleiteante às autoridades locais.

35 “As compras de glebas ao Estado se deram principalmente nos anos de 1944, 1953, 1954 e 1956. Neste período o governo do Estado e o prestígio dos posseiros permitiram consumar-se este processo de legalização de glebas que então passaram a ter cadeia sucessória até à desapropriação.” . Yara Dulce Bandeira de Ataíde, Onde estão os caatingueiros e ribeirinhos de Sobradinho?, 1984, p. 75.

60

Essas informações sinalizam que a política de açambarcamento de terras públicas por

parte de fazendeiros começava a despontar na região, indicando, ao mesmo tempo, que a

expropriação das terras de vazante em mãos desses camponeses seria muito provavelmente

questão de tempo. Aliás, não custa lembrar que foi na década de 70 que começaram as

disputas pelas ilhas e áreas de vazantes situadas no Vale do Alto-Médio São Francisco

envolvendo, de um lado, os remanescentes dos mocambos de Rio das Rãs, Pau d’Arco e

Parateca — situados nos municípios de Bom Jesus da Lapa e Malhada respectivamente — e,

de outro, grandes fazendeiros da região36, bem como outros problemas fundiários registrados

nos municípios de Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória e Juazeiro.

Em Casa Nova, onde um único grupo político dominava (secularmente) a administração

municipal, pelo que consta inexistiam injunções semelhantes às verificadas em outros

municípios do Vale; os raros casos de desavenças e retaliações eram motivados por questões

pessoais e, em geral, dirimidos pela “mão forte” do líder local37. Consta, aliás, que foreiros

perseguidos por razões de ordem política em Remanso ou Sento Sé recorriam aos Viana ou

aos seus prepostos com a finalidade de ter acesso aos lameiros, localizados naqueles

municípios. Afinal, “ tudo falta no sertão, menos espaço” diziam os sertanejos (Zarur, 1947, p.

50).

Ilhas e ilhotes açambarcadas por particulares — grandes fazendeiros articulados aos

grupos de poder — eram arrendadas, recebendo seus exploradores, conforme citação abaixo,

renda em dinheiro ou em produto38.

Se o acesso aos lameiros não estivesse mediatizado por uma relação de clientela com o Prefeito e seus fiscais, ele necessariamente haveria de passar pela mediação do grande fazendeiro quando a ilha — local privilegiado dos lameiros — estivesse sob seu controle, estando então o camponês obrigado a um pagamento em dinheiro ou produto [grifos do original]. (Sigaud, 1987, p. 219)

De modo geral, as ilhas exploradas por particulares eram arrendadas a ceboleiros e

agricultores um pouco mais capitalizados, desejosos em expandir seus cultivos. Às vezes,

36 Recentemente, o antigo mocambo de Rio das Rãs recebeu a titulação de suas terras, e os de Pau d´Arco e Parateca se encontram em fase de reconhecimento. 37 Relato de Quintiliano. 38 Adolfo Viana era “proprietário” de uma ilha no município de Casa Nova, muito bem indenizada pela CHESF. O valor da indenização alcançou a cifra de CR$2.200.000,00. Marco Antonio Berenguer, Luz e Miséria, 1984, p. 29. É provável que, nos municípios em estudo, o açambarcamento de terras, verificado em outros pontos do São Francisco começasse, a se tornar pronunciado.

61

eram arrendadas pelos preteridos ou excluídos da distribuição dos lameiros controlados pelas

Prefeituras Municipais, em razão de disputas políticas como atestam entrevistados.

As áreas de vazantes sob domínio das prefeituras municipais eram controladas e

fiscalizadas por um corpo de funcionários, denominados “administradores de ilhas, ilhotes e

coroas”. “Os camponeses os chamavam simplesmente de “fiscais” ou ‘encarregados da

Prefeitura’ . Os ‘fiscais’ tinham autorização para ceder terras desocupadas a camponeses

interessados, bem como tomar aquelas roças não aproveitadas por uns para ceder a outros.

Cada camponês recebia do ‘fiscal’ um ‘talão’ de pagamento correspondente a cada roça

ocupada, que servia como recibo de quitação do “imposto” e comprovante da posse da roça”

[grifos do original] (Martins-Costa, 1989, p. 156).

Os entrevistados afirmam que o foro pago ao fiscal era pouco representativo no

cômputo dos custos da pequena produção beradera. A propósito disse Geraldino: “nóis

pagava um talãozinho assim; uma taxinha. E aquilo tava bom. Não tinha dono não, era da

Marinha, da prefeitura”39. O pagamento do foro era anual e se dava entre os meses de

dezembro e janeiro. Quando as safras eram minguadas, fossem em decorrência de cheias,

fossem em decorrências de pragas ou ainda quando os produtos não obtinham “preço” no

exíguo mercado regional, o “fiscal de ilha”, de modo geral, aceitava a renegociação do

pagamento do foro; recebendo-o em produto ou acordando em recebê-lo na safra do ano

seguinte.

De acordo com Sandroni, os fazendeiros cobravam foros superiores aos estipulados

pelas Prefeituras Municipais:

Um pequeno agricultor afirmava que o pagamento do foro aos fazendeiros era feito na base do “três por um”, isto é, de cada três unidades do produto um era entregue ao “proprietário”. Dificilmente uma proporção tão elevada do produto paga como renda, poderia ser nas condições locais, denominada de foro, assimilando-se mais a um caso de pequeno arrendamento em natura e evidentemente de caráter não capitalista (1982, p. 53).

É provável que a prática registrada acima pelo economista fosse mais comum em

relação aos ceboleiros e ou agricultores capitalizados forâneos, vigorando entre a clientela do

proprietário relações outras, uma vez que vários entrevistados reafirmam que o pagamento do

“foro”, mesmo nas ilhas de domínio particular, “era bobagem pouca”. Não é por outra razão

39 Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.

62

que, os antigos beraderos, que vivenciaram a experiência da vida “cativa” nas Agrovilas de

Serra do Ramalho, reafirmam a acessibilidade à terra. Os antigos moradores de Casa Nova

vão além, reafirmando que no município não havia conflito de terra e que todos gozavam, de

uma forma ou de outra, da acessibilidade ao par rio/terra e que sua exploração supria suas

necessidades básicas e garantia a decantada autonomia beradera.

Estimo de suma importância analisar como se davam as formas de “acessibilidade à

terra” nas barrancas do Rio São Francisco, sobretudo nas “vazantes”, tendo em vista a

exigüidade dos lotes propícios à agricultura e as disputas pelos lameiros mais bem situados40.

Aqui, convém lembrar as palavras de Wilson Lins: “Ele sofre menos [o beradero] quando

consegue um pedaço de terra numa ilha. Mas as ilhas não chegam para todos” (1983, p.106).

Nas entrelinhas de algumas narrativas é possível deslindar ações de fiscais e chefetes

locais — quem de fato exerciam o poder de mando nos pequenos povoados — que sugerem o

jogo de interesses e as “espertezas”, consubstanciadas no açambarcamento dos melhores lotes

e na “retenção” do pagamento do foro, à falta de termo mais apropriado, sobretudo quando

este era pago em espécie. Em outras palavras: convém perguntar se nas barrancas do Baixo-

Médio São Francisco a terra era mesmo “a grané” e para quem a terra, de fato era a “grané”?

Comumente, estudiosos apontam identidades entre os quatros municípios do vale do

São Francisco que tiveram parte de suas áreas submersas pela Represa de Sobradinho. Em

muitos aspectos elas são inquestionáveis, mas reputo da maior importância estudos voltados

para apontar as diferenças existentes entre aspectos daqueles municípios, destacando, entre

eles, a forma diferenciada de exercer o mando político das oligarquias dominantes em Casa

Nova e das oligarquias dos demais municípios, consubstanciada, entre outros, na distribuição

das parcelas de terra e na cobrança do foro. Aliás, o agente pastoral que trabalhara na área, em

entrevista, chamou a atenção para as diferenças em relação ao exercício do mando entre as

elites de Casa Nova e Sento Sé, por exemplo. Quais são suas principais características? Em

que elas se diferenciavam das demais oligarquias sanfranciscanas? Sabemos que, não obstante

todo o desgaste provocado pelo deslocamento compulsório envolvendo de um lado a poderosa

família e sua clientela, a oligarquia Viana foi a última a ser derrotada, em pleito eleitoral,

entre as demais oligarquias dos municípios que tiveram partes de suas terras submersas e que,

enquanto em alguns desses municípios, nomes tradicionais foram varridos do mapa político

40 Não podemos perder de vista que o poder público local “expressão da classe dominante”, controlava mais de 70% das terras agricultáveis da área, determinando suas formas de “ocupação por pequenos produtores mediante antigos laços de dominação”. Margarete Silva, A Represa de Sobradinho na concepção da Igreja, 2003, p. 73.

63

local — por exemplo os Sento Sé — , a família Viana ainda é uma importante referência em

Casa Nova, exercendo influência política no município.

3 - Caranguejando no rio

Censurando a negligência dos portugueses em relação ao efetivo domínio do Brasil

interior, Frei Vicente do Salvador cunhou frase lapidar: [os portugueses] “sendo grandes

conquistadores de terras, não as aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando

ao longo do mar como caranguejos” (Salvador, 1982, p. 59).

Do “mar” passaram-se aos rios e assim deu-se a penetração e a conquista do Vale do

São Francisco. Nascia o sertanejo. Atrás dessa figura genérica escondem-se três tipos sociais,

em muitos aspectos, distintos: o catinguero, o brejeiro e o beradero. Na literatura sertaneja, o

catingueiro é o ser social mais afamado e representado na figura de diversos emblemáticos

personagens retratados nos romances Vidas Secas (Graciliano Ramos), Grande sertão veredas

(Guimarães Rosa) e o Quinze (Raquel de Queiroz), por exemplo. Todos os personagens destes

romances são representativos da chamada cultura do couro.

Neste trabalho, embora o catingueiro, vez ou outra apareça na figura de um agregado ou

de um vaqueiro, o ser social em destaque é o beradero. Simbolicamente, o vaqueiro é

representado pelo laço; o beradero pela rede ou pela canoa.

Abusando um pouco da metáfora do Frei Vicente, este agente social era (e é) o resultado

do caranguejar dos primórdios de nossa colonização, uma vez que todo seu modus vivendi se

pautava na relação simbiótica e harmônica com o rio. Essa relação era a base das

“felicidades” às quais fazem referências os beraderos entrevistados. Convém a partir daqui

deslindar em que consistia o caranguejar no vale do São Francisco.

Basicamente, o homem–caranguejo41, ou seja, o beradero vivia e reproduzia sua

condição em dois espaços opostos e complementares entre sim (como chama atenção Martins-

41 Enquanto concluía este trabalho, tomei conhecimento da instigante obra Homens Anfíbios, de Terezinha Fraxe (2000). Com exceção de uns poucos itens, as características peculiares apontadas pela autora do chamado campesinato das águas se aplica aos beraderos sanfranciscanos, em questão. Vejamos: “a) dependência e simbiose com a natureza, através dos ciclos naturais e dos recursos naturais renováveis, a partir dos quais se constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral; c) noção de território ou de espaço – o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns desses membros possam ter migrado para centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados: e) importância das atividades de

64

Costa), a saber: os lameiros e a catinga. Eram nesses dois espaços do vivido que toda a

condição de vida beradera se organizava e era em ambos os espaços que homens e mulheres

tiravam sua sobrevivência. Não custa reiterar: os lameiros eram constituídos das faixas de

vazantes, das ilhas42, ilhotes e croas — todos fertilizados pelo remonte, húmus trazido com o

aluvião, resultado da erosão das margens do rio e de seus afluentes, durante as cheias anuais.

Pesquisa realizada em 1973 pela Hidroservice, sobre os locais de cultivo da população ribeirinha dá conta de 40% dos 202 entrevistados cultivando somente as “ilhas”, nos quatro municípios; e 40, 7% combinando “ilhas” e outros locais: “terra firme” e “caatinga” (5%). Desta forma, 80,7% dos camponeses dependiam das “ilhas”. A “terra firme” era procurada por 48,6%, sendo que 14,8% dependiam somente dela, 26,3% a combinavam com as “ilhas”, 5% com as “ilhas” e com a “caatinga” e 2,5% com a “caatinga”. Conclue-se que os locais possíveis de cultivo “de vazante” (e/ou de “chuva”, conforme as chuvas e as “cheias”) eram utilizados por 98% dos camponeses (80,7%+14,8%+2,5%) (Siqueira, 1992, p. 174).

Infelizmente, não tive acesso aos dados relacionados ao enquadramento dos beraderos

no que tange às formas de apropriação da terra, no entanto, encontrei entre os entrevistados

todas as categorias comumente presentes nas barrancas sanfranciscanas, a saber: posseiros,

foreiros, arrendatários e inúmeros agregados (com uma exceção, todos da Fazenda de Fora).

Foram unânimes em afirmar o uso dos espaços de trabalho e cultivo em obediência ao ciclo

natural das “águas”, ou seja, cultivavam no sequeiro e na vazante e muitos combinavam as

duas atividades com a pesca, conforme veremos a seguir. Com exceção dos remeiros43 e

subsistência, ou seja, produção de valores de uso para si e valores de uso para outros (mercadoria); f) reduzida acumulação de capital: g) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e a atividades extrativistas; h) a tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente; i) fraco poder político que, em geral, reside nos grupos de poder dos centros urbanos; j) o trabalho com a terra é de policultivo de subsistência em sistemas agroflorestais; l) utilizam a técnica de pousio para a retroalimentação de seus solos; m)a mão-de-obra utilizada nas diversas atividades do mundo econômico é quase exclusivamente familiar; n) há extensa e intensa divisão sexual e social do trabalho na família; o) o trabalho artesanal é dominado pelo camponês e sua família até o produto final; p) os meios de produção fundamentais são a terra a e água; q) a religião é um fator prepoderante para divisões sociais, políticas e econômicas, além de contribuir para a cidadania (o batizado é a certidão de nascimento, o casamento católico, na grande maioria das vezes, substitui o civil); r) a palavra estabelecida através de relações de compadrio transforma-se, em geral, em estado de direito e de fato”. p. 63-64. 42 De acordo com Donald Pierson, o engenheiro Halfed localizou no Rio São Francisco 334 ilhas. O homem no Vale do São Francisco, v.1, 1972, p. 42. 43 Sobre os remeiros diz Morais Rêgo: “Recrutados entre os elementos mais humildes, filhos de homens do mesmo ofício, de pequenos agricultores ou de camaradas, os remeiros têm vida rude, se bem que no São Francisco não tanto quanto em outros rios do Brasil: aproveitam largamente a força do vento e não são freqüentes as cachoeiras. Mesmo assim, excessivamente penoso, o trabalho do remeiro consiste principalmente no manejo da vara, zinga, com a qual impulsiona a embarcação, caminhando sobre os bordos. Os remeiros

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barqueiros44 — trabalhadores assalariados altamente especializados, para os padrões locais —

, os beraderos, como meio de garantir a sobrevivência, associavam à prática agrícola outras

atividades. Geraldino, além de cultivar pequena gleba “herdada” de seus ancestrais nos limites

da Fazenda de Fora, era e é exímio artesão. D. Inedina, além de praticar a agricultura cativa

enquanto agregada na Fazenda de Fora, produzia utensílios domésticos em madeira e fibras45.

Quintiliano, além de cultivar no sequeiro e na vazante — como disse com orgulho,

reafirmando sua condição de beradero liberto —, era marceneiro, chegando, inclusive, a

trabalhar na Nova Sento Sé, pouco antes da submersão total da velha cidade. O pai de

Berneval, além de agricultor e pescador, explorava uma pequena barca, fazendo a travessia

entre Bem-Bom e os povoados beraderos das duas margens do rio, especialmente Sento Sé.

Outros tantos somavam à condição de agricultores à de pequenos comerciantes, criadores ou

barqueiros amadores. Nas chamadas comunidades tradicionais, a especialização não é fator de

valorização e todos se orgulham de “tudo saber fazer um pouco”.

De acordo com Morais Rêgo, o fenômeno das vazantes do São Francisco se formava

desde Pirapora se estendendo por quase todo o vale.

A princípio descontínuas e estreitas, rio abaixo aumentam extraordinariamente, formando faixas raramente interrompidas, largas de muitos quilômetros. Nas vazantes traça-se uma rede hidrográfica complexa, resquício de inundações: canais paralelos ao rio, ipueras e lagos alinhados também paralelamente. Certos tributários perdem-se nesses meandros antes de encontrar o São Francisco(...) Formam-se em certos trechos das vazantes dunas fluviais, observadas entre Barra do Rio Grande e Pilão Arcado, particularmente em Mocambo do Vento” (1945, p. 36).

formam as tripulações das barcas, de seis a mais de trinta homens, dirigida por mestres, práticos do rio, alguns mais atilados que progrediram. Administra a barca o encarregado, às vezes seu proprietário, que recebe o nome de barqueiro. Ao lado do remeiro, há os tripulantes dos vapores, menos humildes mais de origem análoga, marinheiros e práticos. Formam toda a população nômade, que vagueia ao longo do rio e que se não pode mais acostumar à vida sedentária. Luiz Flores Morais Rêgo. O vale do São Francisco, 1945, p. 192. 44 Apesar da navegação a vapor, as barcas subsistiam, sustentando o tráfego fluvial. Os barqueiros, conforme visto acima, eram seus proprietários. As barcas singravam o São Francisco transportando pessoas e alimentos. A propósito, diz Morais Rêgo: “Em geral, os proprietários das embarcações, os barqueiros, viajam operando mais por conta própria do que a frete, as barcas casas de comércio ambulante. Trafegam com longas paradas, vendendo as mercadorias e comprando outras de produção local” (1945, p. 210). Após a construção da Barragem de Sobradinho, devido a extensão do Lago e as maretas, essa categoria social-profissional foi extinta. Convém esclarecer que os barqueiros e proprietários das demais embarcações que singravam o São Francisco não foram indenizados nem tiveram suas perdas reparadas pela CHESF, fato que provocou revolta, dando ensejo, também, a perturbações mentais, mortes súbitas e suicídios. Para obter mais detalhes sobre as barcas e os remeiros, inclusive sobre as carrancas, o leitor interessado deve recorrer à brilhante obra de Wilson Lins, O Médio São Francisco. Uma sociedade de pastores guerreiros, 1983, p. 88-97.

66

Localizado em faixa semi-árida, o Vale do Médio São Francisco registra um regime de

chuvas irregular, apresentando isoietas que variam de 1.200 a 600 milímetros (Zarur, 1947, p.

34). A região entre Juazeiro e Cabrobró, de acordo com Jorge Zarur, é a mais seca da Bahia

(compreendendo o Raso da Catarina), registrando isoietas ainda mais baixas. Em geral, as

precipitações ocorrem entre os meses de novembro e março e as cheias são registradas a partir

dos meses de janeiro e fevereiro, quando o rio recebe grande carga de águas provenientes de

suas cabeceiras. Entre os meses de março e abril o rio vazava, inaugurando o chamado

período das secas (março/abril-outubro/novembro).

Nesse curto espaço chuvoso — “tempo das águas” — os beraderos voltavam-se para

as catingas. “Estas recebem vegetação peculiar e estão situadas entre as áreas de vazantes (as

planícies) e os planaltos e as serras, de outro” (Rêgo, 1945, p. 37).

Nas catingas, o beradero pratica a agricultura de sequeiro, ou seja, a agricultura

dependente das chuvas e é naquele espaço — em geral de acesso livre no imaginário

beradero, como visto — que ele criava o pequeno rebanho, compreendendo o gado bovino e

as “miunças”: caprinos, ovinos, suínos e galináceos de todas as espécies. Os poucos

“criadores fortes” (Woortmann, 1992, p. 156) das localidades beraderas, além de possuírem

maior números de reses, tinham na “propriedade”, um rústico curral — símbolo, e talvez o

único fator de diferenciação entre eles e os demais criadores “fracos”. Os agricultores

“fortes”, além da casa de farinha, possuíam uma rústica engenhoca, “oficina”, carros de bois,

carroças e pequenas embarcações.

A rigor, a catinga do beradero compreendia uma faixa de transição entre a várzea e a

caatinga bruta, localizada no interior do sertão, portanto, distante do rio poucas léguas. Ela

era vista negativamente pelo beradero, como assinala Martins-Costa, sendo adentrada

somente por pessoas especializadas — os vaqueiros, por exemplo — ou em tempos de

“enchentes altas”, quando para lá se dirigiam os atingidos46.

Nas catingas, além da pecuária extensiva, conforme assinalado, o beradero cultivava

várias espécies temporárias ou semi-permanentes. As lavouras cultivadas em ordem de

importância eram: a mandioca, o milho o “feijão de corda”, a batata-doce, a abóbora, a cana-

45 Entrevista tomada pela autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999. 46 Sobre a “negatividade” da caatinga diz a antropóloga Martins-Costa: “Apesar de tudo o que a caatinga podia oferecer na época do verde, a caatinga era imaginada negativamente, como desconhecida, perigosa, por conta da infertilidade dos solos, da escassez de água, da fome, da falta de caminhos, da perdição. “Signo maior da negatividade da caatinga: o “lugar dos mortos”, era lá que estavam os cemitérios. Na verdade, mais do que negar a caatinga, estava se afirmando o “princípio da beira”, que organizava todo o espaço regional, pelo qual se devia

67

de-açúcar47, etc. Esta última de acordo com Zarur, era o mais importante produto agrícola do

Vale, constituindo-se em fonte de alimentos básicos na região (1947, p. 56). A cana-de-açúcar

era responsável pela montagem de uma indústria artesanal de base bastante rudimentar (as

engenhocas), especializada na fabricação da rapadura, do melado e da aguardente.

Algumas faixas da catinga se prestavam para a agricultura comercial e era lá que se

cultivavam pequenos roçados da mamona e do algodão arbóreo (uma das mais tradicionais

atividades agrícolas de todo o semi-árido). Além da venda do peixe fresco, era por intermédio

desses dois últimos produtos comerciais que o beradero, propriamente dito, se ligava

“tenuamente” ao mercado exterior, usando expressão de Paulo Sandroni.

Quando o rio vazava, por volta de abril/maio, inaugurava-se um novo ciclo de trabalho

e de vida. Os beraderos acorriam aos lameiros e naqueles espaços cultivavam todo tipo de

alimentos, predominando a mandioca, o milho e o “feijão de arranca”, arroz, hortaliças,

leguminosas e a cebola48. Às vezes, cultivavam também o capim para o gado e para a

reduzida alimária.

Atestam os entrevistados que o cultivo nos lameiros era atividade bastante fácil em

comparação com o de sequeiro. “O plantio era feito de modo extremamente fácil: tão logo

recuassem as águas, procediam-se a“limpa” e a “queima” do mato e o solo estava pronto, por

exemplo, para o plantio da mandioca” (Siqueira, 1992, p. 122). Na concepção do beradero, o

rio, além de propiciar a terra molhada e fértil, era um companheiro de trabalho à medida que

ajudava no plantio e na colheita, restando-lhe pouco a fazer. Ainda assim, todas as atividades

eram feitas com a participação de membros da família nuclear e extensa e o beradero muitas

vezes recorria ao adjutório, como salienta Siqueira pouco adiante.

Aos primeiros sinais do início do “tempo das águas”, começavam as atividades da

“ranca da mandioca” de vazante, com “ajuda das águas” (Siqueira, 1992, p.123).

“Participavam toda a parentalha e as famílias vizinhas, que podiam emendar, ali mesmo, com

a própria “desmancha”, se não tivessem “casa de oficina” própria” (idem, ibidem).

A fabricação da farinha de mandioca se dava nas “oficinas” ou nas “casas de farinhas”,

localizadas nos quintais das “casas de morada” de algum “agricultor forte”.

buscar o mais possível estar próximo do rio, mais a salvo de suas enchentes [grifos do original]. Uma retirada insólita: a representação camponesa sobre a formação do lago de Sobradinho, 1989, p. 59. 47 De acordo com Donald Pierson, a cana-de-açúcar não se desenvolve nas áreas de vazante, mas em áreas mais próximas à caatinga. O homem no vale do são Francisco, v.2, 1972, p. 453. 48 Ainda segundo Pieson, o cultivo comercial da cebola foi introduzido no Vale pelo libanês Yorgy Nicola Khoury. Op. cit., p. 457.

68

Em Pesqueira [Xique-Xique], diversas famílias alugam uma casa de farinha ou “oficina de farinha”como é geralmente conhecida, trabalhando juntos na preparação do produto. A ‘desmancha” pode durar vários dias, dependendo da quantidade de mandioca a ser beneficiada. Como em outros locais, a “oficina” consiste principalmente de um ralador, uma prensa e um forno, sendo usado apenas a força braçal. Depois de empilhada a mandioca na oficina, fora do alcance de animais soltos, são raspadas as peles dos tubérculos com a ajuda de um faca de cozinha, expondo-se a polpa branca (Pierson, v.2, 1972, p. 526-527).

A tarefa da raspagem da mandioca cabia às mulheres. Estas sentavam-se em esteiras

estendidas no chão ou em bancos de madeiras, lançando as cascas em gamelas e cestos ou

empilhadas no chão para servirem de alimentação ao gado. Após a raspagem, os tubérculos

eram lavados e posteriormente ralados num moinho rústico, que consistia de quatro partes:

um cilindro de madeira de mais ou menos 6 centímetros de diâmetro com um perímetro de 2 centímetro de largura, no qual serrinhas de metal são enroscadas paralelas ao eixo, e contra os quais os tubérculos são encostados para serem ralados enquanto o cilindro gira; uma roda de madeira de grande tamanho, de cerca de l metro e 20 centímetros de diâmetro, com raios em cruz e uma manivela central; uma correia de couro, conhecida como “reio”, ou simplesmente como “couro”, mediante a qual a força é transmitida da roda ao cilindro; e uma mesa de madeira, à qual é preso o eixo do cilindro e que apanha as raspas de mandioca à medida em que caem, despejando-as num “cocho”. A moenda inteira é chamada no local de “molinete” (idem, ibidem).

Após a raspagem da mandioca, a massa era levada a uma prensa de madeira, da qual

se extraia, por compressão, um líquido ácido e, em seguida, torrada numa plataforma de barro

construída sobre um forno à lenha, cujas “bocas” dão para a parte externa da casa. Uma vez

enxuta, a massa era espalhada sobre a plataforma e mexida por um rodo para evitar sua

queima. Suficientemente aquecida, a farinha era tirada da plataforma. Antes de ensacar o

produto, seu proprietário pagava em espécie o aluguel da “oficina” ou a ajuda na

“desmancha” a parentes e vizinhos.

A farinha tinha importância fundamental no cardápio do beradero. O produto nunca

faltava na barrica de sua despensa. Após o deslocamento compulsório do beradero, o produto

tornou-se escasso, fator de humilhação, de vergonha e de revolta; fator determinante na

rejeição a tudo quanto se relaciona às mudanças introduzidas na região depois da chegada à

mesma da “besta fera” (CHESF)

69

“O objetivo principal da “roça de vazante” era garantir a subsistência familiar, o

excedente sendo comercializado nas “feiras” e nos mercados das cidades mais próximas, o

chamado “comércio” (Sigaud, 1987, p. 25). Nestes termos, Sigaud desautoriza tanto a CHESF

como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba (CODEVASF)

quanto ambas as empresas acusam os beraderos de praticarem unicamente uma agricultura de

subsistência, sem fins comerciais Atestam os vários pesquisadores da temática que muitas

cidades da região, durante os períodos de estiagem, dependiam da produção dos “lameiros”

(Zarur, 1947, 27-52; Sandroni, 1982). E como chama atenção Rubem de Siqueira, a qualidade

de vida dos beraderos dependia, em parte, do sucesso da produção alcançada nos lameiros

(1992, p. 124).

Não obstante a exigüidade dos lameiros, a rigor, eles não estavam vedados a ninguém,

e mesmo os “agregados”, os “cativos”, podiam cultivá-los pelo sistema do “talão” (idem,

1992, p.132-3). Quando a seca se tornava inclemente, geralmente, os catingueiros acorriam

aos lameiros, sobretudo para matar a sede do gado e disputar com as criações dos beraderos o

ralo capim das áreas de vazantes e ilhas. Quando as primeiras chuvas caíam na terra árida, os

catingueiros retomavam o caminho da caatinga bruta, levando consigo o gado e os poucos

pertences que trouxeram na travessia.

A transumância, digamos assim, na berada do São Francisco era prática bastante

arraigada. Os beraderos, conforme veremos abaixo, viviam o constante ir-e-vir entre seus

espaços de vida e de trabalho, em obediência ao ciclo das águas.

As atividades nas ilhas e ilhotes exigiam das famílias beraderas o deslocamento

temporário para suas margens. Ali, eles montavam precários “ranchos” — feitos de barro e

cobertos com palmas, em geral folhas de carnaúba — onde viviam durante meses até a

colheita da safra. Também na atividade pesqueira a prática era registrada. Durante meses

arranchavam as margens das lagoas. Encerrado o ciclo das pescarias, retornavam às suas

habitações (também bastante precárias aos olhos do forâneo, mas muito maiores e dotadas de

conforto inexistentes nos ranchos sazonais), localizadas nos pequenos povoados ou em suas

proximidades. Fato que se repetira no ano seguinte. A transumância beradera se repetia

também durante as “enchentes altas”, quando os atingidos se retiravam para os povoados

situados mais no alto (caso de Barra da Cruz, para onde se deslocavam os atingidos dos

povoados de Sento Sé) ou para a caatinga bruta, apenas retomando suas atividades quando as

águas abaixassem. Faz sentido afirmar, portanto, que o beradero vivia num espaço mutante

ou temporário, mas efetivo. Dito de outro modo, a localização de sua casa de morada (em

70

períodos determinados do ano) era provisória, mas nela ele vivia efetivamente.

Diferentemente de Serra do Ramalho — como veremos em momento posterior — onde o

“colono” não podia deixar as agrovilas, pois o lote de trabalho não reunia as condições de

efetividade da morada, uma vez que não tinha a principal fonte de vida: a água.

Tanto nos lameiros como nas catingas, cultivavam-se árvores frutíferas de variadas

espécies, tais como: manga, pinha, araçá, banana, jenipapo, laranja, etc. Em ambos os

ecossistemas havia inúmeras espécies nativas à disposição de todos quantos quisessem coletá-

las. As mais apreciadas pelos beraderas eram as espécies das vazantes: “A saudade que a

gente sente até hoje das frutas que existiam nas vazantes, que a gente pegava cestos e mais

cestos: crioli, oiti, mairi, tucum. Tudo era fruta típica da região”49.

Entre os meses de junho e julho colhiam (das vazantes) as primeiras safras das culturas

de ciclo curto, voltando-se, em seguida, para a atividade pesqueira praticada nas inúmeras

lagoas50 piscosas, localizadas nas beradas do rio, conforme veremos a seguir. Dependendo da

piscosidade das lagoas, a prática pesqueira poderia se estender até meados de

setembro/outubro, quando os beraderos se voltavam para o preparo das áreas de sequeiro, à

espera das primeiras chuvas que ensejavam o plantio das culturas de sequeiro. Quando as

chuvas caíam em meados de novembro completava-se o ciclo que compunha as felicidades

ligadas às atividades de subsistência nas beradas sanfranciscanas.

Atividade complementar para alguns, a pesca era “decisiva em termos de sustento

familiar dos mais pobres” (Siqueira, 1992, p.127). Pescava-se no rio durante as cheias e nas

lagoas durante a seca. Estas últimas, em várias localidades do Vale, eram chamadas de “mãe

da pobreza”, tal o papel desempenhado no sustento de inúmeros sanfranciscanos.

Os beraderos utilizavam as mais variadas técnicas, bem como os mais variados

instrumentos de pesca. A atividade pesqueira não constituía tão somente uma dentre as

felicidades dos beraderos, mas era fator demonstrativo da especificidade da sua cultura e do

seu caranguejar.

A pesca é muito praticada ao logo da parte Média, abaixo de Carinhanha, em virtude da existência de numerosas lagoas e ipueiras na planície aluvional, algumas das quais originam-se os velhos canais

49 Relato de Constança. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/1/2002. 50 O direito brasileiro consagra que os recursos e os mananciais hídricos (lóticos – água corrente) pertencem aos estados e a união, sendo, portanto, de acesso livre e irrestrito à população. Já os ambientes aquáticos com características lênticas (água represada), tais como lagos e lagoas são passíveis de apropriação. Terezinha Fraxe, op. cit., p. 105.

71

do rio. Todas elas constituem reservatórios naturais de água que o São Francisco lhes fornece nas cheias. O peixe é também pescado em grandes quantidades no próprio rio nas águas rasas próximas das grandes coroas ou bancos de areia. Nessas margens os pescadores itinerantes constroem às vezes rústicas choupanas cobertas de palha ou couro não curtido, nas quais moram com as famílias durante semanas de cada vez. (Pierson, v.2, 1972, p. 382)

As “botada de rede”51 são rememoradas pelos atingidos pela Represa de Sobradinho

com entusiasmo e saudosismo. Martins-Costa, no seu instigante trabalho Uma retirada

insólita, descreve com riquezas de detalhes as pescarias nas lagoas do Saco e do Sem-Sem,

em Itapera (ambas sob o domínio da Prefeitura Municipal de Sento Sé). Aqui, vou me deter

nas “botada de rede” das lagoas da Fazenda de Fora, no município de Casa Nova, localizada

nas “extremas” com Remanso, recorrendo às descrições da antropóloga Martins-Costa em

alguns aspectos específicos. De acordo com Manolo, a Fazenda de Fora “era muito bem feita,

ficava num tabuleiro alto e tinha um bangalô muito bonito”52 e dotada de inúmeros recursos,

encontrando-se no seu interior os principais ecossistemas imprescindíveis à vida do sertanejo

sanfranciscano, quais sejam: áreas de vazantes, as lagoas e a catinga, bem como a caatinga

bruta.

As pescarias começava no mês de julho. Era o seguinte. A lagoa não tinha defeito. Quando o rio enchia (dentro da fazenda tinha cinco lagoas) inundava as lagoas. Quando as água abaixava, tinha uma barra que entrava em Remanso e vinha até aqui. Pegava um alagadiço, um baxão, até entrar nas lagoas nossas. Quando saia cá, nós tomava, fizemos assim uma tapagem para agarrar o peixe. Fazia uma espécie de barragem pra prender o peixe. Tinha uma barra funda que parece que foi feita por obra de homem, mas não, foi feita na terra, pela natureza. Quando o rio baxava, que o peixe queria sair, nós tomava. Descia a terra e nós tomava. O peixe afastava para o fundo das lagoas, mas ia abaxando as água e quando começava o mês de julho, nós começava as pescarias. Mês de julho, agosto, setembro e outubro, novembro e dezembro. Quando o rio enchia [em dezembro] parava tudo. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio, ninguém botava rede. Ninguém mexia no peixe, não. Quando pegava o peixe, dava um quarto à fazenda. Eu tinha minhas redes também. Eu botava muitas

51 A “botada de rede” obedecia as regras estabelecidas por leis municipais e pelos proprietários das fazendas onde estavam localizadas as lagoas piscosas 52 Não temos informações ano em que o bangalô da Fazenda de Fora foi construído e qual o nome do seu construtor. Por intermédio dos entrevistados, fui informada que edificação era muito bonita e muito bem mobiliada. Nas poucas vezes, que vinha à fazenda, era lá que se hospedava o fazendeiro. Construído, possivelmente, em estilo assemelhado ao Art-Nouveau, o bangalô era símbolo de poder do fazendeiro, fazendo parte do imaginário de todos os funcionários e agregados da Fazenda de Fora.

72

redes, mas pagava para a fazenda também. Pegava peixe que era até um assombro. Tinha dia que pegava na rede de caroá 20 mil peixe. Era um assombro. O povo admirava. Mais nós pegava”53.

A “botada da rede” exigia a formação do “corpo de rede”. Este era composto por um

grupo de aproximadamente vinte homens. Dentre os principais pescadores, havia o “chefe de

rede” ou arrais54, geralmente, um homem mais velho e chefe de família. “Era ele que

comandava os lances”, diz Antônio Teixeira55. Além do arrais, havia o piloto, o girandeiro, o

vareiro e o abaixador. Os demais pescadores exerciam funções secundárias e eram chamados

de ajudantes.

A pescaria tinha início quando os pecadores saíam com a rede num barco grande e a soltavam aos poucos, até “cercar”’uma determinada área de água. Depois de “cercar”, recolhiam a rede, “colhendo” o peixe. Cada vez que colocavam a rede era chamada de “botada” (ou “lanço”) de rede. A primeira “botada” marcava o início das pescarias, e era famosa pelo número de peixes que vinham presos em cada rede (os camponeses falam entusiasmados em até 15.000 peixes. (Martins-Costa, 1989, p.166)

A percentagem que cabia a cada pescador estava de acordo com sua função no “corpo

de rede”. Em geral, a partilha acontecia logo após a retirada do “quarto” do proprietário da

lagoa ou do “fiscal”, no caso das lagoas sob domínio público56. Nas primeiras “botadas” era

muito comum a distribuição de peixes às pessoas de fora que não participavam das pescarias.

O pessoal de fora vinha assistir ao belo espetáculo dos pescadores puxarem a rede repleta de peixes, e para ganhar peixes. Nas primeiras “botadas”, todos os “corpo de rede” respeitavam o tradicional costume de dar peixes para as pessoas que estivessem na beirada da lagoa naquele momento. Os “maianos” ufanavam-se do número de peixe que haviam dado, pois isto indicava indiretamente o sucesso e abundância de sua rede”. (idem, p. 169)

53 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/05/2003. 54No trabalho de Martins-Costa, op. cit., aparece a figura do “maiano”; em Casa Nova, nenhum dos entrevistados fez referência ao termo. 55 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/1/2002. 56 Antônio salienta que não havia controle rigoroso por parte dos proprietários das lagoas nem muito menos das lagoas de domínio público, em relação ao pagamento da parte que lhes cabia em pescado. Em síntese, diz: “O pescador acabava pagando o quanto ele queria, havia muita enrolação”. Entrevista tomada pela autora em Pau-a-Pique, 26/1/2002.

73

A divisão sexual e social do trabalho durante “a botada de rede” era bastante

pronunciada e acontecia mesmo antes das pescarias. Um dos principais instrumentos de

trabalho dos pescadores, as redes, eram fabricadas (trançadas) artesanalmente da fibra de

caroá, trabalho feito, geralmente, pelos homens. Segundo Manuel, parte da população do

povoado de Aldeia, localizado em Sento Sé, era especializada na fabricação da rede de caroá.

Ainda em relação à divisão do trabalho, outro aspecto convém ser salientado. Como

era habitual o deslocamento dos pescadores e de seus familiares para as margens das lagoas,

era necessário o preparo das rancharias. “Todo mundo fazia sua rancharia. À noite, na berada

da lagoa a gente via em toda rancharia uma fogueira. Era muito bonito!”57 A mãe de Antonio

e Constança58 comprava peixe para revender aos comerciantes de Juazeiro, montando também

sua rancharia na beira da lagoa. Tudo indica que esta prática era disseminada. Assim,

compradores e atravessadores dividiam com os pescadores e suas respectivas famílias o

mesmo espaço de “morada”, mantendo entre si relações de sociabilidade.

Durante o preparo do local das rancharias, cabia aos homens limpar as beras das

lagoas e fazer as “casas” improvisadas com palhas de carnaúba ou de couro cru; às mulheres

cabia trazer das casas de morada as “tralhas” necessárias à sobrevivência durante “a botada da

rede”. Tendo em vista as narrativas dos entrevistados que vivenciaram a experiência das

‘botadas de rede”, as rancharias da Lagoa de Fora (Casa Nova) eram bastante semelhantes às

da Lagoa do Sem-Sem e de Saco (ambas em Sento Sé) descritas por Martins-Costa.

Antes do início da temporada de pesca, cada “corpo de rede” ia até a lagoa limpar o local de sua futura rancharia. Os camponeses tendiam a escolher os mesmos locais dos anos anteriores. A preferência era por sítios onde houvesse árvores frondosas, pois dormiam ao relento, sobre esteiras [grifos do original]. (1989, p. 165)

Enquanto os homens faziam a “botada da rede”, as mulheres limpavam e salgavam o

peixe. As crianças um pouco maiores ajudavam as mães no “trato do peixe” ou exerciam

atividades de caráter doméstico, imprescindíveis durante a permanência na beira das lagoas e

no sucesso das pescarias. De acordo com Manolo, as mulheres especialmente contratadas para

a limpeza dos peixes, dependendo do acordo pré-estabelecido, recebiam, às vezes em

dinheiro, e, às vezes em produto. Estas vendiam a parte que lhes cabia na beira da própria

57 Relato de Manolo. Entrevista conceida à autora, em Casa Nova, 23/5/2003. 58 O relato de ambos foi tomado pela autora, em Casa Nova, 26/1/2002.

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lagoa, aos proprietários das redes ou aos inúmeros atravessadores, que aportavam às lagoas

provenientes de diferentes lugares.

Manolo conta também que durante as pescarias seu trabalho era redobrado, pois todo

momento ficava recebendo dos “corpo de rede” a parte que cabia à fazenda. Em seguida tudo

era anotado para a prestação de contas ao fazendeiro. O volume de peixe que a fazenda

recebia, segundo ele, era muito grande.

Até um período que não sabe precisar, Manolo diz que os peixes eram “tratados”

(limpos), secados, prensados e salgados na beira mesmo das lagoas. Em Pau-a-Pique eram

enfardados e vendidos para atravessadores provenientes de Juazeiro. Tempos depois,

chegaram às beradas das lagoas cearenses e sergipanos em carros e equipados com “caixas de

gelo”, comprando o peixe fresco e remetendo-o aos centros consumidores de seus locais de

origem.

Enquanto os beraderos se dedicavam à criação de um pequeno rebanho — em geral nos

lameiros e ilhas —, a pecuária extensiva era explorada pelos latifundiários. No município de

Casa Nova, Sandroni constatou a existência de grandes propriedades “que se estendiam de

uma ‘testada’ de vários quilômetros de rio para outras tantas no interior da caatinga”.

(Sandroni, 1982, p. 52)

Proprietários absenteístas viviam nas cidades da região, na capital do estado da Bahia ou

até no Distrito Federal — como era o caso do proprietário da Fazenda de Fora —, aliás, uma

das poucas propriedades tituladas em toda a região que daria lugar ao Lago de Sobradinho.

O senhor de terras e de gado na região do Médio São Francisco é, em geral, um habitante das cidades marginais. Cidadão respeitável, honesto e digno, o seu prestígio entre os membros da comunidade cresce paralelo ao número de cabeças de seus rebanhos e á extensão de seus latifúndios. É comum a existência de fazendas que medem uma légua ao longo da margem do rio por uma extensão de fundo, a bem dizer ilimitada, de vez que cercas não existem e as divisas são precárias (...) Vivendo, não obstante, mais nos pequenos centros urbanos do que propriamente nas fazendas, ficam entregues aos capatazes e vaqueiros. (Macedo, Apud Martins-Costa, 1989, p. 133)

Nesses latifúndios, além do administrador da fazenda e dos vaqueiros, viviam dezenas

de agregados que, uma vez cientes de suas obrigações de reciprocidades para com o

fazendeiro, raramente eram molestados por estes. No entanto, eram submetidos a algumas

restrições, razão pela qual eram chamados pelos demais beraderos de cativos.

75

Em geral, o proprietário absenteísta só aparecia na fazenda de ano em ano; assim, toda

relação com trabalhadores e agregados era mediada pelo administrador ou capataz. Em

relação a esse aspecto diz Manolo — ex-administrador da Fazenda de Fora —, cujo

proprietário A. Mariani vivia no Rio de Janeiro:

Tudo era comigo. Eu mandava e desmandava na Fazenda. Todo dinheiro que a gente recebia da renda da fazenda ponha no banco, depositava pra ele. A fazenda tinha com que fazer dinheiro, não precisava tomar dinheiro a ele. Ele não mandava nada, não. Ele vinha aqui uma vez por ano. A gente prestava conta. Somava a entrada e a saída. Era uma gente tão boa, que a senhora [dirigindo-se à entrevistadora] não queira nem saber de labutar com eles. Era um homem que confiava na gente. E quando chegava achava tudo de acordo. Eu tenho saudade de me apartar dele.”59

A título de pagamento, Manolo, além de uma percetagem sobre as reses nascidas (ele não

se lembrou da proporção) recebia quantia anual que também não soube precisar. Ambas eram

complementadas pelos “muito direitos” que usufruía sobre os produtos explorados na

Fazenda. Ele disse: “Eu comia por conta da Fazenda”. Confessa também que, além do leite

que era dividido com os setes vaqueiros que a fazenda possuía, parcela dos pescados das

inúmeras lagoas situadas nos limites da fazenda era revertida em seu favor e que tinha livre

acesso à madeira e à lenha.”Minha senhora, eu tinha tudo dentro daquela fazenda: tinha peixe

a vontade. Tinha queijo, tinha requeijão, manteiga de garrafa, tinha carne de boi, tinha carne

de carneiro, tinha caça.” Tudo indica que somente os valores obtidos a partir do comércio dos

produtos de exportação (gado em pé, peles, pescados secos e cera da carnaúba) eram

remetidos ao fazendeiro que vivia no Rio de Janeiro.

O papel desempenhado por Manolo na Fazenda de Fora pode não ter sido padrão, mas

sinaliza que os administradores e ou capatazes das fazendas dos inúmeros proprietários

absenteístas sanfranciscanos tinham grande poder, exercendo, às vezes, o papel de patrão. E

seu poder era tanto maior quanto mais confiança o fazendeiro neles depositasse. O ex-

administrador tinha enorme prestígio entre agregados e trabalhadores avulsos da Fazenda de

Fora, atestado pelo fato de ter, segundo afirma, mais de uma centena de afilhados entre os

antigos povoados de Pau-a-Pique e Bem-Bom.

Freqüentemente, Manolo menciona a bondade e a liberalidade do proprietário da

referida Fazenda em relação aos seus funcionários e agregados, fato, aliás, atestado por vários

76

ex-agregados da Fazenda de Fora entrevistados. Mas, Geraldino — também ex-agregado da

mesma fazenda — chama atenção para um aspecto importante que marcava a relação de

agregacia nos sertões sanfranciscanos: além da obrigação de prestarem o “cambão” e de

jamais se negarem a trabalhar na extração da cera da carnaúba, aos agregados somente era

permitida a construção de casas de pau-a-pique coberta de palha de carnaúba e a criação de

umas poucas cabeças de gado bovino60. Daí receberem dos beraderos libertos a denominação

de cativos, conforme salientado.

Não menos importante para a felicidade beradera era a chamada “cultura do catado”.

Na acepção de Antônio Guerreiro de Freitas, ela abrange um enorme leque de atividades.

Toda essa população vivendo, enfim, em torno do que eles próprios definiam como o “catado”, no caso, o oposto da especialização: uma multiplicidade de produtos agrícolas, uma pecuária de pequeno porte e seus derivados, além da atividade extrativa, com destaque para a exploração da cera de carnaúba. Claro, sem esquecer tudo que pescavam nos rios, sendo que, em várias localidades, o beneficiamento (salga de peixes) era atividade sempre presente (1999, p. 63).

Estritamente entre as pessoas por mim entrevistadas, “a cultura do catado” guarda

correspondência com as atividades coletoras, diferenciando-se, portanto, da agricultura e da

pesca.

No caso específico da área em estudo, a atividade do “catado” compreendia a

exploração das palmáceas: carnaúba (Copernicia cerifera), da maniçoba (Manihot glaziovii) e

da mangabeira (Hancornia speciosa), além do caroá (Neoglaziovia variegata) — fibra muita

utilizada na fabricação artesanal de rede, como visto anteriormente — e de plantas silvestres e

do mel de espécies variadas.

De enorme importância comercial, a extração da cera da carnaúba e do látex das

borrachas silvestres (maniçoba e mangabeira) eram atividades fortemente controladas pelos

grandes fazendeiros e estes não tinham pejo em açambarcarem terras públicas

59 Relato de Manolo. 60Sobre as relações de agregacia ou de cativeiro na linguagem regional, Lygia Sigaud esclarece: “São assinaladas como indicativas da situação de cativo as proibições de construir casas com telhas, e de cercar de arames roças (que caracterizariam certamente benfeitorias), assim como proibições de extrair madeira, e de vender a “propriedade” sem antes oferecê-la ao fazendeiro. O trabalho propriamente dito nas roças e a comercialização dos produtos era, na visão de hoje, livre. Daí que se possa afirmar que o cativo só era percebido como tal em oposição à liberdade, no que se refere aos pontos indicados, dos que não se encontravam subordinados pela moradia no interior das fazendas”. Sigaud et al., Expropriação do campesinato e concentração de terras em Sobradinho 1987, p. 219.

77

(desconsiderando direitos de posseiros) e ou de se estenderem até as “extremas” de outras

fazendas, visando ampliarem seus negócios. Aliás, muitas das disputas verificadas no Vale do

São Francisco, especialmente no município de Pilão Arcado e arredores, foram motivadas

pelo controle das áreas de incidências desses importantes produtos comerciais.

A área de incidência da palmácea, segundo Rêgo: “Limita-se o habitat da carnaubeira

às vazantes e veredas da bacia média até a altura da Lapa”. (1945, p. 225). À semelhança da

extração do caroá, a coleta da palha da carnaúba era uma ocupação temporária.

Em Pesqueira [Xique-Xique], o apanhador de palha ou “palheiro”, como é chamado, é geralmente pescador do rio ou da lagoa próxima ou lavrador de pequena roça durante a maior parte do ano. Embora não seja sempre conveniente ao morador de uma fazenda de carnaúba trabalhar como “palheiro”, as expectativas costumeiras tornam-lhe difícil recusar auxiliar tal trabalho quando solicitado a tanto pelo fazendeiro. Em diversas fazendas, a colheita da cera é contratada pelo dono com a pessoa que arranja um capataz para fiscalizar o processo. Na conformidade do sistema empregado, o capataz concorda em comprar aos trabalhadores, por determinado preço, a cera recolhida e a dar ao dono ou arrendatário da propriedade metade dos resultados. (Pierson, v.2, 1972, p. 309)

Ao agregado, como citado acima, não era permitida a recusa em extrair a cera da

carnaúba, independente de qualquer alegação e este, em geral, trabalhava em parte, a meia, e,

em parte, pagando o “cambão”, poucas vezes recebia salários.

O ex-administrador da Fazenda de Fora rememora a labuta na fazenda em termos

bastante simpáticos, ressaltando, uma vez mais, a bondade e a liberalidade do fazendeiro

absenteísta. Mas reconhece que a renda da exploração do carnaubal61 era exclusivamente do

proprietário. Ele fornrce detalhes da pronunciada divisão sexual e social do trabalho existente

nos carnaubais e como se dava a coleta e o processamento da palmácea.

A carnauba era obra da natureza. Caía muito mesmo, mas nascia também muita fruta. Chega ficava aquelas penca. O gado comia as frutas. Ela era verde e quando madura fica preta. Madurou, cai. A cera era da palha. A palha, botava um homem com uma vara alta, até de se admirar. Varona, aquele mundo de vara. A palha tinha um cortado, na frente. Tinha um ajuntador que vinha atrás; tinha o desenganchador (porque às vezes, a palha enganchava nos paus); tinha o molhador, que molhava ela pra levar pro ponto de secar. Tinha o ponto de secar,

61 Até meados de 1970, a cera da carnaúba atingiu altos preços no mercado internacional.

78

todo forrado na áreia. Tinha um talhador, que ficava com a narvalha pra cortar. E ali, espalhava a [palha] no terreiro com o máximo de cuidado. Três dias tava seca. Uma palha não dava uma colher de pó. O pó a senhora podia chegar com um saco de pó, jogar assim, assoprar, e não vinha cair nada. O vento carregava tudo e não caía nada no chão. Era coisa muito pouca. Era tão maneirinho e fino que chega escorregava, brilhava, o pó. Tinha que tirar com o máximo de cuidado. Era um mundo de gente, 70 a 80 pessoas trabalhando. Tinha que carregar duas três palhas, se carrregasse mais, 10, por exemplo, derramava o pó. Perdia o pó. Rasgava aquela palha bem fininha e batia no cacete. As mulheres ficava branca, branca, branca. A cera de carnaúba era tão perfeita que tem ela aqui guardada, encontra ela perfeita. Não estraga, não! Nós apurava aqui. Fazia o “bolo”. Era mais quente do que fogo. Nós fazia nuns tacho grande. Botava no tacho pra derreter e depois coava pra tirar o bagaço da palha. Em três dias, ela tava fria. As mulheres quando tava passando roupa pegava ela e passava na roupa pra dar o brilho. A roupa ficava engomadinha. Depois que secava, quebrava. Ela já ia todo quebradinha no saco.62

Concluído o processo, o produto beneficiado era enviado para Juazeiro e de lá seguia

para Salvador, tomando o caminho do exterior.

Pelo visto, nas beradas sanfranciscnas a divisão do trabalho era presente em todas as

atividades. Nas atividades agrícolas, geralmente, cabia aos homens limpar a terra e fazer o

plantio de algumas culturas, cabendo às mulheres as tarefas relativas à colheita e ao

armazenamento dos produtos. Na pecuária, a divisão era mais acentuada: ao homem cabia o

meneio do gado; cuidar do rebanho e tirar o leite; às mulheres e aos filhos menores cabiam as

lides com as “miunças”; em períodos de seca, mulheres e crianças cortavam capim e

preparavam a exígua forragem que mantinha de pé o rebanho enfraquecido. Nas atividades

extrativas, de fundo comercial, o caso do caroá, por exemplo, homens e mulheres cortavam a

planta e teciam os fios, cabendo ao homem a fabricação ou trançagem da rede, objeto de

importância fundamental para a pesca artesanal, típica das beradas sanfranciscanos. Na

extração da cera da carnaúba, como visto acima, os homens se dedicavam ao corte da palha e

mulheres e crianças enfeixavam-na, retirando da mesma a cobiçada cera. Outra atividade

tradicionalmente explorada na área em estudo era o cultivo do algodão. Homens, mulheres e

crianças trabalhavam naquele cultivo. Os primeiros, além de cultivarem a terra, gerenciavam

as atividades, cabendo às mulheres e às crianças a coleta das fibras.

As farinhadas e as pescarias constituíam momento de trabalho, de folguedos e de

intenso convívio social. Em suma, eram os raros momentos de lazer e de encontro dos jovens

62 Relato de Manuel.

79

beraderos. O caráter festivo das farinhadas e das pescarias atraía os jovens, propiciando

contato entre rapazes e moças casadoiras, abrindo a possibilidade para que os espaços das

“oficinas” e das lagoas funcionassem como locais do foot, típico das cidadezinhas

provincianas. Enquanto os trabalhos varavam a noite, a aguardente e as cantorias “rolavam

soltas”, para deleite dos enamorados, dos futuros casais e de “velhos e velhas festeiras”.

Nesses momentos de trabalho e de convívio social (Siqueira, 1992, p.123), contavam-se

histórias assombrosas, piadas, fofocas, recitavam-se versos e cantavam-se modinhas e

cantigas de trabalho.

Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! diá Agora vem Deus amém, chega colega pra cá Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! diá Agora de Deus amém, capim lelê, meu bem, capim lelê, oh! diá Pra que falar minha gente, venha ver quem está cantano Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! dia.” 63

Enfim, essas atividades mobilizavam toda a comunidade, reafirmando relações de

sociabilidade, estreitando relações de parentesco e compadrio e se afirmando como momentos

de entretenimentos de crianças, jovens e velhos, bem como de namoro e de afetividade64.

Além do rio, o espaço fixo de referência organizacional, digamos assim, e de relações

de sociabilidades do beradero era o povoado ou a “currutela” (pequeno aglomerado urbano

que reúne algumas poucas casas)65. Unidade de aglomeração mínima, os povoados beraderos

eram (e são) por excelência, o espaço do viver o tempo social e local da concentração das

famílias dispersas entre as beradas e as catingas (Siqueira, 1992, p. 134). Eram nestes

espaços que travavam contatos com agentes do Estado e experenciavam relações de

sociabilidade das mais variadas. Eram nestes povoados que se encontrava a igreja — na qual

se venerava o Santo Padroeiro — e um pequeno comércio, compreendendo a feira-livre

semanal (onde os beraderos vendiam o pequeno excedente) e as chamadas vendas —

estabelecimentos comerciais não especializados, que funcionavam como ponto de referência

63 Relato de Quintiliano. 64 As relações de afetividade e os namoros nos espaços das rancharias também foram registrados por Martins-Costa (1989, p.171): “ O tempo das rancharias era considerado um período de muita diversão, com festas e namoros. Os namoros ocorriam preferencialmente entre participantes de rancharias próximas socialmente. Os pais não deixavam as filhas freqüentar rancharias mais afastadas.” 65 Sobre esse aspecto diz Lygia Sigaud: “Nessas circunstâncias de inexistência de contigüidade física entre a casa e o roçado, e entre a casa e uma atividade como a pesca que assegura a manutenção da família, o povoado aparece como a única referência espacial fixa que lhe assegura o sentimento de pertencimento o que o localiza

80

dos povoados sertanejos. Wilson Lins descreve com riqueza de detalhes e com uma ponta de

humor o papel das vendas nos povoados sertanejos, apontando, inclusive, os produtos ali

encontrados:

[...] rolos de fumo, panos de toucinho, mantas de jabá, montes de cebolas, fardos de rapadura, sacos de sal, amarrados de peles silvestres, pilhas de resinas, cascas de angico, um mundo variado de mercadorias de todos os valores e de valor nenhum. Nas prateleiras, garrafas vazias, esteiras e chapéus de carnaúba, pacotes de cigarros mata-ratos, chocalhos, enxadas, latas de banha, nem todas contendo banha, a maioria talvez sem conteúdo algum, chinelos, alpercatas, sapatos pé-de-anjo, barras de sabão, espelhos, caixas de pentes, vidros de óleo “Dyrce”, latas de brilhantina Tentação e algumas caixas de sabonetes baratos (Apud Freitas, 1999, p. 63).

Além da igreja, do diminuto mercado municipal — no caso em que o povoado era sede

de distrito — da feira-livre semanal e das vendas, às vezes, o povoado era dotado de uma

escola de primeiras letras, aliás, um dos poucos equipamentos sociais que marcava a presença

do Estado naqueles povoados distantes e pobres. Eram neles que as inúmeras barcas

aportavam, levando e trazendo passageiros, mercadorias e as novidades dos centros regionais.

As descrições dos povoados beraderos submersos pela Represa de Sobradinho pouco

diferem do exposto acima. Entretanto, nas entrelinhas das entrevistas, percebe-se o desejo de

salientar a grandiosidade de seu povoado e de frisar sua importância, realçando aspectos de

sua pretérita riqueza e abundância, visando contrastar com a situação atual, vista

negativamente porque privada dos recursos disponíveis no antigo povoado.

A Barra da Cruz antiga tinha três linhas de casas, berando o rio. Ficava no alto (por isso, nas “enchentes altas” Barra da Cruz recebia os retirados das localidades atingidas). As casas ficava na baxa, mas depois, de fora a fora, você via aquele morrão bem alto. Você vinha das estradas nem enxergava as casas, mas quando chegava já para descer no morro, enxergava as casas. O rio era largo. Do outro lado do rio tinha uma ilha. Nessa ilha dava tudo! Era o ilhote de Barra da Cruz. Pro lado de lá do ilhote tinha o rio grande [o canal do rio]. Era um ilhote cercado de rio. Do lado de lá, passava os vapor, antigamente. Porque o rio era bem largo. E na beira da Barra da Cruz o rio era estreito, só passava barca. Tinha uns barquinho, o rio era estreito, e a gente ia trabalhar no ilhote. Da Barra da Cruz a gente via

no interior do espaço social. O povoado é o local da casa, a sede para a qual converge a família (ou membros dela) após os deslocamentos e o local onde se encontram os parente mais próximos”. Op. Cit. p.114.

81

as pranta, via tudo lá. Naquele ilhote, você plantava “feijão de arranca”; plantava um saco de “feijão de arranca” pegava vinte ou trinta saco. Não tinha negoço de veneno, não! Não tinha negoço de adubo, não! Aí era outra coisa, você criava o bode, criava o gado, criava porco, criava o animal. Tudo solto! Tinha tudo com fartura!”66

No mesmo diapasão, Dilson frisa que a vida na Barra da Cruz Velha era tão boa que até

o peixe era mais gostoso. “Nas vazantes tinha munchta fruita e o peixe que vivia naquela

ipueira comia aquelas fruita e [o peixe] ficava mais gostoso. O peixe era danado de

gostoso”.67

Enquanto Apolônia ressalta a fertilidade do solo do ilhote de Barra da Cruz, visando

evidenciar a fartura e a abundância que havia no antigo povoado, Francelino, por outro lado,

salienta a grandiosidade e a diversidade do comércio do povoado. “Tinha 25 armazéns.

Nesses armazéns tinha de tudo, vendia de tudo. O comércio de Barra da Cruz atendia os

povoados de Sento Sé e de toda essa bera de rio. Era grande. Daqui pra cima, o comércio de

Barra da Cruz só perdia para Remanso”. Além do mais, chama a atenção para a diversidade

das relações de sociabilidade no povoado. “Para a senhora ter uma idéia, em Barra da Cruz

tinha 5 salões de festa.”

Também é ressaltada a união e a boa índole do povo.

O povo era tudo unido, tudo honesto, não havia desavença, não havia briga. Nas festas, vixe! Era uma união que fazia gosto. Na Barra da Cruz velha tinha uma festa — dia oito de dezembro, festa de Nossa Senhora da Conceição — que tinha vez de ajuntar duzentas, trezentas pessoas. Era muita festa: São João [24 de junho], São Roque [8 de agosto], Dança de São Gonçalo. Podia juntar a multidão que ajuntasse; a turma dançava, bebia, comia, até o dia amanhecer e não tinha briga. Nunca andou uma poliça em Barra da Cruz Velha porque todo mundo era reunido, todo mundo era combinado”68.

A união dos habitantes do povoado, segundo Francelino, explica a razão pela qual os

moradores de Barra da Cruz foram em massa para as “Agrovilas da Lapa”. Ao tomarem

conhecimento de que a CHESF não reconstruiria os pequenos povoados, aglutinando-os em

núcleos maiores, os habitantes de Barra da Cruz, desgostosos, resolveram partir para Serra do

Ramalho, uma vez que na localidade, ao menos, poderiam permanecer em uma mesma

66 Relato de Apolônia. Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/5/2003. 67 Relato de Nelo. Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/5/2003. 68 Relato de Francelino.

82

agrovila, refazendo, assim, seus laços de união e de sociabilidade. Algumas poucas famílias,

de certo modo, mais ligadas aos parentes de Sento Sé mudaram-se para os núcleos

estabelecidos naquele município. Uns poucos, inclusive, retornaram quando da reconstrução

da Nova Barra da Cruz, conforme veremos adiante.

Em relação à união de Barra da Cruz, Francelino arremata:

Barra da Cruz era muito considerada. Quondo a gente tava lutando par a construir a Nova Barra da Cruz, Dr. Adolfo Viana falou: ‘tem que construir Barra da Cruz porque Barra da Cruz nunca deu trabalho pra ninguém. Em Barra da Cruz nunca teve poliça’. Barra da Cruz tinha um povo bom e unido.

Apolônia conclui: “Em Barra da Cruz tudo era parente, só havia duas famía: a famía Leite e a

famía Café. Por isso era tudo unido.” Apolônia e Francelino — ambos representantes das

famílias citadas — realçam a união existente no antigo povoado de Barra da Cruz, visando

contrastar com o clima de disputa e violência que vivenciaram nas agrovilas de Serra do

Ramalho, como veremos mais adiante, e mesmo nos núcleos criados pela CHESF na borda do

Lago de Sobradinho, tais como Pau-a-Pique e Bem-Bom. Apelam ao passado —

rememorando positivamente — para negar o presente considerado impróprio e visto sob o

prisma da negatividade.

83

O Apocalipse chegou

Quem tem olho venha ver

Montado na besta da CHESF

Botando todo mundo pra correr

(José Libório – Ibotirama)

84

CAPÍTULO II

O REDIMUNHO EM AÇÃO – ESPANTO E ESPERANÇA

1 - O sertão vai virar mar

A construção da Represa de Sobradinho começou em meados de 1973, sob a regência

da Companhia Hidrelétrica do São Francisco - CHESF, subsidiária da Centrais Elétricas

Brasileiras (ELETROBRAS), deixando um saldo de questões que, passados trinta anos, ainda

suscitam — entre os atingidos — polêmica, emoção e ressentimento.

No período em que se deu a construção da represa, o Brasil vivia a fase denominada de

internacionalização da economia nacional e a construção da gigantesca obra estava em total

consonância com os planos elaborados pelo governo militar de criar obras de infra-estrutura

voltadas para a viabilização do projeto de “Brasil grande potência”. Para implementar uma

política de expansão do setor elétrico do Nordeste, planejada desde meados da década de 40

do século passado, a CHESF se propunha a aumentar o potencial energético da empresa.

A CHESF é a maior geradora de energia do país, com 10,7 mil megawatts de potência,

controlando um quadro energético compreendido pelo Complexo de Paulo Afonso (Paulo

Afonso I, II, III e IV) e mais três grandes represas (Sobradinho, Itaparica e Xingó).

Inicialmente concebida como uma obra regularizadora do rio São Francisco, visando

principalmente ao abastecimento de água para a usina de Paulo Afonso, a Represa de

Sobradinho é considerada a maior do mundo em espelho d’água, com 4.500 quilômetros

quadrados69 e 350 km de extensão70. Para se ter idéia de sua dimensão, representa duas vezes

e meia a Baía de Guanabara. “Sobradinho controla a energia e o fluxo de água para todas as

outras barragens do São Francisco, até Três Marias, em Minas Gerais”71. Além do aumento da

69 Segundo Paolo Marconi, o Projeto da Represa de Sobradinho se assemelha ao existente no rio Danúbio, localizado na Iugoslávia. Sobradinho: “um orgulho nacional”?, Caderno do Ceas, Salvador, n.45, setembro/outubro de 1976, p. 63. 70 Em 1973, depois de visitar a região do futuro Lago de Sobradinho, o presidente Gal. Ernesto Geisel anunciou que o reservatório seria utilizado também para a produção de energia, através da construção de uma usina hidrelétrica. 71 Limitações afetam assentamento, reportagem de Roberta Lippi. Gazeta Mercantil, 6 e 7/9/1999, p.A-6.

85

capacidade de energia para o Nordeste, segundo o projeto governamental, a construção da

represa atenderia aos vários projetos de irrigação que seriam implantados na região, criando

pólos de desenvolvimento agrícola, gerando, em conseqüência, emprego e renda, garantindo,

inclusive, a continuidade da navegação das famosas gaiolas ou vapores do rio São Francisco.

A formação do lago de Sobradinho provocou a submersão de ampla faixa de terra

propícia à agricultura, submergiu 26 povoados e quatro sedes municipais — antigas vilas

tradicionais — como Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e Remanso e desterrando,

aproximadamente 70 mil pessoas.

Cercado de expectativas, em parte induzidas pelo aparato publicitário de que lançaram

mão as agências responsáveis pela sua consecução, o grande projeto fez assomar à memória

popular a profecia do beato Antônio Conselheiro, qual seja: O sertão vai virar mar e o mar vai

virar sertão. A música “Sobradinho”, de Sá e Guarabyra, dava adeus às velhas cidades

sanfranciscanas, traduzindo também um sentimento de repreensão à ousadia do homem em

“desfazer” a natureza no que se inclui, não só fazer “o sertão virar mar”, mas, sobretudo,

fazer “o mar virar sertão”.

O homem chega já desfaz a natureza Tira gente põe represa, diz que tudo vai mudar. O São Francisco lá pra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia De um beato que dizia que o sertão ia alagar O sertão vai virar mar, Dá no coração O medo que algum dia o mar também Vire sertão Vai virar mar, dá no coração

O medo que algum dia o mar também Vire sertão (bis) Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir Debaixo d'água lá se vai a vida inteira Por cima da cachoeira o gaiola vai subir Vai ter barragens no salto do Sobradinho

86

O povo vai-se embora com medo de se afogar.72

Expressando sentimento de perda, os versos acima, além de ganharem projeção

nacional, tornaram-se espécie de hino para os riberinhos e beraderos atingidos. Jovens

entoavam a canção enquanto se despediam de suas casas e dos “lugares de memória”

das cidades prestes a serem submersas pelo Lago de Sobradinho. Consta que, quando

Rodelas estava prestes a ser “afogada” pelo Lago de Itaparica, os Tuxás cantavam-na

também, pedindo a São João (seu velho Ká73) proteção à Ilha da Viúva74.

2 - De ouvir dizer...

A movimentação da CHESF na região de Sobradinho antecedeu à construção da

barragem. No entanto, os beraderos que teriam suas vidas “reviradas”, por conta da grande

represa, nada sabiam a respeito dela. A bem da verdade, sequer imaginavam a possibilidade

de que uma obra dessa natureza pudesse se realizar. Como bem salienta Ruben de Siqueira,

não havia no imaginário social camponês qualquer referência importante que tornasse possível uma compreensão efetiva do que seria de fato uma barragem. Encontramos referências esparsas à barragem de Três Marias, mas com consciência da distância, no tempo e no espaço, suficiente para nós não as considerarmos. (1992, p. 200).

Quando os riberinhos e beraderos da área de Sobradinho tomaram conhecimento da

construção da represa? Como viram a “movimentação” da CHESF na região? Do que se pode

depreender das entrevistas tomadas, as primeiras notícias em relação ao projeto chegaram

“meio atravessadas”, isto é, a fonte era desconhecida, as informações eram passadas e

repassadas através do “ouvir dizer”.

Nunca ninguém... nenhum representante chegou assim pra falá a sério com a gente, não. A notiça foi chegando assim... de ouvi dizê. Era um boate. Uns não creditava, outros ficaro com medo. Eu merma dei risada. Creditei nisso, não”.75

72 Sobradinho, música de Sá e Guarabyra, O melhor de Sá e Guarabyra [CD]. 73 Entidade Tuxá. Na tradição oral, espécie de mito fundador da comunidade indígena. 74 Ilha de aproximadamente 50 hectares, localizada no Baixo-Medio São Francisco pertencente ao município de Rodelas. Era na área que os Tuxás cultivavam a terra e praticavam seus rituais identitários. 75 Relato de Alice.Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/1/2002.

87

Outro entrevistado disse:

Ninguém sabia não, Dona [dirigindo-se à entrevistadora]. Então

a CHESF andava por lá e eu sempre andava pra qui, pra culá, junto com os chefes da CHESF. “Oh! Tu, rapaz, tu que anda com essa turma aí tomando cerveja. Pergunta a eles pra que qui é que eles estão medindo essas terras”. Me disseram: “eles estão com a bandeira longe...”. Eu perguntava: “Digo, eu não sei não, moço”. Eu pergunto pra eles, eles dizem que não sabe. Lá mais adiante tinha um negócio assim de metal, eu não entendia o que era. Eu pergunto o chefe deles e diz que não sabe dizer. Eles sabiam, mas não diziam não. Eu sei que eles sabia... E quando estourou, era isso aí. Eles estavam medindo as terras era pra poder indenizar.”76

Também outra entrevistada relata o quanto os beraderos ignoravam a razão da presença de

homens estranhos na área futuramente submersa.

Andava uns home lá, né. Botava uns aparelho. E a gente não sabia. Não falava. Passava dois, três dias lá na serra. Lá tinha um serrote muito grande e muito alto, né? Aí eles passava dois home, passava só botano os aparelho, lá. Não falava o qui era. Aí depois que eles terminaram aí eles foram embora. Foram embora, aí a gente soube. Que disse que ia surgir a Barragem. Ia inundar onde a gente morava, ia todo mundo sair de lá.”77

As andanças de “estranhos” na região não eram vistas como bom sinal e algumas

pessoas sentido-se ameaçadas adotaram a política da fuga como registra reportagem do

Caderno do Ceas.

Também o medo e a fuga estão começando também a contagiar o povo com menos recursos e menos esperança. (...) Como os ratos, na ameaça do barco afundar, sertanejos do interior fogem para as cidadezinhas beira-rio: de duzentas a trezentas famílias se refugiaram assim, anualmente, em Remanso depois que, em 1969, começou a correr a voz das ‘inundações’ E mesmo assim em Remanso ruas estão ficando desertas. (s.a., 1974, p. 42)

Certo é que, faltando menos de um ano para que se iniciasse o calendário das

transferências — março de 1976 — e um pouco mais de um ano do início do represamento

76 Relato de Quintiliano. 77 Relato de Elvira. Entrevista concedida à autora no Distrito de Canudos, Barra, 10/7/2002.

88

do lago — fevereiro de 1977 —, os beraderos atingidos pela Represa de Sobradinho não

sabiam com precisão o rumo a ser tomado e a maioria ignorava detalhes relacionados às

indenizações e a possível fixação na borda do Lago78. Quando os boatos e o “diz-que-diz”

tomaram vultos, ganhado os noticiários e tomando foros de verdade, os Sindicatos dos

Trabalhadores Rurais de Casa Nova, Juzeiro, Remanso e Sento Sé dirigiram ofício ao Centro

de Implantação do Reservatório de Sobradinho — CIRES e à Superintendência do INCRA,

solicitando esclarecimentos em relação a dezoito pontos, abragendo desde data e plano de

transferência da população da zona rural, passando pelos bens passíveis de indenizações e

possível fixação na borda do lago. Exatamente um mês depois de ter recebido o oficio

(18/71975), a CHESF o respondeu, contemplando todos os pontos, deixando claro que ainda

havia muitas pendências em relação à transferência e ao processo de indenização em curso

(Ofício do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Casa Nova e Remanso ao Cires,

1975, p. 1-2).

Tomando-se o oficio do Sindicato como parâmetro, tudo indica que as informações

relacionadas à construção da barragem e aos planos de transferência da população, entre 1973

e 1975, ficaram restritos às elites políticas da região. Somente quando as equipes de trabalho

das agências governamentais responsáveis pelo cadastramento e indenizações dos

expropriados se estabeleceram na região, montando escritórios na sede do Município de Casa

Nova, a notícia chegou aos povoados distantes dos demais municípios atingidos, ganhado foro

de verdade. Verdade questionável e improvável, mas que, de qualquer modo, explicava a

movimentação de homens e equipamentos estranhos na região.

Da resposta da Companhia, depreende-se também que a mesma cumpriu à risca o

calendário da obra, negligenciando, contudo, os trabalhos de transferência da população

atingida, fazendo-a a “toque de caixa” e a reboque do enchimento do lago.

A partir dos trabalhos da “equipe social”, indivíduos culturalmente diferentes e

vivenciando temporalidades também distintas se encontraram frente a frente. A relação entre

ambos, além de marcada pelas dissonâncias e descompassos foi marcada pela desconfiança,

estranheza e pela arbitrariedade.

78 “Apenas em março de 1975, quando o planejamento para a construção da barragem já contava quatro anos, e as obras haviam iniciado há dois, que foi publicado o primeiro plano de relocamento definitivo. Apenas em abril o presidente da República concordou com a criação de grupo de trabalho, que deveria coordenar a participação dos diversos órgãos responsáveis pelo relocamento”. Tallowitz, 1979, p. 66

89

De acordo com Ruben de Siqueira, mesmo depois dos primeiros contatos com os

técnicos das agências governamentais envolvidas com o Projeto Sobradinho, os beraderos

ainda duvidavam de que a mobilização fosse protagonizada em função da construção da

barragem. Eles viam na mobilização da CHESF interesses escusos. Acreditavam que a estatal

cobiçava suas terras porque em seu subsolo havia mineral79.

Para os beraderos, num primeiro momento, as motivações da construção da obra e seus

efeitos encontravam-se numa dimensão, digamos assim, inapreensível. Estudando a

“representação camponesa” sobre os “eventos inéditos da barragem”, tomando como exemplo

o povoado de Itapera, localizado no município de Sento Sé, Martins-Costa defende ponto de

vista que carece de uma análise mais acurada:

A tese que apresentei aqui é de que a formação do lago, ao ser anunciada como uma subida excepcional das águas, foi assimilada ao esquema interpretativo dos camponeses a respeito dos movimentos do rio, particularmente de suas grandes enchentes — denominadas de enchentes altas. (1989, p. 7)

No meu entendimento, a representação camponesa da “enchente alta” apresenta

limitações. Em primeiro lugar, seria um erro estendê-la a todos os beraderos que

experienciaram o deslocamento compulsório na região de Sobradinho. Do contrário, como

explicar a partida de mais de mil expropriados para Serra do Ramalho? E de tantos outros

beraderos que partiram quando os primeiros sinais de que as águas subiriam e de que o “lago

afogaria o rio” ganhavam concretude?80 Em segundo lugar, só teria força explicativa num

contexto em que o cronograma e as condições da relocação fossem aprovados pelos

interessados81. Nada disso se verificou em Sobradinho. Aliás, algumas das informações

contidas em notas de rodapé da obra Uma retirada insólita: a representação camponesa sobre a

formação do Lago de Sobradinho, de autoria de Martins-Costa, atritam com a concepção que

79 Vejamos uma fala tomada por Ruben de Siqueira: Alcidio (Igarapé, Remanso) – “(...) a gente dizia que eles – a gente não acreditava – eles queriam era tomar os local da gente, porque o povo via eles andar a cavalo, aí nestas bocas de carrero, lugar onde botaram esses piquete assim de cimento. O povo achava: ‘nada, aqui eles tão como nóis aqui porque acha que tem um grande mineral’. E aí o que é certo é que nóis nunca acreditava naquilo, não.” Ruben de Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 201. 80 Em entrevista concedida à autora, em Barra, em 12/7/2002, Elvira confessou que se mudou com a família da beira do São Francisco, imediatamente, após a informação de que a barragem seria construída. Nunca foram procurados por agentes da CHESF e nunca pleitearam indenização. 81 Não podemos esquecer também a resistência da Igreja. Segundo Rosa Pereira, D. José Rodrigues dizia claramente que os camponeses não agissem sob pressões e que só mudassem depois que a CHESF resolvesse a questão dos núcleos de reassentamento. O papel da Igreja na resistência de Sobradinho, 1988, p. 58.

90

norteia a obra. Ademais, convém atentar para as palavras de João Saturnino, ex-coordenador

da equipe social da ANCAR-BA:

Dizer que a população não queria sair é complicado. A população resistiu em cima da indefinição da CHESF em encontrar um lugar digno, porque a população dizia que não queria sair do espaço sanfranciscano. Ela iria para qualquer lugar às margens do São Francisco. Eles não queriam sair era para outro lugar que não tivesse, pelo menos, o cheiro da sua história.82

De qualquer modo, a representação de “enchente alta” é demonstrativa das

“improvisações e das reelaborações” de que lançaram mãos os camponeses para situarem, no

âmbito de suas experiências, a construção da barragem, bem como os efeitos que essa

construção provocaria em suas vidas.

3 - A ordem é partir...

Logo após decreto presidencial dando conta da construção da Represa de Sobradinho, as

elites políticas e econômicas locais e regionais das áreas atingidas viveram em compasso de

espera. Numa inequívoca demonstração de desinformação, a Câmara Municipal de Remanso

“vetou” por unanimidade o projeto governamental (OESP, 1975). À parte fatos pitorescos, a

reação dessas elites à construção do futuro lago foi marcada pela ambigüidade e pelo jogo de

interesses. As elites políticas temiam perda de poder, diante da perspectiva da transferência de

sua clientela, da diminuição de tributos e, especialmente, da diminuição do repasse da cota do

Fundo de Participação dos Municípios83.

Embora homem de total confiança do regime militar, o governador da Bahia Antônio

Carlos Magalhães posicionou-se, segundo Burzstyn, favoravelmente aos interesses das elites

regionais.

82 A entrevista concedida à autora em Salvador, 4/11/2003. 83 Vejamos: “Os prefeitos de Sento Sé, Pilão Arcado, Remanso e Casa Nova, municípios que seriam inundados em conseqüência da obra, em encontro com a Comissão Parlamentar da Bacia do São Francisco, tendo como presidente o deputado Lomanto Jr. (ARENA-BA), manifestaram preocupação quanto à situação em que se encontrava a área.” Margarete P. da Silva. A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de Juazeiro: 1962-1982, 2002, p. 74.

91

Dois fatos o atestam: em primeiro lugar, como forma de pressão contra o enchimento do lago, foi construída uma estrada de 84 km, asfaltada, ligando Casa Nova a Sobradinho, em área prevista para inundação, e utilizando recursos das frentes de trabalho dos flagelados da seca; em segundo lugar, quando já se preparava a transferência da população, o governo estadual baixou uma lei proibindo o transporte de animais por rodovia, fato que dificultaria enormemente a remoção (Burzstyn, 1988: 23).

Além da afirmação de Burzstyn, não disponho de outros dados comprobatórios da

posição contrária do governador Antônio Carlos Magalhães à construção da grande obra de

infra-estrutura84. Provavelmente, os atos acima referidos foram suscitados, muito mais em

decorrência da disputa travada entre políticos arenistas da Bahia e de Pernambuco pelo

controle da CHESF, do que, propriamente, pela oposição à construção de uma obra85,

considerada imprescindível e estratégica. Aliás, conforme salienta João Saturnino86, havia, em

relação à construção da Represa de Sobradinho, amplo consenso entre as elites políticas e o

governo em Brasília. Nessa perspectiva, nem mesmo a diminuta bancada baiana do

Movimento Democrático Brasileiro — MDB — na Câmara Federal ousava questionar a

importância do empreendimento. Somente após as grandes cheias de 1979/1980, o grupo

“autêntico” do MDB movimentou-se no sentido de promover a “CPI das enchentes”.

Em face desse consenso e utilizando-se da justificativa de que não tinha prerrogativa

para se imiscuir em empreendimento da esfera federal, o governo do estado da Bahia, no

período que compreende o pagamento das indenizações à transferência, silenciou-se,

deixando a população à sua própria sorte87. Em relação a esse aspecto, João Saturnino afirma:

“O governo da Bahia não tomou nenhuma providência, era como se aquela catástrofe não

estivesse ocorrendo em seu território. Não se obteve do governo do estado da Bahia nenhum

sinal de boa vontade em relação à população (...).”

Ciente das desconfianças das elites locais e das possíveis resistências, as autoridades

governamentais responsáveis pelo grande projeto empreenderam uma política de acomodação

84 O ex-governador Roberto Santos diz desconhecer qualquer atitude do senador Antônio Carlos Magalhães nesse sentido e reputa sua nomeação à presidência da ELETROBRÁS como forma de acomodação das diversas facções arenistas. Entrevista tomada pela autora em Salvador, 29/9/2003. 85 Segundo Margarete Silva, quando o Ministério das Minas e Energia anunciou a transferência da CHESF do Rio de Janeiro, travou-se entre políticos arenistas baianos e pernambucanos disputa pelo controle da estatal. Ainda segundo a autora, além de políticos e da imprensa, a disputa envolveu a Associação Comercial. “A Associação comercial da Bahia, por sua vez, encaminhou ofício ao Presidente da República e ao Ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki, apresentando os motivos da procedência do estabelecimento da empresa entre os baianos.” A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de Juazeiro: 1962-1982, 2003, p. 70. 86 Entrevista tomada pela autora, em Salvador, 4/11/2003.

92

e cooptação das mais bem sucedidas. No momento das desapropriações — ápice dos choques

de interesses nos quais se encontravam envolvidas a CHESF e as elites políticas e econômicas

da região do Lago Sobradinho —, o ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki, nomeou

para a presidência da Eletrobrás, no lugar do engenheiro Mário Penna Bhering, o médico

Antônio Carlos Magalhães88.

A nomeação do ex-governador para presidir a estatal, à qual estava subordinada a

CHESF, embora causasse surpresa89, foi bem recebida pelos meios políticos baianos,

representando ponto de inflexão nas relações entre a empresa responsável pela construção de

Sobradinho e as elites políticas da área do futuro lago90.

Coincidência ou não, após a nomeação de Antônio Carlos Magalhães para a presidência

da ELETROBRÁS, a CHESF empreendeu, claramente, uma política de cooptação das elites

locais da área de Sobradinho, que não se limitou ao atendimento de suas demandas (muitas

vezes contrárias aos interesses da maioria dos desapropriados), mas através da contratação de

seus serviços no campo jurídico, médico, comercial e de construção civil. Junto aos beraderos

— principais prejudicados com a transferência — a estatal soube capitalizar a expressiva

oferta de emprego — guardadas as proporções locais — acarretada tanto pela construção da

obra como pela reconstrução das cidades que seriam submersas.

A CHESF visava deixar claro que sua atuação na região em nada feria aos interesses das

elites, trazendo investimentos, valorizando suas propriedades e criando oportunidades de

negócios rentáveis. Para Siqueira, embora discordasse da transferência de sua clientela

eleitoral, as elites políticas dos municípios atingidos apoiaram a CHESF porque todas

queriam manter seus esquemas de poder. João Saturnino complementa: “Elas não tinham

compromisso algum com a população que estava sendo transferida. A maioria da população

nem era eleitora. Era analfabeta. Era uma população inteiramente desprovida de interesse

político.”

O apoio às investidas da CHESF por parte das elites políticas locais era tanto maior

quanto fosse a possibilidade dos ganhos que pudessem auferir. De olho no futuro, estas elites,

87 De fato essa foi a justificativa do ex-governador Roberto Santos, em entrevista à autora. 88Antônio Carlos Magalhães foi nomeado presidente da ELETROBRÁS em 7/11/1975, permanecendo no cargo até meados de junho de 1978. 89 Diante da surpresa de sua nomeação, Antônio Carlos Magalhães não se fez de rogado e explicou: “É verdade que tive um ótimo secretário de Energia, José Mascarenhas, mas tomo a mim alguns dos seus méritos.” A fala foi reproduzida da matéria: Antônio C. Magalhães assumirá a ELETROBRÁS, publicada no jornal Folha de S. Paulo, 7/11/1975.

93

em geral, foram francamente favoráveis aos interesses da estatal. Em Sento Sé — município

com maior número de atingidos —, a poderosa família (que agregou ao seu nome o topônimo

do lugar) assumiu claramente apoio à Chesf, abandonando a posição clientelística que sempre

assumira em relação à população. O mesmo ocorreu em Pilão Arcado — o município com

menor número de camponeses deslocados. Inclusive, na percepção da população atingida, as

lideranças políticas do município — como o prefeito nomeado João Ribeiro do Vale e os

Queiroz — foram dos que mais lucraram com a barragem. Em Remanso, o poder se

encontrava mais partilhado e a intervenção das elites (Braga, Rosal, Castro) aparecia mais

imprecisa e indefinida. No entanto, Ruben Siqueira registra que encontrou reclamações entre

os camponeses contra a omissão da prefeitura em não defendê-los e o grande benefício que a

barragem foi para os ricos (1992, p. 58). Em Casa Nova, o papel dos Viana, grupo familiar

mais conectado aos poderes nas diferentes esferas, bem como à população, através de um

articulado circuito de controle e mandonismo, conforme veremos adiante, foi ambíguo. Essa

ambigüidade foi registrada tanto pelos atingidos como pelos técnicos e talvez tenha sido por

esta razão que o município tenha sido escolhido como o centro das operações da “equipe

social”. Qualquer que tenha sido a posição dessas elites em relação ao processo ocorrido em

Sobradinho, esta afetou suas imagens, digamos assim, redefinindo seu papel como mediadora

entre a população e o Estado.

Malgrado algumas dissonâncias91, em geral causadas pelos choques pontuais e pelo

jogo de interesses, o apoio das elites políticas à atuação da CHESF na região de Sobradinho,

sobretudo depois da nomeação do ex-governador Antônio Carlos Magalhães para a

presidência da ELETROBRÁS, não custa reafirmar, tornou-se inquestionável. Vejamos o que

escreveu um de seus mais ilustres representantes:

Serão quatro mil e quinhentos quilômetros quadrados de água funda, afundando fundões e rasos, trazendo para beira d’água caatinga e cerrados que só conheciam cacimbas e caldeirões e morriam de sede quando as chuvas não chegavam. Vou ficar sem as terras que meu pai deixou, os carnaubais que me criaram e educaram vão pubar debaixo d’água, os sítios de minhas reinações de menino sumirão no imenso

90 Para Margarete Silva (op. cit., p.71), a nomeação do ex-governador para a presidência da ELETROBRÁS deve ser entendida dentro do contexto de disputa pelo controle da CHESF, na medida em que amenizou “o sentimento de derrota” dos políticos baianos. 91 Na percepção de alguns dos deslocados de Casa Nova, a família Viana teria se posicionado contra a transferência da população. A posição da família Viana em relação ao Projeto Sobradinho será abordada mais adiante.

94

mar saído das mãos do homem. Do cenário em que se movimentaram os heróis de minha infância, mais tarde convertidos em personagens dos meus romances, não ficará sobra ou rastro, mas, ainda assim estarei feliz, pois uma nova vida virá para minha gente. Segundo estou sabendo, a parte mais larga do lagamar será onde hoje é Pilão Arcado, que corresponde ao território da minha querência, as ruazinhas da vila em que nasci e as fazendas em que minha família ia passar o “Verde”, passadas as trovoadas. Tudo vai sumir de minhas vistas, passará para o campo da lenda, ficará na recordação, que durará apenas o tempo que eu durar, mas, ainda assim, me darei por bem pago, por menos que paguem o que eu perder. O que a água e a energia trarão de benefício para o que restar daquilo que um dia foi Pilão Arcado compensará de sobra o perdido. Daí porque não vejo razão para temores ou sobressaltos e muito menos para tristeza. Reconheço que dói ver a terra onde a gente tem o umbigo enterrado desaparecer da terra, mas dói muito mais saber que todos ali são tão pobres, que acabam não agüentando mais tanta pobreza, saindo para ganhar a vida em outras terras. Com a barragem, os que ficaram talvez não tenham mais motivos para sair, e os que saíram talvez tenham oportunidade de voltar. Com isso não estou querendo dizer que a barragem vá transformar aquilo num céu aberto, mas que tudo vai melhorar muito, vai. E tenho tanta fé em que isso aconteça, que já sou capaz de dizer como as coisas se passarão. Não digo, agora, para que não digam, depois, que eu estava por dentro das transas. Antevendo, sem dispor de poder divinatório, a transformação que se operará na vida de toda aquela gente, vejo, daqui, a alegria do povo de Casa Verde e Penasco, vendo o aguaçal chegar no Campo Grande, onde certamente será construída a nova sede de Pilão Arcado. Do mesmo modo, não me será difícil imaginar a satisfação do meu amigo Wanderlin Braga, ouvindo os navios apitando no cais de Tapúio, onde na certa, será edificada a nova Remanso. Só não sei é se Honorato Viana vai concordar com a mudança de Casa Nova para Lagoa do Alegre. Do que tenho certeza é que o jovem Deputado Jairo Sento Sé vai fazer força para a nova sede do Município de que lhe veio o nome, seja na Barriguda. Empolgado com as entrevistas maravilhosas de um futuro que posso quase tocar com as mãos, forcejo afastar do pensamento coisas que a saudade teima em desocultar. Que venha o grande Lago, quase mar para salvar o Rio e o Povo, que é mais importante que as lembranças que ficarão a me unhar por dentro. O negócio é desapear e caminhar de passo firme para o futuro. Destemer do que tem de ser, que por ter de ser força, não é só destemer: é sabedoria e muita. Sejamos sábios, pois, destemendo o futuro.”92

92 Wilson Lins, Os lucros do prejuízo, Pilão Arcado, 1976. Essa crônica foi encontrada pela autora deste trabalho (mimeografada) na Biblioteca Pública de Sobradinho, numa pasta onde havia jornais e trabalhos escolares.

95

Evidenciadora do entusiasmo das elites locais pelo projeto, então curso, a longa citação

revela também, sobretudo, no que toca à escolha das novas sedes municipais, que o poder de

mando dessas mesmas elites fora preservado.

De outro lado, a população da zona rural das áreas atingidas pela Represa de

Sobradinho reagiu ao deslocamento compulsório com um misto de incredulidade e

desconforto.

Minha mãe dizia assim: Quem já viu nas coisas de Deus ninguém mexer? Quem vai mexer no rio nunca? Ninguém acreditava. Morreu uma família. Um rapaz morreu. Morreu porque não acreditou nessa barragem. Preferiu morrer, mas não quis mudar.93

Os beraderos, por mais que se gabassem de possuir status social e cultural superior ao

do catingueiro (Siqueira, 1992, p. 156), jamais conceberam que a natureza, um dia, fosse

drasticamente modificada. A alteração do leito natural do rio, “a cheia que vem de baixo”, o

“afogamento do rio pelo lago”, tudo isso representou uma “violência simbólica” das mais

marcantes, resultando em quebra de valores, crenças e concepções.

Em que medida a incredulidade dos beraderos teria funcionado como arma de

resistência? O que parecia aos olhos dos agentes governamentais ignorância e atraso nada

mais era que uma forma original de resistir. “Entre a população que seria afetada, à medida

que a notícia se espalha, com mais dificuldade na zona rural, começam reações de descrença e

ceticismo, que prenunciam a resistência a deixar ‘a beira do rio’” (idem, p. 56).

Entretanto, esse tipo de reação tinha um limite. À medida que os trabalhos da

construção avançavam e as desapropriações começaram a ser efetivadas, passaram da

incredulidade à insegurança. Instalou-se entre os beraderos o desassossego e a angústia.

Como seria a vida dali em diante? As informações eram desencontradas. As dúvidas e

incertezas em torno do assunto pairavam no ar e, certamente, tiravam o sono de muitos

beraderos-foreiros. Com razão. Afinal, no Brasil nenhuma lei amparava as vítimas dos

deslocamentos compulsórios destituídas de título de propriedade ou determinava o seu

reassentamento.

93 Relato de Marina. Entrevista concedida à autora em Juazeiro, 12/2/2001.

96

Freqüentemente, os órgãos responsáveis pelo deslocamento indenizavam as benfeitorias

dos expropriados destituídos de título de propriedade e estes se deslocavam, deixando a área

livre para ação desses órgãos.

Conforme assinala Lídia Rebouças, somente a partir de 1986 a ELETROBRÁS

publicaria o Manual de Estudo e Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos,

o qual consistiu num roteiro básico para os estudos ambientais. No mesmo ano também foi publicado o Plano Diretor para Proteção e Melhoria do Meio Ambiente Obras e Serviços do Setor Elétrico onde se encontra a primeira referência ao reassentamento de populações. A evolução desta política repercutiu em considerações cada vez mais detalhadas sobre o tratamento a ser dado a essas populações. Neste sentido, na segunda versão deste Plano Diretor, publicada em junho de 1990, já se encontra um capítulo que descreve o reassentamento como uma das alternativas destinadas de forma preferencial ‘aos segmentos populacionais formados pelos não-proprietários e pelos proprietários que usualmente encontram dificuldades maiores em recompor sua base produtiva” (Apud Rebouças, 2000, p. 22).94

Por razões as mais diversas, a situação em Sobradinho se encaminharia de forma

completamente diferente da que vinha ocorrendo no país. Primeiro, as agências de

financiamento multilaterais, tais como o Banco Mundial, passaram a condicionar

a liberação de recursos à formulação de planos sociais que incorporassem a participação da população a nível da concepção, implementação e avaliação desses projetos. Esta exigência foi motivada por avaliações feitas pelas equipes técnicas de órgãos nacionais e internacionais, que constataram a existência de grandes distorções na implementação dos programas de atendimento aos pequenos produtores da Região Nordeste (Machado, 1987, p. 23).

Em linhas gerais, essas agências passaram a pressionar os órgãos responsáveis pelos

deslocamentos compulsórios, em dois sentidos:

a) para a realização de estudos referentes ao impacto ambiental da área atingida;

b) para reconhecer os direitos dos desterrados despossuídos de títulos de propriedade

que viviam na área atingida.

No caso específico da Represa de Sobradinho, para Ghislaine Duqué,

97

foi precisamente a pobreza da região (Sobradinho), o baixo valor dos bens, e, portanto, das indenizações, que levaram a CHESF a assumir um programa de reinstalação dos transferidos. A ausência de medidas especiais teria causado verdadeiras comoções sociais (1986, p. 33).

O temor de comoções sociais alimentava o imaginário dos agentes governamentais

envolvidos na execução do Projeto Sobradinho. Temia-se que a população adotasse uma

postura mais aguerrida e que um movimento de resistência mais efetivo fosse deflagrado.

Pairava, especificamente em Casa Nova, o espectro do Movimento de Pau de Colher

ocorrido naquele município, entre os anos de 1934 e 1938.

Segundo especialistas, esse movimento guardava estreitas relações com o ciclo

“messiânico” de Caldeirão Grande, ligado, por sua vez, ao movimento de Juazeiro do Norte,

Ceará, capitaneado pelo Padre Cícero Romão Batista. O Movimento de “Pau de Colher” ou

dos “Caceteiros”, como chamam alguns dos indivíduos de quem colhi entrevistas,

apresentava similitudes ao Movimento de Antônio Conselheiro, gerando pânico e repulsa

dos grupos dominantes locais, bem como das autoridades regionais. Em 1938, o Movimento

foi duramente reprimido pela forças policiais baianas, tendo algumas de suas lideranças

presas e banidas do convívio social.

Prática do regime de exceção e, possivelmente, em face desse temor, em 1974, Decreto-

Lei n. 1.316 publicado em março, declarava os quatro municípios atingidos pela futura

Barragem de Sobradinho área de Segurança Nacional, tendo, daí por diante, seus prefeitos

nomeados. O direito de voto para prefeito nos municípios de Sento Sé, Pilão Arcado, Casa

Nova e Remanso só seria restabelecido em 1985.

Em 1972, quando chegaram a Sobradinho os técnicos encarregados da implantação do

projeto, o Diretor de Construções da CHESF, engenheiro Eunápio Peltier de Queiroz, enviou

carta ao presidente da CHESF chamando a atenção para a necessidade de se dar tratamento

especial à população da área da futura Represa.

De maneira geral, a desocupação de uma área dessas implica, apenas, nos trabalhos de desapropriação. Em Sobradinho, pela extensão, aridez das terras e vultoso contingente humano — pobre e subdesenvolvido — apresenta-se um profundo problema social que está a exigir uma consideração toda especial quanto à assistência que

94 Mais detalhes sobre o Manual, consultar trabalho de Ana Luisa Martins-Costa et al., A construção do Social pelas águas: notas sobre o Manual de Impactos Ambientais da ELETROBRÁS, 1989.

98

deve ser dada às populações atingidas. Dada sua magnitude, ao nosso ver, transcende dos poderes e atribuições da Companhia. (Souza, 1981, p. 6)

Desse modo, além da reconstrução das sedes dos municípios submersos, a CHESF se

comprometia a relocar a população da zona rural. Temendo resistências, a estatal,

inicialmente, afirmou que não haveria deslocamento compulsório para a área situada fora dos

limites dos municípios atingidos. Chegou-se a cogitar, inclusive, a instalação dos deslocados

em região situada entre os municípios de Sento Sé e Xique-Xique, exatamente, entre os Vales

dos Rios Verde e Jacaré. Faixa das mais férteis da região sanfranciscano (Pereira, 1988, p.

27). Depois de parecer negativo do INCRA, a estatal passou a descartar qualquer

possibilidade de assentamento na borda do futuro lago.

A remoção dos beraderos para locais distantes da borda do lago era justificada pelo

INCRA/CHESF em função de questões técnicas: problemas de segurança, indisponibilidade

de terras para todos e a má qualidade do solo. A argumentação da Companhia não convenceu

e foi duramente questionada.

Em que pese às restrições técnicas apregoadas pelos agentes sociais do convênio

INCRA/CHESF, em relação à futura borda do lago, faixas dela se tornariam áreas bastantes

valorizadas e a companhia não via com bons olhos distribuí-las para antigos posseiros. Além

do mais, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF),

cobiçava essas áreas, visando desenvolver projetos de agricultura irrigada com colonos

provenientes de outras localidades, pois acreditava que os posseiros recém-expropriados não

tinham aptidão para prática da agricultura irrigada, voltada à exportação (Machado, 1987, p.

55)95. Não podemos esquecer também que o Banco Mundial, agente financiador do Projeto

Especial de Colonização de Serra do Ramalho, fiando-se nos pareceres técnicos, havia se

manifestado contra “a solução borda do lago”. Tal fato provocou, inclusive, a suspensão do

projeto piloto implementado pelo convênio INCRA/CHESF no município de Casa Nova, que

visava atender aos catingueiros que viviam em área situada dentro da cota máxima

estabelecida96.

95 De acordo com Celito Kestering, os órgãos governamentais explicam a “inaptidão” dos beraderos para a agricultura comercial como decorrência do “atavismo” dessas populações. 96 O Projeto caatingueiro foi criado dentro do pressuposto de que, na borda do futuro lago, somente a população das áreas da caatinga, situadas dentro da cota máxima estabelecida pela CHESF, se adaptaria à vida ali. Assim, a população beradeira seria deslocada para área localizada a 700 quilômetros de seu local de origem, distante do Rio São Francisco mais de 6 quilômetros!

99

Tudo indica que o momento em que a estatal decidiu que não haveria reassentamento na

borda do futuro lago, marcou o ponto de inflexão da posição dos beraderos. Embora

incrédulos e atônitos, não deixaram de questionar a ação da estatal, reclamando a relocação

nos municípios de origem.

Para os camponeses, à medida que foram compreendendo a dimensão da mudança operada pela barragem em suas vidas, ela passou a ser condenada e compensações passaram a ser reivindicadas com determinação, principalmente o reassentamento na região. O Estado, real promotor da barragem e da completa expropriação de suas bases de vida, não é sempre percebido pelos camponeses como tal, por vezes, é distinguido da CHESF — esta, sim, a “besta-fera”, como eles a chamavam, referindo-se ao monstro do Apocalipse — e até visto como aquele que poderia salvá-los. São prevenções e ambigüidade como estas, de ambos os lados, que ensejaram o confronto que ditou os rumos dos acontecimentos em Sobradinho. (Siqueira, 1992, p. 42)

A reação dos riberinhos e beraderos em relação à construção da represa e ao

deslocamento compulsório tem gerado controvérsias entre os pesquisadores da temática.

Amparado em ampla literatura sociológica e antropológica, Ruben de Siqueira defende ponto

de vista intrigante, destoando da maioria dos estudiosos que se debruçaram sobre os impactos

sociais de Sobradinho. O pesquisador estuda a reação dos beraderos face à atuação da

CHESF, a partir de dois prismas: a subjetividade e a ação. Do estudo da subjetividade,

revelam-se as concepções de “(i) legitimidade” e “(in) justiça”. Do primeiro, destacam-se, por

exemplo, a situação das indenizações e à atuação de várias autoridades: representantes locais,

governo e a própria CHESF. Do segundo prisma, ressaltam-se atitudes de conformismo e

resistência, envolvendo os atingidos.

Ancorado em Kerkvliet, Ruben Siqueira vai buscar, no conceito de resistência

cotidiana, a interpretação para o que houve na região de Sobradinho, pois, do seu ponto de

vista, o mesmo, “amplia os limites do possível e traz nova visibilidade da (e para a) ação

social e política” (Siqueira. 1992, p. 264).

Longe de se constituir em ação pré-política ou política em caráter embrionário, a

resistência cotidiana camponesa, nos termos definido por James Scott, firma-se como a ação

política dos agentes sociais que se encontram “pulverizados ao longo da zona rural e

enfrentando ainda mais obstáculos para a ação coletiva e organizada” (2002, p. 11).

Instrumento de pressão e de recusa, para James Scott, a resistência cotidiana camponesa é a

arma dos fracos, daqueles destituídos de meios e instrumentos capazes de fazer valer, em

100

termos formais, seus interesses e demandas, caracterizando-se como “a luta prosaica, mas

constante, entre camponeses e aqueles que querem extrair deles trabalho e alimentos, os

impostos, os alugueis e os lucros” (idem). Ela assume um caráter passivo, miúdo,

dissimulado, sorrateiro, “um jogo de gato e rato”. Em outros termos: “um sem querer

querendo”, lembrando verso de famoso poeta. Embate surdo e raramente explicitado entre

forças, em geral, antagônicas e assimétricas, o camponês, para auferir pequenos ganhos

políticos, para expressar ressentimento e ou vingar-se de seus opressores, resiste, fazendo-se

de desentendido, de ingênuo, de ignorante.

Tanto na área de Sobradinho quanto em Serra do Ramalho, puderam ser observadas

atitudes tais como as descritas envolvendo os riberinhos e os beraderos deslocados de

Sobradinho. Elas marcaram a relação desses sujeitos com o Estado, através de seu

representante imediato — CHESF. Nesse caso, conformismo e resistência são faces da mesma

moeda, entrecruzam-se revelando estratégias de sobrevivências, em condições adversas.

Para Siqueira, os beraderos empreenderam uma resistência “surda”, mas efetiva97.

Resultado: na borda do lago foram criados, às pressas, diga-se de passagem — pela CHESF,

vinte e cinco ‘núcleos rurais de assentamentos’ e “inventadas” pelos beraderos dezenas de

localidades. Na perspectiva de Siqueira, elas “são fruto desta resistência ‘surda’ (às alegações

oficiais), mesmo a custo de conformidade relativa com as precárias condições de infra-

estrutura. Continuar sobrevivendo ali exige continuar resistindo” (Siqueira, 1992, p. 280).

As atitudes de resistência e inconformismo dos riberinhos e beraderos contaram com

total estímulo e apoio da Igreja Católica98. Aliás, a posição da Igreja em relação à construção

da barragem e seus desdobramentos merecem esclarecimento à parte. Inicialmente favorável

ao projeto, a instituição mudou radicalmente de posição, passando a questionar a atuação da

CHESF, sobretudo no que diz respeito às indenizações e ao processo de relocação, colocando-

se em defesa dos deslocados. Consta que um dos primeiros religiosos a se levantarem contra a

forma como a CHESF e sua equipe social atuavam na região foi o padre. João Mayers, de

Pilão Arcado (Pereira, 1988: 32; Machado, 1988, p. 61; Silva, 2002, p. 85; Siqueira: 1992, p.

97 A propósito, diz Ruben de Siqueira: “Em Sobradinho, os atingidos, eles próprios, não desencadearam ações organizadas. Mas o confronto se deu com o Estado – o promotor da Barragem – a CHESF, para os camponeses – porém, de um modo surpreendente e inesperado para o Estado. Pode se dizer, então, que Estado e camponeses, cada um a seu modo, ‘não estavam preparados para enfrentar’ o modo do outro, fato que produziu uma história que não estava pré-estabelecida, mas foi se fazendo no conflito.”Op. cit., 1992, p. 39. 98 Mais detalhes sobre a posição de D. Thomas Murphy (primeiro bispo de Juazeiro) em relação à construção da Barragem de Sobradinho, vide as obras de Rosa Pereira, op. cit., e Margarete Silva, op. cit.

101

22). Contudo, o apoio da Igreja às reivindicações dos riberinhos e beraderos se tornou mais

efetivo depois da chegada a Juazeiro do Bispo Diocesano D. José Rodrigues de Souza.

Tudo indica que a reação do novo bispo não se dava tão somente pela desumanidade

como se processava a transferência, mas também, conforme ressalta João Saturnino, porque o

religioso percebia que o modelo de desenvolvimento que se visava implantar destruía as bases

da pequena agricultura e, no mesmo diapasão, as relações sociais e culturais típicas das

sociedades camponesas tradicionais; em suma, esse modelo destruía a “ética da subsistência

camponesa” e tudo quanto a ela estava relacionado.

A partir de 1975, os riberinhos e beraderos expropriados tiveram na Igreja Católica não

somente uma aliada das mais comprometidas e atuantes, mas também uma importante

mediadora. Para tanto, a Igreja utilizou de todos os meios disponíveis. Além do contato

pessoal, lançou mão dos programas radiofônicos, transmitidos pela Rádio Emissora Rural —

A voz do São Francisco (propriedade da Diocese de Petrolina) — e do Boletim Caminhar

Juntos, publicado a partir de março de 1976 (Pereira, 1988, p. 39).

No intuito de debater os rumos da política de desapropriação e relocação foi criada, em

1975, por iniciativa da Igreja Católica, uma comissão constituída de prefeitos, vigários e

agentes pastorais dos municípios atingidos. “Essa comissão realizou uma série de reuniões e

elaborou um memorial do qual constavam as reivindicações mais urgentes da população. Este

documento foi encaminhado à CHESF, ao INCRA e ao Governo do Estado”. (Machado,

1987, p. 63).

A formação da comissão por D. José Rodrigues de Souza, conforme salienta Rosa

Maria Pereira,

“mostra sua confiança em que os representantes eleitos pelo povo ou notoriamente reconhecidos como os Viana, que detinham o poder em Casa Nova, iriam se mobilizar em defesa de seus representados como seu papel poderia indicar. No entanto, muito rapidamente, essa ilusão se desfaz. Os prefeitos e vereadores estavam terminando seus mandatos, em 76 (sic) a região foi declarada como área de segurança e os novos prefeitos biônicos não representavam as populações e nada fizeram, já que tinham todo o cuidado para não desagradar o governo militar autoritário”. (1988, p. 38)

A decepção do bispo em relação ao fracasso da Comissão (que passou a presidir), sem

dúvida, como chamou atenção Luiz Eduardo de Souza em entrevista, marcaria o ponto de

inflexão de sua atuação na região. A partir daquele momento, o bispo teve claro que não

102

poderia contar com as elites regionais e locais, vislumbrando que o enfrentamento com o

Estado dar-se-ia única e exclusivamente a partir da mobilização da população atingida99.

Sobre isso afirma João Saturnino:

O bispo teve um papel importantíssimo. Não é porque ele fizesse o que ele queria fazer, mas porque ele não deixou de fazer e dizer aquilo que era necessário dizer, do lugar que era para dizer. Porque o grande problema da condução desse trabalho era a ausência total de voz. Não havia voz, ninguém falava sobre a população. Não havia nenhum sinal de defesa dos direitos da população. Então, quando ele entra no circuito é um choque para a sociedade regional inteira. O bispo anterior era meditativo e de repente chega D. José. Foi um choque total e absoluto a presença dele. Ele foi muito perseguido. Não sei como não o mataram, mas ele nunca se acovardou.

Em 1976, a Diocese de Juazeiro realizou o primeiro Plano Pastoral Orgânico,

“estabelecendo três metas prioritárias: a Pastoral da Mudança (das quatro cidades e dos

núcleos rurais), a Pastoral da Família e a Pastoral da Terra.” (Machado, 1987, p. 63).

Passados quase trinta anos dos eventos da Barragem de Sobradinho, o reconhecimento

dos atingidos em relação à participação do bispo D. José Rodrigues de Souza e de seus

agentes pastorais no processo de conscientização e resistência à transferência não me pareceu

muito evidenciado entre a maioria dos entrevistados. O esmaecimento na memória dos

entrevistados da resistência de D. José Rodrigues, digamos assim, talvez se explique porque,

conforme salienta João Saturnino, “o trabalho dele teve uma função que muita gente

desconhece, o trabalho dele foi muito mais extra-área, porque bulia com a política nacional.

Ele levantou as questões a nível nacional. Ele foi ouvido a nível nacional e internacional. E

ele teve o apoio de D. Avelar [Brandão Vilela, Cardeal Primaz do Brasil]”.

De qualquer modo e por razões óbvias, a enunciação do reconhecimento se faz mais

presente entre os que permaneceram ou entre aqueles que retornaram das agrovilas de Serra

do Ramalho100.

99 Em entrevista a Frederico Cavalcanti de Freitas, o ex-prefeito de Remanso, Carlos Dias Ribeiro, à época da formação da comissão, explicou os motivos pelos quais ela não se efetivou: “Na elaboração desse entendimento (com a CHESF) havia uma cláusula em que tudo aquilo em que a comissão tomasse a deliberação de fazer, seriam ouvidos os prefeitos da cidade para se tomar essa deliberação. O bispo de Juazeiro não concordou. Devia tomar as próprias deliberações em nome dos próprios prefeitos, em nomes das cidades, sem consulta-los.” Sobradinho: campesinato e poder local face à intervenção do Estado, 1990, p. 119. 100 Na percepção de um dos arrependidos das agrovilas, D. José Rodrigues de Souza só fazia brigar, jogar uma pessoa contra outra. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/05/2003.

103

Bem dizê, a gente era cego. Cego de tudo. Desamparado de tudo. Prefetcho, guverno, ninguém defendeu nóis, não. Não tinha D. José pra abrí o olho da pobreza, não. Quonde ele chegou, a disgraceira tava feita. Eu mermo não tinha assinado, não [refere-se ao termo de adesão à transferência para Serra do Ramalho]. 101

Quando as resistências se fizeram notar, a estatal voltou atrás, afirmando que havia

condições de criação de “núcleos de reassentamentos” na borda do lago, atendendo número

limitado de pessoas. De qualquer modo, desde que a CHESF assumiu o compromisso de

reassentar os beraderos, conforme salienta Ghislaine Duqué, três alternativas foram

colocadas:

1) reinstalação de forma precária na borda do lago, com apoio mínimo da CHESF: foi a opção da grande maioria (69, 8%); 2) um projeto de colonização do INCRA: foi a opção de 8, 6% das famílias; 3) reinstalação em qualquer outra região do país; esta solução própria foi escolhida por 19.2% das famílias, sendo 18% nos municípios vizinhos e 1,2% em regiões afastadas, especialmente São Paulo. (1984, p. 34)

4 - A dupla injustiça

Para proceder aos trabalhos de cadastramento, indenização e arregimentação dos

expropriados que seriam transferidos da área da Barragem de Sobradinho, em 1975, o

governo federal mobilizou o Instituto de Colonização e Reforma Agrária — INCRA e a

Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural da Bahia - ANCAR-BA (empresa pára-

estatal). Assim, sob os auspícios do Ministério das Minas e Energia (através da

ELETROBRÁS) e do Ministério do Interior, nasceu o convênio firmado entre a CHESF, o

INCRA e a ANCAR-BA.

Pelo convênio, haveria uma divisão de atribuições: caberia à CHESF a responsabilidade

de indenizar os proprietários e as benfeitorias dos posseiros e foreiros das áreas atingidas, bem

como deslocar e alojar a população que habitava as sedes dos municípios que seriam

submersos; ao INCRA caberia a desapropriação das propriedades que abrigariam a população

104

das zonas rurais e o reassentamento dos expropriados; à ANCAR-BA caberia cadastrar e dar

apoio material aos desapropriados.

O corpo de funcionários dos três órgãos governamentais encarregados dessas tarefas foi

denominado de “equipe de ação comunitária” ou de “equipe social.”102 À equipe social

caberia o processo de arregimentação e de deslocamento dos expropriados.

Uma das primeiras medidas adotadas pelas companhias hidrelétricas, às voltas com a

construção de barragens, é a delimitação da cota máxima da área que será atingida.

Estabelecida a cota, faz-se o cadastramento das famílias residentes nos seus limites e que

seriam expropriadas da terra e da água. A ficha cadastral permite identificar os “beneficiários”

das ações indenizatórias e os indivíduos que serão relocados em outros espaços.

No caso da Barragem de Sobradinho, a ficha cadastral foi aplicada entre todos os

moradores dentro da cota estipulada (392 m3), mas aqui vou me ocupar tão somente dos

beraderos que constituem os sujeitos sociais desta pesquisa.

Identificados os atingidos pela barragem, os órgãos governamentais envolvidos no

processo de sua construção empreenderam as desapropriações, dando ensejo ao pagamento

das indenizações. Levantamentos elaborados por técnicos do INCRA evidenciaram que

somente 13% das áreas submersas eram tituladas (Siqueira, 1994, p. 45). Os proprietários

titulados seriam indenizados com possibilidades imediatas de reorganizar suas vidas. E os

foreiros-posseiros-beraderos? Estes se surpreenderam com a informação de que não teriam

suas terras de trabalho indenizadas. Receberiam apenas indenizações adstritas às benfeitorias.

Desse modo, conforme salienta Ruben de Siqueira, “as indenizações, que em princípio

deveriam reparar as perdas dos desapropriados e possibilitar-lhes o recomeço da vida,

tornaram-se mais um fator de espoliação dos camponeses” (1992, p. 139).

Esse foi um dos pontos mais traumáticos vivenciados pelos expropriados. A forma

autoritária como se procedeu às indenizações e a arbitrariedade dos valores suscitaram

sentimentos de “(i) legitimidade” e “(in) justiça”, conforme salientado anteriormente.

O pagamento das indenizações estava a cargo do setor jurídico da CHESF, situado na

localidade de Sobradinho (atual sede do município). Todos afirmam que as ações

101 Relato de Francelino. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002 e 26/05/2003. 102 “Na ‘equipe social’ da CHESF trabalhavam profissionais da área social (assistentes sociais em sua maioria), acompanhados de uma equipe de auxiliares de campo (recrutados entre os “moradores da área”. Dentro do organograma da CHESF, esta equipe fazia parte da “Divisão de Relocação de Populações” do “Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho” (CIRES). No interior deste Centro havia também a Divisão de Desapropriação”, encarregada de realizar as indenizações”. Extraído de Jucá, 1982, p.284, citado por Martins-Costa, op. cit.,1989, p. 269.

105

indenizatórias não transcorreram de modo transparente, que somente os ricos foram

beneficiados, e a bem da verdade, até hoje há pendências judiciais em relação à questão. Para

efeito de ilustração, segundo Sigaud, as variações das avaliações de um mesmo bem chegaram

a atingir mil por cento (1986, p. 47), devendo-se tanto à arbitrariedade dos encarregados

quanto à resistência dos indenizados. No aludido ofício dirigido à CIRES pelos Sindicatos dos

Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Sento Sé, Casa Nova e Remanso há referência aos

“desacertos” relacionados às indenizações praticados por um funcionário da “equipe social”

de pré-nome Gabriel. Em seguida, perguntava-se se, em decorrência do reconhecimento da

CHESF das práticas desse funcionário, a estatal faria nova reavaliação dos bens indenizados

(Sindicatos, 1975, p. 3). Na resposta ao ofício, a estatal reconhece as ações danosas do dito

funcionário, notifica seu desligamento dos quadros da “equipe social e escreve: “O ex-

servidor Gabriel tentou prejudicar a CHESF ao realizar levantamento cadastrais de forma não

correta, pressionando de certa forma a população de Marcos a aceitar o preço ofertado,

alegando urgência na desocupação da área” (Chesf, 1975, p. 7). No entanto, nega-se a fazer a

requerida avaliação, alegando: “No tocante aos pagamentos feitos não vemos porque se fazer

reavaliações. A população de Marcos está recebendo o apoio necessário à transferência e

fixação no local que escolheu (Zabelê). A CHESF está colaborando na construção de nova

moradia, confecção de cercas, desmatamento no lote, etc., o que evidencia os interesses da

CHESF em sanar o problema e fazer pelos desapropriados mais do que, a rigor, estaria

obrigada” (idem). Vê-se aí que a estatal não se sentia obrigada a reparar os danos que causava

ao modo de vida dos beraderos, quando lhes impunha o deslocamento compulsório e a

mudança repentina nos ritmos de trabalho, na moradia e na relação com o rio. Os olhos da

estatal, as insignificantes, incompletas e desconcertadas ações reparatórias anunciadas por ela

e tantas vezes cobradas pelos atingidos eram concessões, uma vez que não estava obrigada

por lei a implementá-las.

O responsável pelo setor de indenização, segundo os entrevistados, era “Dr. Canuto”

[Carlos Antônio Neto Canuto]. A lembrança do nome do advogado é carregada de

ressentimentos. Os entrevistados pintam-no como um homem insensível, que não media

esforços para fazê-los aceitar as baixas indenizações, lançando mão da violência simbólica, da

humilhação e de constrangimentos; situação que feria, muitas vezes, o código de ética dos

camponeses. A propósito, Rubem de Siqueira escreveu:

106

Osvaldo — Itapera-Sento Sé: Eu pru mode indenizá uma casa e duas roça ou três que eu tinha lá (um lameiro, casa, roça na ilha, roça no ilhote, qué dizê, cinco roça), eles me botaro sete mil. Não salvô nadinha. Se fosse fazê, não fazia nem a metade do que eu tinha. Prá incluir já esses trem eu recebi carta de dotô Canuto, de Sobradinho. Eu ia, chegava lá, nóis ia negociá, não dava certo, desistia, vinha embora. Recebi três cartas. Quando da derradeira veiz que eu fui, ele pegô dinheiro, disse ‘oi, num diga mais nada’, pegô o dinheiro e jogô no bolso de minha camisa, eu achei feio tirá o dinheiro e jogá lá em riba dele, né. Num fiz porque achei feio fazê, né. Mas, tinha o direito de fazê. Aí o Z. A. (acompanhante) disse ‘vá, pegue, leve seu dinheiro’. Mas não gostei, não.103 (1992, p. 288)

Nessas circunstâncias, as indenizações não ofereceram aos camponeses oportunidade de

refazerem seus meios de vida. Constituíram-se numa segunda espoliação e em clara

manifestação de esbulho.

O sentimento de espoliação tornou-se ainda mais pronunciado, sobretudo, porque a

CHESF se estabeleceu na região, utilizando-se de um aparato funcional e técnico monumental

ou nababesco, para usar expressão de João Saturnino104. Além do mais, tanto os funcionários

das altas esferas como os técnicos demonstravam, em suas andanças pelas áreas do futuro

lago, não possuir limites em termos de atitudes perdulárias e de ostentação105. Empresa rica,

como a CHESF podia mostrar-se tão “somítica” quando se tratava de atender justas

demandas? Aos olhos de indivíduos simples, essas atitudes eram tomadas como agressões. A

“economia” da Assistência Jurídica da CHESF foi tão exacerbada, que, segundo o ex-

funcionário da ANCAR-BA — João Saturnino —, os recursos da rubrica indenização teriam

sobrado. Verdadeira ou não a afirmação, o importante é frisar que na percepção dos atingidos

entrevistados, a estatal era “somítica”, injusta e cruel. Tal fato chocou os atingidos destituídos

103 Ruben de Siqueira (op. cit., p. 288) interpreta a atitude do entrevistado como “excesso de decência diante de um gesto incorreto e desrespeitoso” do representante da estatal. Para ele, o fato demonstra “o abismo moral que separava um velho camponês de um funcionário da CHESF cuja tarefa de ‘remoção de entraves’ implicava em desconsiderar as pessoas.” 104 A construção das Vilas de Sant’Ana e de São Francisco, em Sobradinho, evidencia o fato. Mais detalhes, vide Paulo Marconi, op. cit., p. 66-72. 105 Ramualdo é natural de Casa Nova e trabalhou numa empresa contratada pela CHESF para empreender a transferência da população rural do município de Sento Sé. Segundo ele, o esbanjamento e as atitudes perdulárias, entre as chefias da CHESF, eram tão pronunciadas, que geraram falatórios nas cidades da área da Represa de Sobradinho. O fato ganhou ares de escândalo quando se descobriu que carros a serviço da CHESF, nos fins de semanas, eram encontrados estacionados nos motéis das cidades de Juazeiro e Petrolina. Entrevista concedida à autora em Petrolina, 22/05/2003. O esbanjamento parecia ser a tônica em empreendimentos dessa natureza. Fui informada que, durante a construção da Represa de Pedra do Cavalo – localizada no Recôncavo Baiano – técnicos da DESENVALE usavam helicóptero da empresa para “almoçar moqueca de camarão” em Ilhéus, região Sul da Bahia.

107

de meios de fazer valer seus interesses, provocando-lhes sentimento de ressentimento e de

revolta, como podemos verificar anteriormente.

O esbulho não partia unicamente da CHESF. Há denúncias de que membros das elites

locais se locupletaram. Consta que um advogado provisionado — membro de tradicional

família de Casa Nova —, utilizando-se do prestígio da “grei”, moveu e ganhou processos

contra a empresa expropriadora. Seus clientes jamais souberam da vitória em relação à

“questão” que moveram; o advogado embolsava boa parte dos valores, repassando-lhes

apenas “a mixaria” inicialmente proposta pela estatal106.

Em torno dos valores das indenizações, o Estado e os beraderos se defrontaram;

manifestações de conformismo e de resistência assomaram, evidenciando uma disputa política

entre forças desiguais. Muito a propósito diz Ruben de Siqueira:

As indenizações, nas condições emergenciais em que se deram, não ofereceram muitas chances de reação aos camponeses, outras que não as aproveitadas. Era pegar ou largar. Alguns ainda conseguiram criar um meio termo, mas a maioria teve que pegar a ‘mixaria’, como classificam as indenizações. Numa situação extrema como esta, os limites entre conformidade e conformismo e resistência acabam se cruzando. (1992, p. 291).

Definidora da política energética do país e controladora da CHESF, a presidência da

ELETROBRÁS, durante todo o processo que compreende construção até a inauguração da

Barragem de Sobradinho, procurou desvincular-se das ações consideradas negativas e

prejudiciais aos interesses dos atingidos.

106 As acusações partiram de dois entrevistados. Um deles afirmou que teve familiares enganados pelo advogado. Disse também que um dos parentes só recebeu o valor da indenização muito tempo depois, quando o esbulho foi descoberto. Embora os entrevistados não tenham solicitado a omissão de seus nomes, acho conveniente não citá-los. No auge da disputa política travada entre o Bispo de Juazeiro e a família Viana, o Informativo da Diocese denunciou os esbulhos perpetrados pelas elites de Casa Nova contra os expropriados. Vejamos: “Aliás, isso não é novidade em Casa Nova. No Arquivo da Diocese existem documentos que denunciam falsificações de assinaturas e coisas semelhantes, quando roubaram indenizações dos trabalhadores, por ocasião das mudanças da Barragem de Sobradinho e das enchentes de 79 e 80. Com esse dinheiro, suor e sangue dos trabalhadores, construíram ricas mansões na cidade.” Boletim Caminhar Juntos, n. 78, abril de 1983, p. 8. Perguntado sobre as acusações, D. José Rodrigues de Souza respondeu de modo meio atravessado: “Esse fulano é célebre” (entrevista concedida à autora em Juazeiro, 28/7/2003). Em 2001, procurei o acusado; por intermédio de sua esposa, fui informada de que se encontrava enfermo e impossibilitado de falar.

108

Tabela com destino da população

MINAS GERAIS

PIAUÍ

OC

EA

NO

AT

LÂN

TIC

O

PERNAMBUCO

TO

CA

NT

INS

GO

IÁS

SE

RG

IPE

ALAGOAS

N

RIO S

ÃO F

RANCIS

CO

SERRA DO RAMALHO

ESPÍRITO SANTO

18º

16º

14º

12º

10º

46º 38º42º 44º

1: 2. 700.000

SOBRADINHO

Sentido do deslocamento da população

Fonte: SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia Dados fornecidos por Ely S. EstrelaOrganização e desenho: Sinthia Cristina Batista

Maio 2001

109

No silêncio dos beraderos entrevistados e nas entrelinhas dos discursos dos técnicos

bem como nas matérias publicadas no Boletim Caminhar Juntos, por exemplo, percebe-se que

a ELETROBRÁS se colocava como uma espécie de mediadora em relação aos interesses

divergentes, envolvendo os beraderos e a CHESF.

Cabe aqui observar que, devido ao fato de todo o processo de expropriação em curso ter sido encaminhado pela CHESF esta apareceu sempre como responsável pelo sofrimento do povo, personificando na figura do algoz, e sobre ela concentrou-se toda a revolta e indignação popular, como já mostrou Duqué em seus vários trabalhos (Pereira, 1988, p. 107).

Conquanto conhecesse a hierarquia do setor energético, a Igreja Católica, por meio de

seus agentes pastorais, desconsiderou o papel da ELETROBRÁS, elegendo sua subsidiária, a

CHESF, como o centro do confronto que opôs camponeses e o Estado (Pereira, 1988, p. 107).

Essa posição tornou-se ainda mais evidenciada, quando o chefe de obras da CHESF, João

Paulo Aguiar Maranhão e o bispo passaram a se digladiar em torno do encaminhamento dado

ao processo de transferência da população atingida.

É inegável que a polarização verificada entre a posição do bispo e a do chefe de obras

da CHESF — não faltando, inclusive, acusações pessoais — desviou a atenção do papel

desempenhado pela ELETROBRÁS, bem como pelo Ministério das Minas e Energia. A

propósito:

Tinha uma briga terrível e aí passou até para o nível pessoal. Por exemplo, o engenheiro da Chesf, Dr. João Paulo, polarizava. Eles [o bispo e o engenheiro] polarizavam. Era a voz de quem estava reclamando e a voz de quem estava executando. Com poder de execução. O que esse homem [João Paulo] disse D. José e o que D. José quebrou o pau com essa pessoa (...).”107

A posição da Igreja obedeceu a razões estratégicas? Para Rosa Pereira (1988, p.107),

essa posição foi adotada porque a ELETROBRÁS não fazia parte do universo de referência

dos beraderos. Em entrevista, D. José Rodrigues de Souza negou que a Igreja tivesse adotado

tal posição “de caso pensado”, defendendo ponto de vista semelhante ao da autora citada.

Vejamos:

107 Relato de Luiz Eduardo de Souza. Entrevista concedida à autora em Salvador, 01/10/2003.

110

D. José Rodrigues de Souza — O que a gente tinha na frente... quem estava construindo a Barragem de Sobradinho era o Dr. João Paulo [Maranhão Aguiar]. Ele é que era...Primeiro o Peltier [Eunápio de Queiroz], depois o João Paulo. Tantas cartas iam para ele e ele malcriado comigo. O inimigo da gente era a CHESF; não era a ELETROBRÁS lá no Rio de Janeiro. Ely — Mas todas as diretrizes não vinham da ELETROBRÁS? D. José Rodrigues — Não, os empréstimos, essas coisas todas vinham para a CHESF. A CHESF foi que construiu a Barragem de Sobradinho, não foi a ELETROBRÁS, não! A ELETROBRÁS era uma instância mais longe. Então, o enfrentameto da gente não era com a ELETROBRÁS, era com a CHESF. Então, não tinha intenção de tirar Antônio Carlos Magalhães fora nem trazê-lo para cá. (...) Mas o adversário da gente, imediato, era a CHESF. A CHESF era representada por Dr. João Paulo. Aí cada vez que a gente atacava a CHESF, João Paulo ficava furioso e escrevia aquelas cartas mal criadas para a gente. Hoje em dia, ele entendeu. Depois, eu fiquei sabendo que ele disse assim: “Eu precisava agir daquele jeito com o bispo porque ele atacava a CHESF. Eu era responsável pela CHESF. Eu sabia que a CHESF fazia isso por determinação do governo militar. As indenizações eram pequenas porque eles mandavam pouco dinheiro. O bispo atacava a CHESF; claro que eu precisava defender a CHESF.108

Está fora de dúvida questionar o papel do bispo de Juazeiros e dos agentes pastorais

que deram assessoria aos atingidos, entretanto, convém ressaltar que, ao focarem a CHESF

como adversário principal, deixaram de colocar a ELETROBRÁS no centro do conflito.

Assim, o bispo e seus agentes pastorais “morderam a isca” colocada pela ELETROBRÁS, e o

órgão, ao qual a CHESF — a “besta fera” como era chamada na época da barragem — estava

subordinada, se colocava no papel de mediadora dos interesses conflitantes, envolvendo a

estatal e milhares de riberinhos e beraderos. Quando as reivindicações levadas à CHESF não

tinham eco, agentes pastorais e líderes comunitários recorriam à ELETROBRÁS, trazendo a

estatal para o campo de referência dos expropriados. As palavras de D. José são claras nesse

sentido:

O que a gente fez foi sensibilizá-lo [Antônio Carlos Magalhães] para o Projeto Sobradinho, porque a ELETROBRÁS estava lá por cima, tinha autoridade sobre a CHESF, então, a CHESF não era capaz de

108 Entrevista concedida à autora em Juazeiro, 28/7/2003.

111

fazer coisa melhor, a gente apelou para lá. Mas o adversário da gente, imediato, era a CHESF.109

Margarete Silva publicou importante correspondência enviada à presidência da

ELETROBRÁS por D. José Rodrigues. Na missiva, o bispo, além de traçar um quadro geral

da problemática enfrentada pela população atingida, conclama Antônio Carlos Magalhães a

adotar medidas que visassem minimizar o sofrimento da população de Sobradinho.

Assunto: Sobrevivência das populações transferidas por causa da Barragem de Sobradinho. Exmo. Sr. Presidente da Eletrobrás. Em 19 de agosto p.p, fui procurado por 3 representantes da Eletrobrás (...) Como estávamos naquela tarde, na véspera da Assembléia da Diocese, os enviados da Eletrobrás tiveram oportunidade de conversar com os Vigários dos 4 Municípios, cujas sedes e povoados foram (ou estão sendo) inundados pelas águas da Barragem de Sobradinho. Ao despedirmo-nos, lembro de que lhes pedi duas coisas: 1) Medidas urgentes para atender a essas populações; 2) Que nas futuras Barragens e (na Bahia a próxima é de Itaparica) se evitasse todo esse drama ou tragédia que estamos vivendo na região de Sobradinho. (Silva, 2002, p. 71).

Somente após a ELETROBRÁS elaborar o Programa de Desenvolvimento do

Reservatório de Sobradinho (PDRS), justamente para atender as reivindicações da população

atingida da borda do lago, expressas tantas vezes pelo bispo, ocorrem choques entre a estatal e

a Diocese de Juazeiro. Mas o rompimento definitivo entre o bispo D. José e o então

governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, dar-se-ia em 1981, em virtude da

publicação da cartilha, intitulada Política: A luta de um povo, pela qual a Diocese visava a

formação política de seus fiéis com vistas às eleições de 1982 (Silva, 2002, p. 109)110.

O distanciamento da ELETROBRÁS do foco de confronto, envolvendo, de um lado, a

sua subsidiária, a CHESF, e, de outro, os expropriados de Sobradinho, se mostrou bastante

eficaz. Muitos dos indivíduos entrevistados se lembraram de siglas, nomes de políticos e de

técnicos que, direta ou indiretamente, tiveram participação no “redimunho” que transtornou as

suas vidas, no entanto, em nenhum momento, o nome do atual senador Antônio Carlos

Magalhães é a ele relacionado111.

109 Idem. 110A cartilha teve ampla repercussão na imprensa, sendo rebatida pelos políticos arenistas. O governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães a denominou de Cartilha do Demônio. Margarete Silva, op. cit, p. 110. 111 A “popularidade” das figuras envolvidas na construção da Represa de Sobradinho pode ser comprovada através deste pequeno fragmento de cordel publicado em matéria d’ O Estado de S. Paulo: “Adeus viola, está

112

Luiz Eduardo de Souza, agente pastoral que atuou na região naquele momento,

reconhece que os órgãos gestores da política energética do país foram ignorados pela Diocese,

ressaltando, entretanto, que, ao tempo em que denunciava as arbitrariedades da CHESF em

Sobradinho, a Igreja não deixava de relacioná-las à estrutura opressora maior,

consubstanciada no poder militar. Nesse sentido, ele disse “a ditadura aparecia. Nós

denunciávamos a ditadura, o regime. ”

De qualquer modo, a posição da Igreja mostrou-se em consonância com concepção

bastante arraigada nos meios camponeses, qual seja, as autoridades constituídas não são más.

Situadas num plano muito acima do povo, desconhecem o seu sofrimento. As mazelas que os

vitimam são provocadas pela ação de funcionários insensíveis e inescrupulosos. Nos

momentos de tensão, portanto, recorrem às altas autoridades, solicitando sua intermediação e

denunciando as atitudes arbitrárias e danosos aos seus interesses por parte de funcionários do

Estado. A propósito da posição contraditória com que os camponeses vêem o Estado em

situação de confronto com seus agentes, afirma Guiomar Germani: “Es el Estado como

constructor que les trae perjuicios y es el Estado como protector que les defiende contra la

Empresa. Tardan un buen tiempo hasta percibir que todo es “harina del mismo saco. (1993, p.

562)

Em relação ao caso em tela, os arquivos das CPT Regional, de Bom Jesus da Lapa e,

segundo consta, o arquivo particular de D. José Rodrigues112, guardam inúmeras

correspondências dirigidas pelos camponesas às autoridades constituídas. Nas

correspondências ou abaixo-assinados, reafirmam a confiança nas autoridades, reclamam o

cumprimento das promessas, solicitam melhorias e, às vezes, denunciam as exorbitâncias e as

arbitrariedades cometidas por funcionários do governo, como veremos mais adiante.

chegando a hora / Preparem-se grã-finos para dar o fora / Tem que aceitar a coisa, mesmo sem querer / Tem que agüentar a força de Eunápio Peltier”. Complementando: “Peltier também virou poesia em Remanso, onde um cantador diz, com intimidade, ‘Garrasta fez o decreto, Eunápio aproveitou”. In: Sobradinho, a água que o sertão não queria, OESP, São Paulo, 11/05/1975. 112 Embora tivesse solicitado, não tive acesso ao acervo particular do bispo. A afirmação acima está em consonância com palavras do próprio bispo D. José Rodrigues de Souza.

113

5. Fisgando o peixe...

Para “limpar a área da barragem" e para que o Projeto Especial de Colonização de Serra

do Ramalho fosse implementado, em conformidade com as normas fixadas pelas agências

financiadoras, os órgãos governamentais envolvidos no chamado Projeto Sobradinho

mobilizaram dezenas de assistentes sociais e técnicos — a famigerada “equipe social” — que

implantaram um arrojado plano de convencimento, baseado na propaganda e em promessas

mirabolantes, sem abrir mão das pressões, do constrangimento e da “violência simbólica”.

Nas comunidades tradicionais, a participação política dos estratos sociais mais baixos é

bastante restrita, limitando-se ao exercício do voto (no caso dos “alfabetizados”), em geral,

“encabrestados” ao chefe político local. Toda relação com o Estado e ou seus agentes se dá

pela mediação desses “coronéis” ou “chefetes”, em geral, detentores do poder municipal. Em

importante pesquisa desenvolvida sobre o Vale do São Francisco, Donald Pierson observara:

“O prefeito, ou principal administrador do município, e os vereadores, ou legisladores locais,

são as principais, em numerosos casos, os únicos servidores que a maioria dos moradores

conhecem ou com quem têm relações políticas pessoais.” (1972, p. 268)

Nessa perspectiva, os beraderos sanfranciscanos sequer tinham noção do que

representava o regime militar e pouco sabiam sobre as práticas da ditadura. Embora não

tenham sofrido a força brutal dos órgãos de repressão — não há registros de violência física

entre os desapropriados —, os beraderos de Sobradinho sofreram na pele todo o clima de

silenciamento e de arbitrariedades implantado no país, a partir da edição do Ato Institucional

n. 5113. Reconhecer tal fato nos obriga a rever concepção bastante difundida nos meios

acadêmicos, segundo a qual, somente membros das classes médias e setores operários mais

organizados sofreram as agruras do regime militar.

No depoimento do Bispo de Juazeiro, D. José Rodrigues de Souza, à Comissão

Parlamentar de Inquérito das Enchentes do São Francisco, realizada pela Câmara Federal em

7/5/1981, as arbitrariedades são narradas em profusão, com riquezas de detalhes.

Na pressa de convencerem as pessoas a deixarem a região (‘limpar a área’, dizia o pessoal da CHESF), usavam freqüentes vezes de pressões e ameaças ao povo: ‘Ou aceita essa indenização ou perderá

113 No entanto, há registros de violência perpetrada pela Polícia Militar da Bahia dirigida contra os peões de obra em São Joaquim – também conhecido como o “Cai Duro” –, bairro dos mais pobres de Sobradinho (sede do Projeto). Marconi, op. cit., p. 63.

114

tudo debaixo d’ água’. ‘Se vocês não quiserem sair, virá o Exército, virão os tratores da CHESF”. “Se você não derruba a cerca, meto-lhe o pé na b.... (Souza, 1981, p. 7).

Depois de cadastrados, todos os expropriados foram convocados, através de carros de

som, para reuniões com a “equipe social”. Essas reuniões, de modo geral, aconteceram entre

1974 e 1975, nas escolas ou nas capelas dos povoados, no período noturno.

A “equipe social” tudo fazia para que os beraderos expropriados se cadastrassem no

Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho. Para que o intento surtisse efeito,

lançou mão, além das pressões e da propaganda, de uma campanha de descrédito da chamada

“solução borda do lago” — que acabara se impondo —, criando um clima de tensão e de

medo entre os beraderos.

O descrédito se consubstanciou através de duas frentes. Primeiro, a CHESF

propagandeava que não se comprometia a dar aos reassentados, que viessem a se estabelecer

na borda do lago, assistência e auxílio: estes só teriam direito à indenização dos bens114. Desse

modo, a construção das casas e as mudanças ficariam a cargo deles próprios. Em segundo

lugar, foi desencadeada intensa propaganda negativa do meio físico da borda do futuro lago.

Na concepção dos técnicos, a “solução borda do lago” apresentava três limitações: os lotes

seriam exíguos e pouco férteis, não haveria vazante, o cultivo seria de sequeiro. Desse modo,

a sobrevivência na borda seria muito difícil, exigindo enorme sacrifício dos reassentados.

Assim, somente os catingueiros poderiam permanecer na área, pois já se encontravam

adaptados. Nessa perspectiva, aventou-se a possibilidade de que as camadas mais pobres

dentre os desapropriados fossem relocadas na borda do futuro lago. A propósito:

Foi previsto, e a documentação oficial a respeito é clara, que ‘possivelmente à parcela mais pobre e de mais baixo nível educacional, o INCRA oferecerá possibilidade de localização nas margens do reservatório, conforme padrões a serem estabelecidos em bases “ad-loc”, pois a baixa qualidade dos solos à margem do reservatório, e a instabilidade do nível das águas, com variações periódicas de vários quilômetros, torna difícil a ocupação das margens propriamente ditas (Relatório INCRA, Apud Ferreira, 1980, p. 9).

114 A maioria dos indivíduos que permaneceram, além da parca indenização, receberam sete mil cruzeiros a título de auxílio para construção de suas casas. Mais detalhes, vide trabalhos de Barros, A dimensão social dos impactos da construção do reservatório de Sobradinho, 1984; Machado, Poder e participação política no campo, 1987; Silva, A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de Juazeiro, 2002; e Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992.

115

Em contraposição, nas agrovilas, os expropriados teriam inúmeras vantagens, que,

como veremos adiante, ou não se realizaram ou foram implementadas precariamente e em

forma de conta-gotas:

[...] os colonos teriam assistência médica, financiamento do Banco do Brasil para lavoura; cada colono teria direito a um salário mínimo durante um ano; as mulheres teriam trabalho (...); todas agrovilas teriam água, luz, cooperativa, assistência técnica (...), transporte, estradas (...); o INCRA desmataria 2 ha de cada lote; todas as agrovilas teriam posto da COBAL, salão social, igreja; o projeto teria uma área de irrigação para ser utilizada coletivamente; os moradores teriam área para comércio além de outras vantagens. (CPT. Apud Bursztyn, 1988, p. 24)

Nas reuniões de esclarecimentos e arregimentação promovidas nos povoados115, os

agentes governamentais lançaram mão de todos os recursos técnicos disponíveis na época

para apresentar o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, de modo geral, desconhecidos

da população expropriada. Além dos mapas e plantas da área onde ficava o Projeto,

apresentaram slides116 e folhetos explicativos, mostrando as vantagens de Serra do Ramalho.

Embora tenha recebido informações do setor de comunicação social do INCRA de que os

referidos slides se encontram na sede do órgão, em Brasília, não tive acesso ao material.

Contudo, encontrei, no acervo da CPT da Diocese de Bom Jesus da Lapa, localizado em Santa

Maria da Vitória, dois dos folhetos utilizados para efeito de propaganda e informação aos

futuros “colonos” pelo INCRA e pela EMATER-BA.

Por intermédio de um morador de Barra da Cruz, tive acesso a um outro folheto

(incompleto) de propaganda do qual o INCRA lançou mão. Vejamos a apresentação:

Como todo mundo sabe, o Rio São Francisco está diminuindo suas águas de ano prá ano. Isso tem prejudicado a produção de energia elétrica de Paulo Afonso. Para aumentar a reserva de energia, o governo Federal decidiu fazer a Barragem de Sobradinho. Em troca de sua roça e da terra onde você mora atualmente, o governo está oferecendo em Bom Jesus da Lapa, uma área com terras boas e onde

115 O trabalho de “motivação” desenvolvido pela equipe social junto aos desterrados durou 5 meses. Rosa Viana Pereira, op. cit., p. 29. 116 Os diapostivos eram desconhecidos dos camponeses. A projeção das imagens, digamos assim, suscitou entre os camponeses claros exemplos de descompasso cultural. As imagens “desfocadas” provocavam incredulidade dos camponeses. Segundo informação, numa das sessões, ao ver projetada na parede a imagem de um enorme tomate, um beradero teria dito: “Eu quero saber em que terra dá tomate desse tamanho?”.

116

chove muito mais do que aqui. Se você preferir mudar-se para a Lapa, vai ter também as seguintes vantagens.

No verso, desenho de uma escritura:

1ª Ser proprietário de um lote que tem em média vinte hectares, para plantação e uma área para criação na solta. 3ª O título de propriedade lhe dá direito a receber financiamento do Banco, para aumentar sua produção, criação e benfeitorias.”

No verso, desenho de um caminhão carregando uma mudança:

“5ª na mudança para o projeto da Lapa você pode levar a família, o criatório, toda a mobília, animais de estimação, motor, barcos e colheitas das roças. 6ª Seus vizinhos, amigos e parentes que moram juntos hoje, poderão continuar juntos também na Agrovila se a mudança for feita no mesmo tempo.

Por fim, uma advertência:

Assunte bem Sua escolha vai facilitar as providências para a mudança de sua família e de todos seus pertences. Procure os técnicos da CHESF, ANCAR-BA e INCRA e diga sua decisão.117

Ainda que resistissem à idéia de deixar a “beira do rio”, as vantagens do projeto

alardeadas pela equipe social provocaram impacto nos expropriados. Ninguém melhor para

falar disso do que Eudelina, ex-agregada da Fazenda de Fora, situada no povoado de Bem-

Bom, município de Casa Nova e atual moradora de Serra do Ramalho:

Não alembro muito bem quande falaram que a gente tinha que mudar. Falaram, mais nóis não acreditava que o rio ia encher. Nóis pensava: o rio tá tão longe, onde vai achar água pra encher tudo isso? Foi enchendo e nóis tivemos que sair. Depois veio os home do INCRA e mostrou pra nóis filme. Filmou tudo. Mostrou a terra pra gente. Dizia que a terra era muito boa e tudo irrigado. Quande nóis viu aquelas árvres grande, aquela mata fechada, aquelas barriguda bonita, nóis ficamos entusiasmado. E vimos pra cá. Tudo ilusão”.118

117 O folheto foi impresso em meio ofício e dividido em pontos ou itens. Todos os itens continham gravuras. 118D. Eudelina. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.

117

Com expressividade — num jeito todo característico de rememorar o passado119 —,

Quintiliano disse que a “equipe social” prometia aos expropriados “o céu e as estrelas”.

Apolônia usou uma figura de linguagem também bastante interessante.“Lá tudo era vantagem.

Fizero a cama, só faltou o noivo.”120

Não bastassem as promessas, a “equipe social” explorou ao máximo aquilo que para ela

se constituía em trunfos do projeto. Os mais explorados eram a titulação e o tamanho dos

lotes rurais. Enquanto os beraderos instalados nos “núcleos de reassentamento”, situados na

borda do lago, receberiam lotes de exígua extensão, às vezes, sem testada para o lago, os de

Serra do Ramalho teriam direito ao módulo rural regional, isto é, 25 hectares (nos folhetos

publicitários se falava em 60 tarefas). A exuberante vegetação do lugar, se comparada à área

da Represa de Sobradinho, também foi explorada.

Moça, a mata era uma beleza. A terra era boa. Muita terra e aquilo enchia os olhos dos homens. Mais não pense que queria vim, não. Eu mesmo não queria vim não, vim porque parece que fui enfetiçado. Aqueles que veio[refere-se à “equipe de visitação”] botaram coisa na cabeça da gente, mais eles não veio, não. Voltou, foi aquela propaganda, mais não veio não.121

A mata impressionou os beraderos recém-chegados, pois sua exuberância sinalizava

fertilidade e abundância. Aliás, Apolônia salienta que a única coisa sobre a qual “achou

vantagem nas agrovilas” - Serra do Ramalho - foi a mata:

Madeira boa. A mata lá você enxerga... trançando, um pau por dentro do outro. A madeira toda linhera que é uma maravilha (...) Porque aqui na nossa região [refere-se a Casa Nova] um pau é torto, cheio de galhos, espinhento... Ele lá, não; só faz a copa lá no fim... é que sai as galhas.....

A escolha da área localizada no município de Bom Jesus da Lapa para instalação do

Projeto Especial de Colonização, pela equipe interministerial, reunida em Paulo Afonso

(1975), baseou-se nos seguintes fatores: grande área não titulada, baixa densidade

demográfica, capacidade de irrigação e fertilidade do solo. Além do mais, Bom Jesus da Lapa

era e é uma referência no imaginário sertanejo. Ela é a terra dos milagres e da remissão. Para

119 Aqui cabe citar as palavras de Paul Zumthor: “no uso mais geral, performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual”. A letra e a voz: a literatura medieval, 1993, p. 45. 120 Entrevista concedida à autora em Barra da Cruz, 24/5/2003.

118

o santuário de Bom Jesus acorrem romeiros de todos os recantos do semi-árido —

especialmente, do sertão da Bahia e do norte de Minas Gerais. As romarias acontecem durante

todo o ano, mas o ponto alto é entre os meses de julho e outubro. Em 6 de agosto, dia de Bom

Jesus, registra-se maior número de romeiros na Lapa. Os romeiros são pessoas simples,

pobres e de baixa escolaridade (pequenos proprietários, rendeiros, vaqueiros, pequenos

comerciantes, funcionários públicos, donas de casa, ambulantes, desempregados, etc.), que

enfrentam grandes dificuldades para visitar o santuário e cumprir suas promessas.

Entre os entrevistados, encontramos uns poucos que estiveram na Lapa em romarias

antes do projeto. Esses indivíduos disseram que a perspectiva de assentamento “perto da gruta

do monge” foi bem recebida. Cientes disso, os agentes sociais utilizaram o imaginário popular

relacionado ao santuário como fator de cooptação dos beraderos. Estrofe de um dos folhetos

editado pela EMATER-BA (conveniada com o INCRA) com fins publicitários atesta a

afirmação:

Lá está o Bom Jesus Milagroso lhe esperando, Confie nele e nos homens Que agora estão governando E observe este ditado Tudo que fica parado Depressa vai se acabando (A/D, EMATER-BA, s/d, p. 3).

Em meados de 1976, D. José Rodrigues de Souza visitou suas “ovelhas dispersadas” e não

emitiu parecer sobre as agrovilas, limitando-se, segundo Rosa Pereira (1988, p. 57-58), a

sugerir aos atingidos que solicitassem à “equipe social” da CHESF meios de promoverem

visitas ao local do projeto122. Na resposta ao oficio enviado pelos Sindicatos de Trabalhadores

Rurais, a Chesf fez referência a possibilidade de visitação ao local no qual estavam sendo

implantadas as agrovilas. Ciente disso, é provável que D. José Rodrigues de Souza ao

recomendar os interessados visitação às Agrovilas estivesse cobrando a promessa da estatal.

Independente de onde teria partido a iniciativa da visita, a percepção dos atingidos em

relação aos membros da “equipe de visitação” merece discussão. As “visitas” se realizaram

depois da partida de algumas levas — quando inúmeros cadastrados relutavam em partir. Não

se sabe ao certo quantas “equipes de visitação” partiram da área de Sobradinho para Serra do

121Quintiliano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramlho, 16/7/2000. 122 Em entrevista à autora, realizada em 28/7/2003, o bispo disse não se lembrar do fato.

119

Ramalho, têm-se informações de que foram cercadas de pompas e cuidados. Aos visitantes

não faltaram “mimos” e gentilezas. Segundo Elpídio, durante a visitação, os agentes

governamentais lançaram mão de vários mecanismos de cooptação dos membros da

comissão.

Ah! eles tratava todo mundo muitcho bem. Era comida, era churrasco, era refigerante. Teve gente que veio de avião. Prometia o céu. No modo de dizer deles, o projeto era um paraíso, D. moça [dirigindo-se à entrevistadora] . Era o céu.123

Um outro entrevistado disse:

Porque, quando era pra vim, parece que era um negócio de uma malandragem. De cada lugar pegava dois, vinha passear, olhar, que era pra levar notícia pros outros. Eu disse, se eu soubesse disso, tinha pegado essa oportunidade e tinha vindo. Não tinha vindo pra qui, não. E os que vieram fazer a pesquisa, nenhum veio. Chegava lá, só contava vantage. Então tenho um irmão em Sobradinho, eletricista, procurei ele: — Francisco, meu irmão (ele até já aposentou), diga uma coisa: que você acha de lá? Ele disse: ‘Meu irmão, lá pra quem gosta de roça, lá eu creio que é bom e coisa e tal’. Me enrolou. Quando cheguei aqui, ôxi. Devagar. Pra mim, recebero dinheiro pra enganar a gente124.

Fica evidenciado, nas narrativas acima colocadas, que a CHESF manobrou as comissões

e desvirtuou o seu papel. Fica evidente também que na percepção dos entrevistados os

indivíduos que participaram da comitiva de visitação ao projeto ou se deixaram ludibriar ou

agiram de má fé. Faltaram com a verdade, participando da rede de “enganação” criada pela

CHESF com o fito de “limpar a área”. A última narrativa não deixa dúvida quanto ao

comportamento dos “visitadores”: foram subornados pela equipe social.

Um fazendeiro “forte” de Pau-a-Pique, membro de uma “comissão de visitação”, nega

ter sido subornado ou ter sofrido pressão da CHESF para emitir opinião favorável ao projeto.

Disse que de fato gostou de Serra do Ramalho e que chegou a pensar em se deslocar para lá;

não consumou seu intento porque o gerente-executor teria deixado claro que o forte do projeto

seria a agricultura. Como era criador, se desinteressou daquele projeto, pois não tencionava

deixar a atividade.

123 Relato de Elpídio. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 16/7/2000. 124 Relato de Quintiliano.

120

Manolo, ex-administrador da Fazenda de Fora, também participou de uma das “equipes

de visitação” e, de forma bastante tranqüila, rebate a suspeita de que os “visitadores” teriam

sido subornados. Ressalta, inclusive, que a iniciativa da viagem partiu dos próprios

interessados — com exceção dele, todos cadastrados —, cabendo a CHESF, unicamente,

bancar a gasolina. Reconhece, no entanto, que a visita foi muito rápida, deixando entrever que

a equipe social não tinha interesse em que permanecessem muito tempo no local.

Numa manhã, houve visita à Agrovila 5, a única habitada à época, quando a "equipe de

visitação" conversou com alguns de seus moradores. Ele diz que todas as pessoas com quem

conversou mostraram-se satisfeitas e somente uma desaprovou o projeto. “Cheguei numa

casa, tinha um rapaz sentado na calçada. Por sinal, era aquele Pequenito. Digo: ‘hei, rapaz!

Como é que tá a coisa aqui?’ — ‘Não gostei, não!’ Ele disse: ‘Não achei muito bom, não!’. Só

esse; nas outras casas, o povo tudo satisfeito. Justamente, ele voltou logo. Tá aí em Pau-a-

Pique.”

Manolo disse que nunca se iludiu com o “falatório” da equipe social, ressaltando,

imediatamente, que também não era contra as agrovilas. Às vezes, sua narrativa assume um

certo “ar” de ambigüidade, revelando que, embora fosse extremamente ligado às barrancas do

São Francisco, naquele momento, partir ou permanecer não era questão fechada; a decisão

dependia das condições oferecidas por ambos os lugares que acabaram se afirmando como

opções. Disse que não partiu porque a “retirada” das “criações” na Fazenda de Fora o prendeu

em Pau-a-Pique:

Eu estava na função da retirada, as coisas estava, abaixo de Deus, em minhas mãos. Eu ia sair... largar...mandar dizer ao homem (proprietário da fazenda) que viesse do Rio de Janeiro naquele aperto? Que que ele ia dizer? Que era covardia minha (...) Eu disse: não vou pra lugar nenhum. Digo não vou, não. Deus é o mesmo Deus, vou ficar é por aqui.”

E confessa logo em seguida que, ao chegar da “visita” às agrovilas, falou que não partiria

da borda do futuro lago. Depreende-se que a decisão de Manolo não dependia somente das

condições oferecidas num ou noutro lugar. Ele esperava por parte do fazendeiro, a quem

servia há mais de trinta anos, definição em relação ao seu futuro. “Quando completou a

indenização, chegou no ponto final, ainda ficou um restinho de gado por aqui. ‘Vamos ficar

por aqui’. Depois foi que viu que era muito longe, viu que era renda pouca, resolveu mandar

vender o resto do gado. Aí foi acabando a história.” Como o fazendeiro demorasse em tomar

121

uma posição e a partida para as agrovilas fora descartada, pensou em morar em Pau-a-Pique,

mas quando recebeu, a título de indenização, área de pouco mais de quatro mil hectares,

construiu casa na borda do lago, onde vive ainda hoje.

A questão do suborno está fora de propósito, mas não há dúvidas quanto à cooptação

dos “visitadores”. O exemplo de Josevaldo parece claro. Considerado no povoado “criador

forte” e correligionário da família Viana, recebia em sua casa todas as autoridades e agentes

governamentais que chegavam a Pau-a-Pique. Alguns membros da “equipe social” se

hospedaram lá. Além de criador, era comerciante. Quando começaram as obras de construção

do Novo Pau-a-Pique, tornou-se fornecedor de material à empreiteira que trabalhava na

construção das casas. Assim, mantinha vínculos e interesses com a CHESF e seus

funcionários. Vínculos tão estreitos que uma assistente social da equipe teria desaconselhado

sua partida para Serra do Ramalho125. Na verdade, foi a partir daí que desistiu da ida para as

agrovilas e não a partir da conversa com o gerente-executor, conforme confessou mais tarde.

Embora diga ter sido muito prejudicado pela construção da Barragem, uma vez que perdeu o

estreito vínculo comercial estabelecido com a população de povoados situados no município

de Sento Sé — na margem oposta a Pau-a-Pique —, Josuel obteve alguns benefícios,

conforme ver-se-á mais adiante, em função da amizade que estabeleceu com funcionários da

CHESF. Nesse caso, não se poderia esperar que chegasse ao povoado desaprovando o projeto.

A “equipe social” buscava cooptar todas as pessoas que, de uma forma ou de outra,

pudessem influenciar os atingidos, no sentido de aceitar a opção Serra do Ramalho. As

crianças não ficaram imunes ao trabalho de cooptação. Alberico relata que as assistentes

sociais abordavam as crianças nas ruas, puxavam conversas, distribuíam balas e lhes falavam

das melhorias oferecidas pelas Agrovilas. Embora resistissem ao processo de transferência, os

agentes pastorais e o próprio bispo não estiveram imunes a ele. O fato de D. José não ter se

posicionado em relação ao projeto durante visita a Bom Jesus da Lapa e de ter sugerido as

“visitações”, conforme Rosa Pereira, evidencia certa condescendência em relação a esse

projeto, motivada, talvez, para não divergir de membros de sua comitiva que se mostraram

fascinados pelo mesmo, conforme atesta matéria publicada no informativo Diocesano

Caminhar Juntos:

125 Membros da equipe social se mostravam bastante “populares”. Mantinham com os atingidos relações amistosas: comiam em suas casas, dividiam com eles a mesa de bar e compartilhavam de seus jogos e brincadeiras. Vejamos: “Tinha uma por nome Dione. Essa era muito engraçada. O pessoal ficava na rua, debaixo de uns tamboril grande que tinha no Pau-a-Pique véio, jogando baraio. Dione passava. Um gritava: ‘É pau’. Ela dizia: ‘Pau não é aí, não; pau vai ser nas agrovilas’. Eles diziam: ‘É mermo, mas nóis não vai pra lá, não.’ O pessoal sorria, que se acabava.” Relato de Osvaldo. Entrevista tomada pela autora em Casa Nova, 25/1/2002.

122

D. Rodrigues, durante sua estadia em Bom Jesus da Lapa, por duas vezes, visitou as agrovilas, onde residem suas ovelhas dispersadas pela Barragem de Sobradinho. Agrovila n. 1 – 550 pessoas, mormente de Casa Nova e Sento Sé. O encontro com D. Rodrigues que tanto batalha por elas, foi uma alegria. Abraços e lágrimas. Celebrou-se a Divina Eucaristia, durante a qual se realizou o primeiro casamento na história da nova cidade (sic). Participação festiva de todos, acompanhada ao violão pelo “Prefeito” um jovem pára frente. Presença simpática da Assistente Social e de outro dinâmico Técnico. D. Boileau e esposa – D. Maria Gorete são Anjos Bons das Agrovilas. Têm-se doado, cristãmente, ao que perderam suas terras. O INCRA tem-se revelado humano e justo, procurando minorar o sofrimento dos sanfranciscanos exilados. Cada Agrovila está provida de água (...) Escolas funcionando; primeiras séries. Curso pré-escolar. Merenda. Foi um prazer ver nossos pimpolhos com uma canecona onde mergulhava a carinha inteira. Lavanderias. Chafarizes. COBAL. As casas dispõem de uma área que permitirá pomar e horta. Cada Agrovila terá sua capela (Boletim Caminhar Juntos, n. 5, 9/1976)126.

Uma outra questão merece ser salientada. De acordo com os critérios estabelecidos pela

CHESF, os poucos lotes agricultáveis situados na borda do lago seriam distribuídos por

sorteio. Temendo não serem sorteados, muitos desapropriados desesperados se cadastraram

no Projeto Serra do Ramalho. A propósito disse um entrevistado: “Era pru sorteio. Dizia que

era na sorte grande. Ia confiar em sorte grande, nada! Entonces quis garantir o meu, né?”127.

Depreende-se da entrevista que os beraderos, temendo ficar sem lote na borda do lago,

agarraram o Projeto Serra do Ramalho como única alternativa de sobrevivência. Em que

medida a apreciação favorável do projeto pelas “comissões de visitação” não resultou da

consciência de que, quanto menos pessoas ficassem na borda do lago, mais terras sobrariam

para elas? Essa também pode ser uma outra razão para explicar o silêncio da maioria das

elites políticas locais em relação à partida de sua clientela para área distante do futuro lago.

O certo é que, no intento de “limpar a área”, a “equipe social” não só contou com o

silêncio e, às vezes, a conivência declarada das elites políticas locais, como soube muito bem

explorar as contradições e limitações das opções oferecidas ou criadas pelos beraderos, de

modo a produzir entre eles uma disputa surda, que resultou na divisão de algumas

126 Em entrevista concedida à autora, em Juazeiro, 28/7/2003, D. José diz que durante a visita ouviu inúmeras queixas dos reassentados e responsabiliza a Irmã Celeste pelo conteúdo da matéria. “Irmã Celeste, toda mulher é assim, ela se impressionou porque o Boileau tratou, recebeu bem a gente e ela ficou encantada com o Boileau. Mas não era meu pensamento”. 127 Relato de Elpídio. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002.

123

comunidades. Nesse sentido, convém salientar que muitos dos desencontros e dissonâncias

verificados entre a “equipe social” e os beraderos atingidos devem ser creditados às atitudes e

às ações da primeira. Depreende-se de algumas narrativas que indivíduos que exerciam nos

pequenos povoados papel de liderança, tomaram, de boa fé ou não, iniciativas em relação às

expectativas do projeto, resultando em embaraços para a equipe social. Por uma questão de

oportunismo ou para não ferir sutilezas, muitas vezes, a “equipe social” não rebatia tais

iniciativas, silenciando.

Wandilson confessou que, para convencer os deslocados que estavam de partida para

Serra do Ramalho a seguirem viagem, conforme veremos adiante, disse-lhes que a CHESF

garantia que, se os deslocados quisessem voltar, contassem com ela. Ele confessou também

que os funcionários da estatal não gostaram de seu discurso, mas que silenciaram, pois

temiam que a partida da “leva” não se concretizasse. O fato evidencia ainda que, a todo o

momento, os técnicos envolvidos no processo de arregimentação e deslocamento eram

colocados em situação embaraçosa e estavam sob forte pressão. Há informações também de

que havia entre eles divergências, tensões e até hostilidades.

Conquanto resistissem à idéia de deixar a “beira do rio”, aproximadamente dois mil

beraderos foram cadastrados (fisgados pela equipe social). Todos os pesquisadores da

Represa de Sobradinho fizeram menção à posição hostil dos Viana em relação à transferência

da sua clientela, no entanto, entre os reassentados em Serra do Ramalho, a maioria é formada

por naturais do município de Casa Nova, base eleitoral do clã. Por quê?

Rosa Pereira insinua que a posição dos Viana teria motivado uma contra-reação da

ANCAR-BA, na medida em que o órgão escolheu, justamente, o município de Casa Nova

para sediar os trabalhos de convencimento e arregimentação dos atingidos, fato negado pelo

ex-técnico da ANCAR-BA, João Saturnino.

De qualquer modo, o fato evidencia que, durante todo o transcurso da construção da

Represa de Sobradinho, houve tensões — nem sempre explicitadas —, envolvendo diferentes

atores sociais128. João Saturnino disse desconhecer a existência de divergências entre os

128 No entanto, pelo menos no plano dos discursos houve, entre a equipe social e membros da baixa elite política local, conflitos e disputas. Em matéria publicada no O Globo, o diretor da EMATER-BA, Cícero Magalhães, reclama da campanha “sistemática” movida contra as agrovilas pelos “chefes políticos interessados em manter os agricultores sob sua dependência”. Vejamos: “- Nós procuramos um deles para saber qual a razão disso tudo. Ele negou que estivesse agindo assim e disse que apenas estava aconselhando os lavradores a ouvirem suas mulheres antes de decidir se mudarem. Nós descobrimos que ele estava falando a verdade, só que antes tinha mandado a mulher sair de casa em casa pra convencer as outras a não aceitarem de forma alguma a transferência – conta Magalhães.” João Santana, Agrovilas, a mudança para terras mais férteis (Sobradinho – A nova era do Velho Chico – Final), O Globo, Rio de Janeiro, 31/01/1977.

124

técnicos, mas confessa ter visto sentimento de angústia, em razão do tratamento que era

dispensado à população. “Nós acreditávamos que ele podia ser diferente. Tudo parecia que era

legal. Havia uma máscara de legalização do processo como um todo, graças à ação dos

advogados.” Em seguida reconhece que os funcionários graduados da CHESF nutriam, em

relação aos técnicos da ANCAR-BA e do INCRA, enorme desconfiança. Diz ainda que, em

alguns momentos, houve pressões para que técnicos fossem desligados e que, pelo menos, três

membros da “equipe social” solicitaram desligamento por apresentarem sintomas de

depressão, em decorrência talvez das pressões e da labuta em condições tão impactantes. O

fato mostra que a “equipe social” não era um corpo homogêneo e que havia, sim, divergências

entre eles, não explicitadas, sem dúvida, em razão da repressão imposta pela ditadura

militar129. Alguns situavam-se no campo da esquerda e uns poucos nutriam simpatias ou

militavam na Ação Popular (AP)130.

Quando alguns técnicos, em tom de ameaça, falavam aos desapropriados da

possibilidade de o Exército passar a atuar na região de Sobradinho, conforme denúncia de D.

José Rodrigues, não estavam blefando. Afinal, vivia-se sob regime de exceção. Exatamente

por isso, sabiam dos seus limites e até onde podiam divergir e mostrar-se angustiados com os

rumos do projeto em curso.

À parte divergências em relação à forma como a transferência estava sendo executada,

os técnicos eram entusiastas do Projeto de Serra do Ramalho e acreditavam em sua

viabilidade, pois ele se mostrava, conforme salienta João Saturnino, “infinitivamente melhor”

que a permanência na borda do lago, nas condições colocadas pela CHESF, mas durante a

execução do Projeto, registraram-se, entre os técnicos, reservas e críticas em relação às

agrovilas. Em matéria publicada pelo O Globo, a assistente social do INCRA não poupa

crítica às agrovilas. Ela teria dito:

“É lamentável que nem mesmo a tendência básica de quem mora nos povoados rurais que é de se agregar existe aqui. Esses aspectos aparentemente insignificantes, são muito importantes quando se trata de uma população transferida.” (Santana, 31/01/1977, p. 6)

129 Lygia Sigaud afirma que os técnicos da equipe social desempenharam papéis contraditórios em todo o processo de deslocamento dos atingidos pela Represa de Sobradinho, uma vez que ora, revelavam-lhes informações sigilosas, agindo como aliados, ora, funcionavam como braço repressivo da CHESF, forçando a população a abandonar rapidamente a área. Sigaud et al., Expropriação do campesinato e concentração de terras em Sobradinho, Ciências Sociais hoje, São Paulo, 1987, p. 106. 130 O ex-superintendente do Incra Regional da Bahia, José Carlos Arruti insinou vinculação de técnicos com posições de esquerda. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002. Essa entrevista foi registrada em caderno de campo.

125

Na percepção das pessoas que entrevistei a posição de que os Viana eram contra a

transferência não parece muito clara. Quintiliano disse que Hipólito Rodrigues, o mais

importante aliado dos Viana em Pau-a-Pique, era contra o projeto, mas não se posicionava

francamente, e Apolônia afirma que, após o regresso dos arrependidos das agrovilas, o

prefeito de Casa Nova disse-lhe que não se opôs à partida dos correligionários porque “uma

andorinha não faz verão”. Tudo indica que a família, embora contrária à transferência, não

mobilizou suas forças, evitando, desse modo, o enfrentamento direto com a CHESF e, em

conseqüência, com o governo federal. A posição dos Viana ficou no limite da ambigüidade,

tendo um dos seus membros, Adolfo Viana, sido nomeado prefeito “biônico”131 do município,

em 1978.

As tensões se evidenciaram também entre os próprios expropriados. Nos meses em que

se processavam as lidas para a transferência, estabeleceu-se, entre os que partiriam e os que

permaneceriam na borda do lago, um clima de rixa e animosidade, que, segundo consta, não

ultrapassou os limites do campo verbal. Os que partiriam para Serra do Ramalho diziam que

os optantes pela “solução borda do lago” iriam passar fome; por sua vez, os que

permaneceriam diziam que os optantes pelo Projeto Serra do Ramalho iriam viver no

“cativeiro”. É provável que a animosidade verificada entre os dois grupos tenha se processado

a partir da assimilação dos discursos representativos dos campos de relações conflituosas,

envolvendo não só os próprios expropriados e a “equipe social”, mas também agentes

pastorais e membros das elites locais. Esses discursos faziam parte da propaganda e da contra-

propaganda empreendidas pelos atores em disputa.

As rixas e animosidades serviram para reforçar, entre alguns “contendores”, a decisão

da partida. Explicitando melhor: Isidoro conta que ficou desgostoso com o clima que se criou

entre os desapropriados. Confessa que tinha dúvida em relação à agrovila, mas que, como foi

muito criticado por familiares e amigos, não se sentia à vontade para voltar atrás em sua

decisão. “Já tinha assinado. Ficava feio, né? Já tinha assinado o documento. Todo mundo

sabia. Que home era eu? Não garanto a palavra?” Mesmo contrariado partiu para as agrovilas.

Para ele era uma desonra faltar com a palavra dada. Fica evidenciado, uma vez mais, o

confronto social de indivíduos marcados por valores diferentes. Os beraderos tinham código

de ética a que, mesmo numa situação excepcional, não deixaram de recorrer.

131 Denominação dada pela imprensa e políticos de oposição aos prefeitos, governadores e senadores nomeados pelo regime militar (Depois do “Pacote de Abril”).

126

6 - Está na hora de limpar a área...

O número de famílias cadastradas, bem como de famílias que efetivamente partiram

para Serra do Ramalho, é controverso. Bursztyn (1988) contabiliza em mil e seiscentas,

Sandroni (1982), mil e vinte e nove, Rubem de Siqueira (1992), mil e treze. O primeiro

executor do Projeto, Boileau Dantas Vanderley132, não soube precisar o número exato de

famílias que recebeu em Serra do Ramalho, mas o relatório do INCRA afirma que foram um

mil e quatrocentas (1994, p. 20). Tudo indica que por volta de duas mil pessoas se

cadastraram, mas um pouco mais de mil, efetivamente, partiram para as agrovilas.

As “retiradas” estavam vinculadas não só à proximidade do início do enchimento do

lago (início de 1977), mas também à construção das agrovilas. As três primeiras agrovilas

foram construídas no primeiro trimestre de 1976. A primeira leva de “arretirados” partiu em

março de 1976.

Martins-Costa, estudando a comunidade de Itapera, diz que a unidade básica de retirada

foi o “agrupamento familiar”. Conquanto encontrasse, em Serra do Ramalho, muitas famílias

aparentadas, não me parece que tenham predominado entre elas o mesmo fato verificado em

Itapera. Rejeitada pelos beraderos, a transferência para o Projeto Serra do Ramalho (Bom

Jesus da Lapa, como era denominado na época) só se viabilizou mediante a utilização de

práticas que, como vimos acima, combinaram a persuasão/cooptação. Os efeitos de tais

práticas não eram sentidos/percebidos uniformemente pelos vários membros das famílias133,

gerando, assim, divisão entre elas. Convém ressaltar outro aspecto que me parece da maior

importância. O modo de vida camponês está assentado na parentela e nas relações de

solidariedade. Conforme ressalta Eunice Durham, quando membros das comunidades

“tradicionais” se deslocam, não o fazem todos ao mesmo tempo. Tal atitude é considerada

perigosa e arriscada, pois, uma vez fracassado o empreendimento, não terão ponto de apoio,

viabilizador das manifestações de solidariedade e acolhimento tão característicos das

comunidades “tradicionais”. De modo geral, nessas comunidades é comum a partida de um

membro ou de um pequeno grupo, permanecendo os demais para, no caso de fracasso, receber

de volta os que partiram, dando-lhes apoio e sustentação. Se o membro ou pequeno grupo que

partiu é bem sucedido em sua empreitada, manda buscar os que permaneceram.

132 Entrevista concedida à autora, em Sítio do Mato, 1999. 133 Aqui cabe lembrar as palavras de Maurice Halbwachs (1990) de que a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva.

127

O migrante possui também consciência do elemento de risco que a migração acarreta. Por isso mesmo, as migrações efetuam-se, preferencialmente, com a manutenção de uma posição na sociedade rural para a qual possa voltar, em caso de insucesso. Em termos de família, a migração sucessiva dos membros do grupo oferece a vantagem indiscutível de garantir a posição anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova posição (Durham, 1973, p. 131).

Também em Sobradinho a experiência foi verificada, resultando na divisão de muitas

famílias. Quando muitos dos que partiram para as agrovilas retornaram, receberam apoio e

solidariedade dos que permaneceram, ou seja, ficavam “encostados” em suas casas, conforme

veremos no último capítulo.

De qualquer modo, o sistema de parentela dominante nas comunidades tradicionais

sofreu forte abalo, predominando, entre os transferidos, com raríssimas exceções, a família

conjugal. Tudo indica que ele sofreria novo golpe, quando muitos reassentados deixaram

Serra do Ramalho, voltando a seus locais de origem ou partindo para São Paulo ou para as

cidades satélites do Distrito Federal.

Os dias que antecederam a viagem dos arretirados merecem ser seguidos de perto. Os

povoados foram tomados pela agitação. Também nas casas havia azáfama. Mulheres e

crianças corriam de um lado para outro arrumando os baús com roupas e utensílios

domésticos; os homens corriam atrás das ferramentas e instrumentos de pesca. As mudanças

seguiram nos vapores ou caminhões especialmente contratados para essa finalidade.

Conforme a promessa, todas as despesas corriam por conta da CHESF. A criação também foi

levada. Bovinos, caprinos e galináceos partiram nos vapores junto com a mudança. Somente

os jumentos foram abandonados. Muitos morreram afogados quando as águas subiram. À

semelhança da partida das pessoas, o embarque da alimária era marcado pelo choro e pela

emoção. “Até o gado chorou . O gado parecia que sabia que ia embora.”134

Alvino complementa:

Eu sou uma pessoa que pra chorar... Mais na hora que o vapor saiu com um bando de gado dentro e o rebocador funcionou, o gado abriu a

134 Relato de Joselito. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/1/2002.

128

boca, berrando. Parece que o gado conheceu que ia viajano. Chorou eu, chorou ele [o cunhado] e mais outos que inha junto.

Além dos vapores ou “gaiolas”, muitas famílias viajaram em ônibus especialmente

contratados pela CHESF. Elas eram divididas pela “equipe social” em “levas”. A primeira

leva partiu em 28 de março de 1976, saindo do povoado de Intãs. A propósito:

À primeira vista, o povoado de Intãs, nas margens do São Francisco, parece que foi bombardeado. As ruas de barro batido estão esburacadas, as casas destruídas e seus últimos habitantes excessivamente concentrados na tarefa de arrumar as malas e procurar o gado disperso pela caatinga para partir o mais rápido possível. Intãs, a 120 km de Casa Nova, será um dos primeiros povoados a desaparecer submersos pelas águas do São Francisco quando a barragem de Sobradinho fechar as comportas em fevereiro de 1977.

Sua população, ao contrário da maioria dos habitantes da futura bacia de inundação de Sobradinho, se revela bastante otimista e se manifesta maciçamente favorável a ir viver no projeto de colonização do Vale do Rio Corrente em Bom Jesus da Lapa. Na última Segunda-feira, as primeiras 30 famílias subiram o rio no desconfortável vapor São Salvador, levando baús velhos, camas, rádios de pilhas e outros pertences, mais 277 animais. A emoção geral no momento da partida foi traduzida numa poesia da mulher do principal comerciante local, Rosalina Borges, de 45 anos, que numa linguagem de Cordel condenou a tristeza:

No entanto, havia resignação e esperança:

Não sei pra que tanto choro Todos têm que viajar A hora já está chegada ninguém pode mais ficar Uns que ficam também vão E lá vão se encontrar.

E fez as despedidas em nome dos 900 habitantes de Intãs:

Aqui vou terminar Dando adeus a meu lugar Vamos embora pra agrovila Movimento encontrar Na Intãzinha boa nunca mais eu vou voltar” (O Globo, 4/4/1976).

129

Ao contrário da animação registrada pela reportagem de O Globo em Intãs, nos demais

povoados pairava no “ar” um clima de relutância. Mesmo na hora da partida, registraram-se

casos de desistência, fato que exigia da equipe social medidas enérgicas. Em relação a esse

aspecto, João Saturnino é bastante claro: “A população partia para Serra do Ramalho

empurrada.”

O aposentado Wandilson135 conta fato bastante significativo do clima em que se deu a

partida para Serra do Ramalho. Em uma das “levas”, composta de cinco ônibus, ia um rapaz,

seu ex-agregado. Assim que o ônibus entrou na sede do município, o rapaz se jogou da janela

do veículo e correu em direção ao mato136. Nesse momento, houve tumulto no ônibus e

muitos passageiros quiseram desistir. A equipe responsável pela “leva” recorreu a seus

préstimos para acalmar os ânimos e ele acabou se tornando uma espécie de mediador.

Solicitado pela CHESF, acompanhou a “leva” até Petrolina. Os fatos rememorados por

Wandilson devem ser registrados porque expressam com clareza os descompassos existentes

entre indivíduos tão culturalmente diferentes.

A “leva” chegou a Petrolina no horário do almoço. A equipe social havia contratado um

restaurante especialmente para servir comida aos deslocados. Assim que viram os alimentos,

eles recusaram.

Não bastasse o ambiente diferente e requintado para os padrões dos beraderos, os

alimentos eram estranhos para eles; não faziam parte de seus cardápios. A equipe social não

entendeu a razão da recusa e ele, Wandilson, mais uma vez, assumiu o papel de mediador.

Disse que subiu numa cadeira e fez um discurso. Falou que eles estavam certos, que a comida

era uma “porcaria” e que o restaurante iria providenciar outros “de comer”. Afirma também

que houve um grande corre-corre na cidade para arranjar arroz, feijão, farinha e “carne dura”

ou peixe para aquele número de pessoas, mas que ao final todos comeram e partiram menos

tensos.

O fato revela que, a todo o momento e em vários campos, as tensões entre técnicos e os

deslocados afloravam, evidenciando estranhamentos culturais que sempre marcaram as

relações entre grupos urbanos e rurais no Brasil. A história do Brasil é rica em evidências de

tais fatos. A propósito:

135 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002. Essa entrevista foi registrada em caderno de campo. 136 Aconteceram casos de resistência ainda mais drásticos: “Quem matou Zé foi a tristeza. Com o passar dos dias ele ia ficando cada vez mais triste, sempre repetindo aquela bobagem que ele morria mais num vinha para a cidade e eu sempre dizendo: Zé, num diz besteira. Aí, quando a água já estava perto de nossa roça, já na véspera de a gente se mudar, ele tomou veneno e morreu. Zé era homem de palavra (...)”. Tibério Canuto, O Desespero de quem não sabe viver longe do rio, Jornal da Bahia, Salvador, 17/3/1977, p. 5.

130

O certo é que, historicamente, a relação do sertanejo com os poderes públicos são marcadas por tensões. Fazem parte da tradição escravista brasileira a eterna vigilância e a punição exemplar para com os pobres. O braço forte do Estado sempre se fez presente nas frentes de serviço, quando legiões de sertanejos se alistavam no DNOCS para não sucumbir à fome. (Braga, 2003, p. 64) 137

No que se refere apenas ao campo gastronômico, cito aqui a experiência de Fordlândia.

Encravadas na Amazônia, Belterra e Fordlândia eram empreendimentos norte-americanos

modelos para a região. Os funcionários tinham salários garantidos e confortos até então

impensáveis na Amazônia, em meados de 1930. No entanto, os peões ali protagonizaram um

quebra-quebra que ficou conhecido como a “Rebelião de Fordlândia”. Com graça e humor,

Vianna Moog relatou que a rebelião parecia tratar de algo pessoal contra o marinheiro

Popeye, pois, ao invés de gritarem “abaixo Mr. Ford”, os peões rebeldes bradavam: “Abaixo

o espinafre. Chega de Espinafre”. Continuando, Moog escreveu:

O quebra-quebra durante a noite ajudou a serená-los. No dia seguinte, à chegada do destacamento militar de Belém, é que se ficou sabendo do que se tratava. Os caboclos estavam cheios de espinafre cozido e de comida bem vitaminada; nem podiam mais olhar para espinafre. Quanto a cornflakles, nem era bom falar. Eles queriam carne sêca e de vez em quando uma feijoada. Então um vivente não tem direito de vez em quando a uma boa feijoada com parati? E não tem direito a uma bebedeirazinha de cachaça. Assim já era demais. Enough is enough (1966, p. 25).

Não fosse a mediação do escrivão, a resistência dos beraderos deslocados, em relação à

alimentação oferecida pela CHESF em Petrolina, poderia ter se transformado em quebra-

quebra de conseqüências imprevisíveis. Temendo que o desencontro se repetisse a equipe

social da CHESF, nas demais paradas, se esmerou em atender o gosto alimentar da população

e problemas não foram mais registrados.

Embora se mostrassem esperançosos em relação ao futuro em Serra do Ramalho, a

maioria dos cadastrados relutava em partir. Afinal, tudo os prendia à terra natal. Assim, a

iminência da viagem criava tensão e doenças repentinas. D. Adalgiza conta que partiu de Pau-

137 O massacre de Canudos perpetrado pelas forças militares, em 1897, talvez seja o caso mais conhecido.

131

a-Pique, em 1976, bastante doente. “Eu estava boa e de repente caí de cama”. O esposo, João

Emiliano, fala sobre o estado da esposa durante a partida:

Quintiliano — Eu cheguei lá na praça, tava dois ônibus assim. O rapaz disse: Óh, pode pegar esse ônibus aí. Eu entrei com ela doente (com ênfase) ... sentou lá na rabeira do ônibus... tava lá. Eu tinha visto falar que abaixo de Deus a mandachuva era uma Dra. Fátima. Eu não conhecia essa. Me informaram.... Ela era uma senhora de idade. Uma cigana, você dê por vista uma cigana. Essa é quem manda em todos. O grito. Ali, quando eu cheguei ali, até tinha biritado ali. E vi aquela mulherão, fazer que nem Luiz Gonzaga, vi aquela mulher diferente. Falei pra ela: Por gentileza, a senhora é a dra. Fátima? Sou eu mesma. ‘Senhora pode... Não, eu falei pra ela assim...sabe o que acontece? É que eu vou aí com uma mulher muito doente...ela não vai muito bem, não. Sabe... uma viagem dessa... Ela disse: ‘Ela está aí no ônibus?’ ‘Está’. ‘Então vamos entrar. Falou com o Dr. Júlio: ‘Vamos entrar nesse ônibus aqui.’ Fiquei conversando com ela. Ela disse: ‘Olha, Júlio, você vá nesse ônibus, acompanhe essa senhora até Petrolina, em Petrolina, se não der pra seguir viagem, você interna ela, fica lá com o esposo dela e os filhos. Tudo lá. Aonde não der pra ela viajar tem que internar ela aí. Você vai se responsabilizar. D. Avelina — Tinha remédio. Tinha tudo. Quintiliano — Aí. Ela disse: ‘Era só isso moço?’ Eu disse: ‘Era só isso’. Aí ela falou: - ‘Pois, se a questão é essa... O Dr. vai aí. Qualquer coisa tem de perguntar à senhora como é que vai?

Por esse motivo, a partida das “levas” era cercada de cuidados e de atenção. Contudo,

chegando a Serra do Ramalho, os deslocados não eram recebidos com a mesma consideração.

Todos reclamaram dos prejuízos com a mudança. Os pertences, quando não eram extraviados,

chegavam avariados ou em mau estado. Francelino disse que teve enorme prejuízo na

mudança.

Peguei as coisa espaiada. Saco de farinha aberto; roupa num canto, panela em outro. Até um cachorro de estimação tinha sumido, fui pegar ele na Barra. Tava no vapor e peguei o bichinho em Barra. Abaixo de Bom Jesus da Lapa. 138

Todos têm queixa do INCRA em relação à mudança. Disseram que o órgão não

cuidou de seus pertences, nem se responsabilizou pelas perdas, redundando em enormes

prejuízos. Era o prenúncio do inferno.

138 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002.

132

E esse povo foi assim

Na região instalado,

Sem a assistência devida

Ou o necessário cuidado,

Gerando uma insegurança

Que não deu bom resultado

(Marcus Haurélio Fernandes Farias, Até onde nós iremos? s/d, p. 11)

133

CAPÍTULO III

DEPOIS DO REDIMUNHO – O DESENGANO

1 - O paraíso planejado...

Os “núcleos de reassentamento” localizados nas bordas do Lago de Sobradinho e o

Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho — foco de meu interesse — foram

concebidos pela empresa particular de engenharia e planejamento Hidroservice e implantadas

pelo INCRA, através de gerentes-executores139:

O projeto foi pensado de forma autoritária, imposto nas suas formas de aplicação de cima para baixo e executado sem nenhuma flexibilidade, segundo um modelo rígido. As sugestões populares foram quase todas rechaçadas. Esta concepção autoritária e rígida levou os agentes de execução a se desgastarem na fiscalização dos detalhes, sobrando tempo insuficiente para tarefas essenciais de incentivo e apoio à produção. A morosidade das decisões burocráticas, a minúcia das fiscalizações, desanimavam qualquer iniciativa. Do ponto de vista da questão fundiária, o colono, dono formal de sua terra, chegou, em vários casos a depender do técnico de forma mais estreita que um morador de seu patrão. Daí a queixa geral: É o ‘cativero’ (Duqué, 1984, p. 37).

A construção dos diferentes “núcleos” e do “Projeto Especial” se deu depois do início

das obras da Represa, quase em concomitância com o enchimento do lago (conforme visto no

capítulo II), trazendo aos expropriados insegurança e medo em relação ao futuro. O atraso das

obras do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho se deu porque uma das

empresas que perdera a concorrência recorreu da decisão.

O impasse do julgamento da concorrência causou, segundo afirma o INCRA, ‘uma série de problemas, como desentendimento entre o INCRA e a CHESF, a ingerência constante do BIRD pondo em dúvida a capacidade de gerenciamento do INCRA, o mais sério deles, o adiamento da transferência para março de 1976 (Cordeiro, 1982, p. 18).

139 Até a emancipação, em 1989, o Projeto Especial de Serra do Ramalho conheceu vários gerentes- executores e tudo indica que a ocupação do cargo deu ensejo a disputas políticas entre facções do grupo dominante.

134

Além de elaborar o Projeto, cabia à empresa fiscalizá-lo em todas as suas etapas. Da

sua elaboração participaram engenheiros civis e agrônomos. O projeto foi pensado nos

mínimos detalhes e, como veremos adiante, trazia algumas inovações. Na verdade, conforme

salienta Lídia Rebouças, por trás das inovações havia um projeto “civilizatório” que as

Companhias Hidrelétricas e os demais órgãos implementadores de políticas de

“desenvolvimento” julgaram necessário pôr em prática.

Numa perspectiva, vamos dizer assim, complementar a de Rebouças (2000),

Brancolina Ferreira defende que a implantação do Projeto de Colonização de Serra Ramalho

visava à reprodução da pequena produção mercantil.

Instalados em agrovilas e recebendo lotes de 20 ha de área, a população deveria passar de uma cultura exclusivamente de sobrevivência, a desenvolver um novo sistema de produção que seria o de comercialização [grifos do original]. Automaticamente passaria por um processo de assimilação, através da absorção de novos hábitos, costumes, valores, isto é, participação de um novo contexto de Organização Social ( Ferreira, 1980, p. 110).

Em geral, esses projetos “civilizatórios” se consubstanciaram numa organização

espacial que privilegiou o urbano e as relações de sociabilidade ali dominantes.

Eis portanto o projeto civilizatório: zonas exclusivas e homogêneas de atividade: a concentração da função de trabalho à função de moradia, projetada na agrovila; a instituição de um novo tipo de organização residencial e a imposição de um novo sistema de circulação de tráfego (Rebouças, 2000, p. 76)140.

Implantados de cima para baixo, esses projetos “civilizatórios” parecem querer fazer a

quadratura do círculo, constituindo-se, na maioria das vezes, num engodo, e quase sempre

trouxeram problemas aos “beneficiários”, sendo, em conseqüência, rejeitados no todo ou em

parte. No caso do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição à organização

espacial dada pela agrovila parece ter sido bastante contundente.

140 Explicitando um pouco mais, Lídia Rebouças afirma: “A concepção básica e original desses programas de reassentamento compreende um lote para o desenvolvimento de atividade econômica, moradia, sistema viário que permita a circulação para e por todos os lotes, uma cooperativa, escola, posto de saúde, cisterna de água e esgoto, eletrificação, capela e área de lazer. Esse modelo ideal. Contudo, é alterado em função das variáveis e imprevistos que vão surgindo ao longo da implantação do projeto.” Rebouças, op. cit., p. 71.

135

No discurso técnico, com o projeto “civilizatório” se pretendia a satisfação dos

“beneficiários” e a “elevação de sua condição de vida.”141 Desse modo, o projeto

proporcionaria aos reassentados tudo aquilo de que não dispunham nos seus antigos

povoados. Não é minha intenção neste trabalho duvidar da boa fé dos agentes governamentais

implementadores do Projeto, nem tampouco dos funcionários da empresa envolvida na sua

concepção e fiscalização. Pretendo apenas pôr em evidência alguns de seus aspectos,

reveladores das dissonâncias e dos descompassos entre riberinhos/beraderos e esses agentes,

claramente explicitados nas entrevistas. Aliás, essa realidade é por demais recorrente em

situações dessa natureza.

Certamente o alto índice de fracasso de esquemas de reassentamento em todo o mundo pode ser atribuído, em parte, às premissas essencialmente diferentes dos técnicos ditando aos relocados, cujo comportamento eles só compreendem parcialmente (Scudder, Apud Martins-Costa, 1989, p. 227).

O que caracterizava o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho? Por que

ele era especial? Para desempenhar seu papel de órgão gestor e implementador da política

fundiária do governo federal, o INCRA criou e desenvolveu projetos de diversas modalidades.

O Projeto de Colonização de Serra do Ramalho

tinha um caráter especial, distinto dos demais programas de colonização do INCRA, porque, sendo uma alternativa de realocar famílias que compulsoriamente deveriam sair da zona rural dos municípios a serem inundados, não levaria em consideração critérios de seleção comumente adotados pelo órgão, em outras ações. Não só não se estabeleceram critérios, como ainda foi promovido todo um trabalho de estímulo e motivação para que a população optasse por tal projeto, visto que esta se opunha à mudança (Machado, 1987, p. 57).

O Projeto foi criado, obedecendo a um plano de urbanismo-rural ancorado na divisão

lote/agrovila, que foi um fator dos mais ilustrativos dos descompassos entre os agentes

planejadores do Estado e os beraderos sanfranciscanos.

A criação de núcleos coloniais no Brasil remonta ao Império. Na República, várias

tentativas de ordenação do espaço rural foram empreendidas. Durante o período Vargas,

141 Entrevista de funcionário da Empresa Hidroservice que participou da elaboração e fiscalização do Projeto. A entrevista foi conceidida à autora em São Paulo, em 08/2001.

136

foram instaladas na Amazônia duas colônias agrícolas: a Colônia Agrícola Nacional do

Amazonas e a Colônia Agrícola Nacional do Pará (Cabrera, 1996, p. 104-105). Em São Paulo,

os núcleos coloniais instalados nas Fazendas Santa Helena (Marília), Capivari (Campinas) e

Bela Vista (Jaú) tornaram-se importantes referências no que diz respeito à tentativa de

organização espacial da pequena produção camponesa, pensada nos moldes capitalista.

Contudo, do que se pode depreender de entrevista colhida por Lídia Rebouças, a organização

espacial dada através de agrovilas sofreu influência do modelo adotado nas vilas militares do

Norte do Brasil.

Durante os governos militares, essa forma de organização espacial se consolidou e vem

sendo implantada em quase todos os assentamentos espalhados pelo país e em projetos da

CODEVASF e do DNOCS142. A despeito das críticas, sua adoção é justificada em virtude de

razões orçamentárias. Mas, seria injusto afirmar que a escolha desse tipo de organização

espacial se dá tão somente por causa de razões econômicas. Do contrário, como explicar o

fato de lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra — MST defenderem

esse tipo de organização143?

Em linhas gerais, os 257 mil hectares desapropriados pelo INCRA144 — formando uma

espécie de trapézio — foram divididos em quatro eixos latitudinais; a cada 6 ou 7 quilômetros

construiu-se uma agrovila. O Eixo 1 abriga as agrovilas: 1, 3, 5, 7 e 9 . O Eixo 2, as: 2, 4, 6, 8,

10, 11, 21 e 22. O Eixo 3 abriga as de números: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18. O Eixo 4, as: 19 e

20. Ainda no eixo 4, mas encravada no sopé do lado oriental da Serra, encontra-se a agrovila

23. As Agrovilas 15, 16 e 23 estão localizadas no município de Carinhanha.

Pelo projeto original, somente 16 agrovilas seriam construídas. A construção das demais

agrovilas se deu, segundo técnicos do INCRA, porque, durante o processo de desapropriação,

o órgão descobriu que uma grande parcela das terras localizadas na área que abrigaria o

núcleo de colonização, não era titulada, tornando-se, portanto, prioritária para efeito de

reforma agrária. Diante desse quadro, o INCRA passou a utilizar o Projeto Serra do Ramalho

como válvula de escape dos problemas fundiários de vários pontos do país, como veremos

adiante.

Em relatório, o INCRA admitiu:

142 Mais detalhes sobre Projetos do DNOCS, vide Ana Maria de Fátima Afonso Braga, Tradição camponesa e modernização. Experiências e memória dos colonos do perímetro irrigado de Morada Nova – CE, 2003. 143 Em entrevista à revista Caros Amigos, de maio de 2000, João Pedro Stédile defende a construção de agrovilas nos assentametnos. 144 Decreto n. 75.658, de 25 de abril de 1975. Relatório da Comissão Pastoral da Terra de Bom Jesus da Lapa sobre o PEC - Serra do Ramalho. Bom Jesus da Lapa, 16 de novembro de 1994.

137

No decorrer de implantação da organização fundiária, o número de loteamentos rurais e urbanos foi ampliado, para dar condições de assentamento a novos beneficiários da Reforma Agrária, que vinha a procura da nova Fronteira Agrícola. A partir de 1987, a Administração do PEC/SR perdeu o controle das ocupações, por falta da consolidação dos trabalhos topográficos inclusive das áreas de reservas técnicas. (Relatório INCRA, 1994, p. 12).

De acordo com o plano original, as agrovilas seriam divididas em três tipos. As terras

desapropriadas, porém não ocupadas pelo Projeto formavam a chamada área de expansão ou

reserva técnica (localizadas a sudeste da Serra). Haveria um núcleo principal, o núcleo básico

de primeira categoria e o núcleo básico de segunda categoria.

138

Planta 2

Agrovilas Serra do Ramalho

(intercalar Xerox)

139

O núcleo principal seria a sede do Projeto, onde se concentrariam as residências da maior parte dos funcionários, toda a parte administrativa do Projeto, algumas casas de colonos, além de ser um centro agro-industrial. O núcleo básico de primeira categoria teria de especial um ginásio, uma unidade sanitária e um edifício de administração. E o núcleo básico de segunda categoria seria essencialmente residencial, com escola e um posto de saúde (Cordeiro, 1982, p. 21).

A divisão dos lotes obedecia ao módulo rural da região, ou seja, vinte e cinco hectares,

sendo 20 nas glebas e cinco na área das reservas. Somente os terrenos irregulares, pouco

férteis, alagadiços e com afloramentos rochosos possuíam extensão acima do padrão. As áreas

impróprias para agricultura seriam, obrigatoriamente, transformadas em áreas de reserva. A

área da reserva coletiva era proporcional à do lote. Dos 20 hectares, os reassentados

receberam dois hectares de terreno desmatados145.

Em princípios de 1980, os habitantes de Canabrava, num processo de resistência que

será relatado mais adiante, receberam lote acima do módulo rural; em média 70 hectares para

cada um. Por isso, até hoje esse povoado é conhecido como “A Setenta”.

Além do lote rural — onde se concentraria a atividade produtiva —, cada família

recebeu um lote urbano com uma casa na agrovila.

No plano de construção, além de concentrar as casas dos colonos, as agrovilas

abrigariam o comércio, a loja da Companhia Baiana de Alimentos (COBAL), os serviços

públicos, comunitários e religiosos. Em relação aos equipamentos comunitários, o Projeto

implantou duas novidades: a construção de lavanderias e refeitórios públicos em todas as

agrovilas. Mais tarde, os equipamentos perderam a sua função e, ao que parece, foram,

paulatinamente, abandonados pelos moradores. Das edificações restam apenas as ruínas.

Ainda de acordo com a planta original, que, diga-se de passagem, sofreu várias

modificações, além de abrigar todos esses serviços, a Agrovila 9 sediaria a administração do

projeto, um parque agro-industrial e a sede da Cooperativa Integral de Reforma Agrária

(CIRA) Por possuir infra-estrutura administrativa, a aludida agrovila, quando da criação do

município de Serra do Ramalho, tornou-se sua sede.

Pelo projeto, cada agrovila ocupava área de aproximadamente quatro lotes,

correspondendo a um núcleo habitacional com atividades urbanas, possuindo,

145 A esse respeito os números são controversos. Alguns entrevistados falam em três e outros falam em dois. De acordo com documento da Comissão Pastoral da Terra, a promessa era de dois hectares derrubados, mas no folheto Vá viver com sua família nas Agrovilas em Bom Jesus da Lapa há referência a 6 hectares (s/d, p. 6).

140

aproximadamente, duzentas e cinqüenta casas, dispostas em ruas paralelas e perpendiculares

ao eixo de sua localização. Todas as ruas guardam distância razoável umas das outras. Entre

uma rua e outra, existem áreas coletivas que podem ser ocupadas por um campo de futebol,

uma igreja, uma escola ou árvores de grande porte. Nas áreas não construídas, pastam a

pequena criação e os animais de tração dos habitantes, cujos lotes ficam muito distantes da

agrovila.

Para o abastecimento dos colonos, em todas as agrovilas, seriam perfurados poços semi-

artesianos. A concentração da água nas agrovilas deu-lhe funcionalidade e provocaria a

fixação dos relocados. Em algumas agrovilas existem aguadas, utilizadas para matar a sede da

alimária e banhar os animais de tração.

As casas foram construídas de blocos largos, meio acinzentados, e possuíam um estilo

padronizado com três cômodos: uma sala e dois quartos. Além disso, havia uma “puxada”,

que, mais tarde seria transformada em cozinha. Quase todas as casas foram pintadas de cal

branca. Em geral, o banheiro era separado da casa. Além do banheiro, o quintal abrigava (ou

abriga) também a caixa d’água, o tanque de lavar roupa, o galinheiro, a pocilga e árvores, tais

como pinheira, mangueira, laranjeira, mamoeiro, cabaceira, etc. Os moradores oriundos da

região de Sobradinho não consideram a área dos lotes urbanos extensa o bastante para abrigar

a casa e o quintal, nos moldes em que estavam acostumados nas barrancas do Rio São

Francisco.

De acordo com o projeto original, o modelo lote-agrovila seria dominante, não sendo

permitida nenhuma outra forma de organização espacial. Os grandes proprietários situados na

área foram indenizados; os pequenos, além da indenização em dinheiro (da terra e das

benfeitorias), receberam, depois de idas e vindas, lotes e casas nas agrovilas determinadas

pelo INCRA, uma vez que seus povoados seriam desativados. Os posseiros e agregados que

atenderam aos critérios estabelecidos pelo INCRA receberam indenizações pelas benfeitorias

e, igualmente, um lote, bem como casa na agrovila.

A desapropriação e a padronização dos lotes geraram descontentamento entre os

pequenos proprietários e posseiros que viviam em Serra do Ramalho. A maioria alegava, em

tom de queixa, que os beneficiados com o projeto foram os “rendeiros” e “agregados”. A

planta das agrovilas e a presença do INCRA, através dos gerentes-executores, geravam

temores entre os “nativos”, como veremos a seguir.

141

No que tange à organização espacial, o Projeto apresentava outra novidade: em vez de

cada lote preservar um certo percentual de mata, “adotou-se um conceito inovador, que dava

como coletiva a área de reserva” (Bursztyn, 1988, p. 30).

Além da fazenda coletiva, havia duas grandes áreas de reserva (uma era coletiva),

quatro “reservas extrativistas”, localizadas às margens do Rio São Francisco e inúmeras

pequenas reservas situadas nos interstícios das agrovilas (pedreiras, lagoas, alagadiços, etc.).

As áreas de propriedade coletiva tinham duas finalidades: a preservação ambiental e a

criação extensiva, uma vez que a prática da pecuária extensiva era desaconselhada. A

chamada Reserva de Expansão estava localizada no município de Carinhanha e a chamada

Fazenda CSB (área destinada à criação extensiva dos primeiros reassentados) ficava situada

em Bom Jesus da Lapa (próxima à BR 349/Brasília-Ilhéus).

Em meados de 1980, as reservas e a fazenda coletiva foram ocupadas por indivíduos das

mais variadas procedências. Na Reserva de Expansão — originalmente reserva coletiva —,

localizada entre os municípios de Carinhanha e Serra do Ramalho, poderiam ser identificados,

além dos antigos desapropriados da área, grupos de sem-terra provenientes de municípios do

entorno (571 famílias) e, inclusive, especuladores, conforme denúncia do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Carinhanha146. As famílias sem-terra viviam nas mais precárias

condições, reivindicando dos órgãos competentes a regularização da permanência na área. A

propósito, cito duas de suas reivindicações:

1- Regularização de nossa permanência na área, com a divisão, mas breve possível, dos lotes. Neste sertão seco, sem irrigação, não vemos possibilidade de vida digna sem um mínimo de 70 hectares de terra para cada família. Solicitamos, portanto, reassentamento rápido em lotes de 70 has, semelhantemente à vizinha área de Canabrava (Ver Ofício n. 734/MEAF/0586/2, onde fala do Projeto de Assentamento Rápido ‘Canabrava’ — resolução do Conselho Diretor do INCRA n. 251, de 13.09.820). 2- Como no referido PEC/SR de Canabrava, dispensamos a construção de casas (não queremos Agrovilas), mas reivindicamos as estruturas mínimas para a nossa vida: estradas e vicinais, poços artesianos, escolas, posto de saúde e COBAL, além de área reservada

146 Vejamos: “Alertamos para a presença de proprietários e até de fazendeiros na área, alguns fazendo desmatamento indiscriminado ou especulando com os terrenos, enganando companheiros ingênuos com vendas de lotes e exploração. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Comissão Representativa da Reserva possuem o levantamento deste pessoal não necessitado, presente na área, para negociações ou por ambição.” Documento redigido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha e dirigido ao MIRAD no Estado da Bahia. Carinhanha, 14/6/1988, p. 2.

142

a lugares de Culto e diversões, em três núcleos habitacionais de seis hectares cada um, situados em locais escolhidos pela comissão dos Moradores da reserva, ouvidos os interessados [grifos do original] (Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha, 1988, p. 1)

A área da antiga fazenda coletiva (aproximadamente 16.000 hectares) e a Reserva Oeste

também foram ocupadas, em meados de 1980, por sem-terras oriundos da região. Uma

parcela da Reserva Oeste é disputada por um fazendeiro que se diz proprietário de parte da

área e uma família também da região (Relatório do INCRA, 1998, p. 14-15).

Não dispondo de meios e de vontade política para coibir a ocupação, não restou ao

INCRA outra alternativa senão aceitar as evidências.147 O parcelamento da Reserva de

Expansão (área coletiva), com certeza, poderá criar, futuramente, foco de tensões entre os

posseiros da região e os primeiros reassentados que receberam o título provisório com a

parcela adstrita à reserva. Em fins de 1980, a CPT levantava a questão, sugerindo ao INCRA

indenizar os “colonos” que perderam a área adstrita à reserva coletiva (Santos, 1994, p. 1).

Em termos administrativos, o Projeto trazia também uma inovação. Sua administração

estava a cargo do gerente-executor, nomeado pelo INCRA. Ao executor cabia coordenar as

atividades de todas as instituições que atuariam na área, tais como Speritendência de Combate

à Malária (SUCAM), Fundação de Serviço de Saúde Pública (FSESP), COBAL, Emprea de

Terra (EMATER-BA), Fumdação Nacional de Assistência ao Trabalhador Rural

(FUNRURAL), etc. Também cabia ao gerente-executor escolher entre os técnicos agrícolas

ou sociólogos um representante, espécie de subprefeito, que faria a mediação entre os

reassentados, o gerente-executor e os prefeitos municipais.

Tudo indica que a inovação não vingou e, se vingou, durou pouco tempo. A maioria dos

entrevistados que vive ou viveu em Serra do Ramalho não se recorda da existência de

subprefeitos no Projeto. Apenas um entrevistado fez menção à existência de representante do

executor na agrovila em que morava. Em tom de reprovação, Alberico disse que o papel

desempenhado por esse indivíduo nada tinha a ver com as atribuições de um subprefeito; em

vez de representar os moradores da agrovila, levando ao gerente-executor suas demandas e

reivindicações, este era “dedo-duro” e “capanga” dos funcionários do INCRA. Morador em

Casa Nova, Alberico tem péssimas lembranças de Serra do Ramalho. Ele diz que saiu da

147 Tudo indica que o descontrole sobre a área do projeto se tornou mais pronunciado logo após a controversa extinção do INCRA em 1987.

143

Agrovila 5, em princípios de 1980, fugitivo porque o “homem do executor” passou a provocá-

lo e ameaçá-lo de morte, depois que liderou reclamações sobre a falta d’água na agrovila148.

Durante a implantação das primeiras agrovilas, a experiência das sub-prefeituras

funcionou149 e tudo indica que subprefeitos e funcionários ligados ao INCRA cometeram

exorbitâncias. A propósito:

[...] nota-se um grande controle do Incra sobre a vida dos colonos: Cada agrovila é administrada por um “prefeitinho”, funcionário de nível técnico que resolve os problemas da comunidade, chegando a baixar normas de comportamento: nas agrovilas é taxativamente proibida a entrada e o uso de bebida alcoólica” (Santana, 31/01/1977).

Um ano depois, em abaixo-assinado dirigido ao presidente da República Ernesto

Geisel, reassentados nas agrovilas reclamam, entre outras coisas, do pouco caso com que

eram tratados pelos “Prefeitos das Agrovilas”.150

A precariedade da vida em Serra do Ramalho, nos primeiros anos do Projeto, colocou

os reassentados numa posição de total dependência em relação ao executor, criando margem

para as práticas clientelísticas e de mandonismo. As arbitrariedades e as práticas

clientelísticas, adotadas pela maioria dos executores, abriram precedentes para que

funcionários do INCRA ou de prestadoras de serviços se arvorassem em “autoridades”,

praticando desmandos. No abaixo-assinado acima referido, os reassentados, além de

reclamarem de questões técnicas relativas ao projeto, denunciavam, entre outras

arbitrariedades, cerceamento de acesso às autoridades e subtração de documentos. Não é

despropositado acreditar que as exorbitâncias tenham sido as principais responsáveis pelos

primeiros casos de violência que têm marcado a história de Serra do Ramalho, desde sua

criação até a atualidade151.

Para manutenção das agrovilas, a CHESF e o INCRA dividiram atribuições. À primeira

cabia a abertura de estradas, a instalação da rede de energia elétrica e o abastecimento d’água.

Ao segundo cabia a implantação e execução do Projeto.

148Orindo, técnico agrícola que trabalhou no INCRA em princípios da década de 1980, reconhece que houve casos de violências, mas nega envolvimento de funcionários do órgão148. Entrevista concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 6/12/2002 e 7/12/2002. 149 Convém recuperar a matéria do Boletim Caminhar Juntos, publicação da Diocese de Juazeiro. Ela fez referência a um “prefeito para frente”. Tendo em vista que a Agrovila 5 - sede do Projeto à época da visitação da comitiva do bispo - pertencia ao município de Bom Jesus da Lapa não poderia ter um prefeito, mas, sim, um subprefeito. 150O abaixo-assinado foi enviado de Juazeiro, em 14/02/1978 e se encontra arquivada na Biblioteca Diocesana de Juazeiro.

144

O Projeto trazia outra particularidade. Embora formalmente vinculadas ao município de

Bom Jesus da Lapa, as agrovilas tinham, através do gerente-executor, sua própria

administração. Para não ferir os interesses das elites políticas do município, as atribuições da

Prefeitura Municipal e do gerente-executor foram norteadas pelo princípio da

complementariedade. A título de exemplo: as escolas eram mantidas pelo INCRA, mas os

salários dos professores eram pagos pela Prefeitura, mediante repasse de verba do órgão.

Embora tenha informações de que o município de Bom Jesus da Lapa teria recebido

aporte de recursos para dar sustentação ao Projeto, os entrevistados pouco se recordam da

atuação da Prefeitura Municipal na área. Muitos dos convênios firmados entre a Prefeitura e o

INCRA, visando oferecer à população serviços básicos, tais como saúde e educação, não

foram cumpridos integralmente, sendo razão de reclamação dos entrevistados. Em meados de

1980, o atraso no pagamento dos salários dos professores era uma constante, sendo

denunciado pelo jornal O posseiro, de Santa Maria da Vitória.152

Embora o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho tivesse caráter especial, os

deslocados compulsórios não foram dispensados do pagamento das “benfeitorias” usufruídas.

De acordo com o Projeto, em cinco anos, os “beneficiários” receberiam o título provisório e o

carnê de pagamento. O valor total dos “benefícios” seria pago em parcela única ou num prazo

de dez anos. Quitado o carnê, o “beneficiário” receberia o título definitivo. Segundo

amostragem realizada junto a onze das vinte e três agrovilas de Serra do Ramalho pela CPT,

em 1994, sessenta e um por cento dos reassentados não possuíam título definitivo do lote

(Relatório da CPT, 1994, p. 3).

A venda do lote somente seria permitida mediante o atendimento de certos requisitos. O

proprietário só poderia vender o lote quando pagasse integralmente o valor do débito ao

INCRA, quando o registro do título contasse mais de cinco anos e quando o projeto fosse

emancipado. Do contrário, o lote voltaria às mãos do INCRA e o “colono” teria direito

somente à indenização das benfeitorias que tivesse feito e à restituição da quantia paga ao

órgão, sem juros e sem correção monetária. Tendo isso em vista, muitos dos que desistiram do

projeto, não procuravam o órgão gestor, partindo de mãos abanando.

151 Mais detalhes, vide as matérias: Serra do Ramalho vive clima de terror, A Tarde, Salvador, 24/08/2001, p. 5 e Comissão apura crimes em Serra do Ramalho, por Levi Vasconcelos, A Tarde, Salvador, 25/08/2001, p. 5.

145

2 - O inferno vivido...

As primeiras famílias chegaram ao Projeto Especial de Colonização de Serra do

Ramalho em março de 1976. Em julho do mesmo ano chegou a segunda leva. Nos meses

subseqüentes chegaram várias outras levas, de modo que, ao final de 1978, estavam instaladas

em Serra do Ramalho 1.400 famílias das 1.600 cadastradas (Relatório INCRA, 1994, p. 20)153.

As primeiras eram provenientes do povoado de Intãs e foram instaladas na Agrovila 5. Depois

chegaram várias famílias oriundas de Bem-Bom, Pau-a-Pique, Barra da Cruz e dos povoados

dos demais municípios que tiveram suas terras submersas pela Represa. “O impacto sentido

pelas primeiras famílias vindas de Sobradinho foi enorme. Muito do que havia sido prometido

não foi encontrado por ocasião da chegada no PEC-SR”. (Bursztyn, 1988, p. 24)

A propósito, disse Quitiliano:

Chegou aí. Eu vi o ambiente. Eu disse: isso aqui não dá pra mim, não. Isso aqui é divagar. Quando o ônibus chegou na cantina, duas horas da tarde, um cunhado meu, irmão dela [apontando para a esposa]: — Ei, meu cunhado, o que você tá achano? — (Digo) Meu cunhado, não tou achando nada. — Ei, rapaz, não diga uma coisa dessas, você bem não chega... — (Digo) Não tou achando nada. Rapaz, não tou gostando não.154

Muitos entrevistados expressaram sentimentos semelhantes aos externados por

Quintiliano. Parece que a decepção era a tônica entre as pessoas que se instalaram em Serra

do Ramalho nos seus primeiros dias. Contudo, ela atrita com a opinião das “equipes de

visitação” e também com a impressão da comitiva de D. José Rodrigues de Souza. Aqui

talvez seja oportuno lembrar opinião de Braga, qual seja, “a memória tem a capacidade de

atualizar os acontecimentos a partir de alguns pontos de referência ao indivíduo, que, mesmo

não sendo o caso, modificam-se ao longo do tempo”. (Braga, 2003, p.78).

Quer tenha se modificado ao longo do tempo ou não, a memória dos entrevistados em

relação ao projeto registra que ele foi cercado de expectativas não cumpridas. Assim, os

152 O posseiro, Santa Maria da Vitória, setembro de 1983. 153 Ambos os dados são controversos. 154 Relato de Quintiliano.

146

choques entre os reassentados e as autoridades responsáveis pela gerência e execução do

Projeto tornaram-se inevitáveis. Várias foram as razões para os desentendimentos e atritos.

A desorganização do modo de vida nos anos que antecederam a partida causou

prejuízos significativos à população deslocada. A indenização mal deu para suprir as

necessidades básicas durante uns poucos meses. Assim, muitos vieram de seus povoados sem

recursos para garantir a sobrevivência. Contrariando as promessas, o INCRA franqueou o

acesso ao refeitório somente nos três primeiros dias subseqüentes à chegada. Depois disso, os

deslocados tiveram que sobreviver às suas custas. Os indivíduos que chegaram nas primeiras

levas sofreram muitas privações.

No Oeste baiano, como na região de Sobradinho, o período chuvoso compreende os

meses de outubro/novembro a fevereiro/março. Assim, a chegada dos deslocados coincidiu

com o fim das chuvas, portanto não havia condições de “tocar roça”. Passaram a sobreviver

com os parcos recursos que trouxeram ou com o auxilio que recebiam dos parentes que se

encontravam em São Paulo. Alguns passaram a vender a força de trabalho nos municípios de

Bom Jesus da Lapa e Santa Maria da Vitória; outros partiram para São Paulo e os mais

depauperados recorreram, segundo Alberico, à mendicância. “O pessoal chegava — me dá

uma colher de café pra mim. Nós começamos a mendingar lá na agrovilia.”155 Alvino também

lembrou das dificuldades que enfrentou nas Agrovilas. Disse que, depois que acabaram os

parcos recursos trazidos de Casa Nova, sobrevivia da prática da pesca nas lagoas situadas

próximas às margens do Rio São Francisco (em disputa com os “nativos”) e da caça. Para

finalizar, afirma, mesclando humor e indignação: “Tomei raiva da Agrovila. Não gosto nem

de lembrar...(...) Adeus, agrovila ingrata, de tu vou embora, de tu não tenho saudade; eu

cheguei gordo e saí magro, cheguei vestido e saí nu.” 156

Os deslocados que chegaram a partir de julho, segundo consta, contaram com auxílio da

CHESF157. Devido à demora na entrega de suas casas pela construtora encarregada das obras,

permaneceram em seus povoados muito além do prazo fixado pela “equipe social” para seu

deslocamento. Por isso, solicitaram ao órgão ajuda de custo. A empresa se comprometeu a

pagar a ajuda por um período de dez meses. Desse modo, quando chegaram à Serra do

155 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002. 156 Relato de Alvino. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/1/2002. 157 A informação quanto ao pagamento da verba de manutenção pela CHESF é controversa. Funcionários do INCRA afirmam que ela foi extensiva a todos os reassentados. Alguns entrevistados afirmam que nunca receberam tal verba, outros afirmam que ela só foi paga por pouco meses. Matéria de O Globo confirma o pagamento de um “salário auxílio” no valor de 564,00 (provavelmente cruzeiros), mas não esclarece se todos

147

Ramalho, ainda recebiam um “salário auxílio”. Sem dar maiores explicações, a CHESF cortou

o auxílio aos deslocados no oitavo mês. Esse fato gerou descontentamento entre os

“beneficiários”. Por outro lado, os que não recebiam a ajuda de custo se sentiram injustiçados

e passaram a reivindicá-la também.

2.1 - Vida de catingueiro

Acresce que 1976 foi um ano particularmente seco. A estiagem impressionou a

população recém-chegada. “Tava tudo seco. Tudo isturricado. A mata segurava um

pouquinho. A seca era braba e cadê o rio?158 ” Nos povoados de onde vieram, a seca era

inclemente, mas nunca passaram necessidades porque o rio amenizava os seus efeitos. Em

Serra do Ramalho, o rio estava longe, encontrava-se muito mais distante do que quiseram

acreditar. Pela primeira vez essa população teve a noção do que era viver na catinga.

Nas palavras de Machado: “O beiradeiro viu-se, da noite para o dia, transformado em

caatingueiro, locado em terras estranhas e que não eram suas, sem as condições de

readaptação humana e material para lidar com esta nova realidade.” (1987, p. 50).

Pela primeira vez sofreram quebra de produção (inicialmente pela seca, em seguida,

pela inundação) e só não se tornaram inadimplentes, já nos primeiros meses, porque o INCRA

adotou medida, classificada por Brancolina Ferreira como pouco “ortodoxa”, qual seja,

“pagou ao Banco do Brasil e lançou o débito às respectivas contas dos parceleiros,

incorporando esse montante ao valor do lote, a ser pago pelo colono à época da titulação”

(1980, p. 114)159.

A distância do rio incomodava bastante os deslocados de Sobradinho. Não custa

lembrar que as agrovilas mais próximas do Rio são as situadas no Eixo 1, distantes

aproximadamente sete quilômetros. Impossibilitados de continuarem exercendo a atividade

pesqueira, os beraderos que em suas comunidades viviam basicamente da pesca se sentiram

frustrados e ludibriados. Muitos deram aos instrumentos de pesca finalidades outras, por

tinham direito a ela. João Santana, Agrovilas: a mudança para terras mais férteis, O Globo, Rio de Janeiro, 31/01/1977, p. 6. 158 Relato de Quintiliano. 159 Demonstrando total insensibilidade em relação ao sofrimento da população, o engenheiro agrônomo, chefe da equipe técnica do INCRA em Serra do Ramalho, declarou à imprensa: -“Eram sementes de baixa qualidade, trazidas pelos agricultores e plantadas sem cuidado. A frustração da safra de certa forma foi boa porque permitiu o aprendizado de novas técnicas, como por exemplo, a aplicação de inseticidas para debelar a praga da lagarta, coisa que eles nunca haviam feito antes.” Santana, op. cit..

148

exemplo, as canoas viraram depósitos de grãos e as redes de pesca foram aproveitadas para

fazer galinheiros160.

Além do mais, as agrovilas não contavam — a maioria não conta até hoje — com “água

doce”, de que tanto reclamam os entrevistados. Embora muitos reconheçam ter permanecido

nas agrovilas pelo fato de ali haver água, a qualidade do líquido era e é considerada duvidosa.

Todos reclamam da água: água “saloba”. “Pesada”. Tão pesada que, segundo entrevistas,

forma no fundo das vasilhas uma espécie de crosta branca. “ Essa água matou muita gente,

criancinha e adulto. Quando cheguemos, houve uma mortandade danada.”161

Não bastasse a péssima qualidade, era comum faltar água. Às vezes, os poços não

tinham vazão para suprir as necessidades da população; outras vezes, eram as bombas que

apresentavam defeito. Os responsáveis pela manutenção levavam dias e, às vezes, meses para

tomarem providências e as tensões eram latentes. Muitas vezes, as queixas redundavam em

discussões e desavenças. Alvino conta que, por causa da falta de água, várias vezes, “partiu

para briga” e que essa só não se consumava porque os funcionários do INCRA se escondiam,

temendo o pior.

O abastecimento de água era tão precário nas agrovilas, que ali aconteceram fatos

inusitados. Citando:

O problema de água é tão grave que na agrovila 11, em 1979, uma criança morreu entalada com farinha, porque a mãe não conseguiu um copo de água para salvá-la. Nesse mesmo ano, em outra agrovila, uma mulher ficou tão desesperada pela falta de água, que chegou a tentar o suicídio, jogou álcool em todo o corpo e colocou fogo, ficando em estado grave, e só depois de muito tempo se recuperou. (Cordeiro, 1982, p. 48).

Nos dias em que a água corria nos chafarizes eram comuns longas filas constituídas por

mulheres e crianças, carregando baldes confeccionados a partir de pneus usados e latas de

flandres. As mulheres levantavam cedo para apanhar a água e muitas vezes nem todas eram

atendidas. “As vez a gente ficava muntcho tempo na fila. Era uma bicha danada e na metade

faltava água. A água era pouca.”162 Para não morrerem de sede, os reassentados recorriam às

160 Os galinheiros cobertos com redes foram estampados na matéria Colonos baianos ainda não se adaptaram às agrovilas, de Pedro Formigli, O Estado de S. Paulo, junho de 1976, p. 42. 161 Relato de Eudelina. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/09/1999. 162 Idem.

149

aguadas situadas muito longe das agrovilas onde moravam ou compravam água em tonéis

provenientes da Lapa.

Assim, uma nova atividade surgiu em Serra do Ramalho: a venda de “água doce”,

apanhada nas lagoas ou aguadas próximas ao Velho Chico. Ainda hoje, a água chega em

vasilhames de plástico, sendo razoavelmente cara para os padrões locais, mas todos os

moradores exibem ao visitante a “água doce” que se contrapõe à “água salgada” sugada dos

poços tubulares ou semi-artesianos abertos pelo INCRA ou por eles próprios.

2.2 - Bairro Rural versus Agrovilas

Independentemente de sua motivação, o deslocamento compulsório sempre resulta na

perda de importantes referenciais espaciais e sociais dos atingidos, redundando na

desterritorialização, conceito caro à geografia, diga-se de passagem, e também aos novos

estudos de movimentos sociais.

De acordo com Rogério Hasbaert Costa,

o processo de desterritorialização pode ser tanto simbólico, com a destruição de símbolos, marcos históricos, identidades, quanto concreto, material-político e ou econômico, pela destruição de antigos laços/fronteiras econômico-políticos de integração” (1993, p. 16).

No caso específico dos expropriados de Sobradinho, todas as bases materiais, as

relações e os referenciais simbólicos nos quais estava assentado o modo de vida do beradero

sanfranciscano foram brutalmente destruídos, sinalizando um processo de desterritorialização

e desenraizamento bastante pronunciado e que, como veremos adiante, ainda hoje se faz

notar.

Quem era esse sujeito social? Essa é uma questão das mais importantes que pretendo

abordar aqui. Nos limites deste trabalho, alguns aspectos do modo de vida do beradero antes

da construção da Represa de Sobradinho apareceram e se mostraram bastante contrastantes

com o modo de vida dos reassentados das agrovilas de Serra do Ramalho.

Ficou evidenciada a existência de duas unidades sociais de aglomeração —

denominadas várias vezes de organização espacial — claramente opostas, nas quais viviam e

vivem os sujeitos da pesquisa que desenvolvi. No primeiro capítulo discorri sobre alguns

150

aspectos dos povoados beraderos sanfranciscanos, destacando, sobretudo sua forte identidade

territorial e cultural, mas neste momento, sem querer ser repetitiva, convém retomar algumas

questões demonstrativas dos contrastes entre as duas organizações acima apontadas.

Em linhas gerais, antes da construção da represa: os povoados ou bairros rurais, para

usar expressão consagrada na literatura de matriz sociológica; depois da construção da

represa: as agrovilas ou “núcleos de reassentamento”.

Povoados (Nordeste), linhas (Sul) e bairros rurais (São Paulo) são alguns dos nomes que

adquirem, nos vários recantos do interior do país, as unidades sociais mínimas de

aglomeração. De modo geral, essas unidades de aglomeração são construídas socialmente e

ganham um caráter de espontaneidade, quando opostas aos espaços planejados.

Na literatura sociológica, essas unidades são mais freqüentemente denominadas de

bairros rurais.

O bairro rural tem suas bases físicas em uma área de habitat disperso, dispondo de um núcleo que serve de fixação à população. O núcleo em geral é formado de uma igreja e uma praça; possui um patrimônio onde as famílias fixam residência. Desta organização espacial fazem parte elementos chaves, tais como: o rio, a rede viária, a vizinhança, os parentes. O bairro rural é uma unidade social mínima, intermediária entre o grupo familiar e outras formas mais complexas de povoamento e solidariedade social. A textura do bairro rural, o seu povoamento e as interligações das parentelas, formam redes que abarcam áreas mais ou menos vastas. O casamento entre parentes não ficava circunscrito ao bairro, mas se estendia por espaços mais amplos. Neste contexto, as reciprocidades prescritas pelo parentesco de sangue e por aliança podem cobrir uma região mais extensa, garantindo às famílias um apoio fora do próprio bairro que habitam, facilitando os deslocamentos e as migrações. (Rebouças, 2000, p.149).

Essa organização espacial mínima, além de local de concentração da maioria dos

serviços básicos requeridos por camponeses, de modo geral, empobrecidos, é espaço de

sociabilidades e repositório de relações de parentesco e de identidade cultural muito

particular, conforme salientam Antônio Cândido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Lia

Fukui.

Maria Isaura Pereira de Queiroz chama atenção para um aspecto importante do bairro

rural: a pouca diferenciação social existente entre seus moradores.

O grupo é internamente pouco diferenciado, do ponto de vista hierárquico; há diferenças de posições sociais, mas não chegam a formar grupos ou status hierarquicamente muito separados. A

151

diferença de posições sociais não parece determinada pela posse de bens, relegando assim o fator econômico para o segundo plano. Fatores como idade, relações de parentesco com determinados indivíduos mais prestigiosos, experiência mais vasta de vida e de trabalho, assim como iniciativa e empreendimentos importantes em setores básicos para a vida social local (como a adoção de um novo tipo de cultivo) dão status proeminente ao indivíduo (1976, p. 198).

As relações forjadas no espaço do bairro rural são muito fortes, compreendendo

reciprocidades e o desfrute de um cabedal cultural comum criado e recriado nas relações de

trabalho e em anos de convivência. Não se pode pensar, contudo, que o bairro rural é um

espaço isolado e excluído das relações de mercado (estão integrados às redes). Os

pesquisadores que se debruçaram sobre essa forma de organização espacial, em diferentes

períodos, mostraram claramente que os bairros rurais eram relativamente dinâmicos e estavam

ligados às redes mais complexas de trocas, de conhecimentos, de tecnologias e de controle

(político-administrativo).

Do que pude depreender das entrevistas tomadas aos beraderos, os povoados de Bem-

Bom, Pau-a-Pique, Intãs e Barra da Cruz, bem como todas as demais unidades sociais

localizadas às margens do Rio São Francisco atingidas pela Represa de Sobradinho,

guardavam as características semelhantes às apontadas acima.

As agrovilas têm uma história bastante diferente da do bairro rural. Essa organização

espacial apresenta, do meu ponto de vista, algumas características básicas, carecendo de

estudos mais acurados.

Primeiro, ela resulta de uma intervenção do Estado. Em geral, essa intervenção é

provocada em função de grandes projetos considerados necessários à modernização. Assim, a

população reassentada na agrovila é considerada atrasada e vista com desprezo pelas agências

governamentais, devendo, portanto, ser tutelada. Em Serra do Ramalho a ação dos gerentes-

executores foi sentida, com bastante reserva, pela população, que a via como um cativeiro.

Segundo, ela é fruto de um planejamento que não leva em conta o modo de vida da

população, muito ao contrário, baseia-se na tentativa de destruição de todo seu sustentáculo de

vida, para forçá-la à modernização.

O modelo traz embutida uma concepção de cultura camponesa que deve ser substituída por outra cultura, centrada na técnica e nos conhecimentos científicos. Os problemas dos perímetros, segundo essa concepção, são atribuídos à incapacidade de adaptação e

152

resistência ao novo por parte do colono. É preciso reeducá-lo, enquadrá-lo, não só no espaço do perímetro, mas no mundo da técnica, dos inseticidas e herbicidas. Segundo essa análise, o camponês é um objeto a ser trabalhado e modificado para que o empreendimento do Estado seja compensado com boas safras para o mercado (Braga, 2003, p. 35).

De modo geral, revela um total descompasso entre o planejado e o vivido163. No caso

específico de Serra do Ramalho, os descompassos e as dissonâncias entre os agentes

governamentais e os assentados ou reassentados são notórios, resultando na rejeição do

projeto.

Mudou, moça. Revirou tudo. Tudo ficou de cabeça pra baixo. Em Bem-Bom era diferente. As famia era mais unida. Não tinha disunião, não. Os parente se dava. Aqui virou um inferno. Ninguém reconhece parente, não. É um inferno.164

Devido às características da experiência de parte da população reassentada no Projeto de

Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição ao projeto parece ser algo dado. Afinal, não

faltam razões para isso.

Em primeiro lugar, todos os beraderos gostariam de ter permanecido na borda do lago,

cultivando seus lameiros, pescando, criando seus pequenos animais, enfim, mantendo suas

relações de sociabilidade no espaço onde nasceram.

O camponês não constrói o seu modo de vida somente pelo que e como produz para sua sobrevivência. A terra é mais do que um meio de produção: ela expressa laços afetivos, sentimentos que são relacionados com o modo particular de perceber o espaço como um símbolo, e se constitui num repositório de lembranças e esperanças. Filhos crescem nos quintais das casas, e, se morrem, são enterrados nos mesmos quintais. Essa atitude está contida no imaginário do homem do campo. Representa uma ação costumeira que se estabelece no cotidiano desses agentes sociais (Pereira, 1993, p. 15).

Todos alegam estar insatisfeitos e reclamam do abandono e do descaso a que foram

submetidos pelo INCRA e dizem sentir muitas saudades do local de origem. Inedina, ex-

163 Para Raffestin é da natureza do Estado, digamos assim, “prilegiar o concebido, em detrimento do vivido.” (1993, p.22) 164 Relato de Elpídio.

153

moradora de Casa Nova, confessa que não se deu bem nas grovilas e que com a mudança sua

saúde ficou abalada. Para ela, a causa de seus males é a água.

O modelo lote/agrovila cria a separação entre o local de produção/local de moradia, fato

dos mais inusitados para a população rural. Para usar expressão de Braga, ele provoca “fratura

entre a esfera doméstica e o âmbito do trabalho, simbolizada pela existência do lote agrícola e

do lote residencial” (2003, p. 102).

Em geral, o locus de morada dos beraderos estava situado nas áreas de vazantes e,

dependendo da estação, o agrupamento familiar se deslocava em bloco para outros pontos da

berada do Rio e até mesmo para a caatinga bruta — no caso das enchentes altas. Contudo, o

local de produção e o local de moradia constituíam uma unidade indissociável; o local da

moradia podia mudar, mas ela era efetiva. “A vida cotidiana do sertanejo é organizada em

volta e a partir da ‘casa’, não casa apenas no sentido de espaço físico, mas no sentido de

‘oikos’, morada” (Pereira, 1993, p. 18).

Notadamente, os deslocados da área da Represa de Sobradinho não se conformavam

com a separação entre o local de trabalho/produção e o local de moradia. Ainda hoje, todos os

entrevistados argumentam que as casas deveriam ser construídas nos lotes e reclamam da

distância que devem percorrer para trabalhar165.

Morar longe da roça! Quem já viu isso? Doidice maior num vi, nunca, não. Roubo de gado teve muntcho. O bandido vem, pega o gado, leva. E o dono? Em casa dormindo feito trouxa. Isso tudo aqui não ficou vazio por que não tinha água. E tem lote longe. Mais se tivesse água... Ninguém tava aqui, não. Agrovila não presta, não”166

Todos rechaçam o modelo lote/agrovila porque em seus locais de origem vigorava outra

organização. Na beirada do rio São Francisco, conforme visto anteriormente, o local de

moradia, embora temporária, era efetiva. Não ocorria a obrigatoriedade do deslocamento

diário ou a dupla moradia como se verifica em Serra do Ramalho.

Depreende-se de suas entrevistas que o modelo de organização baseado no

lote/agrovila revela total desconhecimento do modo de vida camponês/beradero. Os

165 Lídia Rebouças (op. cit., p.66) registra a mesma insatisfação entre os reassentados de Rosanela, Lagoa São Paulo e Primavera – Pontal do Paranapanema – SP. “A recusa por parte dos reassentados, desta idéia de casa enquanto um lugar separado da roça, manifesta-se no abandono da agrovila, que, mesmo depois de passados vários anos da sua instalação, não correspondeu ao plano inicial da CESP de constituí-la enquanto unidade residencial do projeto, com centro comercial, centro comunitário, escola, posto de saúde e unidade administrativa do reassentamento”. 166 Relato de Lelo. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 9/1999.

154

moradores do projeto responsabilizam o modelo (lote/agrovila) por todos os problemas de

delinqüência e violência que afirmam ter ocorrido em Serra do Ramalho, nos seus primeiros

anos. Atribuem à insegurança, ao roubo das criações e de outros bens, ao fato das casas

estarem situadas longe dos lotes, portanto, fora do alcance da vista de seus proprietários. Por

isso, a primeira medida dos moradores que apresentam uma pequena melhoria de condição de

vida, é dotar o lote rural de condições de morada efetiva, quais sejam: comprar tonéis para

pegar água no Rio São Francisco ou trazê-la das agrovilas e construir uma casa.

Aqui tá divagá. Quem tem condição faz a casinha no meio do lote. Muitchos fez. Eu fiz tamém... minha casinha... O vento derrubou a casa, lá. O menino tirou a telha. Botou telha baixa. Aí, o gado pisava nas telhas, quebrou tudo. Eu digo, agora nem tic nem tac.”167

Para minorar a insatisfação dos moradores, a Cooperativa Integral de Reforma Agrária

de Serra do Ramalho (CIRA) dos produtores de Serra do Ramalho buscou, através do Banco

do Brasil, crédito para a compra de carroças e charretes, visando atender os reassentados.

Ainda hoje, as charretes são o meio de transporte mais utilizado pelos habitantes de Serra do

Ramalho168.

A disposição do lote urbano também gerava e gera ainda descontentamentos entre os

reassentados. Todos reclamam que falta espaço para a criação de pequenos animais e que os

porcos e as galinhas são criados presos. Nas estradas, vemos galinhas pulando com suas

“peias”, de modo a não ciscarem as pequenas roças ou hortas dos seus proprietários e

vizinhos.

167 Relato de Quintiliano. Entrevista conceidida à autora em Serra do Ramalho, 24/2/2001. 168 Aliás, esse é o meio de transporte comum em todos os assentamentos baseados no mesmo modelo implantado em Serra do Ramalho. Segundo Tânia Andrade, Diretora do Instituto de Terras do Estado de São Paulo, em Promissão (onde estão assentados integrantes do MST), o número de charretes é tão significativo que está a exigir a instalação de semáforos.

155

Figura 3 – Charrete (foto: Ely Estrela)

Meio de transporte muito usado em Serra do Ramalho.

Embora todos demonstrem cuidados especiais com suas crias e bens, há acusações de

roubos e furtos. Todos rejeitam a proximidade das casas umas das outras. Reclamam que a

área dos quintais é insuficiente para suas necessidades. Reivindicam cercas. Há reclamações

generalizadas contra os vizinhos. “Não dá para criar nada. Tudo apertado. Quem vai confiar

em vizinho? Essa grovila é uma maldição. Um cativeiro.”169

Aliás, de acordo com Tânia Andrade170, diretora do Instituto de Terras do Estado de São

Paulo (ITESP), as reclamações em relação aos vizinhos são muito comuns nos assentamentos.

Em razão disso, o ITESP, segundo ela, deixa aos critérios dos futuros assentados a escolha do

modelo de organização espacial a ser adotado. A diretora do ITESP disse que a justificativa

utilizada pelos futuros assentados para a escolha do modelo de agrovila ou do modelo que

169 Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 12/9/1999. 170 Palestra proferida na ANPUH - Seção de São Paulo, realizada em setembro de 2000, na Universidade de São Paulo.

156

privilegia a casa no lote é sempre o mesmo: o vizinho. Em outros termos: a escolha da

agrovila é a favor do vizinho e a escolha da construção da casa no lote é contra o vizinho.

As reservas em relação ao Projeto se consubstanciavam através da construção de uma

nova casa. Assim, a meta de todo reassentado era, e é ainda, dotar o seu lote de água e fazer

seu “ranchinho”, conforme visto pouco acima. Aqueles que dispunham de meios já o fizeram.

Figura 4 - Construção padronizada (foto: Luciene Aguiar)

Casa localizada na Agrovila 15, de uma série construída pelo INCRA, que ainda se encontra nos padrões originais.

Entre os índios Pankaru, a rejeição se consubstanciou através do desmonte quase que

completo da Agrovila 19171. Algumas casas foram derrubadas e as telhas de tantas outras

transferidas para os ranchos construídos na aldeia. Consta que o retorno dos índios à Agrovila

19 ocorreu quando descobriram que na aldeia havia um foco de barbeiro (Triatoma infestans,

no caso do inseto; Trypanosoma Cruzi, no caso do protozoário), responsável pela morte de

171 O assunto é controverso. Obtive informações de que o desmonte das casas teria ocorrido num confronto entre os Pankaru e os sem-terra que ocuparam a Agrovila, entre 1984/85. Embora em contato com regionais há muitos anos, os Pankaru ainda resguardam certos traços do nomadismo de seus ancestrais. Após o estabelecimento na Agrovila 19, abandonaram suas casas. Ao retornarem à Agrovila, encontram-nas ocupadas por sem-terra. Estava

157

algumas pessoas. Num processo em que guardam o antigo costume do nomadismo, os

Pankaru vivem entre a Aldeia Vargem Alegre (único local onde praticam o Toré) e a Agrovila

19.

Consideradas pelos técnicos como superiores às moradias dos beraderos — em geral,

de taipa ou adobe —, as casas de alvenaria construídas nas agrovilas foram reprovadas. Os

“colonos” reclamavam da disposição espacial da construção e do aperto dos cômodos.

Vejamos o que disse sobre essas casas Alvino: “Casa não! Tapera.”

2.3 - Cobrando as promessas

Em fins de 1976 — depois de um longo período de seca —, vieram as chuvas e não

havia recursos para “tocar a roça” e comprar sementes. Diante dessa depauperação, os

reassentados de Sobradinho que, durante todo o processo de deslocamento, se mostraram, em

geral, meio atônitos em relação ao que lhes acontecia, revelaram-se indignados e começaram

a reivindicar que o INCRA cumprisse as promessas. Reivindicavam créditos, uma política de

irrigação e a venda a prazo no posto da COBAL.

Logo após, o Banco do Brasil liberou o crédito para a derrubada da mata para o plantio

e para compra de uma charrete. A bem da verdade, a liberação dos recursos estava vinculada

ao plantio de culturas comerciais, tais como o algodão e mamona. As terras das agrovilas se

mostraram aptas para a cultura do algodão e, segundo entrevistas, as safras eram muito boas.

Mas o boom algodoeiro da região estava chegando ao fim. Em meados de 1980, a praga do

bicudo (Anthonomus Grandis, Boheman) destruiu a cotonicultura — e os reassentados de

Serra do Ramalho tiveram que reorganizar de outro modo a garantia da sobrevivência.

Por outro lado, o crédito passou a se tornar mais escasso; em parte, por causa da

inadimplência; em parte, por razões de ordem técnica, de modo que, segundo dados da CPT,

entre 1978/1979, somente dez por cento dos reassentados foram beneficiados com crédito

bancário172 (Cordeiro, 1982, p. 10).

estabelecido o conflito. Do meu ponto de vista, independentemente da razão, houve total rejeição à moradia na Agrovila, por parte dos Pankaru. 172 Brancolina Ferreira estima, para os anos de 1976/79, percentual de 38, 4%. Para a autora, os problemas com financiamentos eram de ordens as mais variadas. Vejamos: “Durante o trabalho de campo verificou-se que os contratos de financiamento assinados estavam sendo descumpridos por ambas as partes. Freqüentemente o

158

A cooperativa prometida pelo INCRA foi criada, mas esta logo se revelaria fonte de

inúmeros problemas: os preços eram mais elevados do que os dos produtos vendidos no

mercado e os produtos eram de péssima qualidade. “Não adiantava plantar as semente da

cooperativa. Não sou bobo. Plantei dois sacos. Um da cooperativa, outro que comprei na

Lapa. O da cooperativa não nasceu nada. Não prestava.” 173

Além do mais, quando os cooperados levavam à Cooperativa Agrícola (CIRA-SR) os

seus produtos, os preços eram rebaixados. Todos os entrevistados têm queixas da cooperativa.

De forma velada, deixam entrever que tais fatos ocorriam por má gestão e corrupção.

Vejamos o que diz o jornalista Emiliano José na apresentação do relatório da Comissão

Pastoral da Terra (CPT) assinado por Tânia Cordeiro:

Do outro lado, a cooperativa existente nas agrovilas não vem exercendo com eficácia sua função de facilitar a comercialização para os produtores. A cooperativa, que deveria ser um fato de diminuição dos preços, acaba regulando os seus preços pelos dos intermediários. E até mesmo as vendas da cooperativa vêm se dando de forma amadorística, sem uma gerência comercial, acompanhamento de mercado e procedimentos semelhantes, conforme relatórios do próprio governo. Também aqui revelam-se os fortes traços de autoritarismo do projeto, pois os colonos não têm mecanismos para intervir decididamente nos rumos da cooperativa que, em princípio, deveria ser dirigida por eles próprios. Até o momento, a cooperativa não tem significado qualquer barreira ou proteção à ação do capital privado, comercial ou industrial, representado pelas indústrias, intermediários e supermercados (1982, p. 11).

A cooperativa contava com uma diretoria executiva formada por “colonos”, mas,

segundo entrevistas, na prática, era dirigida pelo delegado do INCRA, indicado pelo gerente-

mutuário (o colono) deixava de cumprir sua parte do contrato, ou porque o Banco demorasse na liberação das parcelas de recursos, ou porque a finalização (saque) do contrato dependesse de parecer dos técnicos rurais que atuavam no projeto e, que sobretudo por dificuldades de locomoção, deixavam de elaborar o laudo necessário. Podia também ocorrer (e ocorreu) situações nas quais o técnico rural, vendo que o colono não iria conseguir realizar a produção, o aconselhava a não retirar uma ou mais parcelas do crédito já liberado. Outro fator que contribuiu para que o crédito concedido deixasse de ser utilizado, deveu-se à impossibilidade de que tivesse a destinação pretendida, como falta de insumos que pudessem ser adquiridos (no ano em questão - 1980-, houve, por exemplo, falta de inseticidas; portanto o montante de recursos aprovados para esse fim não pôde ser utilizado.” O Estado e a reprodução da pequena produção: reflexões em torno de um caso de colonização compulsória, 1988, p. 112-113. 173 Relato de Quintiliano.

159

executor. Além da sede, seu patrimônio, segundo entrevistados, constabilizava duas fazendas

(uma na Serra Solta e outra próxima à Agrovila 9), milhares de rezes e uma serraria174.

Tudo indica que a iniciativa do INCRA em exonerar o primeiro gerente-executor, “a

bem do serviço público”, conforme chama atenção um entrevistado, está relacionada,

sobretudo, à má gestão da cooperativa175. Insolvente, em 1985, a cooperativa sofreu

intervenção do governo federal, sendo fechada, para gáudio de seus críticos, em seguida. No

mesmo ano, para pagar os débitos, conforme relatório do INCRA (1994, p. 30), a ex-

cooperativa teve seus bens penhorados e levados a hasta pública. No prédio da antiga CIRA

encontra-se, atualmente, o único hospital de Serra do Ramalho.

Em 1985, com a chamada “Nova República”, outras perspectivas se abriram para a

atuação do INCRA em Serra do Ramalho. No processo de fatiamento dos cargos na Bahia,

coube aos grupos situados mais à esquerda do espectro político baiano a superintendência do

órgão. Assim, funcionários do INCRA e comissionados identificados com a direção do órgão

passaram a atuar em Serra do Ramalho, visando atender aos reclamos da população. Em

obediência ao projeto de descentralização que se visava implementar nas gestões de Nelson

Ribeiro e Dante de Oliveira, os técnicos tentaram criar associações de moradores em todas as

agrovilas176. Por razões as mais diversas, grande parcela dos reassentados não deu respaldo à

iniciativa. Muitos iam às primeiras reuniões, acreditando na perspectiva de que receberiam

recursos; quando informados de que o processo era encaminhado de outro modo, sentiam-se

decepcionados e recuavam. De acordo com Joaquim Lisboa Neto177, funcionários

comissionados do INCRA e envolvido no Projeto, somente os moradores das Agrovilas 3, 10

e 15 (esta última a mais envolvida) se mobilizaram para a criação das associações. Ele

complementa:

Na 5 (Agrovila), por exemplo, para construir essa associação deu trabalho demais. Eu estava quase saindo de lá... da Serra do Ramalho quando conseguimos, finalmente, fazer uma reunião, uma coisa assim. Tinha lugar que era de lascar. Você marcava uma reunião com o pessoal, entendeu? Tal dia, tantas horas pra gente... Pontualmente a gente chegava lá. Cadê o povo? Ninguém. Cadê o cara do contato, tal?

174 Em entrevista concedida à autora, o ex-gerente executor do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho, Boileau Dantas Vanderlei, não confirmou os dados. 175 Perguntado sobre o assunto, o ex- executor atribui sua exogenaraçao à divergências políticas com as principais lideranças políticas da Bahia à época. 176 Relato de José Carlos Arruti, ex-superintendente do INCRA da Bahia. Única autoridade pública a não gravar entrevista, o relato foi registrado em Caderno de Campo em 10/11/2003. 177 Entrevista concedida à autora em Santa Maria da Vitória, em 24/11/2001.

160

O cara foi caçar. Foi na Lapa. A gente via que tinha alguma coisa ali, emperrada.

Além das dificuldades para sensibilizar os reassentados, ele afirma que a iniciativa foi

boicotada por políticos da região, como Prisco Viana, Nestor Duarte e Raimundo Sobreira178.

As pressões, visando minar a iniciativa, eram tão fortes que o próprio gerente-executor,

muitas vezes, ignorava a associação, buscando a mediação desses políticos. Não bastasse, o

ex-executor, que vivia na região e que, desde sua exoneração dos quadros do INCRA, contava

com prestígio junto aos reassentados, solapava a todo o momento a criação das associações,

acusando os funcionários envolvidos no movimento de comunistas.

A partir da extinção temporária do INCRA, o Projeto de Serra do Ramalho tornou-se

acéfalo, perdendo, segundo o relatório de liqüidação do Projeto, o controle das ocupações

(1998, p. 12). Vejamos relatório do INCRA:

Com a extinção do INCRA por força do Decreto Lei n. 2.363, de 23 de outubro de 1987, e com o Decreto 99.332, de 20 de junho de 1990, em que colocou todos os servidores do Projeto em disponibilidade179. Por força desses atos, o PEC-SR ficou totalmente desativado, provocando dessa forma um descontrole de suas atividades, principalmente no Programa de Assentamento. (1994, p. 21-22)

Estavam dadas as condições para a mobilização em favor da emancipação do Projeto,

fato que pouco depois se consubstanciou, como veremos logo adiante.

178 As informações foram confirmadas pelo ex-executor José Ganen Marques. Entrevista concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 5/12/2002. 179 Os dados conflitam com a seguinte informação enviada via e-mail por João Mendonça Amorim, ex-presidente do INCRA (gestão Collor de Mello): Decreto-Lei n. 2.363, de 21 de outubro de 1987 – extingue o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, cria o Instituto Jurídico de Terras Rurais (INTER).

161

2.4 - Válvula de escape do INCRA

Em comparação a 1976, 1977 foi considerado um ano relativamente farto. Muitos

entrevistados dizem que a terra de Serra do Ramalho era muito boa para o cultivo. “Terra boa,

tudo que plantava dava.”180. Assim, além das culturas comerciais — algodão e mamona —,

plantavam milho, feijão (de “arranca” e de “corda”), abóbora e legumes.

Para atender os reclamos dos deslocados, o INCRA criou, em uma faixa de alguns

quilômetros situada na beira do Rio, uma experiência de irrigação. Por causa da distância dos

lotes, o projeto só atendia os moradores das agrovilas situadas no eixo ímpar, isto é, das

agrovilas mais próximas do leito do rio. Ali, além de hortaliças e leguminosas, plantaram

feijão e cebola. Nos primeiros anos, o cultivo se mostrou bastante produtivo, mas depois a

terra se esgotou e a experiência foi abandonada. Vejamos:

O INCRA deu a terra pra gente cultivar irrigado. Nos primeiros anos, plantemos cebola. Deu muito. Depois a terra colou. Um barro esquisito. A terra colou e a água não entrava na terra, não molhava, a sra. Entende?[dirigirindo-se à entrevistadora] Perdemos a produção. Além do mais, o óleo era caro e a gente não tinha pra quem vender a cebola. Em Casa Nova já tinha os comprador certo, aqui não. Dexemos de plantar. Não adiantava.181.

Fracassada a incipiente experiência de irrigação, os reassentados envolvidos voltaram

ao cultivo de “sequeiro”. O maquinário do projeto (bombas e canos) foi apropriado por

moradores e, segundo consta, vendidos posteriormente.

A cheia de 1979, além de inaugurar um ciclo de estiagens que duraria até 1983,

prejudicou por demais os reassentados. Todos os entrevistados afirmam que a perda da safra

foi de cem por cento e, embora o governo tivesse prometido “anistia”182 aos atingidos, muitos

afirmam que não foram beneficiados. Alguns entrevistados decidiram deixar Serra do

Ramalho e partir de volta para a região da borda do lago depois de perderem tudo na cheia de

1979.

Decreto-Legislativo no 2, de 29 de março de 1989 – rejeita texto do Decreto-Lei n. 2.363/87, que extingue o INCRA e cria o INTER. 180 Relato de Osmundo. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/1/2002. 181 Relato de Geraldino. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999. 182 Na percepção de um entrevistado, o seguro do Proagro funcionou como “anistia”, somente aplicada anos mais tarde, exatamente durante o governo Sarney. Mais detalhes, vide Ferreira, op. cit., p. 114.

162

Além da frustração das safras em decorrência das cheias, o INCRA identificou, em

relatório citado por Brancolina Ferreira, focos de descontentamentos relacionados, sobretudo,

ao não cumprimento das promessas feitas pelo convênio INCRA/CHESF, quando da

implantação das agrovilas (1980, p. 37).

Diante da iminência do fracasso total do Projeto, o INCRA rapidamente redirecionou o

papel das agrovilas, abrindo-as, em 1977, para os sem-terra de vários pontos do país. No

relatório de transferência o INCRA afirma:

No final de 1977, após diversas reuniões do Grupo Interministerial do PEC-Serra do Ramalho e vencidas as objeções do Banco Mundial, foi tomada a decisão de se assentar ao Projeto Serra do Ramalho famílias selecionadas em outras regiões que não na área de inundação da barragem. Nesta mesma ocasião foi também decidido que o INCRA deveria diminuir o ritmo de construção das agrovilas (Apud Cordeiro, 1982, p. 26-27).

Assim, o INCRA empreendeu, nos municípios do entorno de Serra do Ramalho,

campanha de propaganda e arregimentação de “colonos”. O executor utilizava as rádios dos

municípios vizinhos e carros de som, chamando os sem-terra ou pequenos proprietários a se

cadastrarem para receber um lote em Serra do Ramalho.

Concomitantemente, o órgão passou a usar as agrovilas de Serra do Ramalho como

válvula de escape dos problemas fundiários de todo o país, lançando, em meados de 1980,

uma cartilha intitulada “Vá viver melhor com sua família nas Agrovilas de Bom Jesus da

Lapa “(Relatório da CPT, 1994, p. 2).

Diante de um projeto de tal magnitude e com tanta capacidade ociosa, o INCRA passou a utilizar a estrutura disponível para solucionar focos de tensão em outros pontos do país. O projeto Serra do Ramalho passaria, então, a se apresentar como importante mecanismo de descompressão de conflitos sociais localizados em distintos pontos do território nacional. (Bursztyn, 1988, p. 25).

Para efeito de ilustração, basta dizer que, em princípios da década de 80 do século

passado, os trabalhadores rurais sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino183, Rio

Grande do Sul, receberam a proposta de se deslocarem para Serra do Ramalho.

183 O primeiro trabalhador sem-terra a montar acampamento na Encruzilhada Natalino, em 1980, tinha sido expulso da Reserva Indígena de Nonoai. Em seguida, chegaram outros trabalhadores sem-terra da Reserva e de

163

A missão Curió184 era desmanchar o acampamento e levar as famílias para os projetos de colonização. Montou uma grande barraca onde mostrava slides e filmes acerca dos projetos de colonização no Acre, em Roraima, Mato Grosso e Bahia. Propôs levar uma comissão de sem-terra para conhecer o projeto Serra do Ramalho, na Bahia. Vieram dois aviões Búfalo da Força Aérea e transportaram os colonos para a área. Chegando numa agrovila do projeto, foram recepcionados com uma churrascada. Contudo, quando a comitiva começou a lavar as mãos acabou a água. E não tinha mais água. De volta, a maior parte da comissão declarou que o projeto era inviável porque o solo era muito arenoso e pela falta de água (Fernandes, 2000, p. 58-9)185.

Enquanto os trabalhadores sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino não se

deixaram enganar e continuaram reivindicando assentamento no Rio Grande do Sul,

desterrados de certos pontos do Nordeste caíram no canto da sereia e pleitearam lote em Serra

do Ramalho.

Entre sussurros, permeados de reprovações e queixas, alguns entrevistados dizem que os

primeiros nordestinos a chegarem às agrovilas foram os paraibanos. Insinuam que estes eram

protegidos do executor. Na verdade, segundo relatório elaborado pela CPT, os paraibanos a

quem se referem os entrevistados, não eram só protegidos do executor Boileau Dantas

Wanderley, mas agregados nas fazendas de seus familiares.

Às agrovilas chegaram 365 famílias provenientes do Mato Grosso do Sul. Eram

arrendatárias nos municípios de Eldorado e Mundo Novo, localizados na região de Dourados

(Relatório, 1994, p.21). Pelo contrato de arrendamento, ao final de 5 anos, devolveriam a terra

com pasto formado. Passados dois anos, tiveram seus contratos rescindidos e sofreram

ameaças de expulsão. “O INCRA chamado a intervir, ofereceu como uma das soluções

compensatórias, a transferência de parte das famílias expulsas para o PEC — Serra do

Ramalho” (Ferreira, 1980, p. 38).

Em seguida, chegaram os deslocados da Represa de Itaipu e até brasiguaios. Todos

foram reassentados na Agrovila 15, conhecida como a agrovila dos gaúchos ou sulistas. De

outros pontos da região. Mais detalhes, vide Bernardo Mançano Fernandes, A formação do MST no Brasil, 2000, p. 55. 184 O famigerado major Sebastião Curió foi deslocado pelos órgãos de repressão para intervir no acampamento Encruzilhada Natalino, desmobilizando e expulsando os trabalhadores sem-terra. 185 O autor continua: “Uma pequena parte que Curió tentou convencer, chegou a afirmar que o lugar era bom. Na polêmica, os interventores conseguiram reunir 87 famílias tendentes a aceitarem a proposta do governo. Contudo, quando tomaram conhecimento da cooptação e por causa de um dossiê da CPT baiana, que informava a insustentabilidade do projeto, pouco a pouco foram desistindo e por fim nenhuma família aceitou ir para a Bahia.” Fernandes, op. cit., p. 59.

164

acordo com as entrevistas, muitos retornaram aos seus locais de origem. A impressão que tive,

depois de entrevistar alguns gaúchos, foi que, exceções à parte, todos eram baianos ou

nordestinos que viviam em área de conflitos ou deslocados compulsórios em decorrência de

projetos de obras de infra-estrutura no Centro-Sul.

Através de entrevista colhida junto a um dos colonos sulistas, depreende-se que

receberam tratamento especial de técnicos do INCRA. Segundo fez entender o entrevistado,

na verdade baiano de Macaúbas (região da Chapada Diamantina), o deslocamento dos colonos

sulistas para Serra do Ramalho tinha uma função educativa (mais uma vez vem à tona o

projeto "civilizatório"): através da experiência desses “colonos”, o INCRA desejava mostrar

aos demais assentados como cultivar, alcançando alta produtividade e rentabilidade.186

A propaganda atingiu uma dimensão tal, que Serra do Ramalho recebeu milhares de

sem-terra de todas as regiões da Bahia. Estes acamparam na sede do Projeto e, diante da

lentidão do INCRA em selecionar as famílias, ocuparam casas em várias Agrovilas: 16, 18,

19, 20, 22 e 23.

Em carta dirigida ao presidente do BNH, o Bispo da Diocese de Bom Jesus da Lapa

descreve a triste situação em que vivia essa população:

Chegando ao meu conhecimento que mais de 250 famílias, provindas de várias regiões, se acham abrigadas debaixo de árvores na localidade do Projeto das Agrovilas 18, 19, 20 e 21, neste município de Bom Jesus da Lapa, sem condições de construir casas para sua residência e nem mesmo para alimentar os seus familiares [...]187

Famílias despejadas (por falta de pagamento) do Projeto São Desidério, localizado na

região de Barreiras, também acorreram a Serra do Ramalho, sendo reassentadas na Agrovila

10188.

186 Zelito Baiano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 14/07/2000. 187 Carta do Bispo Diocesano de Bom Jesus da Lapa, D. José Nicomedes Grossi, ao Presidente do BNH. Bom Jesus da Lapa, 11/9/1981, p. 1. 188 Nenhum relatório do INCRA menciona as famílias do Projeto São Desidério. A única fonte que comprova o fato é uma carta dirigida ao Bispo de Bom Jesus da Lapa por Irani Rodrigues Porto, moradora da Agrovila 10. Na carta dirigida ao Padre, ao Bispo e ao Papa, além de pedir auxílio, a senhora discorre sobre as condições em que viviam no Projeto São Desidério, reafirma sua condição de trabalhadora (valor muito caro aos camponeses) e esclarece os motivos do despejo. A carta não foi datada.

165

2.5 - Fome e penúria

Enquanto a propaganda ganhava corpo, o Projeto Serra do Ramalho era duplamente

rejeitado. Os expropriados que se encontravam na área da Barragem se recusavam a deixar a

área e muitos dos reassentados em Serra do Ramalho abandonaram-no. De acordo com

estimativas, metade dos deslocados que vieram de Sobradinho voltou para a área da

Represa189.

Após as cheias vieram anos de seca e de penúria. Estima-se que, entre 1980 e 1983,

morreram em todo o Nordeste mais de um milhão de pessoas, vítimas da fome e da

desnutrição. Os efeitos da seca em Serra do Ramalho foram dramáticos. Somente na Agrovila

13, num período de três meses, registraram-se 45 mortes; todas as crianças tinham entre zero e

três anos. A propósito:

A menina começou com desinteria. Tinha mais ou menos uns cinco anos... Nasceu em Pernambuco. Nós veio pra aqui, ela chegou sadia, e quando a gente cheguemos aqui essa água era muito doentia. E quando pegava na lagoa muitas vez vinha pedaço de peixe podre dentro daquela água pra dar praquele menino, proque não tinha outra. Tinha que dar mesmo. Tinha que beber e fazer comida daquela mesmo. Aí a menina foi adoecendo, adoecendo. Aí quando foi um dia eu disse: vou fazer uma consulta, aí nos fomos pra 9 (agrovila n. 9). Quando chegou lá, nós fomo pra um doutor, um baixinho gordo. Aí ele disse: ‘não vou passar remédio pra vocês, não. Por que é que vocês todos de lá só correm pra aqui?’ Aí eu disse: ‘eu vim porque o senhor tá prá atender. Eu vim prá qui porque eu não posso ir pra Lapa; se eu pudesse ir pra Lapa, eu não vinha aqui não’. Aí ele foi, passou dois litro de soro prá dar à menina. Passou somente o soro. Ele passou que não era prá dar leite, só caldo de arroz. Eu peguei a dar o soro, a menina tava muito molinha. Aí, quando o soro acabou, tornou a piorar novamente. Tornei a levar pra lá. Quando eu cheguei lá, aí ele falou assim: ‘Você, porque não leva essa menina pra morrer em casa mesmo?’ Eu digo: ‘quer dizer que você não vai passar remédio nenhum para ela? Ele disse: ‘leva pra casa, tô avisando, leva pra casa”. E passou um vidro de ambracinto prá menina. Aí trouxe pra casa e quando cheguei em casa também falei: ‘bem, pra aquela 9 eu não levo mais doente meu, porque eu não tô pra tá levando expremento de doutor, não. Mas nós tinha que levar, porque nem tinha dinheiro prá pagar a consulta e nem tem carro, e eu não ia daqui pra Lapa a pé. Aí trouxe pra casa e comecei a dá o ambracinto pra ela e nada dela melhorar.

189 O INCRA admite a partida de 599 (quinhentas e noventa e nove) famílias. Relatório INCRA, 1994, p. 20.

166

Começou com febre, vomitando, a boca da menina estorou todinha... Quando foi com 63 dias, a menina morreu. Eu levei a menina bem sabida. E não tinha doença não. Morreu 42 ou 43, o meu mesmo morreu uma, daquela mulher vizinha morreu outra, de uma filha minha morreu outra. Tudo de uma doença só (D. Terezinha, Apud CPT/CEPAC/IBASE, s/d, p. 28).

Provavelmente, as mortes estão relacionadas à subnutrição e à falta de atendimento

médico. Convém salientar que, além de precário, o serviço médico nas agrovilas só era

oferecido à população depois de atendidos os funcionários ligados ao INCRA, conforme

entrevistas de vários reassentados.

Ao contrário das promessas da CHESF/INCRA, tudo estava por fazer em Serra do

Ramalho. Expropriados de suas terras para que nelas fosse construída a principal fonte

geradora de energia de todo o Nordeste, os deslocados de Sobradinho usufruíram, muito

precariamente, os benefícios da energia elétrica.

As casas que têm luz é porque os moradores puxaram ‘um gato’ da rede e eles mesmos fizeram a ligação. Eu passei seis meses pedindo pra companhia fazer a ligação e como não fizeram eu liguei. Isto é meu direito porque pelo plano nós temos dois anos de energia grátis. Acho que eles não ligam é justamente pra estourar este prazo — afirma José Ribeiro Santos, morador da agrovila 5 (O Globo, 13/03/1978).

Também as casas dos deslocados de Itaipu, instalados na Agrovila 15, ficaram meses

sem energia elétrica.

A estrada que liga Bom Jesus da Lapa a Carinhanha, cortando o eixo par, era de chão,

esburacada e, em alguns trechos, intransitável. Os meios de transportes eram precários. Nos

primeiros anos, somente um ônibus velho e mal conservado fazia a ligação entre as agrovilas

do eixo par e a sede do município de Bom Jesus da Lapa. Os habitantes das agrovilas situadas

nos demais eixos, quando se dirigiam a Bom Jesus da Lapa, andavam quilômetros a pé ou de

charrete para pegar o ônibus. As vicinais ligando as agrovilas ao lote rural estavam

começando a ser abertas. Ainda hoje são mal conservadas e, durante os meses chuvosos,

intransitáveis.

Em relação às escolas, a situação não era muito diferente. Quando chegaram à Serra do

Ramalho, os deslocados perceberam que a promessa de que seus filhos teriam escola custaria

algum tempo. Somente a Agrovila 5 — sede provisória do Projeto nos primeiros anos — tinha

um prédio escolar voltado para atender as séries iniciais.

167

Outro ponto que evidencia as dissonâncias existentes entre os reassentados e os

planejadores das Agrovilas foi a implantação da fazenda para pecuária (ex-Fazenda CSB). Em

princípio, era permitido aos reassentados colocar na “manga” (pasto) somente 12 cabeças de

gado e 36 cabeças de criação de pequeno porte. Os entrevistados não recordam se a fazenda

oferecia condições adequadas para o pastoreio, a maioria frisa que não trouxe criações de seus

locais de origem e a única entrevistada que disse ter trazido criações — Apolônia — assinala

que não procurou a Fazenda porque seu lote era “empastado”, mas Aurino lembra que, na

“manga” onde as parcas cabeças de gado do cunhado ficavam, havia curral e um vaqueiro

para cuidar das criações. Os poucos entrevistados que se recordam da situação disseram que

havia reclamações quanto ao trato do gado e ao sumiço das reses. Em conseqüência, os

criadores retiraram o gado das fazendas e passaram a criá-lo nos lotes rurais. Outros, como

Apolônia, ignoraram as determinações do INCRA, conforme visto anteriormente, e criaram

seu “gadim” no próprio lote. Logo o órgão se renderia às evidências e não criou empecilho às

“subversões” dos reassentados.

A derrubada da mata que recobria o lote rural foi indiscriminada e chama a atenção de

todos que trafegam nos limites dos municípios de Serra do Ramalho e Carinhanha. Os

reassentados atribuem o fato às dificuldades que enfrentaram nos primeiros anos do Projeto.

Dizem que se valeram da mata, retirando a madeira de lei, como cedro e aroeira, para matar a

fome. Sobre isso Geraldino disse: “Os colonos comeram aroeira, comeram cedro, comeram

madeira branca. Derrubaram a mata pra comer. Se não fosse a venda da madeira, muitos tinha

morrido era de fome.”

Até fins de 1980, os caminhões partiam de Serra do Ramalho lotados de madeira-de-lei

para Salvador e várias outras regiões do estado da Bahia e de Minas Gerais. Consta que a

madeira utilizada na construção do Hotel Méditerranée, localizado na Ilha de Itaparica, teria

sido retirada de Serra do Ramalho (Bursztyn, 1988, p. 30).

Entretanto, nem todos os moradores precisavam extrair a madeira para sobreviver.

Madeireiros instigavam os reassentados à derrubada da mata e consta que funcionários do

Incra do alto escalão negociavam com madeira no Projeto. Alguns reassentados lançaram mão

desse recurso, temerosos de que seus vizinhos o fizessem na calada da noite. Outros não

foram para a agrovila senão para extrair a madeira e repassar o lote a preço irrisório.

Não bastasse, outra ameaça pairava sobre a mata virgem. Na região a presença da

abelha oropa era uma constante, havendo, portanto, abundância de mel no local. Bastante

168

comum nos primeiros anos do Projeto, a europa ou oropa ainda atormenta o cotidiano da

população de Serra do Ramalho. Vejamos.

O ano jubileu já entrou quente Os meninos assanharam a oropa Ela apareceu mordendo gente O pobre do meu cunhado tava fazendo a barba No prego foi o primeiro que entrou Engoliu tanta oropa que o figo estourou A oropa agarrou um cabra Ele ficou gritando ói A Dudu abriu a porta pra ver quem é Era Zé Martin gritando socorro. Ela disse : Corra pra donde tá sua muié Zé Martin saiu doido, de cabeça acima. Encontrou a Adalgiza. “Adalgiza, me acuda”. Ela respondeu: Tire logo a camisa. ....................................................................................... A oropa fez um estrago que já não posso me lembrar Quem quiser saber mais Vá a ela perguntar.190

Para colher os favos de mel, muitos reassentados lançavam mão do fogo. Era comum

perderem o controle, queimando todo o lote. Às vezes, a queimada era provocada por um

vizinho ou um estranho qualquer que adentrava o lote para retirar o mel antes que seu

proprietário o fizesse.

A falta de água e a constância do fogo davam o tom do Projeto. Por isso, nada mais

resta da mata fechada da Serra do Ramalho. Os lotes que formam as agrovilas mais parecem

desertos cingidos de carvão, sinais das queimadas. No período da seca — março a outubro —

os lotes ficam desolados; não fosse o gado magro a lamber o capim ressequido (que desponta

da terra árida), não haveria naquelas paragens nenhum sinal de vida.

Concomitante à derrubada das matas dos lotes rurais, as áreas de reservas foram

ocupadas por sem-terra e especuladores vindos de diferentes pontos da região, conforme

salientado anteriormente. Logo derrubaram as matas e Serra do Ramalho perdeu praticamente

toda sua cobertura vegetal, chamando a atenção de todos quantos passem na região.

190 Trova de autoria de Elpídio, declamada em entrevista à autora.

169

Cada dia mais as relações entre reassentados e os agentes do INCRA se tornavam

tensas. De forma geral, nos seus povoados, o contato com o Estado era mediado pelos grupos

dominantes locais. Assim, os deslocados de Sobradinho se incomodavam com a presença

ostensiva do Estado em seu cotidiano. O “cativeiro”, do qual reclamam com tanta veemência

os deslocados, era representado não só pela figura do gerente-executor, mas do gerente do

banco que, através do crédito, determinava o que deveriam plantar e do técnico agrícola que

dizia como fazer. A percepção de que em Serra do Ramalho a vida era o “cativeiro”, fica

evidenciada nos versos que seguem:

O Projeto Especial, feito para colonização Quem mora neste Projeto só passa Precisão Recebe uma casa fechada Com suas chaves na mão Recebe um lote medido Que é para servir de prisão Não tendo para onde fugir O seu destino é sumir ou ir Para debaixo do chão

(Marciano de Souza Alcântara – Agrovila 6 – Rua M – No. 41191)

.

Entre os reassentados as relações não eram menos tensas. A chegada de indivíduos

provenientes de vários pontos do país, vivendo temporalidades e culturas diferenciadas,

muitos fortemente marcados pela experiência da desterritorialização e do desenraizamento,

deu margem à criação de um clima de desconfiança e temor entre os reassentados. Os

descompassos entre o planejado e o vivido, para usar expressão de Lídia Rebouças, além das

dissonâncias, provocaram inúmeros conflitos envolvendo os reassentados. Desse modo, Serra

do Ramalho ficou conhecida no seu entorno como terra da violência e do medo.

Nos primeiros anos do Projeto, o abandono de lotes foi maciço e as notícias de lotes

repassados por preços irrisórios ou trocados por bens móveis correram a região, fazendo

acorrer às agrovilas aventureiros e despossuídos de toda estirpe. O certo é que hoje, em Serra

do Ramalho, se observa uma reconcentração da propriedade da terra. Obtive informações de

que há, na área do antigo projeto, propriedades com mais de mil hectares.

191 Versos encontrados pela autora no arquivo da CPT, Regional de Bom Jesus da Lapa, em Santa Maria da Vitória.

170

Nas entrelinhas das entrevistas, depreende-se que os agentes do INCRA adotaram uma

política que combinava coação e favor, reforçando a idéia de “cativeiro”. E de fato, não

faltavam razões para isso. Segundo denúncia publicada no Boletim O posseiro, a

correspondência dos “colonos” era previamente lida pelos funcionários dos correios. A

propósito:

Outro exemplo: uma moça de aproximadamente 18 anos nos revelou que quando vai colocar cartas no correio de Bom Jesus da Lapa, elas são religiosamente lidas pelos funcionários da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) e, só depois deste nojento ritual ser cumprido, coladas e enviadas ao destinatário192

Descontentes com o destino das agrovilas, muitos tinham e têm vontade de vender os

pertences e voltar para seus locais de origem. A título de exemplo, usarei as falas de

Quintiliano e D. Avelina. Ambos deixaram expresso, com muita contundência, o desejo de

vender o lote e partir.

Quintiliano — “Pode me acreditar que desse tempo para cá... que até hoje... Eu não gosto daqui. Não gosto daqui. Avelina — Ele não gosta daqui. Só culpa eu. Quintiliano — Não gosto. Sabe por que eu culpo ela? Não é porque a gente veio pra qui. Como eu acabei de dizer... que lá... falei pra moça... falei pra ela: nem eu sou culpado nem você é culpada. Sabe porque eu brigo com ela? É porque eu cheguei, quis tirar o corpo fora, chamei ela: “Vamo vender isso aqui, vamos sair fora. Isso aqui é igual rabo de cavalo, é pra baixo”. Eu digo e outra: o tempo de vender isso aqui é agora, mais tarde você quer vender e não acha quem compra, tá entendendo? E porque tá vindo um alagoano, um pessoal de Mato Grosso... Sei que... sei que... Agora é tempo. Você vende o lote, vende a casa, vende tudo. Mais tarde você quer vender e não pode. Foi ino, foi ino... O negócio foi arrochando. Ela percebeu. Quando acordou... Digo, agora é tarde. Você achano quem compre pode vender. Eu digo, agora... agora não vende mais não (com tristeza), o tempo era aquele... quem vai comprar? Ninguém compra... D. Avelina — Aqui não se vende mais lote! Parou... Quintiliano — Não, compra não, ninguém quer de maneira alguma. D. Avelina — Parou.

......................................................

Quintiliano — Ainda aconteceu de gente da Lapa comprar aqui lote e casa. Agora, ninguém quer não. Digo agora é tarde.

192 Agrovilas – Ali onde miséria pouca é bobagem; reportagem de Joaquim Lisboa Neto, O posseiro, Santa Maria da Vitória, ano I, n. zero, janeiro de 1979, p. 5.

171

Gente de fora não quer mais não! Quer sair, os que tá, tá entendeno? Agora é tarde. Qui depois desse negócio. Ela disse: “Rapaz, se eu achar quem compra, eu vendo, nós vende”. Não, agora não vende mais não. Digo: óia, agora não vende mais não. Se nós, se você quiser fazer como eu disse pra Sobreira [referindo-se ao ex-Superitendente do Incra da Bahia]... Eu deixo tudo e vou me embora. Adeus Madalena! Se você quiser deixar tudo aí pra algum filho tomar conta ou deixar aí à toa... Mas pra vender, não vende, não.

...................................................... Quintiliano — Teve gente que reformou a casa, a casa tá grande. Se pedir três mil reais, não acha. Não acha, não. Eles admiraram, um dia lá na Associação. Depois da palestra aí, digo: “Oh! Falando daqui. Digo, oh!: sabe o que acontece? Eu tô vendendo o meu lote, vocês tudo conhece. Todo mundo diz que é um ótimo lote, tem uma área de pasto, com a casa, residência, aquela casinha de farinha, aquele quintalzinho d’ eu botar o animal, de capim de corte, lá de cima. Lá perto do cemitério eu tenho outra roça, de pasto. Eu tou dando por cinco mil. Teve gente que perguntou: você não tá ficando doido, não? Eu digo: não. Eu tô é certo. Tou doido é porque não acho quem compre”. — Mais da casa de farinha você vai tirar o motor? — Disse: Não, negativo. Lá tem dois motor, tem um ligado e outro assim... [desligado]. Aquele que está encostado eu dou de presente o amigo que me comprar, que me tirou a faca da goela, tá entendeno? O que tá ligado, tá ligado e o outro eu dou de presente, ainda: “Moço. Tá ficando doido”. — Digo: Não. Pode acreditar que até essa data nunca ninguém veio me falar nada. Eu digo...

Geraldino também faz restrições ao Projeto e diz sentir saudades de Bem-Bom, em Casa

Nova. Para ele, no povoado beradero “era que se tinha vida boa”; havia lagoas; a pesca era

farta e eles faziam irrigação. Nas agrovilas tudo é diferente. As poucas aguadas não são tão

piscosas e, além disso, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) proíbe a pesca.

Não sei como vai ser agora. O IBAMA está apertando. Não sei de quê vamo viver. O povo vive aqui da aposentadoria e do cafezim que os filhos manda de São Paulo. A comadre mesmo [aponta para a comadre que se encontra um pouco afastada do grupo] quem sustenta é a filha que vive em São Paulo.

Aliás, os indivíduos provenientes da área de Sobradinho que vivem em Serra do

Ramalho têm razões de sobra para se sentirem ludibriados pela CHESF e demais agências

governamentais envolvidas no Projeto Sobradinho. Primeiro, em razão das promessas

sedutoras. Segundo, em razão da ameaça de que, caso retornassem à borda do lago, não teriam

172

direito à terra: mais tarde, tiveram conhecimento do reassentamento em Barra da Cruz da

população que retornou de Serra do Ramalho. Por último, em razão da implantação do Projeto

Formoso às margens do Rio Corrente, atendendo basicamente os habitantes da micro-região

de Bom Jesus da Lapa e Santa Maria da Vitória; deveria ter sido nas agrovilas. “Eles nos

enganou. O projeto Formoso era nosso. Os desgraçados nos enganou e deu tudo para o povo

da Lapa. Esse projeto era nosso. Eles errou... errou.”193

Criado pela CODEVASF194, em princípios de 1980, o projeto Formoso atendeu a

demanda por terras de pequenos agricultores e sem-terras dos municípios localizados em seu

entorno (Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória, Coribe e Santana)195. Instalado às

margens do Rio Corrente, pratica-se no projeto a agricultura irrigada, voltada para a produção

de frutas, especialmente banana.

3 - Antes do inferno... em Serra do Ramalho

Antes do Projeto Especial de Colonização não havia o território de Serra do Ramalho.

Ele foi uma construção do INCRA. O que havia era um acidente geográfico — formado de

serras de baixa altitude —, encravado na confluência dos Estados da Bahia/MinasGerais e

Goiás, localizado na região econômica do Médio São Francisco; e vários povoados

espalhados em duas áreas distintas: a beira do rio São Francisco e a região serrana.

Não temos informações sobre o número de habitantes de Serra do Ramalho antes do

Projeto. Inferências apontam para a existência de mais ou menos 6 mil pessoas, concentradas

principalmente nos povoados dispersos na beirada do Rio. Dentre os patrimônios serranos,

destacava-se o povoado denominado de Ramalho196. Patrimônios são áreas doadas ou

apropriadas em nome das paróquias. Deles originam-se várias vilas e sedes municipais.

193 Relato de Quintilhiano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 24/04/2000. 194 O “Projeto Formoso” compreende área de 22 mil hectares e fica localizado no município de Bom Jesus da Lapa. Concebido antes da implantação das Agrovilas, o Perrímetro Irrigado, segundo Agripino Coelho Neto, foi implantado em duas fases. Primeiro o A, em 1985; depois o H, em 1987. Mais detalhes, vide: As repercussões espaciais das políticas de irrigação no vale do São Fransisco: uma análise do Perímetro Irrigado Formoso no município de Bom Jesus da Lapa, Agripino Coelho Neto. 195 Zona de fronteira, em meados de 1970, essa área vivenciou expressivos conflitos de terra, envolvendo grileiros e posseiros. Em 1976, o advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Maria da Vitória Eugênio Lyra foi assassinado a mando de grileiros.

173

O Ramalho, meu amigo, é tão antigo quanto a cidade de Carinhanha! O Manuel Nunes Viana chegou aqui escorraçando os índios e eles foram encostar no Ramalho; ali, eles montaram uma aldeia: começou com uma aldeia de índios (Souza, s/d, s/e, p.49).

Do Povoado do Ramalho nasceria a denominação Serra do Ramalho197.

No passado, toda a margem esquerda do São Francisco — o chamado Além São

Francisco — que vai do Rio Carinhanha ao município de Casa Nova, pertencia à Província de

Pernambuco.

Antes da criação e implementação do Projeto, a região era praticamente toda ocupada

por uma vegetação complexa — “Mata Caatingada”, Cerrado e Vegetação Hidrófila

(Relatório do INCRA, 1994, p. 7) — , possuindo um reduto198 de mata virgem contendo

espécies nobres, tais como o ipê, o cedro, a aroeira, etc.199 Em relação às localidades rio

abaixo, o clima era (ainda é?) ameno e apresenta alta precipitação (Pierson, v.1, 1972, p. 150).

A terra era fértil para lavoura e pastos para o gado. Além dos rios perenes — São Francisco,

Carinhanha, Formoso e Corrente, na encosta da Serra corriam riachos e córregos

intermitentes.

Toda uma região de muita fartura: mamona, algodão, feijão de corda, feijão, milho, etc. Todo mundo engordava porcada; gado era pouco, havia muita dificuldade para fazer manga: muita onça, dificuldade para comercializar o gado, leite, a carne... (Souza, s/d, p.26).

No passado, a região era vista pelas populações sertanejas como uma espécie de oásis,

ao qual recorria grande parte dos flagelados das constantes secas que acometiam o

Nordeste200, sendo considerada como menos árida, recoberta por matas frondosas e ricas em

espécies animais.

A região de Serra do Ramalho teve seu povoamento ligado à expansão bandeirante.

196O povoado está localizado próximo ao Loteamento Roberto e não foi atingido pelo Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho, mas alguns dos moradores da área foram deslocados para a Agrovila 17. 197 A região é semi-árida, com índice pluviométrico superior a 800 mm. As coordenadas geográficas são: a) latitude: 13o37 e b) longitude: 43o34. A altitude é de apenas 400 metros. Serra do Ramalho dista de Salvador 845 quilômetros, e 40 quilômetros de Bom Jesus da Lapa. A Agrovila 9, sede do Projeto, dista, aproximadamente, sete quilômetros do Rio São Francisco. 198 Mais detalhes sobre o conceito de reduto, vide: Aziz Ab’Saber, Relictos, redutos e refúgios, 2003, p. 145-146. 199 Constatou-se, pela pesquisa do Consórcio, que mais de 70% da área de todas as propriedades permanecem cobertas por matas.” Empresa Hidroservice, Projeto Sobradinho. Estudo de viabilidade do Projeto de Colonização de Bom Jesus da Lapa, 1975, p. 88. 200 Bem antes da instalação do Projeto, Souza identificou em Serra do Ramalho várias pessoas nascidas no Estado de Pernambuco e em vários pontos da Bahia.

174

Ainda outros paulistas se fixaram no Médio São Francisco e, na verdade, as migrações para a área de Carinhanha e Juazeiro finalmente chegaram a tal ponto que este trecho veio a ser, nas palavras de João Mendes de Almeida, uma ‘verdadeira colônia de São Paulo’. Em princípios do século XVIII refere-se que havia arraiais fortificados em Manga, Santa Rita (hoje Carinhanha) e Barra, onde as famílias paulistas amplamente dispersas se reuniam, de vez em quando, vindo de suas fazendas de criação (Pierson, v.1, 1972, p. 280).

Todavia, o povoamento efetivo esteve ligado à migração de flagelados da seca vindos

da Serra Geral e da Chapada Diamantina.

Estes três companheiros faziam parte do êxodo de retirantes de lá de fora: Joaquim vinha de São Sebastião do Rio do Pires; Antônio Pina e João Rodrigues da Mata saíram de Paramirim. Vieram fugindo da seca, da sede e da fome; primeiro, vieram rompendo de pé e esbarraram na Gameleira dos Cocos; assim, encostaram os três na Sambaíba de Carinhanha. (Souza, s/d, p. 34).

A produção estava ligada à pecuária extensiva e pertenceu ao antigo Morgadio de

Guedes de Brito — Casa da Ponte. O procurador da herdeira da sesmaria Joana da Silva

Guedes de Brito, Manuel Nunes Viana, vivia em Carinhanha, da criação de gado e das

atividades mineradoras. Na região empreendeu feroz caçada aos índios e foi dali que partiu

em direção às Minas Gerais para enfrentar os paulistas, na chamada Guerra dos Emboabas.

A história oral registra a presença de indígenas na região: “Aqui tinha muito índio também; na serra, até hoje, tem muito escrito de índio; nós já achou panela, pote, prato, cachimbo, tudo de barro cozido, enterrado nesses matos. Os índios moravam qui, depois eles sumiram pro alto da serra. Eu vi uma panela toda pinicadinha de unha, muito bonita: era uma aldeia deles; a gente encontra escritos e desenhos nas pedras das grunas. Ali pro lado do Morro Redondo, tem uma gruna com a porta fechada com uma parede de barro; cheia de escritos nessa porta; ninguém nunca conseguiu quebrar pra ver. Deve ter muita coisa de índio escondido lá dentro. Os índios povoaram aqui e, depois, foram sumindo pra fora. No meio da rua, Olímpio, quando foi fazer a casa, tirou um pote de terra, cheio de ossos de gente: os índios enterravam os seus mortos assim: separavam as juntas todas e entulhavam dentro de um pote. Esses sarcófagos e esses ossos a gente ainda encontra enterrado por aí, é só caçar (Souza s/d, p.52-53).

175

É difícil precisar os grupos indígenas que viveram na Serra. Há registros de que, ali, se

refugiaram os caiapós. A propósito, escreveu Souza e Almeida:

Os caiapós, entretanto, da margem esquerda, bem como os Rodelas resistiram bravamente e não se renderam, preferindo fugir ou suicidar a se entregarem à escravidão dos brancos portugueses. Eles se embrenharam pelas matas adentro e para o alto da Serra do Ramalho e da Serra do Parrela, no município de Montalvânia (1994, 31).

Após a submissão e o extermínio dos indígenas, as disputas de terras, de poder político

e de prestígio no vale do São Francisco passaram a envolver os potentados da região. Os casos

de violência envolvendo fazendeiros no vale do São Francisco tornaram-se bastante

conhecidos. A região que compreende Carinhanha, Serra do Ramalho, Santa Maria da Vitória

e Correntina foi palco de um sem número de conflitos envolvendo os coronéis João Duque,

Josefino Moreira, Leônidas e Clemente Araújo de Castro.

Não é possível remontar, aqui, a história da propriedade da terra na região depois da

fragmentação da sesmaria da família Guedes de Brito. Tudo indica que algumas áreas caíram

em comisso, isto é, voltaram ao domínio do Estado em virtude de os concessionários não

terem cumprido as condições da doação (Silva, 1996, p. 97).

Há registros, contudo, da existência de grandes fazendas de gado e engenhos na área.

Em todas havia a presença de posseiros e agregados201. Às vezes, estes tinham o “primitivo”,

isto é, documento lavrado em cartório atestando a compra da posse na área da fazenda. A área

adquirida nem sempre era medida e demarcada. Em suma, o “primitivo” atestava apenas que

Fulano ou Beltrano havia comprado determinado valor em dinheiro de terra, sem que a área

fosse declarada e sem que houvesse, na maioria dos casos, demarcação de seus limites. Era

muito comum se falar que o Fulano de Tal comprou 100 ou 200 mil réis de terra em tal ou

qual fazenda. Lançar mão do “primitivo” tornou-se arma comum para os posseiros

reivindicarem seus direitos seculares, mas também dava azo à grilagem, que a intervenção do

INCRA minorou, segundo atestam vários entrevistados. A propósito da utilização do

“primitivo” e da grilagem em Serra do Ramalho, Souza escreveu:

José Caetano adquiriu sua terra, comprando um primitivo do Véio Miguel e herdando outro do sogro, João Messias. O primitivo era um

201 Levantamento executado pelo INCRA, antes da desapropriação da área, revelou “que 38% dos agricultores são posseiros, 24% são proprietários, 19% são agregados, 17% são simples ocupantes e 2% não declararam sua condição”. Empresa Hidroservice, op. cit., p. 88.

176

direito de posse, comprado ao dono da terra, para trabalhar como uma espécie de agregado, na fazenda; toco da Escritura original era a Escritura oficial de uma Fazenda Geral. Primeiro compravam apenas o primitivo em réis, cruzeiros, ou seja, só a posse de um pedaço de terra qualquer, naquela fazenda; quando fizesse o rolamento, estes primitivos todos entravam na ‘valuação’. Pagando o valor da ‘valuação’, adquiria a posse e a propriedade da terra e podia registrar o primitivo. Cada réis ou cruzeiros de primitivo de terra, numa Fazenda determinada, correspondia a uma quantidade de hectares; media e demarcava. Este sistema facilitou e estimulou a grilagem: a pessoa de má fé conseguia um documento falso de um primitivo, numa Fazenda Geral, e ia expulsar posseiros em vários lugares; outras vezes, conseguia um documento falso; vendia a ‘valuação’ e não dava baixa e ia vendendo a mesma terra; com um primitivo na mão, virava proprietário de muitas terras, muitas posses roubadas. Não era difícil conseguir estes documentos falsos: os cartórios, a justiça, a polícia davam guarida a esta corrupção, protegendo e se vendendo aos grileiros ( s/d, p. 108).

A população do povoado de Canabrava, como de tantos outros localizados na região de

Serra do Ramalho e Carinhanha, sentiu de perto a ação de grileiros. Pouco antes da

movimentação do INCRA na região, apareceram no povoado representantes do suposto

proprietário das terras ali situadas, reclamando direitos. Eles queriam abrir uma picada e

cercar a área. O suposto proprietário da área era de Belo Horizonte e contou com o apoio da

polícia de Carinhanha. Os habitantes de Canabrava reagiram. Recorreram a abaixo-assinado, à

FETAG, ao bispo D. José Nicomedes Grossi; buscaram a mediação de políticos e, por fim,

conseguiram permanecer em suas terras.

No passado, a região que hoje compreende os municípios de Carinhanha, Serra do

Ramalho, Coribe e Feira da Mata era erma, freqüentemente usada para coito de bandidos e

jagunços dos coronéis. O isolamento era quase total. Com exceção da estrada de tropas que

cortava Serra do Ramalho, ligando Carinhanha a Santa Maria da Vitória, inexistiam vias de

comunicação terrestre (Pierson, 1972, p. 12. Tomo II). Os beraderos e riberinhos usavam as

barcas movidas a remo e vela; quando partiam para os centros maiores, utilizavam os vapores

que aportavam em Sítio do Mato e Carinhanha.

Na região em apreço, a população é, predominantemente, mestiça, com fortes traços

africanos. Os povoados de Rio das Rãs, Pau d’Arco, Parateca e outros da margem direita são

constituídos por remanescentes de quilombolas202. Recentemente, a população de Rio das Rãs

202 Mais detalhes sobre a existência de remanescestes de quilombos no Alto-Médio São Francisco, vide: Do Pau Preto a Rio das Rãs, de Valdélio Santos Silva, 1998; e de José Evangelista de Souza & João Carlos Deschamps

177

teve suas terras tituladas; a população dos demais povoados ainda luta pelo reconhecimento

de seus direitos sobre a terra onde viviam seus antepassados. Na margem esquerda, há

remanescentes de quilombolas nos povoados de Barra do Parateca e Boa Vista e acredita-se

que também no povoado de Canabrava203.

Essa população praticava a policultura consorciada a outras atividades. Os serranos

viviam basicamente da agricultura de sequeiro (milho, feijão, mandioca, mamona e algodão) e

da criação de pequenos rebanhos — bovinos e caprinos. Como em todo o sertão nordestino o

rebanho é criado solto, as cercas são utilizadas para delimitar o espaço da roça. Os habitantes

dos brejos, além das culturas tradicionais de sequeiro como milho, feijão e mandioca,

plantavam também arroz, frutas e legumes. Os beraderos viviam da pequena produção

agrícola de vazante e da pesca artesanal.

Tanto o mobiliário quanto o vestuário eram rústicos. Em geral, fabricados pelos

usuários com artefatos produzidos ou extraídos na própria região.

Os patrimônios, como eram denominados na região os diminutos núcleos urbanos, além

da venda e de uma pequena capela, compreendiam umas casas dispersas, em geral, habitadas

pela parentela. Quase todas eram construídas em adobe ou pau-a-pique e cobertas de telhas

fabricadas nas olarias da própria região, ou de palha. Era na sede do povoado que os padres

procediam à “desobriga” e os fiéis promoviam festa, em geral, de caráter religioso.

Quando, em 1975, o INCRA procedeu à desapropriação da área para criação do Projeto

Especial de Colonização, as terras de Serra do Ramalho, de acordo com Marcel Bursztyn, se

concentravam nas mãos de poucos proprietários e aproximadamente mil posseiros.

Em 1975, as terras situadas nos municípios de Bom Jesus da Lapa e Carinhanha, entre a Serra do Ramalho e o Rio São Francisco, tinham uma situação jurídica pouco clara. A área incluída naquele primeiro município era dominada por três proprietários: Luís Viana Filho (então Presidente do Senado Federal), Ângelo Calmon de Sá (então Ministro da Indústria e Comércio) e o General Guilherme Fonseca (cujas terras estavam em nome de terceiros). Só os dois primeiros afirmavam possuir 180.000 ha, mas a titulação encontrava-se em situação irregular: o primeiro só dispunha de documentação referente a 17.000 ha e o segundo, a 5.000 ha (Bursztyn, 1988, p. 23).

Almeida, O mucambo do Rio da Rãs. Um modelo de resistência negra, 1994 e Comunidades rurais negras: Rio das Rãs – Bahia, s/d. 203 Relato de Graça. Entrevista concedida à autora em Guanambi, 29/07/2005.

178

Ainda de acordo com Bursztyn, o processo de desapropriação foi difícil, gerou pressões

políticas, apelos à Justiça e um ato criminoso. “O cartório de registro de terras de Bom Jesus

da Lapa foi incendiado, destruindo-se os livros sem que o prédio fosse queimado. Mas a

documentação perdida havia sido previamente microfilmada pelo INCRA, órgão responsável

pela destinação da população transferida de Sobradinho” ( 1988, p. 23).

A queima do cartório não foi confirmada por nenhum entrevistado. Dois de seus

funcionários negaram-na. A procuradora do Incra à época — Dra. Regina Calhau — em

conversa informal com a autora, disse desconhecer o ato criminoso mencionado pelo

pesquisador. No entanto, as presseos são evidentes. Durante todo o processo de

desapropriação, a atuação do INCRA esteve na mira dos políticos arenistas, situados nas

diferentes esferas de poder. Para se ter idéia, o deputado Manuel de Almeida Passos Filho, em

discurso na Assembléia Legislativa da Bahia, rebateu alegação do INCRA de que todas as

propriedades da área desapropriada do futuro Projeto Especial de Colonização de Serra do

Ramalho eram cadastradas como latifúndios por extensão ou exploração. Acusou o órgão de

prejudicar os fazendeiros — “que perderam anos de trabalho e vivem, atualmente, um clima

de insegurança e desestímulo” — e cobrou aceleração do processo indenizatório, “visto que o

órgão já se emitiu na posse de algumas propriedades e seus titulares ainda não foram, ao

menos, citados pela justiça federal, e, assim, não podem dispor dos recursos necessários para

adquirir outras terras em que abriguem seus animais” (A Tarde, 30/04/1975, p. 5).

Em relação às pressões políticas, Lígia Sigaud informa que, dentro do próprio Grupo

Interministerial, houve uma proposta “no sentido que se encontrasse uma forma de liquidar os

Títulos da Dívida Agrária dos proprietários a serem desapropriados na área do Projeto de

Colonização de Serra do Ramalho, para contornar suas resistências. Para tanto, seriam

utilizados recursos dos bancos do Brasil, BNB e BNCC. Não se sabe se o fato ocorreu, mas a

possibilidade de resgate da TDAs ser levantadas no interior do aparelho de Estado, é por si só

bastante significativa das predisposições dos que detinham o poder.” (Sigaud et al., 1988, p.

285)

O drama de Sobradinho atingiu em cheio os habitantes da Serra. Os pequenos

proprietários e posseiros foram tomados de surpresa e de desespero. Para a população que

vivia em Serra do Ramalho, os dias subseqüentes à desapropriação foram de incertezas e

angústia. Após a publicação da lei de desapropriação, o INCRA começou a agir na área. Os

funcionários do órgão se embrenhavam nos povoados, exigindo dos moradores o documento

179

da terra; examinavam-no e chamavam o proprietário para a medição. Quando os moradores

não apresentavam o documento de propriedade da terra, eram avaliadas apenas as

benfeitorias. Segundo Nengo Xique-Xique204, o INCRA só reconhecia a “quinzenária”, isto é,

os títulos de propriedade registrados em cartório há mais de quinze anos. Certamente, a

medida visava deter a ação dos grileiros na área.

Os mesmos métodos aplicados em Sobradinho foram reeditados pelos técnicos do

INCRA em Serra do Ramalho. De acordo com o relatório da CPT, o INCRA alegava que o

projeto era do governo e que não tinha recursos para pagar altas indenizações, intimidando os

desapropriados a não reclamarem das avaliações. (Cordeiro, 1982, p. 15).

Na oportunidade, os técnicos do órgão avisavam aos desapropriados que, a partir

daquele momento, estavam proibidos de cultivarem roças, de fazerem novas benfeitorias,

permitindo-se apenas o plantio de lavouras de ciclo curto. Mas as indenizações só começaram

a ser pagas em 1977, quando as primeiras agrovilas já estavam sendo ocupadas pela

população de Sobradinho.

Os camponeses expropriados dizem que os valores que receberam a título de

indenização eram muito baixos e que suas propriedades e benfeitorias foram subavaliadas. Ao

contrário dos deslocados de Sobradinho, que receberam os valores em seus povoados, os

expropriados de Serra do Ramalho tinham que retirar a importância na sede do INCRA,

localizada na capital baiana. Tal fato gerou descontentamento entre os expropriados, pois,

muitas vezes, a importância que receberiam dava tão somente para o translado a Salvador.

Inconformados, uns poucos desapropriados recorreram à justiça, tendo que pagar, às vezes,

honorários de mais de quinze por cento do valor recebido. Desse modo, todos reclamaram das

perdas e das mudanças operadas em seu cotidiano pelo Projeto.

Durante o processo desapropriatório, o INCRA deixou claro para os pequenos

proprietários, agregados e posseiros expropriados que poderiam ser reassentados nas

agrovilas, desde que obedecidos alguns critérios. Um deles era que só seriam aceitos como

“colonos” os indivíduos que tivessem idade inferior a 59 anos. A medida era discriminatória,

pois os originários de Sobradinho que tinham essa idade receberam casas na agrovila. Por que

os expropriados de Serra do Ramalho não teriam os mesmos direitos? Era o que perguntavam

todos.

204 Entrevista concedida à autora em Carinhanha, 14/02/2001.

180

Diante dessas medidas, algumas famílias, de posse das exíguas indenizações, partiram

para São Paulo e Goiás, visando refazer suas vidas. Outras mantinham expectativas favoráveis

em relação ao Projeto. Acreditavam que sua implantação resultaria em benefícios. O

entusiasmo parecia maior em relação ao projeto de irrigação e à concessão de crédito agrícola

prometidos pelos agentes governamentais. Tendo isso em vista, os desapropriados de

Canabrava, por exemplo, passaram a reivindicar a permanência no local, visando beneficiar-

se das mudanças que o projeto promoveria na região. É isso que se depreende da fala de

Nengo Xique-Xique do povoado de Canabrava: [...] aquele comentário do projeto, que o

projeto vinha, ia beneficiar, ia dar irrigração pra todo mundo. Aí a gente ficamos naquela, mas

ficamos aqui na ponta da área.”205

Na medida em que o tempo foi passando, o desencanto em relação ao Projeto chegou

aos povoados. As reservas em relação à mudança para as agrovilas aumentaram. Os primeiros

a empreenderem resistência foram os habitantes dos povoados situados à beira do Rio São

Francisco, em áreas que, a partir da implantação do Projeto, se transformariam, segundo

diziam os técnicos, em reservas extrativistas. Os habitantes de Campinhos, por exemplo,

resistiram a toda investida do INCRA e só mudaram para as Agrovilas 8 e 9 depois de muitas

idas e vindas. Pouco mais tarde, indivíduos reassentados de procedências as mais diversas

ocuparam as áreas de reserva e ainda hoje vivem às margens do Rio São Francisco.

Percebendo que o valor da indenização era irrisório e, portanto, insuficiente para

qualquer aquisição na região, uma parcela se rendeu às evidências, resolvendo permanecer

nos seus locais de moradia e aguardar posição do INCRA quanto ao local de reassentamento.

A população serrana reivindicava a mudança para as Agrovilas 15 e 16, situadas próximas de

seus povoados. Mas o órgão havia destinado as duas agrovilas para os colonos sulistas.

Duas comunidades assumiram, vamos dizer assim, uma postura um pouco mais

organizada e aguerrida: os indígenas Pankaru206, que reclamavam a demarcação de área em

Serra do Ramalho, e os habitantes do povoado de Canabrava, situado às margens da nascente

do Riacho das Pitubas (ANAI, s/d, p. 2).

A pequena comunidade Pankaru localizada na Agrovila 19 compreende um conjunto de 14

famílias, aproximadamente 60 pessoas, e é a mais pobre dentre todas de um projeto que se

205 Relato de Nengo Xique-Xique.. 206 Nos anos 80, a comunidade Pankaru da Agrovila 19 mudou seu nome deliberadamente, para diferenciar-se dos Pankararu que vivem no Estado de Pernambuco. Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de Pernambuco, reconhecidos secularmente pelas autoridades constituídas.

181

acredita fracassado. É também a que menos dispõe de equipamentos urbanos. Ela não é

servida de Posto de Saúde, de escola de ensino médio nem de transporte regular. O

fornecimento de água é precário e as estradas vicinais, no período das chuvas

(outubro/novembro a fevereiro/março), tornam-se intransitáveis. Na antiga aldeia, distante

aproximadamente seis km da Agrovila 19, as condições de vida eram ainda mais precárias: as

casas eram de pau-a-pique e não havia escolas.

Figura 5 – Toré (foto: Pe. Raimundo Bonfim)

Índios brincando o Toré. Com longo histórico de contato, o ritual do Toré é um dos poucos elementos da cultura indígena ancestral mantida pelos Pankaru.

Acatando reivindicação dos índios, que sempre rejeitaram a vida na Agrovila, em 1999, a

Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) construiu um conjunto de casas em área localizada

"na boca da mata". As casas são de alvenaria e têm três cômodos. Além delas, foram

construídos uma pequena Igreja e um Posto de Saúde. A escola para os primeiros ciclos do

ensino fundamental se encontra em fase de construção. No entanto, os índios continuam

vivendo entre a nova aldeia e a Agrovila 19, pois a Companhia de Eletricidade do Estado da

Bahia, em que pese as inúmeras solicitações da Associação da Aldeia Vargem Alegre, até

2003 não tinha instalado energia elétrica nas casas.

182

Remontar aos primeiros contatos dos atuais Pankaru com membros da sociedade não-

indígena é tarefa das mais difíceis, sobretudo quando não se sabe sequer a qual tronco

lingüístico eram filiados. Grupo étnico recentemente diferenciado, os Pankaru ainda não

contam com estudos etnográficos, e documentos históricos versando sobre aspectos da

história do grupo são desconhecidos. É provável que a família do ex-pajé Apolônio Kinane

seja proveniente dos aldeamentos indígenas patrocinados pelas sucessivas missões religiosas

instaladas no Vale do Baixo e Médio São Francisco, entre os séculos XVII e XVIII.

A representação da história contemporânea dos Pankaru é marcada por

descontinuidades, elaborações e reelaborações empreendidas pelo pajé Apolônio e sua

família, visando atender os interesses e as conveniências do grupo.

Na representação dos Pankaru, os constantes deslocamentos do patriarca marcaram a

resistência e a luta pela territorialização, forjando a identidade familiar e grupal. Assim, a

etnogênese da comunidade Pankaru está fortemente entrelaçada à saga do patriarca e pajé

Apolônio, recentemente falecido (2002).

Segundo entrevista do atual cacique207, a saga do pajé Apolônio teria começado muito

cedo. Na primeira década do século XX, adolescente, deixou o Lero — povoado onde teria

nascido —, localizado a seis léguas de Salambaia, região do agreste pernambucano. Depois de

perambular por vários municípios de diferentes estados do Nordeste, travou contato com os

Pankararu da Aldeia de Brejo dos Padres, município de Tacaratu - PE.

De acordo com o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio (1992, p. 3-9),

já casado com D. Maria, uma alagoana que conhecera na Paraíba, decidiu fixar residência nas proximidades da área indígena onde deixava a família enquanto prosseguia suas viagens. De inequívoca origem indígena, eram aceitos como 'parentes' pelos índios locais".

Alguns anos mais tarde, segundo consta, Apolônio desentendeu-se com o cacique

Pankararu e partiu em direção a Paulo Afonso-Bahia. Em princípios de 1950, trabalhou na

localidade nas obras da Usina Hidrelétrica construída pela CHESF. Em seguida, partiu para

trabalhar na Usina Hidrelétrica de Correntina-Bahia, como vigilante. Encantado com a

existência de mata fechada na região da Serra do Ramalho, visando ali se estabelecer,

207 Entrevista concedida à autora na Agrovila 19, Serra do Ramalho, 9/1999 e 13/3/2003.

183

retornou, imediatamente, a Paulo Afonso para buscar a família. Segundo uma de suas

filhas208, a viagem de Paulo Afonso à Serra do Ramalho foi penosa e durou vários meses.

No imaginário Pankaru, Apolônio Kinane adentrou a mata à procura de uma

comunidade indígena denominada Morubeca, que sabia viver nas proximidades da Serra do

Ramalho, município de Bom Jesus da Lapa-BA, com a qual acreditava ter laços de

parentesco. Quando chegaram à região, os indígenas procurados já não se encontravam no

local. Haviam sido expulsos por grileiros, ganhando as picadas e estabelecendo-se segundo

consta, em território goiano.

A chegada dos Pankaru na Serra do Ramalho coincidiu com a exploração de

minérios na região. No imaginário indígena, foi o patriarca Apolônio quem descobriu

minério na Serra Solta (fluorita), em fins dos anos 50, recebendo em recompensa do

prefeito municipal de Bom Jesus da Lapa, Antônio Cordeiro, área na qual havia se

estabelecido, ficando a salvo das violências dos brancos.

Em princípios de 1970, o Oeste e o extremo sudoeste da Bahia tornar-se-iam palcos

da ação de inúmeros grileiros. Conforme vimos, decreto presidencial, publicado em

1973, declarava a região do Médio São Francisco prioritária para desapropriação. A

medida se fazia necessária por causa da desapropriação não só da área da Barragem de

Sobradinho, mas também da área onde seria reassentada a população desabrigada.

Diante da possibilidade de serem indenizados, os grileiros começaram a atuar na região,

tentando expulsar a população local desprovida de título de propriedade.

As terras ocupadas pela família do patriarca Apolônio passaram a ser reivindicadas por

um forasteiro que se dizia herdeiro das mesmas. Este passou a atormentar o indígena e sua

família, bem como os poucos posseiros que viviam na área. Instalou-se em Serra do Ramalho

um clima de terror, pois, visando expulsar os posseiros, o forasteiro ameaçava derrubar e

queimar suas benfeitorias, contando com a conivência das autoridades de Bom Jesus da Lapa.

Alguns anos depois, o forasteiro “vendeu a questão”, ou seja, passou as terras a um fazendeiro

da Bahia, já instalado na área.209

Articulado com as autoridades de Bom Jesus da Lapa, o fazendeiro utilizou a polícia

militar da Bahia para expulsar os indígenas. Depois de adentrarem a casa da família Kinane,

levaram presos o patriarca Apolônio, um filho e dois genros para a delegacia de Bom Jesus da

208 Entrevista concedida à autora na Agrovila 19 Serra do Ramalho, 13/3/2003. 209 Somente depois da contenda com os indígenas e da presença da Polícia Federal na área, o fazendeiro teria provado a existência da cadeia dominial das terras que reivindicava como suas. FUNAI, s/d, p. 2.

184

Lapa. De acordo com a filha do velho pajé, no meio do caminho, os prisioneiros foram

levados para a sede da fazenda do postulante e torturados pelos seus capangas com a

complacência dos policiais.

Diante de tamanha violência, os indígenas resolveram partir para Brasília à procura da

FUNAI. O contato com o órgão, segundo o atual cacique, mudou a perspectiva de vida de seu

povo. Informados de seus direitos em relação às terras de seus ancestrais, retornaram à região

de Serra do Ramalho, visando enfrentar o fazendeiro e novas hostilidades foram registradas.

Nesse entremeio, encontrava-se em implantação na área o Projeto Especial de Serra do

Ramalho, cuja finalidade precípua, como visto acima, era reassentar os expropriados da área

da Barragem de Sobradinho, tornando suas terras ainda mais cobiçadas pelos

grileiros/fazendeiros ávidos em embolsar os valores da indenização.

INCRA e FUNAI entraram em negociação para o reconhecimento do direito à terra

dos Pankaru. No entanto tudo conspirava contra a permanência dos indígenas em Serra do

Ramalho, uma vez que o primeiro órgão, mantinha-se firme no propósito de ceder apenas

vinte hectares a cada família assentada, sugerindo à FUNAI “remoção dos índios ou a sua

emancipação para que tenham direitos ao assentamento de acordo com o disposto no Estatuto

da Terra”.

Os índios resistiram e, depois de idas e vindas, os direitos dos Pankaru foram

reconhecidos. Porém não receberam a área reivindicada. Coube-lhes aproximadamente mil

hectares, homologada em 1991, e um lote urbano de três hectares localizado na Agrovila 19,

onde foram construídas 50 casas.

Como os Pankaru resistissem à fixação na Agrovila 19, algumas casas ficaram por um

tempo desocupadas. Sem-terras provenientes de vários pontos da Bahia tentaram invadi-las.

Os Pankaru exigiram a intervenção do INCRA. Entretanto, o órgão não foi capaz de impedir

que os "colonos" destruíssem as casas, levando consigo telhas e blocos. Ainda hoje a área é

disputada pelos indígenas e por um não-índio que afirma ter o título de propriedade do lote.

A história da resistência dos habitantes do povoado de Canabrava, localizado no

município de Carinhanha, apresenta alguns pontos de semelhança com a dos Pankaru. Em

meados de 1975, em uma área praticamente isolada e bastante dispersa que tinha por núcleo

urbano o pequeno povoado de Canabrava, viviam por volta de 196 famílias. No núcleo urbano

viviam aproximadamente 24 ou 25 famílias, todas aparentadas entre si, num sistema de

185

relações de parentela. No pequeno núcleo urbano localizado próximo à nascente do Riacho

das Pitubas, além da venda, havia um pequeno grupo escolar e uma capela.

Figura 6 - Casa em ruína (foto: Luciene Aguiar)

Casa localizada na Agrovila 19, destelhada, provavelmente, em razão de conflito envolvendo

sem-terra e indígenas, conforme relatos de entrevistados.

Enquanto vários povoados foram abandonados, Canabrava, localizado quase no sopé da

Serra, permaneceu. Enquanto os funcionários do INCRA implantavam nas agrovilas o regime

do “cativeiro”, os habitantes de Canabrava tomaram uma decisão: não aceitariam as medidas

do governo. Eles reivindicavam lotes rurais acima do módulo rural e sua permanência no

povoado.

As reivindicações foram legitimadas e estimuladas pela ação do pároco de Carinhanha,

da CPT e da Diocese de Bom Jesus da Lapa. As instituições colocaram à disposição dos

desapropriados recursos humanos e materiais para que levassem adiante a reivindicação da

permanência em Canabrava210. A propósito:

Aí a gente ficamos... Veno a continuidade da agrovila e o desenvolvimento, achamos por bem que não era viável pra nós aquilo. Devido a nossos costumes. A gente... O costume era criar uma vaca, criar de tudo para ajudar nossa sobrevivência na roça, porque a gente

210 Durante o processo de resistência, os expropriados contaram com apoio do advogado da CPT.

186

na roça tem de sobreviver de tudo, né? E fumos vendo aquilo, achano que... Outra, que desagradou muito nós que era daqui da região... porque vem gente de todos os lados, do Norte... do Sul. Então aquilo deve... não combinou com os modos de viver, né? Porque um sujeito do Paraná com outro do Pernambuco, acho que os modos são totalmente diferentes. Isso foi trazeno assim aquela preocupação pra nós. Aí foi quando apareceu aqui na área o sindicato dos trabalhadores rurais e outras entidades, a CPT. Aí foi clariando pra nós assim o nosso direito, porque isso também já tinha sete anos que nós já tinha sido desapropriado. E ficamos aqui assim naquela enrola pra fazer a agrovila, todo ano vinha um diretor do INCRA aí da 9, nas época de plantar, de botar roça, eles vinha e falava — Olha, vocês não põe roça, não pode plantar planta permanente. Aí o pessoal foi desanimano. E aí a gente foi. Quando veio esse pessoal, aí foi falano que a gente já tinha aqueles anos, que nós já tinha direito de reivindicar um, mais uma terra. Aí nós foi nessa. Foi... se organizamos, fizemos reuniões com o pessoal que abrangeu essa área. Nós pegamos uma área de 14 mil hectares.211

O INCRA rechaçou as reivindicações e o gerente-executor utilizou todos os meios para

dissuadir os moradores de Canabrava de suas reivindicações. Primeiro, lançou mão de

pressões, da violência simbólica e da intimidação dos aposentados. Embora se arvorasse em

todo poderoso, não é possível dizer, com certeza, se o executor tinha ou não poderes para

promover tais fatos, contudo os cortes e atrasos no pagamento da aposentadoria rural eram

freqüentes em Serra do Ramalho, no período da implantação do Projeto. Em carta dirigida ao

ministro da Previdência Nascimento e Silva, o reassentado Moisés Evangelista da Silva

reclamava do corte de sua aposentadoria e pedia explicação:

Sr. Ministro Nascimento e Silva venho saber se o direito do velho que tem 67 anos de idade não tem direito de receber abono? Da idade conforme os outros tiveram e estão tendo. Mas eu fui sonegado e não tive esse direito. O direito que tive foi quatro carnês em branco e está guardando para saber se está certo e depois da vossa resposta, porque foram estas causas tenho mais cinco meses perdidos de dezembro de 1977 a 1978. Só foi recebido de maio até novembro de 1978 e para já está com dois meses, mês de novo sem receber. Venho saber se estar tendo sabotage ou não. Pesso resposta e justiça porque aqui tudo que o governo manda não se recebe nada, este o motivo que os desapropriados da Barragem de Sobradinho estão voltando. E por estar faltando à administração e falta de justiça neste progeto localizado neste município de Bom Jesus da Lapa e todos os velhos

211 Relato de Nengo Xique-Xique. .

187

estão nessa situação triste. Pesso justiça se eu e os outros velhos que estão sentindo esta falta de justiça. Sem mais de seu desamparo.

Em seguida, o ex-executor tentou aliciar a principal liderança do movimento de

resistência. Quem relata o fato é Nengo Xique-Xique:

Chegaram a mim oferecer cem hectaras para mim abrir fora. O pessoal lá deles. Ofereceram aqui dentro de casa. Aqui...Não foi propriamente Mandou uma pessoa. (...) ‘Diz que lhe dá cem hectaras para você deixar fazer as agrovilas.’ Disse: Eu aceito. Só quero que o senhor me dê a forma deu sair com meus parceiros, porque vocês vai embora e eu vou ficar conviveno com o pessoal que vai ficar contra mim. Como é que eu vou conviver com esse povo? Com meus irmãos, com o pessoal que é meu amigo? Depois, como é que vou viver com eles até o fim da vida? Se o senhor me der a norma, eu aceito.

Uma parcela dos habitantes estava firme no propósito de não deixar o povoado. Diante

disso, o gerente-executor não recuou, propondo a construção de uma agrovila justamente em

Canabrava. A proposta foi recusada. A notícia de que o INCRA iria começar os trabalhos de

abertura da agrovila no povoado se espalhou e a resistência foi preparada. Souza retrata com

leveza e humor o acontecimento que provocou o recuo do INCRA e marcou a vitória dos

habitantes de Canabrava:

A Canabrava deve desaparecer para dar lugar a uma Agrovila. Os tratores vão chegar para derrubar as casas e as árvores. Todos devem desocupar a área... Está determinado o despejo. A comunidade também toma sua decisão oficial: Todas as mulheres e crianças vão ocupar pacificamente a ponte de Canabrava. É o único caminho por onde o trator pode entrar. O trator pode entrar, mas vai ter de passar por cima de nossas mulheres e de nossas crianças. Homem enfrentar homem dá violência; mas trator e homem em cima de crianças e mulheres é covardia! O cenário está feito: a ponte tomada — todas as mulheres com seus filhos! Os homens estão entrincheirados, na espreita. Muita tensão na Canabrava. Angústia! Vontade de correr! Desespero e medo! Prá, prá, prá, Porarara, pá, papá... Surge, no meio do mato fechado, um trator do INCRA, roncando o seu ronco maldito. Está na hora! É hora! Mulheres vão compondo e pondo os nomes... são os santos de sua especial devoção. Acossado, faz meia volta e desaparece, novamente, no meio da floresta. Some tal qual a brisa do vento. Não deixa nem saudade! Mas até quando? (Souza, 1991, p. 64).

188

A primeira reunião teria ocorrido em Brasília, contando com a presença do presidente do

órgão, Paulo e Yokota, e de dois representantes da comunidade: Nengo Xique e Graça212.

Logo após, segundo Graça, houve outra em Bom Jesus da Lapa, na qual estiveram presentes

funcionários graduados do Incra, 14 representantes da comunidade de Canabrava e o bispo da

Diocese – D. José Nicomedes Grossi. A reunião teria durado cinco horas e os funcionários do

Incra tinham a intenção de quebrar a resistência de Canabrava. “Era não, não e não”.

Continuando, Graça afirma:

Nada de mais terra... Agrovila mermo e não tinha outro jeito...O Incra não podia

quebrar [os princípios do Projeto] Ai eu falei para as pessoas, eles veio para

negociar e a gente não vai aceitar [... ] Foi debate... Pressão... Teve homem que até

chorou. Só quem resistiu fui eu e uma outra mulher, que foi a Vitalina [nome

fictício)[...] E o povo ficou entristecendo, começaram a chorar. Pedimos

recreamento [...] Quando eu vi que não dava negociação, disse se vocês quiser bem,

se não quiser nos vamos ficar lá, dividir e reassentar todo mundo [...] Quem vai

impedir? Foi aí que eles deram negociação. Negociação essa que foi um tanto de

porém [...] Não dava infra-estrutura...Não dava isso e não dava aquilo... No grupo

mesmo tinha gente que não se enquadrava. [...] Ai eu comecei a dizer: Vamos ficar

firme.. Disse que [...] Ai que deu a negociação. Mas até a negociação... Mas até

cortar a terra, fazer a divisão...De quinze em quinze dias, vinha gente do Incra para

renegociar. Eles queriam pegar uma parte do Riacho para outra Agrovila [...]. 213

A vitória dos moradores do povoado era incontestável, uma vez que o Incra havia aberto

negociação, mas a luta estava longe do fim. Somente em meados de 1985 os moradores de

Canabrava sentiram-se plenamentes vitoriosos. Durante a chamada Nova República,

receberam lotes três vezes maiores que o módulo rural e o direito de permanecerem em seu

povoado (denominado de Reassentamento Rápido). Fechado o acordo entre os moradores e o

INCRA, o órgão incumbiu os beneficiários da tarefa de demarcar os lotes. Este foi o ponto,

segundo padre Getúlio Grossi214, mas delicado de todo o momento vivido pela comunidade.

Mas, segundo o ex-pároco de Carinhanha, os envolvidos agiram com sabedoria e os lotes

foram demarcados sem que houvesse nenhum registro de tensão entre os moroadores de

Canabrava. Todos receberam seus lotes e, inclusive, alguns dos desapropriados que haviam

212 Nome fictício. 213 Entrevista concedida à autora em Guanambi, 2005. 214 Entrevista concedida à autora em Carinhanha, em 2005.

189

partido e retornado, foram contemplados nos mesmos moldes observados em relação aos que

tinham permanecido.

Numa perspectiva de reforçar os antigos laços de solidariedade, uma parcela dos

moradores de Canabrava firmou um acordo rezando a indivisibilidade dos lotes e a proibição

de sua venda para pessoas que não tivessem laços com a comunidade.

No povoado, o INCRA construiu uma escola e um posto da COBAL; o último, depois

da “liquidação” do Projeto, passou às mãos da Associação de Moradores.

Somente em 1992, os moradores de Canabrava receberam o título provisório e o carnê

para pagamento do lote. Segundo Nengo Xique-Xique, a maioria pagou o lote sem grandes

problemas, uma vez que os valores não foram considerados altos, contudo, em relatório do

INCRA, de 1994, há referência ao atraso de pagamento das prestações por parte de muitos

“beneficiários”.215

Embora em todo processo sejam ressaltados momentos de união e de sabedoria entre os

moradores do povoado, cabe salientar que a “chegada do estranho” não passou incólume em

Canabrava, registrando-se mal estar e acirramento das disputas entre alguns dos membros da

comunidade, nas palavras de Nengo Xique-Xique, malquerença” e discórdia. As marcas do

estranhamento, segundo o padre Getúlio Grossi, podem ser vislumbradas, entre outras coisas,

pela existência de duas Associações de Moradores no diminuto povoado.

4 - O INCRA “tira o corpo fora”...

Nem bem o Projeto fora implementado, os reassentados começaram a falar em sua

emancipação. Em 1978, diante da desistência de tantos “beneficiários” e de tantas

reclamações, a Hidroservice foi chamada ao Projeto Especial de Colonização Serra do

Ramalho para examinar as causas de sua rejeição. Infelizmente, não tive acesso ao relatório

da empresa. Mas, segundo entrevista de um técnico que participou da equipe de avaliação, os

“colonos” reclamavam a emancipação das Agrovilas, pois queriam vender os lotes e ir

embora. Não há informações sobre a dimensão do movimento. Os reassentados entrevistados

disseram ter ouvido um “barulho” sobre o assunto, mas não se recordam no que este consistia.

215 Relatório publicado em 1994 pela Comissão constituída pelo INCRA com a finalidade de proceder aos levantamentos necessários para a efetivação da emancipação fundiária do PEC-SR. Relatório da Comissão Coordenada por Marcos Correia Lins, Brasília, dezembro de 1994, p. 41.

190

De qualquer modo, para que a emancipação acontecesse, um longo caminho haveria de

ser trilhado. De acordo com a legislação em vigor, a emancipação só deveria ser solicitada dez

anos após a implantação do Projeto. Além disso, duas condições básicas deveriam ser

atendidas: um terço dos “colonos” deveria ter o domínio legítimo dos lotes rurais e a

comunidade deveria estar há mais de cinco anos economicamente apta216. Naquele momento,

as agrovilas de Serra do Ramalho não preenchiam nenhuma dessas condições217. Além do

impedimento legal, duas questões, do que pude inferir das entrevistas, incomodavam os

reassentados. Primeiro: em se efetivando a emancipação, os poucos serviços e benefícios

prestados pelo órgão federal seriam mantidos? Segundo: qual a vantagem de ser emancipado e

ficar dependente, em todos os aspectos, de Bom Jesus da Lapa? Com certeza as dúvidas dos

reassentados eram manipuladas pelos funcionários do INCRA e o movimento emancipatório

foi levado, até 1988, em “banho-maria”, para usar expressão de um entrevistado.

Desde início da década de 1980, o INCRA vinha pouco a pouco fugindo de suas

responsabilidades em relação ao Projeto. As promessas foram completamente esquecidas.

Para usar expressão de um reassentado: devagar, devagar, o INCRA estava tirando o corpo

fora. Para alguns, o fato representava alívio, significava a “libertação do cativeiro”. Para

outros era o descompromisso total. O descaso do INCRA, do ponto de vista dos reassentados,

era tão grande, que, em 1981, durante estada do presidente João Batista Figueiredo em Bom

Jesus da Lapa, lhe entregaram um abaixo assinado com mil trezentas e oitenta e cinco

assinaturas, reclamando melhorias para o Projeto.

A extinção do INCRA, em 1987, abriu novas perspectivas para a emancipação. Logo

após a promulgação da Constituição de 1988, os interessados na emancipação voltaram a se

movimentar. Em 8 de janeiro de 1989 realizou-se o plebiscito. Consta que a maioria da

população de Serra do Ramalho não se envolveu na campanha pela emancipação. O quórum

foi baixíssimo e a vitória do sim foi recebida sem grande entusiasmo.

O movimento emancipatório era liderado pelo ex-executor, Boileau Dantas Vanderley,

que, desde sua exoneração dos quadros do INCRA, vivia em Bom Jesus da Lapa, desfrutando

de prestígio junto aos reassentados. A criação do novo município representava a possibilidade

216 De acordo com relatório da CPT, os “colonos” estariam aptos quando tivessem uma renda estimada de dois salários mínimos. 217 Em documento dirigido à Procuradoria da República na Bahia, a CPT, além de mostrar desagrado em relação à emancipação do Projeto Serra do Ramalho (naqule momento estava prestes a se efetivar a chamada emancipação fundiária, etapa que antecede à liquidação do projeto), afirma que esta aconteceu de “forma forjada e manipulada para satisfazer interesses políticos pessoais”. Carta assinada por Ir. Miríam Inês Bersch, da Comissão Pastoral da Terra. Bom Jesus da Lapa, 25 de junho de 1984.

191

dele tornar-se seu primeiro prefeito, fato que se confirmou quando da realização da eleição no

recém-criado município.

A população e as principais lideranças políticas de Bom Jesus da Lapa não se opuseram

à emancipação e o novo município foi criado em 13 de junho de 1989, sendo formado por 20

agrovilas, com sede na Agrovila 9. Contudo, até princípios de 1998, Serra do Ramalho viveu

um período de transição. Vejamos o que diz a respeito relatório da CPT de Bom Jesus da

Lapa: “O impasse está criado, a população de Serra do Ramalho possui duas condições e duas

administrações: a do INCRA e a da Prefeitura, não sabendo, na maior parte dos casos, a quem

recorrer (1994, p. 4).

Enquanto o INCRA não empreendesse a emancipação fundiária do projeto, a dupla

administração continuaria em curso. Em 1994, o INCRA nomeou comissão com essa

finalidade. A comissão procedeu à titulação (“resolutiva”) de mais de dois mil lotes e

discriminou os bens pertencentes ao INCRA. Em 1998, a presidência do órgão nomeou

Comissão, coordenada pelo engenheiro agrônomo Célio Coelho das Neves, com a finalidade

de proceder a liqüidação do Projeto, ou seja, de dar destinação aos bens discriminados e de

passar à prefeitura os ônus do órgão.

Em 1998, o INCRA concluía sua saída do PEC/SR, deixando, entretanto, antigas

pendências. Dentre elas, a mais importante é a não regularização das ocupações existentes nas

ex-reservas. Em relação à questão, a Comissão instituída em 1994 propôs, no seu relatório,

uma série de medidas, que nunca foram levadas a efeito (1994, p.33-41).

Não bastassem as pendências relativas à questão fundiária, o novo município se

coloca entre os mais pobres da Bahia e tem registrado altos índices de violência, fato que

chamou a atenção, inclusive, da Comissão de Direitos Humanos, da Câmara Federal.

192

Depois que o São Francisco morreu afogado,

virou essa disgraceira

Alvarina – Ibotirama

193

CAPÍTULO IV

EM BUSCA DA FELICIDADE PERDIDA.

A RECONSTRUÇÃO DE BARRA DA CRUZ

1 - Movidos pela paxão e pelo sonho...

A percepção de que, nas Agrovilas, o modo de vida beradero não teria condições de ser,

minimamente, reproduzido, levou à rejeição do projeto e a grande maioria dos reassentados

não pensaram em outra coisa senão abandonar as agrovilas. A vida nas barrancas

sanfranciscanas passou a ser superestimada e, para grande parcela, o retorno tornou-se um

imperativo. Era preciso buscar a felicidade perdida.

Em relatório, o INCRA afirma que, nos primeiros anos do projeto, 599 pessoas

originárias da área de Sobradinho deixaram as agrovilas (1994, p. 20). A percepção dos

entrevistados, tanto em Serra do Ramalho como nos “núcleos” de Bem-Bom, Barra da Cruz e

Pau-a-Pique, é que a diáspora envolveu maior número de pessoas e que o número do INCRA

não reflete a realidade. “Dona [dirigindo-se a entrevistadora], foi geral. O abandono [das

agrovilas] foi geral. Gente mudou pra tudo quanto é canto. Foi pra bera do rio, foi pra São

Paulo, foi pra Brasília. Depois da barragem não tivemo mais sossego, não; viramo tudo filho

de marreca.”218

Do montante apontado pelo INCRA, quantas famílias retornaram aos seus locais de

origem? Não há informações. Impossibilitados da venda dos lotes e cientes de que não teriam

as benfeitorias indenizadas, muitos indivíduos sequer comunicavam ao INCRA a partida. Em

dezembro de 1979, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Casa Nova lançou uma Nota

dando conta de que 74 famílias, provenientes do Projeto de Serra do Ramalho, se

encontravam arranchadas na borda do lago, em área próxima ao antigo povoado de Barra da

Cruz, “vivendo em condições sub-humanas, morando em barracas de lona, que só permite a

entrada das pessoas à noite devido a quintura; sem alimentos e sem condições de comprá-los,

apenas comendo do peixe e a farinha e tomando chá de raiz para substituir o café e o leite das

crianças; sem roças para trabalhar e sem casas para morar, dependendo que as autoridades

218 Relato de Isidoro. Entrevista concedida à autora em Ibotirama, 12/7/2002.

194

tomem providências de distribuir lotes e a construção das casas, escolas, posto de saúde,

enfim toda infra-estrutura que um povoado precisa”.219

A “Nota” não diz, exatamente, quando teria começado a segunda diáspora dos

atingidos de Sobradinho. Mas temos informações de que o abandono das agrovilas começou a

ocorrer antes mesmo que a retirada de toda a população atingida fosse concluída. Alguns

beraderos deslocados chegavam no vapor “São Salvador” ou nos ônibus — especialmente

contratados para o transporte dos arretirados —, “assuntavam o movimento” e quando o

“vapor” descarregava mais uma leva — dos seus companheiros de infortúnio —, tomavam-

no, partindo em direção ao rio prestes a ser afogado pelo lago.

É difícil denominar os primeiros arretirados das agrovilas. Dentre eles, assegura

Wandilson, encontrava-se seu ex-agregado, que, conforme vimos anteriormente, tentou fugir

do ônibus pouco antes que este “arrancasse” em direção ao projeto.

Manolo tem boa memória e lembra-se de várias pessoas que regressaram a Pau-a-

Pique logo após a partida. Um deles foi Pequenito, a única pessoa de quem ouviu reprovação

ao projeto quando esteve em “visitação” à Agrovila 5. Ele se lembra também de Silvestre, ex-

vaqueiro da Fazenda de Fora. Este, antes mesmo que a família cumprisse a determinação de

partir na próxima leva para a ele se juntar, abandonou as agrovilas, tomando a direção de Pau-

a-Pique.

Antes que Manolo cite outros nomes e se lembre de outras experiências, Cremilda (a

segunda esposa) intervém e passa a contar aspectos da experiência de dois meses vivenciados

nas agrovilas220. Viúva, partiu da Fazenda de Fora (Pau-a-Pique) para a Agrovila 5

acompanhada da mãe idosa e de vários filhos, entre adolescentes e crianças. A família não se

adaptou; por causa do clima, as crianças adoeceram e a mãe de Cremilda não suportava a

distância do rio. Por fim, ela conta: “Minha mãe estranhou muntcho a grovilha. Sentiu a falta

do rio. Ficava, assim, parada na beira da porta, pitando, pitando e procurando o Rio com os

olhos. Ela se apaixonou.”221 Antes que a mãe morresse de tristeza e saudade, apanhou os

filhos e partiu para Pau-a-Pique de “mãos abanando”.

O sentimento de isolamento em relação ao rio era recorrente entre os reassentados. A

experiência de Paulo nas agrovilas durou onze meses, tempo suficiente para perceber que não

podia viver longe do “rio”222. Ele conta que tomou a decisão de retornar a Bem-Bom porque a

219 Nota do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Casa Nova, 07/12/1979. 220 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/5/2003. 221 Idem. 222 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/5/2003.

195

Agrovila 3 ficava num “deserto, sem rio”. Ora, se a Agrovila 3, localizada num dos pontos

mais próximos do Rio São Francisco – no eixo ímpar –, despertava tal sentimento, imagine-

se, então, o que não sentiam as pessoas reassentadas no eixo par, distantes do rio

aproximadamente 22 km. Paulo recrimina também a qualidade da água. Nesse ponto, sua

esposa tomou a palavra223: “Levei uma menina de dois anos, a menina fazia o xixi no cimento

e quando secava, parecia que tinha derramado uma tapioca ali. Era um sal derramado assim...

” . Paulo arremata: “Foi aí que me avexei e disse: ‘vou embora.”

As experiências de estranhamento e de desenraizamento nas agrovilas são sucessivas. O

caso de Alberico me pareceu bastante ilustrativo dos sentimentos dos arrepedidos em relação

à experiência de Serra do Ramalho. Ele contou que foi para as agrovilas muito jovem, em

companhia da mãe que era viúva — ex-agregada da Fazenda de Fora. Ali permaneceu durante

quatro anos. Devido à falta de água e de infra-estrutura, por várias vezes, enfrentou os

funcionários do INCRA, tornando-se, em virtude disso, “marcado pelo executor”, que

contratou, segundo afirma, um pistoleiro do sul da Bahia para executá-lo. Numa festa sofreu

uma emboscada. Sentindo que a ameaça era séria e que corria risco de morte, fugiu para Bom

Jesus da Lapa e, em seguida, partiu para Pau-a-Pique.

Pescador, Alvino conta que foi para à agrovila “injuriado” e que lá, embora labutasse

por, aproximadamente, dois anos (1976-1978), não se adaptou. Reclamou da distância do rio

— fato que impossibilitava o exercício de sua profissão —, da água “saloba” e das práticas

injustas da cooperativa. Como se a agrovila fosse uma entidade dotada de consciência, melhor

dizendo, de uma má consciência, denomina-a de “ingrata” e de “nojenta”224. Para ele, a

agrovila só pode ser comparável a uma penitenciária, daí as constantes referências ao

“cativeiro das agrovilas”. Por fim diz: “Deixei. Não vendi nada. Deixei tudo e vim embora. O

papel do INCRA eu tenho. Eu não largo, porque pode um dia precisar, eu tenho. Quer dizer

que eu não sou dono?”225

Através de acenos com a cabeça, Manduca concorda com a narrativa do amigo Alvino.

Ressalta, contudo, que, apesar da “ingratidão” da agrovila, não pensava em partir. A decisão

só foi consumada por causa da esposa. Ela não se adaptou e apaxonada só falava em voltar

para a beira do “rio”.

223 Relato de Maria da Lapa. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/5/2003. 224 O mesmo sentimento foi verificado em outra oportunidade. Enquanto Berneval, um outro entrevistado, contava sua experiência em Serra do Ramalho, sua mãe adentrou a sala e, ouvindo referência às agrovilas, interveio: “agrovila, aquela indiota.” 225 Entrevista concedidda à autora em Casa Nova, 23/01/2002.

196

Evidencia-se, a partir do enunciado, que as mulheres tiveram papel determinante na

decisão do retorno ao local de origem. Aliás, Berneval afirma que as resistências em relação à

transferência para as agrovilas partiram, especialmente, das mulheres e dos idosos. Os mais

velhos resistem ao distanciamento de seus lugares de memórias, aos lugares onde vivenciaram

experiências significantes, além do mais, lamentam as perdas materiais e simbólicas e vêem

com pessimismo a possibilidade de recomeçar a vida em outro local (Scheren-Warren, 1990,

31),

No tocante às mulheres, as experiências de Possidônia e Apolônia parecem

reveladoras226.

Possidônia227 foi reassentada com família na Agrovila 5. Durante dois anos em que ali

viveu, a família passou inúmeros apuros e, segundo ela, só não passou fome porque o esposo

vendia sua força de trabalho na Artex, empresa localizada em Santa Maria da Vitória. Ela

confessa que esteve à beira da loucura e que todos os dias rezava para São Sebastião tirá-la

das agrovilas. Como o marido relutasse em partir, disse para si: “Marido não é filho, é

companheiro, não nasceu com você”; vendeu as coisas e partiu “num carro cheio de

cavalos”. No Novo Pau-a-Pique também enfrentou muitas dificuldades e de um jeito bem

humorado descreve a situação de penúria que enfrentou e a solidariedade do comerciante que

lhe vendia a prazo:

Agradeço a Deus e a São Sebastião, Agradeço o Valdir que me forneceu feijão. A manteiga e o macarrão, Essa eu não falo, não. Tem também o arroz, a farinha, o fósforo e o sabão.

A experiência de Apolônia se revela ainda mais dramática. Ela partiu para as agrovilas

com o esposo e os filhos saindo da adolescência. Suas queixas não são muito diferentes das

dos demais arrependidos. Estranhou a falta do rio, a água salgada e o clima do lugar. Depois

de ter perdido o pai e dois cunhados — ambos vítima de infarto228 — que permaneceram na

região do lago, se apaxonou e logo adoeceu. “Eu tive uma crise de nervos muito forte,

esmagreci, só vivia doente. Eu fiquei magrinha! Todo mundo diz: essa vai morrer.” Para

226 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003. 227 Entrevista tomada através de notas pela autora em Casa Nova, 24/1/2002. 228 Em período anterior ao deslocamento, de acordo com entrevistados, foram registrados muitos casos de ataque cardíaco, de suicídios e de loucura entre a população de Sobradinho. Mais detalhes vide depoimento do bispo de Juazeiro, D. José Rodrigues de Souza à CPI das enchentes.

197

completar, descobriu que o filho estava envolvido com más companhias e que usava drogas.

“Descobri que meu filho andava numa caravana de amigos que fumava drogas.” Depois disso,

confessa que se descontrolou e só pensava em ir embora. Ela conta que, saturada das falsas

promessas e das mentiras do pessoal do INCRA, brigou com o executor.

Briguei. Eu fiquei tão assim... da cabeça que, um dia, eu briguei foi com ele. Eu xinguei ele, na porta do carro dele, na frente de Zé Abea. Lá na Agrovila 5. Xinguei ele, eu disse tanta coisa a ele. Que era de uma maneira, quando ele chegava num lugar que, as vez, eu chegava, ele entrava no carro e aqui oh...Entrava dentro do carro. Ele me chamava “A Doida”. Era “A Doida”. Eu xinguei ele, xinguei, xinguei... Na frente de Zé Abea.

Após o entrevero com o executor, Apolônia se sentiu ainda mais apaxonada e sua

permanência na agrovila tornou-se insustentável. Não restava outra alternativa a não ser

retornar à região de origem, como veremos adiante. Ainda hoje ela guarda ressentimentos em

relação à transferência. “Eu sou revoltada de uma medida que, se eu fosse uma pessoa que

tivesse qualquer outra instrução, qualquer outra mente ou se eu fosse um homem, eu não sei

nem o que seria com a minha vida.” Dando vazão à revolta, diz que em Barra da Cruz era de

uma família de condição e que, além do mais, tinha saúde, assinalando também que a retirada

para a agrovila destruiu a sua vida.

Destruiu minha vida totalmente. Eu tenho paxão. Sou revoltada de uma maneira que todo mundo... chegamos já tá com quê? Acho que já tamos com quê vinte anos que chegamos aqui, todo mundo vem, até carro, ônibus de Feira de Santana visitar esse morro, essa praia... mais eu nunca vou. Nunca mesmo. Nunca vou lá porque me sinto revoltada. O que fizero com a gente sem a gente esperar, sem a gente merecer ter um sofrimento através daquilo que era da gente. A gente tinha aquele prazer, aquele costume...aquele modo de viver, né?”

Apolônia ainda hoje sente-se apaxonada. Na acepção da região, a expressão paxão

remete ao sentido de pathos, significando, portanto, tristeza, melancolia, sofrimento, saudade,

mágoa e estranhamento. O sentimento pode provocar doenças e levar o apaxonado à morte e

ao suicídio. Entre os velhos transferidos muitos foram os apaxonados. “Muntchos velhos

198

dessa antiga Fazenda de Fora morreu em Serra do Ramalho. Dizem: foi a água. Nada! Morreu

foi de paxão.”229

A saudade do local de origem, o desejo de permanecer junto aos seus, a consciência de

que não tinha cabimento abandonar os seus mortos, tudo isso funcionou como elemento de

apelo ao retorno. A vida caótica nas agrovilas despertou os sentimentos de saudade, de paxão

e também do sonho de regressar à beira do “rio”.

Alvarina diz que todas as noites sonhava com o “velho” Bem-Bom230. “Eu tava na

bera do rio e uma voz me chamava.” Ela não discernia a voz recorrente que a chamava de

volta ao local de origem, mas tem uma interpretação: era o próprio rio que reclamava o seu

retorno. Ela justificou:

O rio tombém tava sofreno tudinho, né? Ele tava desgostoso. Demudano. Me chamava. Aí, nós arretiremos novamente. Cheguemo em Bem-Bom. Ele tava que era um mundão de água. Não era o mermo, não! Me desgostei tanto que anté hoje não pisei meus pé mais lá. O rio não é mais o mermo. Lá pra baixo, o rio morreu, né?”

Depreende-se da narrativa que o rio não era visto e sentido somente como um recurso

natural; o homem na convivência simbiótica com o rio acabou por revesti-lo de humanidade,

por conseguinte este, na sua concepção, passa a sofrer as vicissitudes operadas pela mudança

em seu “ser”, melhor dizendo, em seu leito, bem como em seu entorno.231 Não é por outra

razão que o rio é chamado de pai da pobreza e carinhosamente de Velho Chico.

Francelino confessa também que sonhava muito com a velha Barra da Cruz e que a

decisão de deixar as agrovilas foi tomada depois de um sonho.

Sonhava muito com os antigos. Um dia eu tava deitado na agrovila e sonhei com meu pai e os três irmão dele. Vi meu pai. Com os três irmãos. Chegou os quatro juntos. Eu não conheci os irmãos dele, não! Meu pai falou: ‘Meu filho, quedê o povo daqui?’ Digo: ‘Meu pai, tudo foi arretirado. Foi tudo embora.’ Ele disse: ‘Eles foram embora, mas

229 Entrevista conceidida à autora em Casa Nova, 23/5/2003 230 Entrevista concedida à autora em Ibotirama, 12/7/2002. 231 A humanidade do rio está expressa na crença popular e nas lendas que correm sobre o Velho Chico. A propósito recorro a Wilson Lins: “Segundo a crença popular, à meia-noite o rio dorme. Dorme pouco, dorme por um espaço de tempo que os relógios não marcam, mas o certo é que dorme. Durante o sono do rio tudo pára: a correnteza fica estagnada, as cachoeiras deixam de cair, e a própria Paulo Afonso fica num instantâneo fotográfico, imóvel, silenciosa. Enquanto o rio dorme ninguém deve mexer na água, para não acorda-lo. Acordar o rio faz mal, provoca castigos da Mãe-d’Água”. O Médio São Francisco. Uma sociedade de pastores guerreiros, 1983, p. 102.

199

nós somo quatro irmão, tamos juntim e vocês tudo arretirado.’ Conheci ele. Tinha morrido todos quatro.232

Embora no sonho a figura do pai não tenha ordenado a partida, entendeu a “conversa”

como um chamado e decidiu deixar as agrovilas, para ele era um imperativo reconstruir a

Barra da Cruz e ficar próximo de seus mortos.

Quando se deu a partida? Em relação a esse ponto, as entrevistas são pouco

esclarecedoras. Os entrevistados não lembram, efetivamente, quando deixaram as agrovilas.

Francelino diz que, após o retorno, visitou a sepultura do pai no cemitério de Barra da Cruz,

indicando que a localidade ainda não havia sido totalmente submersa. Será que partiu antes do

enchimento total do Lago? O fato é improvável, pois ninguém se lembra da sua presença na

região antes do acampamento no Leite. Além do mais, como frisa Camilo, o cemitério da

velha Barra da Cruz ficava num dos pontos mais altos da localidade, podendo ainda hoje ser

divisado do novo povoado. Portanto, o fato não pode ser utilizado como baliza cronológica

para a partida de Francelino de Serra do Ramalho.

As justificativas para o abandono das agrovilas são recorrentes: inadaptação, violência,

sensação de “cativeiro” e paxão provocada, principalmente, pela falta do rio, todas

relacionadas à situação interna do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho. Há,

contudo, fatores externos que ajudam a esclarecer a diáspora dos arrependidos.

Depois das grandes cheias de 1979-1980, as notícias que chegavam dos “núcleos de

reassentamentos” localizados na borda do lago eram animadoras, atraindo parcela dos

arrependidos. A abundância de peixe, nos primeiros anos de inundação da Barragem de

Sobradinho, encheu os olhos dos atingidos e, sem dúvida, amenizou a penúria nos primeiros

anos na borda do Lago233. O agente pastoral Luiz Eduardo de Souza lembra que em Barra da

Cruz, por exemplo, a vida dos arrependidos das agrovilas, enquanto estavam acampados à

espera de auxílio da CHESF para a reconstrução do povoado, assentava-se unicamente na

atividade pesqueira. Embora faça ressalva ao drama vivenciado pela população atingida, ele

fala com certo entusiasmo daquele momento: “... o lago dando peixe que era uma coisa louca!

O que descia de atravessador do Piauí e de Fortaleza!. Eram caminhões de peixe e eram

peixes grandes! Com a subida do lago foi uma fertilidade, uma coisa de doido! Os homens

232 Entrevista tomada pela autora em Casa Nova, 25/1/2002. 233 “Quando a barragem foi fechada, aconteceu o “milagre dos peixes”. O lago chegou a produzir 40.000 toneladas/ano. O milagre atraiu milhares de pescadores de todo o Nordeste, além da população relocada pela barragem, que insistiu em permanecer na borda do lago. A pesca foi farta, indisciplinada e predatória.” Roberto

200

viviam pescando e fazendo redes. Era uma fartura!”234. Aliás, a Nota do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Casa Nova, conforme vimos nas páginas iniciais deste capítulo, faz

referência ao peixe como única proteína acessível à população de Barra da Cruz.

Um pouco depois começaram a ecoar vozes dando conta da implementação do Projeto

Sobradinho235, que visava atender à população dos “núcleos de reassentamento” localizados

na borda do lago. Embora o projeto tenha sido implementado tardiamente e com dificuldades,

sem dúvida, trouxe esperanças e corroborou a perspectiva de que a vida na beira do lago não

só era viável, como era muito mais promissora que a vida nas agrovilas, atraindo a população

descontente de Serra do Ramalho.

Osmundo, por exemplo, partiu para Pau-a-Pique, muito mais pela expectativa favorável

que se criou nos “núcleos” na beira do lago, em relação à abundância da pesca, do que

propriamente pela impossibilidade de sobrevivência em Serra do Ramalho.

Embora exercesse a pesca como atividade econômica principal, Osmundo disse ter se

adaptado à agricultura de “sequeiro” praticada em Serra do Ramalho. Aliás, ele é um dos

poucos entrevistados que elogiaram as agrovilas. Para ele a terra de Serra do Ramalho era

muito boa e fértil; disse que, nos tempos chuvosos, tinham muita fartura. Havendo disposição

para o trabalho, família numerosa, crédito e abundância de chuva, a vida em Serra do

Ramalho seria farta e próspera, assinala.

As sucessivas cartas dirigidas de Pau-a-Pique revelavam que o lago não era tão

ameaçador quanto apregoavam os agentes da CHESF e que a vida ali não poderia ser inferior

à vida nas catingas das agrovilas. Osmundo retornou para realizar o sonho da mãe, qual seja,

ver toda a família reunida na borda do lago, buscando refazer a condição de beradera de vida.

Vivendo entre Pau-a-Pique e São Paulo, Heleno não reclamou das condições de vida em

Serra do Ramalho236. A todo o momento assinala que ali se deu muito bem. Sua experiência é

singular, demonstrativa da intensa mobilidade do trabalho no Brasil, verificadas nas últimas

décadas. Muito jovem, Heleno partiu para São Paulo em companhia dos irmãos. Pouco antes

de a família ser transferida, retornou a Pau-a-Pique e trabalhou numa “firma” prestadora de

serviço à CHESF, de modo que, quando partiu para as agrovilas, levou um “dinheirinho”. Em

Malvezzi, Projeto de linha: a experiência dos pescadores do Lago de Sobradinho, Caderno do Ceas, Salvador, n.157, 1995, p. 77. A abundância de peixe resultou da decomposição de matéria orgânica dentro do lago. 234 Entrevista concedida à autora em Salvador, 1/9/2003. 235 Inicialmente, o Projeto Sobradinho foi implementado pela ELETROBRÁS, passando, em 1981, à CHESF. Em 1982, o governo do Estado da Bahia assumiu o Projeto, passando-o à CAR Em síntese, o Projeto visava reestruturar o processo produtivo na área da barragem. A ênfase do Projeto era o desenvolvimento da pesca e da agricultura irrigada. Eduardo Machado, Poder e Participação política, 1987, p. 83-105.

201

Serra do Ramalho, trabalhou como motorista na “Beta” e depois em uma firma de

terraplenagem. Como o pai dividisse com os filhos o dinheiro da indenização recebida da

CHESF, aplicou sua parte num pequeno comércio.

Entrementes, as condições de vida nas agrovilas, nos primeiros anos, não eram mesmo

animadoras, pois dois anos depois, Jonas — o pai de Heleno — deixou a família e partiu em

direção a São Paulo. Quando Jonas retornou às agrovilas, juntou-se ao filho e ambos partiram

com destino a Pau-a-Pique. Na borda do lago, permaneceram um ano “se batendo”, até que

retornaram para as agrovilas.

Após o retorno, na localidade havia segundo Heleno, intenso “movimento”, em razão da

chegada de novos “colonos” e de peões das firmas de construção civil. Então, retomou o

comércio e prosperou. Além disso, começou a trabalhar com beneficiamento de arroz, a

comerciar com algodão e madeira. “Eu comprei muita madeira, tinha dia que eu vendia quatro

caminhões de madeira.” Por fim disse:

Eu gostava das agrovilas demais. Dei-me bem, tinha um comércio... Na vila que eu morava, eu era uma pessoa que mais representava. Inclusive, quando chegou à época do telefone, foi nomeada mais minha família. Na Agrovila cinco foi colocado na casa do meu cunhado, na Agrovila três foi na casa de Zé Moura, casado com uma cunhada minha, e na Agrovila sete foi na minha casa.

Em relação às autoridades, Heleno não tem queixas, pelo contrário, diz que se dava

demais com o executor e com as autoridades de Bom Jesus da Lapa. “Na época, quem deu

todas essas informações lá foi o Dr. André — ex-prefeito de Bom Jesus da Lapa — que foi

meu padrinho de casamento.” Por que Heleno partiu das agrovilas e vive vagando entre São

Paulo e Pau-a-Pique? Ele não respondeu a pergunta de imediato, referiu-se a um

“movimento” que vitimou o seu irmão237. Depois que a conversa fluiu, contou que o irmão foi

assassinado em Serra do Ramalho e ele, temendo represálias dos envolvidos, resolveu deixar

o local. Inicialmente, arrendou o lote, mas, como nele foram encontrados, pouco depois, dois

corpos carbonizados, o arrendatário, “apavorado” — sem sequer colher a safra do algodão —,

devolveu o terreno e foi embora para Minas Gerais.

A partir desse novo fato, Heleno não teve dúvida, vendeu às pressas todos os pertences

e partiu para São Paulo. Após ser informado de que todos os envolvidos no assassinato do

236 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003.

202

irmão foram mortos, Heleno tentou se fixar uma vez mais nas agrovilas, mas não foi bem

sucedido, perdendo dinheiro com plantação de cebola. “Teve época deu mandar uma carreta e

um caminhão para São Paulo de cebola e depois receber o telefonema que a cebola não tinha

preço ou vendia de um real [o saco] ou jogava no rio Tietê.” Atualmente, Heleno passa

metade do ano em São Paulo e a outra metade cultivando cebola em terra arrendada nas

“vazantes” de Pau-a-Pique.

Ainda jovem e tendo claro que não tem vez no mercado formal de trabalho, Heleno

sonha com outra oportunidade, tentando, sem sucesso, se inscrever, por várias vezes, em

projetos de colonização do INCRA.

Eu tenho vontade de trabalhar em outro projeto. De acompanhar o INCRA, não sabe? Porque onde o INCRA se estabelece tem oportunidade da pessoa se estender, ganhar um dinheiro. Lugar assim aonde o INCRA chega, o terreno é bom e o cabra pode ganhar dinheiro. Eu tenho vontade de trabalhar com irrigação. O negócio é trabalhar com irrigação. Tenho vontade de plantar cebola, tomate, verdura — comida. Na mesa do cidadão tudo que tem vem da roça, não tem nada, mesmo o produto industrializado vem da roça. Eu gosto de roça.

Quantos deixaram as agrovilas motivados pelo sonho de refazer sua condição de

beraderos? Quantos permaneceram na borda do lago recém-criado? Quantos helenos se

encontram como “filhos de marreca”? Esta expressão é bastante utilizada pelos beraderos

para designar a pessoa que não tem parada238.

Com expressividade, D. Luiz Flávio Cáppio, bispo de Barra, também recorreu a uma

metáfora para descrever a situação dos atingidos de Sobradinho:“Foi a mesma coisa como

pegar um capim, arrancar assim do chão, sacudir bem, não deixar nenhuma terrinha na raiz e

jogar para que ele realmente morra. Assim foi feito com as populações beiradeiras ao longo

do lago.”239

Passados quase trinta anos da primeira diáspora, muitos beraderos vivem a

desterritorialização concretizada na vida errante e miserável em povoados e cidades

sanfranciscanas. D. Luiz Flávio Cáppio relata que, recentemente, encontrou, em um

237 Embora o assassinato do irmão de Hélio tenha vindo à baila quando ele foi apresentado à entrevistadora por José da Cruz, na entrevista o fato só foi retomado muito depois. 238 “Marreca não tem parada. Anda de um canto pra outo. É bicho que só anda em rebanho”. Relato de João. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003. 239 Entrevista concedida à autora em Barra, 12/7/2002.

203

acampamento de sem-terras localizado no município de Ibotirama, várias famílias que

alegavam ter perdido seus meios de vida com a retirada motivada pela construção da Represa

de Sobradinho; alguns deles tinham, inclusive, passado pelas agrovilas.

Desiludidos, muitos deixaram de viver de “déu em déu” pelas barrancas do São

Francisco, procurando em outras paragens a sobrevivência. Além de São Paulo, Goiânia e

Brasília são os lugares mais procurados. O relatório da comissão de liqüidação do Projeto

Especial de Colonização de Serra do Ramalho (Relatório do INCRA, 1998, p.19) faz

referência à presença de retirados das agrovilas, entre membros do MST acampados nas

cercanias de Brasília. Após a construção do Reservatório de Sobradinho, a diáspora dos

beraderos e riberinhos parece sem fim. João Saturnino reproduziu em sua entrevista uma

imagem bastante significativa do sentimento de perda e de desenraizamento provocados pela

construção da barragem à população beradera, expressa por uma moradora de uma das áreas

“pára-rural” de Casa Nova: “Professor, eu ainda estou caminhando e não cheguei em lugar

nenhum.”

Detalhe de mapa em que figura o povoado de Barra da Cruz, às margens da Represa de

Sobradinho

(sem escala)

204

2 - O difícil regresso...

É difícil informar o número dos arrependidos das agrovilas que se encontram na borda

do Lago de Sobradinho e dar a localização de cada um deles. Em se mantendo no regresso a

proporção da partida, com certeza, a maioria se encontra no município de Casa Nova. Há

informações de que as quadras situadas nas periferias das sedes dos municípios de Sento Sé e

Casa Nova, denominadas de áreas de expansão, foram criadas em virtude das pressões

exercidas pelos indivíduos que retornaram de Serra do Ramalho (Berenguer, 1984, p. 95) ou

que optaram pela propalada “solução própria”. Nos povoados de Bem-Bom e Pau-a-Pique há

referências de que muitas pessoas regressaram das agrovilas. Grande parcela ainda se

encontra nos povoados. Aliás, segundo informações, devido ao “forte” fluxo comercial ali

verificado, Bem–Bom — em decorrência muito mais de suas relações com o polígono da

maconha, assinalam os moradores do vizinho Pau-a-Pique, do que à produção de cebola —

ainda hoje recebe indivíduos de Serra do Ramalho. Eles fogem da “violência” e procuram

melhores condições de vida.

Contudo, grande parcela, conforme veremos adiante, se encontra no “núcleo” de Barra

da Cruz. Os povoados de Barra da Cruz e Intãs não foram reconstruídos. Os poucos

moradores de ambos os povoados que permaneceram foram relocados em outros “núcleos”,

localizados em Pau-a-Pique ou em Sento Sé.

Consigna Abdelmalek Sayad que nenhuma migração se assemelha a outra (2000, p.

11). De fato, embora reclamem das condições da partida para Serra do Ramalho e dos

prejuízos relacionados à mudança, os arretirados contaram com o apoio da CHESF e do

INCRA. A partida das agrovilas se deu de modo completamente diferente. Em decorrência da

total desorganização de seus meios de vida nos anos anteriores à transferência e da penúria

experienciada nas agrovilas, a maioria dos arrependidos abandonou o projeto, contando

somente com a “cara e a coragem”, para usar expressão de um entrevistado. Muitos sequer

avisavam ao INCRA a desistência, como já pontuado. E onde quer que tenham se

estabelecido, o apoio da CHESF, conforme veremos a seguir, só ocorreu mediante pressões e

muitas idas e vindas. Afinal, para a CHESF,

a preferência das famílias por qualquer das alternativas, uma vez concretizada, era geralmente considerada irrevogável, ou seja, para a

205

Chesf, sua responsabilidade em relação às famílias relocadas cessava a partir do momento em que elas mudavam pela primeira vez. Isso significava que qualquer nova transferência teria que se realizar às próprias custas dos que o desejassem, o que se deu, por exemplo, com um numeroso contingente de famílias que retornou do projeto de colonização, pouco tempo depois de ter sido para lá transferido (Barros, 1984, p. 3).

A experiência do retorno e a luta para permanecer na borda do lago merecem ser

acompanhadas de perto. Como o lote não poderia ser vendido, passavam as benfeitorias por

valores subestimados. Os demais pertences eram vendidos a preços irrisórios ou trocadas com

desvantagem. Os mais prejudicados foram os arrependidos “afobados”. Estes se desfaziam

dos bens com enormes perdas. Alguns deixavam as roças e benfeitorias aos cuidados dos

parentes e nem por isso deixaram de registrar perdas.

Paulo disse que deixou a mandioca plantada para a irmã. Depois de algum tempo

recebeu carta dizendo: “Venha arrancar sua mandioca se não ela vai virar jacaré.” Ele

respondeu: “Vou nada. Arranque a mandioca, mulher.”

Viúva e vivendo em situação de penúria, Cremilda abandonou o lote e empreendeu o

retorno, contando unicamente com os préstimos da esposa do administrador da Fazenda de

Fora, Manolo, com quem, aliás, casou-se tempos depois. A amiga enviou o dinheiro

necessário para a mudança, com a promessa de que seria ressarcida logo depois. Em Pau-a-

Pique, empreendeu enorme luta para obter um “lugarzinho” na borda do futuro lago, fato que

nunca se concretizou.

Para retornar ao Bem-Bom, Paulo contou com o apoio do sogro240. Foi ele quem

enviou recursos para a partida. Ainda no Bem-Bom “velho”, se “encostou”241 na casa da

família da esposa. Ciente das alegações da CHESF de que os arretirados não tinham direito

de mais nada pleitear, ficou em Bem-Bom, durante meses, se “bateno”. Depois da

experiência, “criou coragem”, procurando o pessoal da estatal para solicitar um lote. “Ganhou

uma terrinha de sequeiro”, localizada em área um pouco distante do ”núcleo”, próximo a um

lixão, abandonada pelo primeiro “beneficiário”. A casa onde mora foi construída com

recursos próprios em um terreno do sogro. Embora sofra de epilepsia, Paulo vive da pesca e

da fabricação artesanal de redes.

240 Entrevista concedida à autora Casa Nova, 25/5/2003. 241 Na acepção de Aurélio Viana, o termo “encostado” designa o filho casado, irmão ou genro do proprietário ou posseiro do lote em que fixa residência. Em geral, a situação do “encostado” é considerada transitória, uma vez

206

A experiência de Paulo e de tantos outros arrependidos das agrovilas, sobretudo dos

indivíduos oriundos de Barra da Cruz, mostra que a CHESF, em que pese a resistência em

considerar como legítimas as reivindicações dos arrependidos, teve que se render às

evidências, acabando por atender algumas de suas demandas. A resistência silenciosa, uma

vez mais, colocava-se em evidência, tornando-se fator importante para a permanência na beira

do lago, inclusive daqueles que haviam partido.

Em relação à experiência de Paulo, por exemplo, há outro fato a ser considerado: na

oportunidade, a estatal deixava claro ao “beneficiário” que o “benefício” não era um direito,

mas uma concessão, valendo, portanto, a prática do “largar ou pegar”. Não é por outra razão

que os arrependidos estabelecidos na sede do município de Casa Nova vivem nas quadras

mais distantes do centro e que tantos outros foram “agraciados” com lotes distantes da sede

dos povoados ou em locais impróprios para a agricultura. Faz-se necessário dizer que após a

formação do lago, as áreas localizadas próximas à sua borda tornaram-se valorizadíssimas,

gerado disputas e conflitos, envolvendo vários atores sociais. A respeito escreveu Lygia

Sigaud:

Neste trabalho se procurou demonstrar como a intervenção do Estado através da CHESF na região de Sobradinho resultou, do ponto de vista dos camponeses, não apenas na expropriação do lameiro, mas também na expropriação das possibilidades de acesso à água. Se a primeira já vinha contida no bojo do próprio projeto de geração de energia, o qual previa a inundação das ilhas e das terras de aluvião e portanto a liquidação da agricultura de vazante, a segunda, sem estar contida nas intenções desse projeto, dele decorreu, em função do próprio modus operandi do aparelho de Estado (1987, p. 278).

Desse modo, aos arrependidos era praticamente impossível o acesso à borda do lago;

os poucos casos registrados, com exceção de Barra da Cruz, e, não custa salientar, com suas

limitações, ocorreram mediante compra de terceiros ou através do acionamento de relações de

parentesco e ou compadrio.

Outro caso interessante é o de Alberico. Como visto anteriormente, partiu fugido e

nada levou de Serra do Ramalho, deixando para trás, inclusive, a mãe tuberculosa. Meses

mais tarde, a mãe foi se juntar a ele, mas nada levou. Aliás, Alberico frisa que sua família foi

duplamente prejudicada, pois partiu para as agrovilas sem ao menos receber a indenização a

que o indivíduo aguarda o acesso ao lote. Mais detalhes: Aurélio Viana, Organização social e ação política do campesinato: o caso da “invasão” da Fazenda Anoni, 1989, p. 7.

207

que tinha direito. Ao retornar a Casa Nova, entrou na justiça contra a CHESF, recebendo

apenas parte do valor pleiteado a título de indenização.

Desempregado e chefe de numerosa família242, Alberico se revela extremamente

angustiado. Diz que nunca se "aprumou" em Casa Nova e que até hoje “está quebrando

cabeça”. Reputa sua situação à falta de sorte, à infelicidade e, por fim, conclui: “se eu pudesse

voltar atrás, eu não saía, morria afogado, mas não saía...”

Outro caso interessante é o de Osmundo. Embora recebesse sucessivas cartas da mãe

dizendo que na borda do Lago era possível viver da pesca, relutava em partir. Somente com a

quebra da safra do algodão verificada depois da grande cheia de 1979, pensou na

possibilidade da partida. Antes que fizesse a opção definitiva, procurou o INCRA, tentando

viabilizar a troca do seu lote por um outro situado mais próximo à agrovila onde morava. Não

sendo atendido, decidiu pela partida. “Abandonei tudo, nem a casa eu vendi. Deixei tudo lá e

os outro tomaram conta. Eu tinha compromisso no banco. Mas deixei roça. No meu pensar, eu

deixei com que pagar, né? Se eles deram a outro, eles cobrassem.” Mais adiante disse que

vendeu alguns pertences. Vendeu três cabeças de gado e uma “venda”. O pequeno comércio

foi vendido com o compromisso de que seria pago em seis dias, mas, segundo ele, nunca

recebeu o valor acordado. Enquanto esperava o acerto de contas, começou a se preparar para a

partida. “Eu fui em Bom Jesus da Lapa e mandei fazer uma canoa, mas não tive dinheiro pra

botar o motor. O motor eu botei foi aqui.” Como o devedor não lhe pagava, desistiu e partiu

com a mulher e os onze filhos em direção ao novo Pau-a-Pique em uma “C10” fretada. No

“núcleo”, ficou “encostado” na casa de uma prima e logo depois foi para a casa de outro

parente. Com muito custo, conseguiu fazer sua própria casa sem ajuda alguma da CHESF.

Após o boom da pesca, verificado logo depois das enchentes de 1979/80, Osmundo

disse que passou grande penúria. “Vivia me bateno com um barco e não tirava nada para

viver”. Sobretudo por causa das maretas — ondas “gigantescas” para os padrões fluviais —, a

pesca na área de Represa tornou-se muito diferente daquela praticada antes de sua construção,

passando a exigir infra-estrutura e barcos maiores243. Impossibilitado de praticar a pesca

dentro das novas condições, comprou um pequeno lote, passando a cultivá-lo. Na borda do

lago recém-formado, a roça também não oferecia condições de sobrevivência. Segundo ele,

durante alguns anos, foi sustentado pelas filhas que viviam em São Paulo. “Minha fia que

pagava a conta pra mim nas vendas pra mim comê.” Depois de sucessivos fracassos como

242 Relato de Alberico.

208

agricultor, “vendeu a terrinha” e, mais uma vez, com a ajuda das filhas, conseguiu adquirir um

barco equipado com freezer — um pouco mais adequado às condições da pesca no lago. Hoje

não mais pratica a pesca, vive de um pequeno comércio instalado, afirma ele, com a ajuda das

filhas que trabalham em São Paulo. Não fosse “a galota (calote) que o povo passa”, frisa

Osmundo, sobreviveria do mercadinho com folga.

Francelino é outro indivíduo que retornou de Serra do Ramalho. Partiu “com uma mão

na frente e outra atrás”. Sem local para se “encostar”, uma vez que o povoado de Barra da

Cruz não fora reconstruído e não queria ficar em Sento Sé, onde se encontravam vários

parentes, saiu das agrovilas determinado a arranchar na borda do lago. Em Bom Jesus da Lapa

comprou um pedaço de lona e partiu no vapor “São Salvador”. Desceu em Sento Sé e levou

um choque com a imensidão do rio-lago. Na localidade fretou uma canoa e partiu em direção

a Pau-a-Pique244. O propósito era ocupar a área que restara da antiga Barra da Cruz, reerguer

o povoado e reconstituir a condição de vida beradera245. Em Pau-a-Pique, recebeu a

confirmação de que as terras pertencentes ao povoado submerso tinham sido griladas pelos

fazendeiros da região246.

A grilagem de terra na borda do lago recém-criado, conforme consigna Lígia Sigaud et

al (1987), tornou-se prática disseminada, sendo responsável pela concentração fundiária

verificada na área e focos de grandes conflitos, envolvendo fazendeiros e antigos

expropriados da barragem247 .

Donald Pierson reconhece que:

Há uma estrutura de classes claramente definida na maioria (mas não em todas) as comunidades brasileiras. Existem áreas no Vale (Penedo, por exemplo) onde as classes são bem definidas, ao passo que há muitas outras onde, como em Cruz das Almas, em São Paulo (ver Pierson, 1951), é duvidoso que o conceito de “classe” seja de qualquer maneira um instrumento analítico útil, ou em Marrecas, onde, conforme verificaram nossos pesquisadores, líderes e liderados

243 Além das maretas, Eduardo Paes Machado (op. cit., p.50) aponta as distâncias, a profundidade e a vegetação submersa. 244 Esse fato mais uma vez confirma que Francisco deve ter chegado à borda do lago pouco antes dele atingir a cota máxima, estipulada pelos técnicos. 245 Em que medida, os “propósitos” do narrador não são construções elaboradas a posteriori? 246 Francelino afirmou que já sabia da grilagem porque, em Serra do Ramalho, escutava o programa de rádio de D. José Rodrigues de Souza. 247 O artigo, sem indicação de autoria, Pescadores do Lago de Sobradinho: cotidiano, trabalho e organização, traz listagem de todos os grandes conflitos registrados na área de Sobradinho da construção da barragem até a data de sua publicação. Caderno do Ceas, n.133, maio-junho de 1991, p. 71.

209

pertencem a uma classe única, bem como em todos os vastos Gerais e em numerosas outra áreas rurais do Vale, incluindo grande número de vilarejos. (v.3, 1972, p. 456).

Nas sedes municipais do vale sanfranciscano, as diferenciações sociais aparecem

claramente, mas o mesmo não se pode dizer em relação aos pequenos povoados. Nestes, em

geral, as divisões sociais não são muito pronunciadas. Quando existem, estão assentadas na

titularidade da terra e na articulação aos esquemas de poder local ou regional. Nos povoados

beraderos do São Francisco onde a terra praticamente não era titulada e os indivíduos

pertenciam, grosso modo, ao mesmo grupo de parentesco e compadrio, a diferenciação era

tênue, fazendo sentido, talvez, afirmar que ela se dava mais pelo prestígio248 do que pela

condição econômica. O funcionário público, o tabelião ou o juiz de paz eram vistos como

pessoas de prestígio e, conseqüentemente, com distinção. A título de exemplo, em Pau-a-

Pique, o líder local — Hipólito Rodrigues — representante dos Viana, era escrivão.

Em algumas comunidades, a pequena distinção entre um grupo e outro é assinalada

através da qualificação “forte” ou “fraco”, como bem assinalou Woortmann (1994). Assim, há

fazendeiros “fortes” e “fracos”, criadores “fortes” e “fracos”, comerciantes “fortes” e

“fracos”. Possivelmente, os homens que se arvoraram no direito de reparar as perdas sofridas

com a submersão de suas terras e as parcas indenizações, amealhando área no antigo povoado

de Barra da Cruz, eram considerados “criadores fortes” em comparação com a maioria dos

arrependidos das agrovilas e faziam “figura de rico”, para usar expressão da região. No mais,

pouco se diferenciavam dos outros habitantes de Pau-a-Pique ou Barra da Cruz249. A título de

exemplo, um dos “grileiros” era sobrinho de Francelino e padrinho de Nelo, outro

arrependido250. Passados mais de 25 anos da retomada, todos mantêm relações de amizade

ente si, indicando que as disputas não deixaram marcas ou, se deixaram, foram diluídas com o

passar do tempo ou, ainda, esmaecidas em função das relações de parentesco ou compadrio.

Quando cheguei ao povoado de Pau-a-Pique em companhia do vereador José Eduardo, um

dos “grileiros” me indicou, justamente, os nomes de Francelino e Apolônia e foi entre as casas

248 Aqui é oportuno lembrar o conceito de grupos de status de Max Weber. Mais detalhes: Norberto Bobbio et al., Dicionário de Política, v.1, 1994, p. 172-173. 249 Sobre a pouca diferenciaçao social nos povoados beraderos, no período em estudo, escreveu Tallowitz: “Em relação à posse da terra e riqueza (ou seja, pobreza), não parecia haver grandes diferenças entre os habitantes de Itapera. Pelo menos essa impressão era consubstanciada pela pobreza uniforme de todas as casas, e pelas informações a respeito do foro e criatório” (1979, p. 34). 250 Consta inclusive que, em determinado momento, Nelo, temendo desgostar o padrinho, fraquejou. Instigado pelos companheiros de luta, depois se mostrou um dos mais envolvidos na retomada.

210

desta e do arrependido Camilo que fui apresentada a outro “grileiro” que conversava

condialmente com o último.

Voltemos à diáspora de Francelino. Ciente de que a beira do lago, em área da antiga

Barra da Cruz, se encontrava cercada, ele se dirigiu para o “Leite”, localidade pertencente ao

povoado e situada na catinga. Quem primeiro arranchou no “Leite”? Há controvérsias e até

mesmo Francelino, que se tornou uma espécie de depositário da memória do grupo, não se

recorda. A única coisa da qual tem certeza é que, quando ali chegou, já se encontravam

arranchados outros arrependidos. Algumas famílias estavam acampadas em barracos de lona

e outras em minúsculos ranchos de barro. “Coberto de telha. Tinha um morador que fazia uma

teiinha. Tinha um buraco. Um barreiro, dava umas teiinhas fraca, mas dava”, informa

Apolônia. A vida nos barracos, fossem eles de lona ou de barro, era sufocante e precária e os

acampados estavam submetidos a todo tipo de risco. Às vezes, cobras e escorpiões eram

encontrados e mortos dentro das precárias habitações. Devido ao “aperto” dos barracos, a

maioria dos homens dormia em redes “armadas” embaixo de árvores, correndo riscos os mais

variados.

Sob os auspícios da Prefeitura Municipal de Casa Nova, a área havia sido desmatada e

os lotes demarcados. De acordo com Camilo, embora o “Leite” ficasse situado na catinga, um

“braço” do lago recém-formado chegava bem próximo do povoado, suprindo-o de água. Ele

disse: “Nós pensava que a água não ia sair de lá nunca.” Quando tiveram a percepção de que,

com a chegada da seca, a água iria faltar, a perspectiva de saída foi aventada.

Inicialmente, quantas famílias se encontravam acampadas? Apolônia acredita que

eram aproximadamente dez. Ela tenta lembrar alguns nomes: “Era eu, José, João, Nelo e

Maria Prestiosa...” Mais tarde, juntaram-se a elas outras famílias, inclusive uma ou outra que

já se encontrava na área, perambulando em barracas pela catinga ou em outras cidades na

borda do lago, como Camilo e Alvino. O primeiro, antes de se estabelecer em Barra da Cruz,

foi para Sento Sé251, onde tinha familiares, e o segundo se instalou em Pau-a-Pique numa casa

alugada, tão precária, que “à boca da noite era invadida pelos porcos”, conforme assinala,

razão pela qual, pouco depois, se mudou para Barra da Cruz.

Na verdade, conforme chama atenção Luiz Eduardo, o número de famílias acampadas

em Barra da Cruz era pequeno. A maioria dos arrependidos chegava ao acampamento

desacompanhado. Os homens deixavam nas agrovilas mulheres e filhos, buscando na borda

do lago recém-criado a garantia da sustentabilidade.

211

Enquanto Barra da Cruz não entrasse no circuito da pesca e esta não se efetivasse

como a principal atividade econômica da região da borda do lago, os arrependidos

enfrentariam condições de extrema penúria. Para ajudá-los, “O STR de Casa Nova deflagrou

uma Campanha de Cooperação e Solidariedade junto ao outros STRs, para auxiliar as famílias

de Barra da Cruz”. (Silva, 2002, p. 124). Contaram também com a ajuda da Diocese e da

Prefeitura Municipal.

A experiência de Mateus é das mais reveladoras do périplo de alguns arrependidos

antes de empreenderem a retomada de Barra da Cruz. Ele saiu de Barra da Cruz em direção às

agrovilas, provavelmente em 1977. Teve péssima impressão da localidade, razão pela qual

não chegou a tomar posse do lote, permanecendo na casa do sogro. Dois meses depois,

abandonou as agrovilas e retornou à área da represa, trabalhando como mestre de obras na

reconstrução de Pau-a-Pique. Nesse momento, morava em uma casa alugada. Um pouco mais

tarde foi para Juazeiro, retornando ao Pau-a-Pique em seguida. Informado do acampamento

no “Leite”, resolveu também participar, mostrando-se, como veremos adiante, uma das mais

importantes lideranças. A diáspora de Mateus continuou logo após a reconstrução de Barra da

Cruz. Tendo o local se revelado impróprio para a agricultura, abandonou o novo “núcleo” e

partiu para Casa Nova. Na localidade não viu também meio de vida, partindo, em seguida,

para um garimpo localizado em Santa Terezinha de Goiás. Nesse garimpo, conseguiu

amealhar recursos suficientes para ampliar a casa que deixou em Casa Nova e montar um

pequeno comércio, do qual até hoje tira o sustento da família.

Certo dia, lembrou Apolônia, os acampados estavam na beira do fogo no seu barraco e

tiveram a idéia de retomar a área da antiga Barra da Cruz.

Tivemos uma sugestão, um dia lá de noite reunimo o pessoal. Reunimo lá pra gente invadir isso aqui. Era nosso. Aí nós reunimo um dia de noite, aí nós saltamos o arame. Abrimos o arame, invadimo, essa parte do serrote pra cima. É onde nós está trabalhano. Aí, eles se reuniram cheio de dinheiro, e nós fraquinho, tudo mundo sem condições de mexer... Aí, eles foram pra justiça. Aí troxeram a justiça. Quando a justiça chegou, jogou duro e nós tombém jogamo duro. Falemo: ‘daqui nós sai só os pedaço. Nós temos o direito’.

Para Camilo a idéia de retomar a área pertencente a Barra da Cruz ganhou corpo

depois que Mateus chegou ao povoado e observou que a presença da água no “Leite” era

251 Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/05/2003.

212

temporária. Segundo Camilo, Mateus teria dito: “Rapaz, vocês vão matar o filho de vocês de

sede.” Depois da observação, os acampados, reunidos em volta da trempe no barraco de

Apolônia, tomaram a decisão de enfrentar os “grileiros” para retomar as terras do antigo

povoado e reconstruir Barra da Cruz.

A invasão que os arrependidos fizeram à área grilada pelos fazendeiros de

Pau−a−Pique ocorreu numa manhã, antes do sair do sol. Em grupo, romperam a cerca e

começaram a desmatar a área. Matias lembra a experiência: “Foi uma frota de home,

cheguemo lá, cortemo o arame e logo assim desmatamo umas três tarefa de terra. Matemo

bem uns seis cascavel enrolado nos troncos da catinga de porco. Foi uma farra.” Segundo

Mateus, o primeiro a arranchar na borda do lago foi Minervino, seu sogro. Ele instalou sua

pequena barraca de lona preta debaixo de um pé de juazeiro. Em seguida, todos os acampados

do “Leite” se deslocaram para a área desmatada. Em questão de dias chegaram novos chefes

de famílias, inclusive, alguns que não partiram, mas que tinham o intuito de voltar para seu

local de origem. Começava a construção da Nova Barra da Cruz.

A “invasão” da área e a instalação do acampamento geraram conflito entre os

expropriados “fracos” e “fortes”, digamos assim, evidenciando tensões e disputas na borda do

lago recém-criado. Informados de que “suas” terras foram invadidas, os "grileiros", apoiados

pelos funcionários da CHESF, utilizaram de todos os meios para persuadir os “invasores” a

recuar. É mais uma vez Apolônia quem narrou os fatos: “Eles chegaro, jogaro duro...” Já

experimentados em suas andanças pelas agrovilas, os arranchados não se deixaram intimidar e

responderam às ameaças com firmeza, afinal a posse da terra na borda do rio-lago era o único

modo de viabilizarem, com todas as demarches, o modo de vida anteriormente dominante.

Relatou Apolônia:

“Nós só sai daqui aos pedaço. Porque isso era nosso e vocês avadiro. Quem avadiro foi vocês. Nós não avadimo, nós tamos trabalhano no que é nosso e daqui nós não sai. Dê no que der, nós daqui nós não sai. Aí prometero, fizero medo de cadeia... Não tem nada com cadeia. Nossa cadeia... Nós daqui não sai, nem que morra.”

Ambos os lados se mobilizaram, buscando apoios e solidariedades. Discernir os

grupos de apoio e as redes de solidariedade de cada um dos atores envolvidos no conflito não

parece muito difícil. Consta que os acampados receberam, de imediato, o apoio do Sindicato

dos Trabalhadores Rurais e da Igreja Católica. Na memória dos entrevistados, o bispo D. José

213

Rodrigues de Souza esteve pessoalmente em Barra da Cruz, rezando missa embaixo de um pé

de juazeiro, contudo não lembram exatamente em que ano isso teria ocorrido. De outro lado,

consta que os funcionários da CHESF, lotados em Casa Nova — Francelino fez referência

especialmente a um tal de Marcos252 —, tomaram partido em favor dos grileiros e utilizaram

de vários meios para que voltassem ao acampamento do “Leite”. Contudo, o grande mediador

do conflito foi o prefeito Adolfo Viana. Aliás, o seu apoio foi reivindicado por ambos os

lados, afinal, ele não só era a autoridade máxima do município, como o representante

incontestável de sua principal força política. Fazendo jus ao papel de chefe carismático,

Adolfo Viana se mostrou bastante hábil, capitalizando o conflito, na medida em que se

colocou como mediador das demandas dos acampados junto à CHESF.

Na percepção de alguns entrevistados, num primeiro momento, Adolfo Viana acenou

com apoio aos grileiros; mas diante da determinação dos arrependidos, buscou a acomodação

dos interesses em disputa. Aos antigos usuários da área em litígio assentiu o assentamento na

borda do lago — em área muito menor que a pleiteada, diga-se de passagem — e aos grileiros

prometeu a indenização de suas “benfeitorias”.

Após a celebração do acordo, o chefe político tomou as rédeas do processo de

assentamento, colocando sua correligionária de pré nome Marieta253 como a distribuidora dos

lotes. Os métodos arbitrários utilizados pela professora Marieta em relação à distribuição dos

lotes criaram um clima de disputas e conflitos entre os acampados, gerando reclamações dos

indivíduos que se sentiam prejudicados, recorda Luiz Eduardo. Ele complementa: “Essa

mulher tinha um papel importante”254. Interessante é que nenhum dos entrevistados fez

menção ao papel desempenhado pela Marieta. O silêncio em relação ao fato talvez se explique

em razão da disposição de não trazer à tona disputas e conflitos vividos pelos arrempendidos

no passado, bem como de relembrar o esbulho a que foram submetidos pelas principais

lideranças políticas do município.

A lentidão no processo de assentamento e da construção das casas, bem como das

melhorias prometidas, levou ao descontentamento dos acampados. Em carta dirigida ao bispo,

252 A passagem desse funcionário por Pau-a-Pique tornou-se de triste memória. Em depoimento à CPI das Enchentes na Câmara Federal, D. José Rodrigues de Souza atribui-lhe o seguinte diálogo com o desalojado de nome Ezequiel: “Você não receberá lote: o seu lote é o cemitério, pois já está loteado e cercado.” D. José Rodrigues de Souza, Depoimento na CPI das Enchentes do Rio São Francisco, vozes, Petrópolis, 1981, p. 8. 253 Depois que o nome da professora Marieta veio à baila, procurei contatá-la, sendo informada de que já havia falecido. 254 O papel desempenhado pela correligionária de Adolfo Viana no processo de distribuição de lotes em Barra da Cruz veio à tona na entrevista de Luiz Eduardo de Souza, mas o agente pastoral não se recordava do seu nome.

214

Mateus descreve a situação em que viviam as famílias acampadas em Barra da Cruz e os

impasses criados pela prefeitura. Segue na íntegra a carta de Mateus:

Don José Rodrigue Venho pedir em nome de aproximadamente 60 famílias no qual segue este levantamento que nos fizemos de 31 famílias, que segue junto com esta carta. Nós lutamos por uma área para contruir as casas e ganhamos da CHESF, com grande dificulidade. O prefeito pagou a nos para desmatar a área e uma estrada para o local, e disseram agora não pode fazer mais nada. Até potógro [topógrafo] que prometeram pra lotear a área não dão mais. E nós estamos aqui no Serrote debaixo de lonas, e debaixo de pé pau passando fome e necessidade.” (Silva, 2002, p. 107).

O bispo atendeu prontamente à solicitação do missivista. O apoio da Diocese aos

acampados de Barra da Cruz se traduziu em várias frentes, destacando-se na memória dos

arrependidos, entretanto, a disponibilização de uma advogada, Dra. Angélica Carneiro, para o

acompanhamento do caso e a presença no local do agente pastoral Edu — Luiz Eduardo de

Souza. O auxílio da advogada não se consumou, uma vez que o prefeito Adolfo Viana, como

salientado mais anteriormente, assumiu a tarefa de fazer a mediação com a CHESF.

Luiz Eduardo, além de representar a Comissão Pastoral da Terra em Barra da Cruz,

representava o Pólo Sindical — Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Casa Nova,

Sento Sé e Remanso —, colocando-se como uma espécie de animador do movimento dos

acampados. A presença do agente pastoral em Barra da Cruz não foi bem recebida pelas elites

locais e abriu mais uma frente de disputa entre o bispo e o prefeito “biônico” Adolfo Viana,

cujo auge se deu durante o famigerado caso da “Agroindústria Camarajibe”255. Consta que o

principal chefe político de Casa Nova lançou mão de vários meios para afastar a Igreja de

Barra da Cruz.

Acionada, Marina (conversa mantida em Salvador em 2/9/2003) confirmou os dados e não só deu o nome da envolvida, como declinou sua profissão. 255 O caso da Agroindústria Camaragibe se tornou bastante conhecido da imprensa. Com recursos do Pró-Álcool, o grupo Camaragibe, sediado no Rio de Janeiro, tinha o intuito de instalar no município de Casa Nova projeto de extração de álcool, grilando, em conluio com membros da família Viana, enorme área no povoado de Riacho Grande. A partir deste fato, a disputa entre o bispo e os Viana ganhou enorme proporção. Em entrevista, o bispo disse que, durante a primeira visita do Papa ao Brasil (1980), esteve com o governador Antônio Carlos Magalhães e lhe disse com todas as letras: “Sr. Governador, a família Viana manda em Casa Nova durante cem anos e nós vamos acabar com a família Viana em Casa Nova.” Entrevista concedida à autora em Juazeiro, 28/7/2003.

215

Luiz Eduardo contou, com riqueza de detalhes, um fato marcante registrado no

povoado. Este fato dá a verdadeira dimensão da forma como atuava o chefe político de Casa

Nova e como sua clientela política se mostrava paralisada em sua presença, assentindo suas

prerrogativas e decisões praticamente sem questionamentos.

Eu entrei com problemas lá de casa, problema de telhado, a chuva chegando e eles com as casas descobertas, com problemas de lotes porque a CHESF não dava os lotes. Tinha uma mulher em Pau-a-Pique que era justamente a representante do poder local dos Viana, que fazia um jogo com esse pessoal na concessão de lotes. Ela era uma referência do poder local (...) Tinha gente que tinha recebido um lote, aí chegou um outro e essa mulher tinha dado para um outro. Lembro-me que certa vez marcamos uma reunião. ‘Nós vamos chamar essa mulher para ela vir aqui, já que ela quem está respondendo, encaminhando, para vir aqui para encaminhar.’ Eu estava com a reunião marcada para noite de um dia da vida qualquer. Quando eu cheguei lá, a comunidade estava num silêncio danado. Todo mundo parado. Eu olhei para ver se tinha morrido gente. Quando eu olho dentro da sala da casa onde seria a reunião, na sala à luz de um lampião, Dr. Adolfo Viana, o prefeito. Eu olhei: ‘O que é que está acontecendo?’ Uma pessoa falou: ‘Ele está esperando você’. Entrei. ‘Boa noite, tudo bem? Então, Dr. Adolfo, parece que nós marcamos reuniões ao mesmo tempo, não é? Como é que a gente vai fazer? Então, sugiro que a gente vá lá pra fora porque aqui dentro não vai dar. O povo está todo lá fora.’ Então, peguei uma lâmpada, botei no carro próximo a um pé de pau. E aí começou a tal da reunião. A tal da mulher estava lá. Dr. Adolfo estava lá. O sentido da reunião era encaminhar os problemas. Ele assume a reunião como prefeito da cidade e aí eu fiquei assim só olhando, quais os problemas que tinham. E o pessoal naquele silêncio. A voz da comunidade sumiu, desapareceu. Eu falei: ‘Gente, pelo amor de Deus! Cadê o povo que disse que tinha problema de lote? de casa? Tem que falar.’ Aí a coisa mais impressionante, a pessoa falava e ele tinha que encaminhar, ele tinha que resolver. Ele chamava a mulher e junto, reforçando o que ela tinha feito, mas, ao mesmo tempo, resolvendo problemas que ela tinha criado. Inclusive, assumindo que era com o dinheiro dele, pessoal. Não era dinheiro da prefeitura. Vamos dizer que tinha gente que tinha perdido a plantação porque ela tinha cedido o lote para um outro. Ele fazia o acerto, qual era o valor, o montante. Na hora e acertava. Era um verdadeiro juiz. E assim foi, só para mostrar... para desmoralizar o trabalho da gente.

Nesse mesmo dia, enquanto retornava a Pau-a-Pique asseclas do prefeito tentaram

interceptar o veículo do agente pastoral, fato que se repetiu em outra ocasião.

216

Em 1981, a CPT resolveu fazer um documentário256 denunciando os problemas

criados pela Barragem de Sobradinho e evidenciando também a grilagem de terra na área. A

desenvoltura da CPT na região incomodava as elites locais, já bastante desgastadas em

relação aos seus clientes e antigos correligionários. Tudo indica que após as filmagens, as

pressões do prefeito Adolfo Viana sobre a população das áreas onde ainda se registravam

disputas e conflitos (por exemplo, Barra da Cruz e Riacho Grande) se tornaram mais intensas.

Secularmente, presas às relações clientelísticas e temendo represálias, a população de Barra

da Cruz sentiu-se acuada, cedendo às pressões dos potentados locais. A experiência de

enfrentamento diante do Estado e de seus propostos vivenciada por muitos deles em Serra do

Ramalho não se revelou suficiente o bastante para romper com anos de submissão aos ditames

das elites políticas de Casa Nova. Não é por outra razão que se intimidaram diante do chefe

político Adolfo Viana na reunião narrada pouco acima por Luiz Eduardo de Souza, e só

romperam o silêncio, verbalizando suas principais reivindicações e queixas, mediante

instigações do agente pastoral. Expressão clara disto é a carta enviada a Luiz Eduardo por

Apolônia, a principal liderança da Nova Barra da Cruz.

Queridos amigos Edu! Bom dia! Escrevo-lhe estas poucas linhas mandando-lhe agradecer por tudo que você fez por nós. Fiquemos muito satisfeito por você ter vindo aqui. Logo após Doutor Adolfo e o Coló esteve, aqui e conversamos muito ele disse que vai mandar cubrir todas as casas e também construir o grupo escolar. Caros amigos, não precisa, vocês vir pos está tudo como nós queria. Nós Qui estamos orando por vocês nos achamos que só nossas orações está lhe alimentando. Edu, aguarde porque eles prometeram mais ninguem sabe se vão dar. Se eles der tudo bem, e se eles não der nós estamos agora agradecemos 1º a Deus do ceu e 2º a vocês. Vamos terminar pois alegria Qui para nós é demais, nos nem sabemos o que escrever. Obrigado Edu. Mil vezes obrigado. Você e toda turma a Diocese. Aqui fica nossos agradecimos.257

Vemos através do bilhete que o papel desempenhado pelo agente pastoral é

reconhecido como meritório, mas que o acordo com o prefeito não pode ser desrespeitado e a

presença do agente pastoral na comunidade, naquele momento, se constituía em ameaça à

realização das promessas. Ademais, ao reconhecer legitimidade às reivindicações dos

256 Dá pra entender? Documentário produzido pelo Setor de Comunicação Social da Arquidiocese do Rio de Janeiro sob patrocínio da CPT, 1981. 257 A carta foi assinada com o nome completo da destinatária e datada em Barra da Cruz, 29/8/1981.

217

arrependidos, o tradicional chefe político Adolfo Viana, desgastado em todo processo de

transferência em decorrência do seu silêncio258, reata antigas relações de reciprocidades com

seus liderados, e estes, embora reconhecendo o papel do agente pastoral, não podem deixar de

prestar-lhe solidariedade. O bilhete revela também que a resistência camponesa cotidiana tem

limites. No caso em questão, os arrependidos não tencionavam desafiar o poder de mando do

antigo chefe político, mas cobrar direitos considerados legítimos. Reconhecidos os direitos,

recuam, ao menos temporariamente. Guardemos as palavras de Apolônia: “Edu, aguarde

porque eles prometeram mais ninguém sabe se vão dar”. Infere-se que, se o contrato for

novamente rompido, poderão buscar a aliança que acabam de recusar, visando à abertura de

novas negociações e a obtenção dos pequenos ganhos políticos prometidos.

Da mesma forma que “esqueceram” a atuação da professora Maria no processo de

reassentamento em Barra da Cruz, nenhum dos entrevistados fez menção à carta enviada ao

agente pastoral. Prova cabal de que a memória é, não custa lembrar, seletiva e sempre filtrada

em razão de aspectos do presente259. Luiz Eduardo não se recorda de quem teria sido o

emissário da carta. Será que a iniciativa da entrega dessa correspondência foi um ato

unilateral de Apolônia ou partiu do conjunto dos acampados? Não temos informação260. O

que sabemos, por informação do próprio Luiz Eduardo, é que a pressão sobre a comunidade

se revelara tão intensa que sua presença deveria ser evitada na comunidade.

Num certo dia de 1981, quando se dirigia para mais uma reunião no povoado, foi

interceptado por um membro da comunidade. Ele o chamou para dentro da catinga e

entregou-lhe a carta cercada de cuidados. Luiz Eduardo conta: “Era um temor! Ele disse que

tinha vindo com a havaiana virada para que seu rastro não fosse reconhecido, nem sei como

ele fez isso. Ele tinha que despistar porque na comunidade havia um temor; um estava

vigiando o outro. Havia todo um processo de dominação...”

A partir do momento em que recebeu a carta, Luiz Eduardo resolveu não mais atuar

em Barra da Cruz. Ele diz: “Eu li a carta e disse: ‘Meu amigo, eu entendi tudo.’ E deixamos o

258 Em entrevista concedida a Freitas, o chefe político justifica o silêncio em razão da imposição da ditadura militar. Vejamos: “Nós não fomos ouvidos, não! Pelo contrário, era proibido nós nos manifestarmos. Era proibido. Diziam que no tempo do Médice (sic) quando houve mais rigidez. Não, nós fomos proibidos de falar, de combatermos a barragem no tempo de Geisel que se dizia que ‘já tinha abertura’. Tanto que nós não podíamos nos pronunciar sobre a barragem. Era para não criar animosidade. Animosidade já existia.” 259 Ana Braga diria de outro modo: “É o presente filtrando o que deve ser lembrado.” Tradição camponesa e modernização. Experiências e memórias dos colonos do perímetro irrigado de Morada Nova – CE”, 2003, p. 71. 260 Depois da entrevista do agente pastoral Luiz Eduardo de Souza, busquei contato com Apolônia, sendo informada de que ela se encontrava em tratamento de saúde em local ignorado.

218

trabalho para não atrapalhar o processo. Depois de uma carta dessa, eu falei para a CPT:

“Nesse momento, nós não temos nada para fazer lá.”

Passados mais de vinte anos, para a maioria dos entrevistados, a reconstrução de Barra

da Cruz só foi possível porque contaram com o apoio e a mediação do prefeito Adolfo Viana.

Contudo, eles têm clara a percepção de que o apoio do prefeito foi motivado pelo interesse de

afastar o bispo D. José Rodrigues de Souza do caso e de obter dividendos políticos. Vejamos

narrativa de Apolônia:

A turma de Casa Nova foi político com D. José Rodrigues. O que ele queria fazer, eles tomaro a frente e não deixaro D. José Rodrigues fazer. E aí, o Dr. Adolfo chegou e disse que não, que indenizava e combinou com eles que indenizava essa parte, onde cortou ali naquele serrote e essa área ficava aberta pra o pessoal morar. Foi aí que nós saímos de lá do lugar onde estava desmatano e mudemo pra o lado de baixo. Aí nós vem lutando até hoje.

Mateus, uma das principais lideranças do movimento de reconstrução de Barra da

Cruz, tem percepção ainda mais aguda. Para ele, o prefeito Adolfo Viana nunca esteve ao lado

dos arrachados, tanto é, recorda, que estes ficaram no “Leite” durante vários meses sem que a

CHESF fosse acionada para resolver a situação. O apoio repentino do prefeito à reconstrução

de Barra da Cruz deu-se pelo temor de perder ainda mais a clientela e para refazer antigos

laços de solidariedade e proteção rompidos durante o processo de retirada. Nesse caso não

custa lembrar que, apesar da cerrada oposição da Igreja Católica, a oligarquia Viana só foi

derrotada em Casa Nova, em 1992, com a eleição de Orlando Xavier.

Ainda na percepção de Mateus, a acomodação patrocinada, sob os auspícios do

prefeito, entre os grileiros e os acampados, foi bastante prejudicial aos últimos, uma vez que

estes deixaram o local que haviam desmatado inicialmente, recebendo em troca uma nesga de

terra situada entre dois “serrotes”, completamente imprópria para a agricultura. Mateus

chamou a atenção para outro aspecto importante. Ele disse que, nas constantes viagens que

fez a Sobradinho para reivindicar junto à CHESF projeto de reassentamento, sentiu disposição

da estatal em atendê-los. Ele disse: “Eu estava arranjando as coisas diretamente da CHESF.

Eu fui pra lá. Fui atendido, bem atendido pelo pessoal. Aí o pessoal mandaro duas mulheres.

Elas fizeram um levantamento das famílias que estava lá. Anotou mais alguém que tava pra

vim, né?”

219

A partir do momento em que a prefeitura se imiscuiu nas conversações, colocando-se

como mediadora e defensora dos acampados, a estatal se afastou do caso, deixando aos

cuidados da prefeitura a reconstrução do povoado, fato, aliás, bastante reprovado por Mateus.

Em que medida a reprovação não se coloca numa perspectiva a posteriori? Dito de outro

modo, como compreender que a CHESF tão desgastada em todo processo de “limpeza da área

da barragem” tenha em tão pouco tempo se reabilitado, digamos assim, aos olhos dos

deslocados? A disposição da CHESF em atender aos arranchados de Barra da Cruz, pelo

menos na percepção de Mateus, sinalizava talvez que os ventos da abertura democrática

chegavam à estatal, como também podia sinalizar que ela havia apreendido o sentido da

resistência surda dos atingidos, buscando, de certo modo, uma contemporização das suas

demandas e reivindicações. De qualquer modo, a cooptação dos arrependidos e o afastamento

da Igreja levaram à desmobilização e, segundo ele, a Nova Barra da Cruz foi reconstruída

lentamente e em condições bastante desfavoráveis, fatores que inviabilizaram a vida no

“núcleo”, levando parcela dos arrependidos a se deslocarem para outros lugares. O descaso

dos dirigentes públicos em relação à população beradera era (e é) tão pronunciado que o

povoado de Barra da Cruz só receberia energia elétrica em meados de 1984.

3 - O consolo é o “rio”...

A Nova Barra da Cruz consiste em um pequeno “núcleo” com duas linhas de

aproximadamente 90 casas. Uma linha de casas se encontra voltada para o lago e a outra para

a estrada de chão que dá acesso ao povoado. As pequenas casas se assemelham às das

agrovilas de Serra do Ramalho; quase todas possuem três cômodos e uma “puxada”.

O “núcleo” urbano ocupa área de quatrocentos metros de frente por mil de fundo, e,

além das casas, existe uma Igreja, voltada para o lago, uma escola, um bar e um mercadinho.

As casas foram construídas muito lentamente, fato que, como vimos, gerou reclamações e

negociações envolvendo a comunidade e a prefeitura. A demora na construção das casas se

deu, conforme salientaram os entrevistados, porque a prefeitura se comprometeu a bancar

somente os blocos, cabendo aos acampados a compra do madeiramento, das telhas e as

despesas com a mão-de-obra. Como a maioria não tinha condições de arcar com estas

despesas, faziam as casas por etapas, na medida de suas possibilidades. Acresce também que

o administrador da obra, nomeado pelo prefeito Adolfo Viana, muitas vezes não cumpria sua

220

parte, fato, aliás, que motiva a suspeita de que este teria se locupletado, desviando os recursos

dirigidos para a edificação das habitações, razão pela qual se explica a precariedade das

construções e a demora de sua construção.

Figura 9 - Vista do povoado (foto: Luciene Aguiar)

Linha de casas localizadas em frente ao lago de Sobradinho, em Barra da Cruz.

Figura 10 - Capelinha de Barra da Cruz (foto: Luciene Aguiar)

Depois da negociação aludida na carta de Apolônia dirigida ao agente pastoral, a

prefeitura arcou com as despesas do madeiramento e cobertura das casas e o “núcleo”

221

adquiriu as feições, digamos assim, atuais. Mas ainda hoje encontram-se no povoado muitas

casas feitas com madeira de carnaúba, considerada inadequada e de qualidade inferior pelos

seus habitantes. Quando da divisão da área, coube a cada família acampada

(aproximadamente 80) um lote de apenas 25 metros de testada para o lago. O lote é

extremamente exíguo e insuficiente para a subsistência de sua população. Daí, como chama

atenção Lygia Sigaud et al, verificar-se entre os jovens em idade de constituir família em

Barra da Cruz, indignação diante da impossibilidade de se instalarem na borda, porque todas

as terras já estavam tomadas, o que os obrigava a viver apenas da pesca” (1987, p. 240).

Todos os moradores de Barra da Cruz entrevistados desconhecem a metragem total da

área. Impossibilitados de praticar a agricultura irrigada, os habitantes da borda do lago

desprezam a área da catinga. Em geral, esta sequer é medida. Assim, o limite do lote pode ser

a roça de um catingueiro ou seu pequeno criatório. Existem, atualmente, em Barra da Cruz

três projetos de fruticultura irrigada, além do cultivo de cebola; a área de catinga está

praticamente toda ocupada.

A Nova Barra da Cruz é o mais pobre dentre os “núcleos” que se localizam às margens

do lago e boa parcela dos arrependidos já não se encontram no local. Partiram em busca de

melhores condições de vida.

Os habitantes idosos de Barra da Cruz vivem da aposentadoria rural e os poucos

jovens que permanecem no povoado vendem a força de trabalho nos três projetos de cultivo

irrigado situados próximos dali. Em razão da depleção261, a prática agrícola é restrita e a feira

inexistente. Os moradores do pequeno “núcleo” se abastecem em Pau-a-Pique, distante dali

mais de 15 quilômetros de estrada de chão.

Embora o município de Casa Nova desponte como o maior produtor de caprinos do

estado da Bahia, em Barra da Cruz, diferentemente dos demais povoados do município, a

criação se resume a umas poucas cabeças. É sinal de que o antigo fundo de reserva camponês

(Garcia Jr., 1983), após as sucessivas expropriações, foi praticamente dizimado da paisagem

do povoado, sem contar que a exigüidade dos lotes não favorece a criação de animais,

tradicionalmente, criados à solta.

Os lotes, como referido acima, estão localizados num “areão”, impróprio para a

agricultura de subsistência.

261 Termo utilizado pelos técnicos para denominar a área do lago incluída na cota que, periodicamente, fica descoberta. O beradero continua a denominar o fenômeno de vazante.

222

Nas condições atuais, a agricultura de vazante é profundamente precária, uma vez que a antiga periodicidade desta é agora condicionada às demandas energéticas. Por outro lado, a vazante atual não deixa descobertos solos tão férteis como os deixados pelo rio. (Machado, 1987, p. 74)

Nos primeiros cinco anos de formação do povoado, assinalou Mateus, a situação ainda era

mais precária, pois inexistia a “vazante” hoje verificada. Paulo Sandroni (1982, p. 70) e Ligia

Sigaud (1987) chamaram a atenção para a não diferenciação entre o lote de sequeiro e aquele

com testada para o lago. A propósito assinala a antropóloga:

O “lote de borda”, apesar de possuir uma testada para o lago, continua ocupando um solo de caatinga, e nele não se forma lameiro. Isso porque não basta estar junto à água, o que no passado assegurava a renovação permanente da terra, provocada pela lama trazida pelo rio em suas enchentes anuais, processo esse que o lago não reproduz. Como estão situadas acima da cota máxima de segurança de reservatório (392,5 metros), os “lotes de borda” nunca são cobertos pela água, salvo em enchentes excepcionais, quando o nível do lago escapa do controle da administração da barragem. (Sigaud, 1987, p. 234).

Tal situação vem se revertendo nos últimos anos, como reconhece a própria Lygia

Sigaud em outro artigo:

Embora em nada se assemelhem aos lameiros [grifo do original] do passado, pois não são fertilizados pelo húmus e nem descobertos com a mesma regularidade (já que a vazante não depende dos movimentos naturais do rio), tais terrenos são valorizados em função da sua umidade e porque representam de fato uma ampliação do estoque de terras disponíveis para além do lote. (1992, p. 26).

Por isso, os habitantes de Barra da Cruz cultivam a cebola e, às vezes, retiram do exíguo lote

“boas safras”

A abundância de peixe dos primeiros anos da formação do lago é coisa do passado. “O

milagre foi ilusório. A sobrepesca, a pesca predatória, as mudanças no ecossistema

rapidamente fizeram baixar a produção, atingindo seu nível mais baixo em 1987, com apenas

3.500 toneladas.” (Malvezzi et al., 1995, p. 73). Nas condições atuais, a pesca no lago requer

infra-estrutura inacessível aos indivíduos que por tantos anos sofreram expropriações

sucessivas. O projeto Sobradinho, que, de certo modo, teria motivado a vinda de uma parcela

dos arrependidos, foi mais uma promessa não cumprida.

223

Em suma, a Represa de Sobradinho

desarticulou ecossistemas que eram responsáveis pelo equilíbrio de todo o vale. As enchentes, que antes eram anunciadoras de fertilidade, sendo recebidas com alegria pelos ribeirinhos, hoje são vistas como calamidades. Suas proporções, época das ocorrências e duração são sempre imprevisíveis. Além disso, não depositam mais o húmus renovador da fertilidade e sim uma areia que empobrece progressivamente o solo. (Machado, 1987, p. 49).

Até o acesso à água tornou-se problemático, uma vez que os projetos de agricultura

irrigada descarregam no lago grande volume de efluentes com agrotóxico e como este não

apresenta vazão suficiente para “limpar” a água, fica acumulado, tornando-a imprestável para

o consumo humano262. Não é por outra razão que os habitantes de Barra da Cruz dizem que a

vida beradera depois da barragem é praticamente impossível, sinalizando uma ponta de

frustração em relação ao retorno, confessando que a única coisa a dar-lhes alento e consolo,

no pequeno “núcleo”, é a proximidade do rio-lago. Independentemente das motivações, essa

percepção confirma as sábias palavras de Abdelmalek Sayad, quando escreveu:

Em verdade, a nostalgia não é o mal do retorno, pois, uma vez realizado, descobre-se que ele não é a solução: não existe verdadeiramente retorno (ao idêntico). Se de um lado, pode-se sempre voltar ao ponto de partida, o espaço se presta bem a esse ir e vir, de outro lado, não se pode voltar ao tempo da partida, tornar-se novamente aquele que se era nesse momento, nem reencontrar na mesma situação, os lugares e os homens que se deixou, tal qual se os deixou (Sayad, 2000, p. 12).

Ainda que reconheçam as dificuldades, no que tange à reprodução da condição

beradera de vida, todos os arrependidos afirmam que a vida na borda do lago de Sobradinho

é superior à vida “cativa” dos colonos nas catingas das agrovilas263.

262 O problema parece mais pronunciado no “núcleo” de Bem-Bom, uma vez que ali, a cebola é cultivada em moldes mais “desenvolvidos’ e com a utilização de técnicas mais “avançadas. A proprietária da pensão em que estive hospedada no “núcleo” confessou-me que todos os dias manda buscar em Remanso, mediante pagamento, a água para consumo da família e da clientela, tal o nível de contaminação da água da borda do lago na localidade. 263 Vejamos: “P - Por que o pessoal volta? Flávio (Pau-a-Pique, Casa Nova) – É que lá tudo é difícil. [...] ele volta para aqui porque aqui, com toda ruindade, ainda é melhor que lá . Porque aqui tem água boa, tem o peixe. Lá das agrovilas para ir pro rio e mais ou menos uns 18 quilômetros.” Rubem Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 279.

224

Pelo menos aqui na hora da precisão, se quiser ter um peixe pra matar a fome, é bem aí. Pega a conta de comer. E lá [nas agrovilas], se quiser pegar uma piaba de peixe, tem que andar não sei quantos quilômetros. Aqui o que dá vida é o rio.”264

A valorização da permanência junto ao rio-lago denota não só importância da

reprodução da condição de vida beradera, em amplo sentido, como também a recusa às

imposições do Estado “demiurgo” e autoritário. Nesse sentido, convém lembrar as palavras de

Ruben de Siqueira:

Em Sobradinho, o agir do Estado tem a antecedência cronológica, mas não a precedência histórica, isto é, é quem começa, mas não quem tem a determinação exclusiva do real acontecido e vivido. O modo como os camponeses reagiram não foi um mero “sofrer”, mas alcançou a positividade política da co-determinação do seu destino. Não obstante todo autoritarismo do Estado militarista, a força da memória camponesa suscitada e transformada pelos fatos e o poder de suas estruturas sócio-culturais específicas atuaram como base de sentimentos morais, que motivaram atitudes caracterizadas por relativa autonomia (Siqueira, 1992, p. 41) .

Em que pese todas as vicissitudes, mormente dos arrependidos que retornaram à região

do lago de Sobradinho, a permanência na beira do rio-lago confirma a assertiva, sinalizando

ainda mais: no confronto entre camponeses e o Estado (através da CHESF) vigorou em amplo

sentido a falsa acomodação e a resistência silenciosa. Para usar uma metáfora — tão ao gosto

das comunidades ditas tradicionais —, o jogo entre os dois contendores não terminou em

empate, mas o Estado não ganhou de goleada como querem nos fazer acreditar as perspectivas

pessimistas.

264 Apolônia. Entrevista conceidida à autora em Casa Nova, 24/05/2003.

225

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Isso tudo se passou conosco.

Nós vimos, estamos estupefatos: com essa triste

e lamentosa sorte nos vimos angustiados.

(Memória Asteca da Conquista – Portilla Leon, 1985, p. 41)

Construída, inicialmente, para alimentar a Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso, a

Represa de Sobradinho (“o maior largo artificial do mundo”) se constituiu em uma das tantas

obras de caráter desenvolvimentista levadas a cabo pelos governos militares na perspectiva do

que se chamava à época “Brasil Grande Potência”. Seus efeitos foram muito perversos para a

população deslocada da área submersa. Além de deslocar 70 mil pessoas, submergindo

inúmeros povoados e quatro sedes municipais: Pilão Arcado, Sento Sé, Remanso e Casa

Nova, a grande obra desorganizou e destruiu a condição de vida beradera, marcada, como

visto nos capítulos precedentes, pela dependência harmoniosa e simbiótica entre o homem e o

Rio São Francisco. Nas margens do Velho Chico, o enlace entre cultura e natureza marcava

uma das condições de vida do beradero. Foreiros, posseiros, agregados, meeiros e

arrendatários, todos vivendo relações de sociabilidades muito próxima àquela que Thompson

denomina de economia moral, tiveram suas vidas subvertidas nos novos espaços para os quais

foram empurrados, atendendo aos ditames da expansão capitalista.

Portanto, as palavras da epígrafe dita há aproximadamente quinhentos anos,

certamente, por um estupefato indígena Mexica ou Maia bem que poderiam ter sido proferida

por uma dos tantos beraderos expulsos pela Represa de Sobradinho. Elas poderiam ter saído

da boca do melancólico e angustiado Alberico ou da apaxonada Apolônia. Afinal, foram

tantas as tristezas e tantas as “disinsortes” sofridas e percebidas pelos atingidos, desde o

primeiro contato com a “Dona CHESF”.

A estatal, em convênio com o INCRA, visando a relocação do grande contingente

populacional que seria deslocado, lançou mão de um ambicioso plano que compreenderia: a)

reconstrução das sedes municipais submersas; b) relocação de uma pequena parcela de

famílias na borda do futuro lago; c) transferência e relocação de aproximadamente quatro mil

226

famílias da zona rural para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho,

localizado no município de Bom Jesus da Lapa; e d) partida para onde a família escolhesse,

mediante pagamento da indenização e de um “auxílio” em dinheiro. Essa última opção foi

denominada de “solução própria”.

A CHESF e o INCRA alegavam que por questões técnicas: problemas de segurança,

indisponibilidade de terras para todos, má qualidade do solo e inexistência de vazante, o

reassentamento na borda do lago era inviável. Na verdade, havia por trás da argumentação

uma campanha de descrédito da chamada “solução borda do lago” — que acabara se impondo

—, de modo a forçar os beraderos a optarem pelo Projeto Serra do Ramalho. O Projeto fora

pensado e implementado com a finalidade de impor aos atingidos um “projeto civilizatório”

que consistiu na valorização dos aglomerados urbanos e na pequena produção mercantil.

Além da escolha do local para o reassentamento, um dos maiores focos de tensão entre

os agentes do Estado e a população atingida, conforme salientado, foi a questão das

indenizações. Segundo D. José Rodrigues de Souza, este foi o capítulo mais infame de todo o

processo “de limpeza da área” da barragem. De fato, seguindo à risca as leis agrárias, a estatal

não reconheceu o direito dos beraderos sobre “suas” terras de trabalho, pagando-lhes apenas

as “benfeitorias”. Ademais, os valores pagos eram estabelecidos a partir de critérios

arbitrários que os atingidos desconheciam. Desse modo, do ponto de vista dos atingidos, as

indenizações, ao invés de se constituírem em oportunidade de reconstrução do seu modo de

vida, transformaram-se numa segunda espoliação e em clara manifestação de esbulho.

Apesar de utilizar métodos que combinavam as promessas, pressões e a violência

simbólica, a CHESF não logrou o intento de transferir o número de famílias estimadas da

zona rural dos municípios submersos para o Projeto Especial. Aproveitando-se das

informações desencontradas e das improvisações dos agentes governamentais, da dubiedade e

do “jogo de interesse” dos políticos locais e regionais, bem como da tenaz resistência da

Igreja Católica — através do bispo diocesano D. José Rodrigues de Souza — a população

beradera adotou uma estratégia, que como chama atenção Ruben de Siqueira, combinava a

resistência e o conformismo. A resistência cotidiana camponesa resultou, digamos assim,

vitoriosa, uma vez que a maioria dos atingidos permaneceu na borda do lago, obrigando a

CHESF a criar de forma bastante improvisada, diga-se de passagem, às margens da represa,

vinte e cinco “núcleos de reassentamentos”, visando reassentá-los.

No entanto, aproximadamente 1.400 famílias partiram — “empurradas” ou “iludidas”

pela equipe social do convênio INCRA/CHESF/ANCAR-BA — e se instalaram nas primeiras

227

agrovilas do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, localizado no município

de Bom Jesus da Lapa, distante da área a ser submersa mais de 700 quilômetros. De acordo

com a propaganda da “equipe social”, nas agrovilas os expropriados teriam acesso ao crédito

rural e várias outras melhorias, bem como a equipamentos urbanos inexistentes em suas

comunidades de origem e, quiçá, em muitas outras comunidades rurais das regiões mais

desenvolvidas do país.

A organização espacial do Projeto Especial era dada através da criação das agrovilas.

Estas, à falta de melhor termo, eram unidades territoriais que compreenderam, além dos lotes

de trabalho, os lotes urbanos (de morada). Em geral, os lotes urbanos e os lotes de trabalho

eram muito distantes uns dos outros, obrigando aos “colonos” recorreram a inúmeras

peripécias para cultivá-los e cuidar de seus pertences. Notadamente, os deslocados da área da

Represa de Sobradinho não se conformavam com a separação entre o local de

trabalho/produção e o local de moradia. Ainda hoje, todos os entrevistados argumentam que

as casas deveriam ser construídas nos lotes e reclamam da distância que devem percorrer para

trabalhar. Outro fator de descontentamento era a distância entre as agrovilas e o rio. A

proximidade do rio era uma das felicidades do beradero sanfranciscano. No Projeto Especial,

as agrovilas mais próximas do Rio São Francisco, aquelas situadas no eixo 1, ficam distante

do mesmo aproximadamente sete quilômetros. Não bastasse, as agrovilas não contavam com

“água doce”. A inconstância da distribuição de água e o uso de água “saloba” e “pesada”

provocaram entre os reassentados muitos casos de doenças infecciosas e, segundo consta, de

morte.

Em termos administrativos, o Projeto trazia também uma inovação: sua administração

estava a cargo do gerente-executor, nomeado pelo INCRA. Inicialmente visto como o um

típico “coronel”, pouco a pouco, a figura do executor foi se desgastando e suas atribuições

foram questionadas. Em conseqüência de todos os fatores arrolados, as agrovilas passaram ser

rejeitadas pelos reassentados oriundos de Sobradinho e a ser vistas sob o signo da

desconfiança e do estigma do “cativeiro”. A emancipaçao prevista foi antecipada. O fato,

inicialmente, levado em “banho maria’ pelos agentes do Incra, ganhou corpo no Governo

Sarney, quando o discurso do Estado Mínino ainda não estava explicitado, mas ocorria na

prática pelo descaso e pela omissão. Não fosse assim como explicar a tentativa de

emancipação, no mesmo período, dos chamados perímetros irrigados tradicionais implantados

e sob controle do DNOCS no Ceará, por exemplo? (Braga, 2003, 77)

228

As experiências de estranhamento e de desenraizamento nas agrovilas são sucessivas.

De “paraíso” dos técnicos e agentes governamentais, as agrovilas passaram a ser vistas pela

maioria dos reassentados como o “inferno”, sendo por todos rejeitadas. Entre o Estado e

camponeses, mais uma vez evidenciaram-se vieses contrastantes. Focos de tantos conflitos

envolvendo esta categoria social e o Estado brasileiro. O espectro de Canudos, Contestado e

Caldeirão Grande e, porque não lembrar, Pau de Colher, certamente, esteve na cabeça de

técnicos e políticos.

Nos primeiros anos do Projeto, o abandono de lotes foi maciço e as notícias de lotes

repassados por preços irrisórios ou trocados por bens móveis correram a região, fazendo

acorrer às agrovilas, aventureiros e despossuídos de toda espécie. Tendo em vista a recusa do

Projeto pela população de Sobradinho, o INCRA, a partir de 1977-78, redirecionou-o,

abrindo-o aos sem-terra de vários pontos do país. Em razão disso, o Projeto ganhou novos

contornos e ao invés da construção de 16 agrovilas, o INCRA construiu mais sete, totalizando

23 unidades de aglomeração.

A percepção de que, nas agrovilas a sobrevivência estava comprometida e de que o

modo de vida beradero não teria condições de ser ali, minimamente, reproduzido, levou à

rejeição do Projeto Especial. A maioria dos reassentados oriundos da área de Sobradinho não

pensaram em outra coisa senão deixar as agrovilas. As justificativas para o abandono do

espaço são recorrentes: inadaptação, violência, sensação de “cativeiro” e paxão provocada,

principalmente, pela falta do rio e pela saudade da condição beradera de vida. O desengano

verificado entre os expropriados de Sobradinho atingiu também a população nativa. Os índios

Pankaru e os moradores dos povoados de Boa Vista e de Canabrava resistiram aos ditamos do

INCRA e tiveram, parcialmente, suas reivindicações atendidas. Os moradores de Canabrava

permaneceram na área recebendo lotes bem acima do módulo rural e os indígenas, além de

casas na Agrovila 19, receberam área coletiva demarcada.

Nas demandas verificadas entre os agentes do Estado e os expropriados/atingidos, os

últimos sempre se valiam de atitudes que combinavam a resistência e o conformismo. Uma ou

outra atitude se impunha conforme a conveniência e a oportunidade.

Dentro do quadro de rejeição ao Projeto, a vida nas barrancas sanfranciscanas passou

a ser superestimada e, para grande parcela, o retorno tornou-se um imperativo. O paraíso

perdido deveria ser reecontrado ou reconstruído. Aqui cabe lembrar as estrofes de um poema

de Jorge Luiz Borges: “[...] Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos

[...] No hay otros paraísos que los paraísos perdidos.” (Apud Pimentel Filho, 1998, p. 207).

229

De acordo com dados do INCRA, quase seiscentos beraderos arrependidos voltaram à

região do lago. Foi nesse contexto que se deu a reconstrução, inicialmente à revelia da

CHESF e das autoridades municipais — e em seguida com o apoio de ambos, do “núcleo” de

Barra da Cruz.

Em nenhum momento neste trabalho procurei fazer um balanço do Projeto Especial de

Serra do Ramalho, nem tampouco fazer o “jogo dos penalizados com os atingidos de

Sobradinho”. Meu propósito, evidenciado na introdução: a) foi acompanhar a diáspora dos

atingidos; b) deslindar, através de suas experiências as fricções e as tensões com o Estado; c)

analisar o cotidiano a população reassentada nas “Agrovilas da Lapa”, apontando os

descompassos e as dissonâncias entre o planejado e o vivido, para usar uma vez mais a

expressão de Lídia Rebouças; evidenciar o imaginário criado e recriado em relação aos

espaços-tempos por eles vivenciados.

Tampouco tenho o interesse aqui em polemizar. Contudo, não poderia deixar de fazer

algumas questões. O que faltou ao Projeto? Qual a razão de sua rejeição? Penso que quando

recorri às dimensões tempo-espaciais: o ontem-lá (na berada do São Francisco), o hoje-aqui

(nas agrovilas), o ontem-aqui (em Serra do Ramalho antes das agrovilas), e o hoje-lá (em

Barra da Cruz), explorando as experiências cotidianas de sujeitos sociais vivendo em

momentos específicos papéis sociais alternados —

beraderos/atingidos/reassentados/arrempedidos — aproximei-me da questão. O que quero

dizer é o seguinte: esses sujeitos sociais singulares não tiveram seus espaços de vida e suas

temporalidades respeitadas.

Não desconsiderando o sentimento dos atingidos e reconhecendo que, de fato, somente

as demandas dos grandes fazendeiros foram levadas a efeito pela CHESF265, faz sentido

interrogar: em que medida a indenização de pequenas parcelas de terra de trabalho alteraria a

vida dos atingidos pós-barragem? Nessa perspectiva, as críticas ao princípio de não

aplicabilidade das indenizações às terras não tituladas é uma falsa questão. Do meu ponto de

vista, os descontentamentos e os reclamos dos atingidos devem ser vistos sob quatro prismas.

265 Embora as reclamações contra a CHESF, no que tange à falta de políticas compensatórias voltadas para atender os atingidos de Sobradinho, sejam consensuais, convém não negligenciar que, direta e indiretamente os grandes fazendeiros foram os grandes benefiários pela construção da Represa. Não bastassem as polpudas indenizações recebidas, a transferência da população insentou-lhes de, mais dia menos dia, cumprirem obrigações legais em relações ao sistema de agregacia, preconizadas pelo Estatuto da Terra.

230

Primeiro, por si só a compulsoriedade do deslocamento gera tensões, desconforto,

inseguranças e reclamos. Ninguém sai do solo onde nasceu e “enterrou o umbigo” sem que

não esteja partido, muito mais quando não estava nos planos fazê-lo; quando partiu atendendo

interesses de um Estado distante, inconstante — em geral, tomado como inimigo — e por

razoes que fugiam a seu campo de percepção.

Segundo, o país vivia sob a ditadura militar e tudo quanto se relacionou a Sobradinho

— deslocamento e o reassentamento—, especialmente, deu-se de forma autoritária e sob o

signo do medo.

Terceiro, vigorou entre os agentes do Estado — por mais que muitos deles fossem bem

intencionados, nutrissem simpatia pelos beraderos e pudessem ser situados politicamnte no

espectro da esquerda, conforme já aludido — total desrespeito e desqualificação do modo de

vida do beradero e dos seus valores morais e culturais. A desqualificação do modo de vida do

campesinato é própria da sociedade urbano-industrial e é histórica no Brasil. Convém não

esquecer que durante todo o processo de construção da Barragem de Sobradinho, do

deslocamento e reassentamento pairou sob a cabeça de técnicos e políticos —

conscientemente ou não — o espectros de Canudos, Contestado, Caldeirão Grande. Aqueles

mais atinados em relação à história da região, certamente, lembravam do Movimento Pau de

Colher ou dos “Cacifeiros” — denominação regional —, sufocado em Casa Nova em 1938.

Quarto, as políticas que poderíamos chamar de compensatórias e ou reparatórias foram

insuficientes, incompletas e inconstantes. Vistas como favor pela CHESF, elas não foram

devidamente planejadas e poucas tiveram alcance prático. Sobejam referências de que tudo

era feito sob o signo da improvisção. Tanto na borda do lago quanto em Serra do Ramalho,

vigorou da parte da CHESF e do INCRA total descompromisso com o prometido. O pouco

que foi implementado era feito a muito custo, sob pressão — nos termos da resistência

cotidiana camponesa — e pela metade. Típico da atuação do Estado que não tinha e (não

tem) o combate à pobreza como foco.

Não é por outra razão que o presente passou a ser visto pelo aspecto da negatividade e o

passado tornou-se idílico. Com isso estão sempre a afirmar a condição beradera de vida e a

negar a vida de “cativo” ou de “filho de marreca” do pós-barragem, dando ensejo à criação e

recriação de um imaginário, no qual o espaço beradero — e sua vida farta e abundante — é

contraposto ao espaço planejado, “cativo” e à vida errante.

231

Na verdade, a CHESF e o INCRA desconsideraram esses indivíduos, não custa reiterar,

adotando a política do rolo compressor, a política “do largar ou pegar”, a política de ter que

“limpar a área”. O professor João Saturnino: traduziu em poucas palavras a concepção que

norteava os agentes do Estado. “Eles pensavam o seguinte: se é para pobre pode ser de

qualquer jeito”. E conforme salienta um ex-presidente do INCRA, essa política continua em

vigor. Até quando?

Pesquisadores chamaram atenção para o silêncio das autoridades públicas baianas em

relação ao processo ocorrido em Sobradinho. Tanto os políticos situacionistas quanto a

diminuta bancada oposicionista, dizem, agiram com subserviência. Esta subserviência,

destaca João Saturnino, levou o governo do estado da Bahia a não se responsabilizar pelos

projetos de reassentamento da população de Sobradinho, “lavando as mãos”. Retomando suas

palavras: “ (...) era como se aquela catástrofe não estivesse ocorrendo em seu território.(...)”.

Em entrevista a Frederico Neves, um importante membro da elite da região de

Sobradinho justificava o silêncio, afirmando que a ditadura impedia qualquer manifestação

contrária à construção da Represa e ao deslocamento compulsório nos termos colocados pela

CHESF. Essa também foi a justificativa do ex-governador Roberto Santos para o imobilismo

de seu governo diante do que acontecia em Sobradinho.

No entanto, conforme salienta João Saturnino, o governo da Bahia tinha muito a fazer.

Sobretudo quando se tem em vista que a CHESF, embora tivesse responsabilidade sobre o

que estava acontecendo em Sobradinho e Serra do Ramalho, não é um órgão social. Ela não

tinha e não tem experiência no tocante às questões de cunho social. Assim, caberia aos órgãos

de planejamento do Estado e ao setor social do governo federal e estadual intervirem no

Projeto de modo a dar-lhe continuidade e promover políticas públicas voltadas para o

atendimento dos atingidos, firmando-se como fator de reparação e compensação para uma

população traumatizada e que sofrera enormes perdas. No pós-barragem, o governo do Estado

continuou ignorando a população atingida. Somente em 1982, CHESF e o governo do estado

da Bahia celebraram convênio, dando ensejo à implementação do Programa Especial do Lago

de Sobradinho, voltado sobretudo para atender a população fixada na borda do lago.

Implementado, quando os ventos da abertura política se faziam sentir, o Programa foi gerido

pela CAR, que buscou a participação popular — via Associações existentes na região, muitas

delas criadas no bojo das tensões com as agências do Estado — e implementou ações no

sentido de oferecer infra-estrutura à atividade pesqueira e à agropecuária, numa faixa que

compreendia dez quilômetros da borda do Lago (Machado, 1987, p. 105) O Programa carece

232

de maiores estudos, no entanto, convém salientar que suas ações, por razões as mais diversas,

que não vem ao caso aqui levantar, não surtiram os efeitos desejados e as associações

sofreram processo de burocratização.

Em relação à posição dúbia e, na maioria das vezes, subservientes das principais

lideranças polícias dos municípios submersos, convém não esquecer que foram os

beneficiários imediatos da intervenção do Estado na região. Na percepção dos atingidos,

somente os “ricos” ganharam com a presença da CHESF na área. Receberam “gordas”

indenizações, tiveram suas terras não submersas valorizadas e firmaram, em diferentes áreas,

contratos de “prestações de serviços”. Vamos chamar aqui atenção para mais outro benefício

que não foi abordado por nenhum outro pesquisador.

Em decorrência da modernização conservadora da agricultura e do Estatuto da Terra,

dentre outros, a Amazônia e o sertão nordestino eram palcos, no período em apreço, de

conflitos envolvendo posseiros/agregados versus agentes do capital e grileiros/jagunços. A

partir da intervenção do Estado, a expulsão e a expropriação do campesinato despontavam no

Vale do São Francisco. Especificamente na área de Sobradinho, a atuação da CHESF

antecipou o processo e a estatal tomou para si o ônus de sua promoção. Assim, quando da

desapropriação da área, os fazendeiros da região foram desobrigados a pagar indenizações e

ou direitos trabalhistas de antigos funcionários ou de expulsá-los como estava ocorrendo em

outros pontos do Vale, bem como de outras áreas de expansão do capital. Tomando como

exemplo a Fazenda de Fora, seu proprietário só pagou a indenização ao administrador

Manolo. Posseiros, agregados e demais funcionários da Fazenda nada receberam. O

pagamento das pequenas — mais prestimosas — benfeitorias das áreas que cultivavam foram

assumidas pela CHESF. A “limpeza da área” para dar lugar ao maior lago artificial do mundo

não trouxe-lhes custos nem desgastes políticos como sói acontecer em momentos de tensão,

envolvendo posseiros/agregados e fazendeiros. Espelhados no exemplo da CHESF ou

aproveitando-se da atuação desta na região, vários fazendeiros lançaram mão da expulsão de

posseiro e agregados sem que tivessem custos algum. Convém ressaltar que Serra do Ramalho

serviu de válvula de escape aos fazendeiros de outras regiões. Não custa recuperar que a

Agrovila 15 foi ocupada por agregados das fazendas da família do primeiro executor do

Projeto.

Desde a atuação da CHESF no Vale do São Francisco, o rio tido e havido como pai da

pobreza, vem perdendo sua importância social e tornando-se um Rio para o capital. O

mirabolante projeto de transposição de suas águas reafirma o intento. Camponeses pobres são

233

expulsos do Vale e o agronegócio se instala com sua lógica racionalizadora e agressora de

tudo quanto se pode associar a uma relação pautada no intrincamento cultura natureza, ou

seja, em saberes e práticas ditadas no manejo, no fluxo e na relação com o rio.

Pesquisadores têm chamado atenção para o fato de que os projetos modernizadores e

racionalizadores, implantados sob o crivo do capital, voltados às áreas rurais, geram mais

mobilidade que fixação. O caso de Sobradinho comprova a assertiva. Desterritorializados,

muitos atingidos vivem a diáspora sem fim. Em busca de sua sobrevivência, tornaram-se

“filho de marreca”, rumando para onde o capital lhes aponta garantia mínima de

sobrevivência. A experiência de Alberico, de Mateus, de Alvino, de Heleno e dos indígenas

Pankaru, que, sazonalmente partem para o corte da cana no Mato Grosso do Sul, somente para

ficar entre os entrevistados, sintetizam as andanças “de deu em deu” destes corpos que a cada

dia vendem mais barato sua força de trabalho. Seletivo, o capital impõe um padrão do

trabalhador exigido. Recuperemos as palavras de D. Luiz Flávio Cáppio: arrancados como

mato, sacudidos pela raiz, foram jogados pelos quatro cantos do país. A “limpeza da área” que

a CHESF protagonizou em 1970 perversamente continuou, seja por outras ações do Estado

seja pela ação deste em conluio com o agronegócio. Sacudidos, desprovidos de meios de vida,

tornam-se presa fácil do capital. Diante disso, resta perguntar: desenvolvimento para quê?

Para quem?

Ao finalizar este trabalho, gostaria de salientar que a literatura sobre a temática

Sobradinho é muito ampla, mas que há poucos estudos sobre Serra do Ramalho e as tantas

questões que o Projeto incita. Parece-me urgente estudar as motivações da “violência” nas

agrovilas. Fato, aliás, que parece recorrente em assentamentos em áreas de fronteira ou de

expansão agrícola. Neste trabalho apareceram apenas os casos dos assassinatos do irmão de

Heleno e do irmão de Paulo, mas nas entrelinhas das narrativas há inúmeros sinais de que a

violência era generalizada, colocando-se, inclusive, como fato de rejeição das agrovilas.

Depois da emancipação do Projeto e da criação do município de Serra do Ramalho, a

violência assumiu, além do mais, um caráter político — fato que chamou a atenção, inclusive

da Comissão de Direitos Humanos, da Câmara Federal, resultando na realização, em 2004, de

audiência pública na localidade.

A presença dos gaúchos ou sulistas em Serra do Ramalho merece também ser estudada.

A experiência desses indivíduos é muita rica, uma vez que traz inscrita nas suas histórias de

vida trajetória de sucessivas migrações. De onde vieram de fato? Por que vieram? Como

234

foram seus primeiros dias em Serra do Ramalho? É verdadeira a afirmação de que receberam

tratamento especial? Estão adaptados ou não?

Outra questão se afigura importante: há fortes indícios de reconcentração da

propriedade da terra em Serra do Ramalho. Isso se sustenta? Quem comprou terra em Serra do

Ramalho? Quais as atividades produtivas desses lotes? Qual o seu montante?

Parece-me urgente estudar, também, a situação dos assentados nas chamadas reservas

que se encontram em situação irregular, visando apurar, inclusive, se procedem ou não as

acusações do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Carinhanha quanto à vinculação de

assentados com grileiros da região. Quantas ocupações irregulares existem ainda em Serra do

Ramalho? Quem são os ocupantes das reservas extrativistas situadas às margens do São

Francisco?

Outra questão que desponta é o processo de liquidação da Cira. Em decorrência da má

gestão e da corrupção, conforme alegam os entrevistados, a cooperativa, endividada, faliu.

Quais as perdas dos associados? Qual o destino de seus bens? Procedem as críticas dos

reassentados em relação à apropriação dos seus bens pelos dirigentes e funcionários do

INCRA?

Longe de buscar encerrar a questão do deslocamento compulsório da população de

Sobradinho, este trabalho perseguiu a experiência dos expropriados em Serra do Ramalho,

evidenciando, especialmente, as fricções envolvendo os atingidos/reassentados e os agentes

do Estado. O deslindamento dessas questões, a partir da memória dos atingidos — através,

sobretudo, da utilização de fontes orais —, desafia a história social a continuar buscando os

caminhos da multidisciplinaridade, promovendo oportunidades para que os sujeitos sociais

marcados pelo estigma do silenciamento expressem sentimentos, “verdades” e percepções.

Portelli chama atenção para o fato de que a memória traz no seu bojo não só o acontecido,

mas, sobretudo o que poderia ter acontecido. O sonhado? Este trabalho buscou reconstituir um

pouco do acontecido em Sobradinho/Serra do Ramalho. Na negatividade do presente e na

positividade do passado encontram-se o prenúncio do sonhado. Este trabalho é também um

apelo para que a sociedade, os estudiosos e todos aqueles que têm o poder de decisão

percebam o que os sonhos dos atingidos/beraderos revelam.

235

FONTES PRIMÁRIAS

Orais:

63 (sessenta e três) Entrevistas gravadas ou anotadas, entre 1999 e 2003, com diversos

indivíduos, direta e indiretamente envolvidos com o Projeto Especial de Colonização

Serra do Ramalho.

Impressas:

ANAI. Relato dos pankarú ontem e hoje. Salvador: s/d. (Folheto)

BERSCH, Miríam Inês. Carta da Comissão Pastoral da Terra (Diocese de Bom Jesus da Lapa)

dirigida à Procuradora da República no Estado da Bahia. Bom Jesus da Lapa: p. 1-2,

25/7/1994.

BOLETIM CAMINHAR JUNTOS. [publicação bimestral da Diocese de Juazeiro, Bahia –

1975-1983].

COMPANHIA HIDRO ELÉTRICA DO SÃO FRANCISCO. Reposta dirigida aos

Representantes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Casa Nova , Sento

Sé e Remanso. Sobradinho: 18/07/1975.

COMISSÃO ESPECIAL PARA O DESENVOLVIMENTO DO SÃO FRANCISCO. Brasília:

Senado Federal, Vol. 1, Relatório Final, 1995.

CORDEIRO, Tânia. Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa. Goiânia:

Comissão Pastoral da Terra, 1982. (mimeog.)

CONSÓRCIO NORONHA-TAMS. Estudo de viabilidade sócio-econômica da implantação

da irrigação no Projeto Especial de Colonização da Serra do Ramalho: Relatório de

Consolidação dos Estudos da Fase I. Brasília, s/d.

EMPRESA HIDROSERVICE. Projeto Sobradinho. Estudo de viabilidade do Projeto de

Colonização de Bom Jesus da Lapa. São Paulo: 1975. (mimeog.)

EMATER-BA. Bom Jesus da Lapa. Esperança que chegou. Salvador: Secretaria da

Agricultura do Governo do Estado da Bahia, s/d, p. 1-14.

GROSSI, José Nicomedes. Carta dirigida ao Presidente do BNH. Bom Jesus da Lapa,

11/9/1981.

INCRA/EMATER-BA. Vá viver melhor com sua família nas agrovilas em Bom Jesus da

Lapa. Salvador: Folheto, s/d, p. 1-10.

236

LINS, Wilson. Os Lucros do Prejuízo. (Artigo mimeografado encontrado na Biblioteca

Pública de Sobradinho). Salvador: 1976.

MINISTÉRIO DO INTERIOR Polonordeste. Brasília: Coordenadoria de Comunicação

Social, 1976.

OFÍCIO DO SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE CASA NOVA E

OUTROS ENVIADO À CIRES. Juazeiro: Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Casa

Nova et al, 18/06/1975.

POSSEIRO (O). [jornal trimestral de Santa Maria da Vitória, Bahia – 1979-1983].

RELATÓRIO DA CPT. Relatório da CPT de Bom Jesus da Lapa sobre o PEC- Serra do

Ramalho. Santa Maria da Vitória, 1994.

RELATÓRIO DO INCRA. Relatório da Comissão do Ex-PEC-Serra do Ramalho. Brasília:

1994. (mimeog.)

RELATÓRIO DO INCRA. Relatório (Revisto e atualizado) da Comissão do Ex- PEC- Serra do

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251

RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

Nome Moradia Condição profissional Estado civil

Alvino Casa Nova Pescador/aposentado Casado

Alberico Casa Nova Motorista desempregado Casado

Avelina Serra do Ramalho Aposentada Casada

Alfredo José Serra do Ramalho Aposentado Casado

Alice Barra da Cruz Aposentada Casada

Alvarina Ibotirama Aposentada Casada

Antônio Ribeiro Bom Jesus da Lapa Advogado/assessor jurídico

da PMSR

Casado

Antônio Pau-a-Pique Aposentado Casado

Elpídio Serra do Ramalho Aposentado Casado

Aurelino Serra do Ramalho Aposentado Casado

Bernardina Serra do Ramalho Aposentada Viúva

Berneval Bem-Bom Pescador casado

252

Boileau Dantas

Wanderley

Sítio do Mato Ex-executor do Incra Casado

Camilo Barra da Cruz Agricultor Casado

Celito Kesterning Sobradinho Professor/assessor da

Prefeitura

Casado

Constança Pau-a-Pique/Casa Nova Professora Casada

Elvira Pau-a –Pique Aposentada Casada

Eudelina Serra do Ramalho Aposentada Casada

Francelino Barra da Cruz/C. Nova Aposentado Casado

Geraldo Bastos Bom Jesus da Lapa Comerciante/professor Casado

Geraldino Serra do Ramalho Aposentado Casado

Gilberto Serra do Ramalho Aposentado Casado

Gertrudes Pau-a-Pique Aposentada Casada

Gregório Serra do Ramalho Aposentado Casado

Heleno Pau-a-Pique Agricultor Casado

Inedina Serra do Ramalho Aposentada Viúva

Isidoro Ibotirama Aposentdo Casado

Joaquim Santa Mª da Vitória Diretor do Centro Cultural Casado

Serra do Ramalho Aposentado Casado

Quintiliano Serra do Ramalho Aposentado Viúvo

Jose Roberto Barra da Cruz Aposentado Casado

João Saturnino Salvador Professor/sociólogo/ex-

coordenador da ANCAR-Ba

Casado

Zelito Baiano Serra do Ramalho Aposentado/Vigia Casado

José Carlos Arruti Salvador Economista/Ex-

Superitendente do INCRA

Casado

José G. Marques Bom Jesus da Lapa Professor/Ex-executor Viúvo

Lelo Serra do Ramalho Aposentado Casado

Josuel Pau-a-Pique Aposentado Casado

José R. de Souza Juazeiro Bispo de Juazeiro Solteiro

Wandilson Casa Nova Aposentado Casado

Josias Serra do Ramalho Chefe do posto indígena Casado

253

Luiz E. Souza Salvador Agente pastoral/sociologo casado

Luiz F. Cáppio Barra Bispo de Barra Solteiro

Manolo Casa Nova Pescador/aposentado Casado

Apolônia Barra da Cruz/C. Nova Aposentada Casada

Possidônia Pau-a-Pique aposentada casada

Marina Juazeiro Assistente Social/CPT Casada

Mateus Casa Nova Pedreiro/comerciante casado

Nengo Xique-Xique Carinhanha Agricultor/aposentado Casado

Nelo Barra da Cruz Agricultor casado

Orindo Bom Jesus da Lapa Técnico agrícola Casado

Osório Serra do Ramalho Aposentado Casado

Osmundo Pau-a-Pique/Casa Nova Pequeno comerciante Casado

Paulo Remanso Agricultor/CPT Casado

Pedro Vicente Bem-Bom pescador Casado

Romualdo Petrolona Bancário Casado

Raimundo Primo Feira da Mata Agricultor/sindicalista Separado

Roberto Santos Salvador Professor/ex-governador Casado

Zaqueu Serra do Ramalho Agricultor Casado

Técnico do Incra Bom Jesus da Lapa Agrimensor Casado

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