Treze Almas

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1 O sol ainda não se recolhera, tingia o céu em tons de laranja e vermelho, tornando aquele entardecer na capital paulista bucólico e aprazível. Amanda e Nádia entraram no centro espírita às seis em ponto. O local já estava apinhado de gente, como de costume, mas havia ali uma energia tranquilizadora, que convidava à refle- xão e à quietude. Elas se dirigiram à fila de passes em silêncio, esperaram, entregaram a ficha. Depois de alguns minutos, entraram em uma sa- linha, onde havia algumas pessoas vestidas de branco, em pé atrás de cadeiras colocadas em círculos, que sor- riam para os que entravam. As duas mulheres e mais dez pessoas foram entrando e se acomodando. Sentaram-se. Uma música suave encheu o ar, e uma luzinha azul dava um toque calmante ao recinto. Depois de um passe revigorante, Amanda e Nádia receberam um copinho com água, beberam e foram para o salão de palestras. Elas adoravam as palestras proferidas por Orlando. Era um velhinho que beirava os noventa anos, alto, olhos esverdeados, cabelos brancos e

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1O sol ainda não se recolhera, tingia o céu em tons de

laranja e vermelho, tornando aquele entardecer na capital paulista bucólico e aprazível. Amanda e Nádia entraram no centro espírita às seis em ponto. O local já estava apinhado de gente, como de costume, mas havia ali uma energia tranquilizadora, que convidava à refle-xão e à quietude. Elas se dirigiram à fila de passes em silêncio, esperaram, entregaram a ficha.

Depois de alguns minutos, entraram em uma sa-linha, onde havia algumas pessoas vestidas de branco, em pé atrás de cadeiras colocadas em círculos, que sor-riam para os que entravam. As duas mulheres e mais dez pessoas foram entrando e se acomodando. Sentaram-se. Uma música suave encheu o ar, e uma luzinha azul dava um toque calmante ao recinto.

Depois de um passe revigorante, Amanda e Nádia receberam um copinho com água, beberam e foram para o salão de palestras. Elas adoravam as palestras proferidas por Orlando. Era um velhinho que beirava os noventa anos, alto, olhos esverdeados, cabelos brancos e

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fartos, penteados para trás, traços marcantes, de quem fora muito bonito no passado. Ele falava com voz gra-ve, sem atropelos, com lucidez e eloquência surpreen-dentes. Ninguém diria a idade que tinha. Aparentava bem menos. Andava com segurança e elegância, o cor-po ereto, nem um milímetro curvado. O sorriso não desgrudava dos lábios.

— Se eu tivesse um avô — comentou Amanda —, seria assim, como o Orlando.

— Concordo — respondeu Nádia. — Ele é muito fofo, além de ser muito elegante e inteligente.

Orlando não gostava que o chamassem de senhor ou doutor. Simplesmente Orlando. Era casado havia mais de cinquenta anos com Selma, uma senhora de setenta e poucos anos, bonita, cabelos graciosamente pintados de castanho-claro, olhos verdes e profundos, de uma mediu-nidade estupenda.

O casal mantinha o centro espírita havia muitos anos. Era um centro diferente do convencional, sem ligação com nenhuma entidade, federação ou algo do gênero. Orlando era um livre-pensador, de mente bem aberta, lia Kardec em francês, viajara o mundo e conhecera outras correntes espiritualistas que estudavam seriamente a reencarnação. Em seu centro, além dos tratamentos convencionais, tam-bém se fazia uso de cromoterapia, de cristais e de ervas.

No plano astral do centro, espíritos de padres, freiras e médicos transitavam por entre pretos-velhos, caboclos e índios. Era um espaço sem preconceitos, que encarnados e desencarnados frequentavam por afinidade e gosto, com o objetivo comum de promover a ampliação de consciên-cia das pessoas, manter o equilíbrio emocional e preservar a paz interior.

Nas aulas, sempre lotadas, os alunos aprendiam que as energias que a pessoa irradia são responsáveis

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por tudo o que ela atrai em sua vida e que as energias negativas grudam no ser, diminuem sua força e seu es-toque de boas energias, deixando o corpo suscetível às doenças. Orlando sempre fazia questão de reforçar em suas palestras:

— É preciso inteligência para não se deixar en-volver pela energia negativa, seja dos encarnados, seja dos desencarnados.

Orlando e Selma sofreram reprimendas, mas sempre receberam ajuda e apoio dos bons espíritos. Os dirigentes desencarnados da casa sempre os orientavam:

— Não liguem para a crítica nem para o julgamen-to dos outros. Enquanto eles criticam, vocês estudam, pesquisam, trabalham e ajudam. Vocês é que estão em sintonia com o plano espiritual superior. Esqueçam as convenções do mundo.

Orlando escutava, assimilava e colocava em práti-ca as orientações dos mentores, fortalecendo sempre o pensamento no bem. Conclusão: o centro espírita, an-tes um espaço pequeno, que atendia meia dúzia de pes-soas, agora atraía gente de todos os cantos do país. Até uma rede inglesa de televisão rodara um documentário sobre o centro e sobre a vida de Orlando e Selma, o que despertou o interesse de pesquisadores norte-america-nos que estudavam e investigavam com seriedade os fenômenos paranormais.

Ele e a esposa conheceram Neide, uma espírita de mediunidade também extraordinária, que fazia um óti-mo trabalho de cura em Minas Gerais. A amizade e a par-ceria brotaram espontaneamente. Quando havia algum caso mais sério de doença, Orlando enviava o paciente para Minas. Se o paciente não tinha recursos, Orlando conseguia uma maneira de juntar o dinheiro necessário para custear a viagem. Tudo dava certo. Sempre. Às vezes,

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em casos mais graves, Neide vinha até São Paulo, atendia o paciente na residência ou no hospital, e se hospedava na casa do casal amigo.

Orlando e Selma optaram por não ter filhos. Preferiam dedicar-se em tempo integral às atividades do centro, que eram muitas.

Amanda e Nádia eram frequentadoras do centro, e a mãe de Nádia, Melissa, fora amiga de Neide nos tempos em que tinha morado em Minas, muitos anos atrás.

— Como está seu pai? — indagou Nádia.— Na mesma, amiga — respondeu Amanda, entris-

tecida, dando de ombros. — Está lá, no quarto do hospi-tal, esperando a morte chegar.

— Triste, não?— Mas o que fazer, Nádia? Ainda bem que eu creio

na vida após a morte. A mudança sempre existe e sempre é para melhor, embora, às vezes, ela venha de forma do-lorosa. A resistência faz com que a vida traga um desafio mais forte. Nada fica parado.

— Eu a admiro! — Nádia apertou delicadamente a mão da amiga.

— Se eu não for forte e não aceitar as coisas como são agora, então de nada adiantaram esses anos que aqui viemos.

— Você está coberta de razão, Amanda. Não temos mesmo o que fazer.

— Já entreguei nas mãos de Deus — tornou, sincera.— Em todo caso, se quiser, posso dormir no hos-

pital, revezar.— Imagine! Você tem marido e filhos, Nádia!— Você também.— Contratei enfermeiras que se revezam. E papai

não vai se demorar para partir. Eu sinto.— Acha mesmo?

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— Acho. Se mamãe estivesse viva — Amanda re-fletiu —, talvez ele tivesse enfrentado a doença de outra forma. Mas não. O câncer o está corroendo por dentro. Os médicos disseram que ele deveria ter morrido há quase um mês, acredita? Eu não entendo o porquê de tanta resistência.

— Será que algum espírito o prende aqui?— Não sinto isso quando estou lá no quarto dele.

Não percebo nada ruim.— Não acha melhor perguntar ao Orlando?— Ele é tão ocupado, Nádia. Melhor não perguntar.

Vamos aproveitar e orar, pedir aos espíritos que ajudem papai a se desprender do corpo o quanto antes e ir embora deste mundo. Oitenta anos, estado terminal. Chega, né?

— Tem razão.Amanda remexeu-se no banco e comentou, baixinho:— Preciso lhe confidenciar uma coisa.— O quê?— Ontem aconteceu algo inusitado.— O que foi?— Papai não tem mais falado, há dias. Estava sen-

tindo muitas dores, os médicos aumentaram a dose de morfina, e ele está praticamente inconsciente.

— Sei.— Mas... Nádia... ele balbuciou um nome.— Um nome?— É. Ao passar no hospital hoje cedo, como faço

todos os dias, encontrei a enfermeira da noite deixando o turno. E ela me contou.

— Será que ela não deu um cochilo e sonhou?— Não. Ela disse com todas as letras: Lina.— Lina?— Sim. Comentou que papai passou a noite toda

gemendo e pronunciando esse nome: Lina.

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— Estranho.— Eu não conheço ninguém com esse nome. Na

minha família, pelo menos, não conheço ninguém.— Não é o nome da primeira esposa do seu pai?

— indagou Nádia.— Não. Pelo que sei, o nome da primeira esposa do

papai era Rosana.— E da filha dele? Seu pai teve uma filha, não teve?— Sim, mas o nome dela era Amélia, Amelinha —

Amanda falou e sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.— Que sensação estranha! — tornou Nádia.— É. Estranha.— Sente-se bem? Quer uma água?— Aceito.Nádia levantou-se e foi buscar a água. Ela adorava

Amanda. Eram amigas desde sempre, desde que nas-ceram. As famílias eram amigas, e elas tinham a mes-ma idade. Cresceram juntas e não se desgrudavam por nada. Embora casadas e com dois filhos cada uma, eram como unha e esmalte, do tipo que se ligavam todos os dias, falavam-se a todo instante, mesmo que fosse para comentar o capítulo da novela do dia anterior. Elas se gostavam de verdade.

Nádia voltou e entregou o copo a Amanda, que bebeu e sentiu-se melhor. De repente, perceberam uma sombra imensa sobre elas. Amanda levantou os olhos assustada e... sorriu. Era Orlando, enorme, com o sorriso de sempre estampado nos lábios.

— Como vão, meninas?— Tudo bem, Orlando? — perguntou Nádia.— Vou indo, e você? — completou Amanda.Ele foi direto:— Meu guia mandou um recado para você, Amanda.— Para mim?

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— Sim. É sobre Luís Sérgio.— Papai está com um obsessor, não é? Por isso não

desencarna.Orlando meneou a cabeça negativamente.— Não. Seu pai está preso porque está atormentado

com situações mal resolvidas.— Situações de vidas passadas? — questionou

Amanda.— Não. Desta vida mesmo — respondeu Orlando.

— Luís Sérgio já deveria ter desencarnado. Como tudo ocorre na hora certa, no tempo certo, logo ele vai se per-mitir ir. Quando seu espírito decidir que acabou, acabou.

— Mas o tumor está devorando o corpo dele — in-terveio Nádia.

— O corpo físico está sendo consumido pela doen-ça, mas o espírito está lúcido e tem o poder de decidir quando cessa a vida, conscientemente ou não — observou Orlando. — Luís Sérgio está preso na culpa, no remorso.

— O que podemos fazer? — quis saber Amanda.— Precisamos ir até o hospital e conversar com seu pai.— Ele não escuta. Está inconsciente.— Conversaremos com o espírito dele. Depois fare-

mos uma oração. No entanto, preciso que Neide venha nos ajudar. Terei de chamá-la. E Melissa também precisará vir.

— Mamãe?! — perguntou Nádia, surpresa. — O que minha mãe tem a ver com isso?

— Tudo — respondeu Orlando. — Sua mãe vai nos ajudar no processo de desenlace de Luís Sérgio.

— Como?— Sua mãe foi muito importante para alguém que

vai libertar Luís Sérgio da matéria.— Quem? — inquiriu Amanda, curiosa.Orlando olhou para as duas e sorriu:— Lina.

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Amanda e Nádia arregalaram os olhos.— Quem?! — insistiu Amanda, segurando o braço

de Nádia, para não cair.— Lina — Orlando repetiu, calmamente.As duas se entreolharam e balançaram a cabeça,

estupefatas, curiosíssimas. Amanda não podia acreditar naquilo. Como Orlando soubera de Lina? Por que Luís Sérgio balbuciara aquele nome durante toda a noite an-terior? Afinal de contas, quem era Lina?

Seria preciso voltar no tempo, precisamente ao sertão nordestino, no finzinho da década de 1950, para saber quem tinha sido aquela mulher que mexera com a vida de tanta gente...