TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN-...

8
ANO 20 - Nº 233 - ABRIL/2012 - ISSN 1676 - 3661 O DIREITO POR QUEM O FAZ TRIBUNAL DO JÚRI. PRISÃO CAUTELAR. PRISÃO PREVENTIVA COMO MEDIDA EXCEPCIONAL. PERICULOSIDADE DO AGENTE. GARANTIA DO PRAZO RAZOÁVEL NA DURAÇÃO DO PROCESSO. LIMITE TEMPORAL DA PRISÃO PREVENTIVA. 1.ª Vara do Júri da Comarca de Campinas/SP Proc. 0000114.01.2004.061292-7 j. 10.02.2012 – public. 13.02.2012 L.A.S., depois do recebimento da denún- cia contra ele oferecida, o que ocorreu em 26.08.2005 (fls. 65/66), de sua citação por edital, realizada em 14.09.2006 (fls. 91), da suspensão do processo com fundamento no art. 366 do CPP, em 06.09.2007 (fls. 72), foi preso no dia 26.11.2011 (fls. 124), o que determinou a cessação da suspensão do processo (fls. 148/149). A prisão preventiva do réu foi decretada no juízo de delibação (fls. 66). (...) Decido (...) 2 – DA PRISÃO PREVENTIVA. A decretação da prisão preventiva deve ser mantida, por ora. (...) Na realidade, a prisão preventiva não foi decretada apenas e tão-somente com o fundamento de que o réu estava foragido, como alega o combativo defensor. É verdade que, se esse fosse o único funda- mento, não haveria necessidade da mantença da segregação cautelar, pois o defensor tem razão quando afirma que está demonstrado que o réu não estava foragido. Com efeito, durante o tempo em que o processo ficou suspenso, inclusive com a decretação da prisão preventiva, o réu fixou residência em São Carlos, exerceu atividade laboral lícita e, inclusive, chegou a compare- cer a uma audiência judicial, para a qual foi intimado em seu endereço, o que demonstra, à saciedade, que não estava ele se ocultando nem procurando frustrar propositadamente o andamento deste processo (fls. 34 a 50). (...) É verdade, como também ficou con- signado no r. despacho de recebimento da denúncia, que os elementos colhidos durante a fase policial, meramente investigatória, desenvolvida sem as garantias constitucionais do controle judicial, do contraditório e da ampla defesa, são absolutamente imprestá- veis para o embasamento de uma pronúncia ou de uma sentença condenatória. (...) E, in casu, os elementos colhidos durante a fase pré-processual, ou seja, no inquérito policial, foram bastantes para au- torizar a análise da necessidade da segregação provisória do réu e, consequentemente, por ora, para manter a prisão preventiva. É verdade, também, como afirma o com- bativo defensor constituído, que a prisão pre- ventiva somente deve ser decretada quando não houver a possibilidade da aplicação de outra medida cautelar, como, aliás, dispõe, com embasamento em princípios constitu- cionais de garantia, o art. 282, § 6.º, do CPP . Entretanto, em face do motivo que de- terminou a segregação preventiva do réu, as demais medidas previstas no art. 319 do CPP revelam-se totalmente inadequadas e insuficientes para garantir a segurança das testemunhas e cautelar o juízo, pelo menos por ora. 3 – DO PRAZO PARA A PRISÃO PREVENTIVA. (...) Todavia, julgo imprescindível fixar um prazo máximo para a segregação provi- sória decretada. É verdade que a nossa sistemática pro- cessual não prevê a fixação de prazo para a prisão preventiva, que deve ter a sua duração vinculada à necessidade da segregação. Contudo, a necessidade da segregação, a qual determina o tempo da cautela, não pode justificar a imposição de uma medida cautelar indefinida. Com efeito, diante do conflito de valores fincados em direitos constitucionais, há de ser observado o princípio da ponderação, inclusive para que nenhum deles seja total- mente aniquilado. A necessidade da segregação provisória, constitucionalmente admitida, não pode ser bastante para justificar uma prisão preventiva por tempo indefinido, a ponto de anular totalmente os direitos fundamentais relati- vos à presunção de inocência, à dignidade da pessoa humana e à duração razoável do processo, que constituem dogmas constitu- cionais de garantia. (...) Assim, com base no princípio da ra- zoabilidade, entende-se, atualmente, apenas, que a prisão deve durar um tempo “razoável”, pois “razoável” também deve ser o tempo de duração do processo. Aliás, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil (Decreto Legislativo 27/92), e que, por isso, está metida a rol entre as garantias fundamentais, nos termos do art. 5.º, §§, da Constituição Federal, assegura, em seu artigo em seu art. 7.º, item 5, a todos os acusados, o direito de ser julgado em prazo razoável, o que, inexoravelmente, implica a adoção do corolário da razoabilidade do prazo da prisão preventiva. E não se olvide, como já foi observado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julga- mento do HC 5239 (Bahia), que do art. 7.º, item 5 do Pacto de San Jose de Costa Rica, consta expressamente que acusado deve ser colocado em liberdade, sem prejuízo do pro- cesso, se não houver julgamento em prazo razoável, o que consagra, explicitamente, o princípio da razoabilidade da prisão preven- tiva também. Além disso, o princípio da razoabilidade da duração do processo, bem como da prisão preventiva, como seu corolário, também está previstos no art. 9.º, item 3, do Pacto Inter- nacional de Direito Civis e Políticos, também ratificado pelo Brasil (24 de janeiro de 1992) e incorporado ao nosso sistema jurídico como garantia constitucional. E, atualmente, a Constituição Federal, em face da promulgação da EC n. 45/2004, garante, expressamente, a todos os acusados, no âmbito judicial e administrativo, o direito à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5.º, inciso LXXVIII). (...) Contudo, a expressão “prazo razoá- vel” é extremamente vaga e absolutamente insuficiente para a garantia dos direitos fundamentais dos acusados, que, em face da O DIREITO POR QUEM O FAZ

Transcript of TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN-...

Page 1: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

Ano 20 - nº 233 - ABRil/2012 - iSSn 1676 - 3661

O DIREITO POR QUEM O FAZ

TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA COMO MEDIDA EXCEPCIONAL. PERICULOsIDADE DO AGENTE. GARANTIA DO PRAZO RAZOÁVEL NA DURAçÃO DO PROCEssO. LIMITE TEMPORAL DA PRIsÃO PREVENTIVA.1.ª Vara do júri da Comarca de Campinas/sPProc. 0000114.01.2004.061292-7j. 10.02.2012 – public. 13.02.2012

L.A.S., depois do recebimento da denún-cia contra ele oferecida, o que ocorreu em 26.08.2005 (fl s. 65/66), de sua citação por edital, realizada em 14.09.2006 (fl s. 91), da suspensão do processo com fundamento no art. 366 do CPP, em 06.09.2007 (fl s. 72), foi preso no dia 26.11.2011 (fl s. 124), o que determinou a cessação da suspensão do processo (fl s. 148/149).

A prisão preventiva do réu foi decretada no juízo de delibação (fl s. 66). (...)

Decido(...) 2 – DA PRIsÃO P REVENTIVA.

A decretação da prisão preventiva deve ser mantida, por ora.

(...) Na realidade, a prisão preventiva não foi decretada apenas e tão-somente com o fundamento de que o réu estava foragido, como alega o combativo defensor.

É verdade que, se esse fosse o único funda-mento, não haveria necessidade da mantença da segregação cautelar, pois o defensor tem razão quando afi rma que está demonstrado que o réu não estava foragido.

Com efeito, durante o tempo em que o processo fi cou suspenso, inclusive com a decretação da prisão preventiva, o réu fi xou residência em São Carlos, exerceu atividade laboral lícita e, inclusive, chegou a compare-cer a uma audiência judicial, para a qual foi intimado em seu endereço, o que demonstra, à saciedade, que não estava ele se ocultando nem procurando frustrar propositadamente o andamento deste processo (fl s. 34 a 50).

(...) É verdade, como também fi cou con-signado no r. despacho de recebimento da denúncia, que os elementos colhidos durante a fase policial, meramente investigatória, desenvolvida sem as garantias constitucionais do controle judicial, do contraditório e da ampla defesa, são absolutamente imprestá-veis para o embasamento de uma pronúncia

ou de uma sentença condenatória.(...) E, in casu, os elementos colhidos

durante a fase pré-processual, ou seja, no inquérito policial, foram bastantes para au-torizar a análise da necessidade da segregação provisória do réu e, consequentemente, por ora, para manter a prisão preventiva.

É verdade, também, como afi rma o com-bativo defensor constituído, que a prisão pre-ventiva somente deve ser decretada quando não houver a possibilidade da aplicação de outra medida cautelar, como, aliás, dispõe, com embasamento em princípios constitu-cionais de garantia, o art. 282, § 6.º, do CPP .

Entretanto, em face do motivo que de-terminou a segregação preventiva do réu, as demais medidas previstas no art. 319 do CPP revelam-se totalmente inadequadas e insufi cientes para garantir a segurança das testemunhas e cautelar o juízo, pelo menos por ora.

3 – DO PRAZO PARA A PRIsÃO PREVENTIVA.

(...) Todavia, julgo imprescindível fi xar um prazo máximo para a segregação pro vi-sória decretada.

É verdade que a nossa sistemática pro-cessual não prevê a fi xação de prazo para a prisão preventiva, que deve ter a sua duração vinculada à necessidade da segregação.

Contudo, a necessidade da segregação, a qual determina o tempo da cautela, não pode justifi car a imposição de uma medida cautelar indefi nida.

Com efeito, diante do confl ito de valores fi ncados em direitos constitucionais, há de ser observado o princípio da ponderação, inclusive para que nenhum deles seja total-mente aniquilado.

A necessidade da segregação provisória, constitucionalmente admitida, não pode ser bastante para justifi car uma prisão preventiva por tempo indefi nido, a ponto de anular totalmente os direitos fundamentais relati-vos à presunção de inocência, à dignidade da pessoa humana e à duração razoável do

processo, que constituem dogmas constitu-cionais de garantia.

(...) Assim, com base no princípio da ra-zoabilidade, entende-se, atualmente, apenas, que a prisão deve durar um tempo “razoável”, pois “razoável” também deve ser o tempo de duração do processo.

Aliás, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratifi cada pelo Brasil (Decreto Legislativo 27/92), e que, por isso, está metida a rol entre as garantias fundamentais, nos termos do art. 5.º, §§, da Constituição Federal, assegura, em seu artigo em seu art. 7.º, item 5, a todos os acusados, o direito de ser julgado em prazo razoável, o que, inexoravelmente, implica a adoção do corolário da razoabilidade do prazo da prisão preventiva.

E não se olvide, como já foi observado pelo Superior Tribunal de Justiça, no julga-mento do HC 5239 (Bahia), que do art. 7.º, item 5 do Pacto de San Jose de Costa Rica, consta expressamente que acusado deve ser colocado em liberdade, sem prejuízo do pro-cesso, se não houver julgamento em prazo razoável, o que consagra, explicitamente, o princípio da razoabilidade da prisão preven-tiva também.

Além disso, o princípio da razoabilidade da duração do processo, bem como da prisão preventiva, como seu corolário, também está previstos no art. 9.º, item 3, do Pacto Inter-nacional de Direito Civis e Políticos, também ratifi cado pelo Brasil (24 de janeiro de 1992) e incorporado ao nosso sistema jurídico como garantia constitucional.

E, atualmente, a Constituição Federal, em face da promulgação da EC n. 45/2004, garante, expressamente, a todos os acusados, no âmbito judicial e administrativo, o direito à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5.º, inciso LXXVIII).

(...) Contudo, a expressão “prazo razoá-vel” é extremamente vaga e absolutamente insuficiente para a garantia dos direitos fundamentais dos acusados, que, em face da O

DIR

EITO

PO

R Q

UEM

O F

AZ

Page 2: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1546 Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

omissão do sistema legislativo quanto à fixa-ção de um prazo certo e determinado para a conclusão dos processos, ficam expostos às consequências deletérias da morosidade pro-cessual, especialmente quando submetidos a uma segregação provisória.

E por isso que o Poder Judiciário, na sua função de garantidor dos direitos funda-mentais, afirmando que o excesso de prazo do processo constitui um constrangimento ilegal para o acusado que está segregado provisoriamente, tem afirmado, para evitar o encarceramento cautelar indefinido, que não se pode aceitar como razoável o tempo processual que extrapassa 81 dias, tempo esse calculado com base nos prazos que, antes da reforma de 2008, era estabelecido pela soma dos prazos a serem observados para a prática dos atos processuais (JSTF 268/285; e HC 8371/RJ – 1998/0098832-7 – 6.a Turma – relator para acórdão Min. Vicente Leal – DJ 20.09.1999).

Assim, forte nos princípios adotados pelo sistema Internacional de Direitos Humanos, incorporados ao nosso sistema constitucional de garantias (...) a juris-prudência pátria cuidou de fixar o prazo razoável de 81 dias para a conclusão dos processos e, consequentemente, para a duração da segregação provisória.

Inquestionavelmente, a jurisprudência supriu a lacuna da lei (...)

Aliás , como o art . 8.º da Lei de 9.034/1995 estabelece que “o prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos por crime de que trata esta Lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e de 120 (cento e vinte) dias, quando solto”, há entendimento doutrinário, e até mesmo jurisprudencial, de que esses prazos, por analogia, e mesmo em face dos princípios da isonomia e da proporcionalidade, devem ser aplicados a todos os processos e, em consequência, para a aferição da razoabilidade do prazo para a prisão preventiva em todos os casos (v. Agostinho, Daiana Deiamar; Nóbrega, Dario Alexandre; Nunes, Leandro Gor-nicki; Farris, Paolo Alessandro; Freitas, Roberto Gonçalves de. Constituição, garan-tismo penal e limites da prisão cautelar. Dis-ponível em: <http://www.abdconst.com.br/arquivos/Artigo/20Grupo/20Joinvil le.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2007).

(...) Contudo, atualmente, em face do disposto no art. 412 do Código de Pro-cesso Penal, com redação dada pela Lei 11.689/2008, nos procedimentos relativos aos processos de competência do Tribunal do Júri, a primeira fase procedimental deve ser concluída “no prazo máximo de noventa dias”.

Assim, a prisão preventiva, em princípio, na primeira fase dos procedimentos dos

processos de competência do Tribunal do Júri, não pode extrapassar o prazo de 90 dias, salvo se motivos fortes houver para justificar a dilação.

E, in casu, esse motivos relevantes existem para justificar a ampliação desse prazo: houve o período de recesso no po-der judiciário paulista, do dia 20.12.2011 a 06.01.2012; assim, não houve tramite processual por 13 dias, o que impossibilitou o encerramento da instrução processual no prazo de 90 dias.(...)

ISSO POSTO, descabida rejeição da denúncia com fundamento no art. 395 do Código de Processo Penal e incabível a ABSOLVIÇÃO do réu com fundamento no art. 397 do Código de Processo Penal, DESIGNO o dia 07 de março de 2012, às 14h00min, para a audiência única de instrução, debates e julgamento, a qual será realizada de conformidade com o disposto no art. 411, caput, e §§ do Código de Pro-cesso Penal.

(...) Finalmente, INDEFIRO o pedido de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN-TIVA, que mantenho por 103 (cento e três) dias, contados da data da prisão, ou seja, até o dia 07 de março de 2012.

Campinas, 10 de fevereiro de 2012.

José Henrique Rodrigues Torres Juiz de Direito

Anotação: Trata-se de uma decisão interlocutória, proferida nos autos de um processo penal em trâmite pela 1.ª Vara do Júri da Comarca de Campinas/SP, quanto a um pedido de revogação de prisão preventiva. Embora tenha mantido a prisão preventiva, o magistrado fixou prazo de duração da mesma.

Esta decisão demonstra, de forma clara e simples, que o sentido de “ser garantista” está muito longe de ser irresponsável e ter falta de compromisso com a lei, como inadvertidamente (e até maldosa-mente), os defensores do “Movimento Lei e Ordem” se manifestam em suas críticas.

O compromisso com a Lei, acima de tudo com a Lei Maior de nosso ordenamento, é ponto de partida para qualquer análise garantista.

Assim, de forma paradigmática, comprova-se que mesmo em uma decisão interlocutória em que se decreta uma prisão preventiva (ou a mantém), é possível fazê-lo de forma a assegurar todas as garantias constitucionais, ou seja, no modelo garantista.

Nesta decisão, além da análise constitucional, houve um aprofun-damento da fundamentação em Tratados e Convenções Internacio-nais de Direitos Humanos, aos quais o Brasil firmou compromissos, demonstrando assim um alto grau de preocupação do magistrado com a legalidade.

Fazemos aqui um paralelo nas reiteradas lições de Amilton Bueno de Carvalho, forte em Ferrajoli, que afirma que o juiz deve ter um compromisso com a isenção e com os ditames constitucionais, “entrando” nos processos prontos para absolver – afinal o ponto de partida é a inocência, até prova em contrário – porém, apenas se isso não for realmente possível, poderá surgir uma condenação. Esta,

como regra, será sempre uma em regime mais brando, só sobrevindo regime mais rigoroso caso não haja outra possibilidade. Também, efetivada a necessidade do cárcere, este será fixado no menor prazo possível. Estes são os compromissos dos juízes garantistas – o má-ximo bem-estar ao não desviante e o mínimo mal-estar possível ao desviante.

A partir desta lição, sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva. Como a prisão é exceção, cremos que o juiz deva iniciar sua análise “pronto” para indeferir tal pedido.

Antes de mais nada, a análise do caso se limita a verificar a ne-cessidade de aplicação de uma, ou mais, medidas cautelares. Sendo necessária, a lei dispõe que todas as outras medidas cautelares prete-rem a prisão, devendo ser esta a última opção. Assim, apenas se não houver outra possibilidade é que o juiz decretará a prisão preventiva.

Mas não basta! Como muito bem fundamentado na decisão ora comentada, a prisão deve ter um tempo determinado.

É certo que o projeto de reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009) contempla a fixação de prazo para prisão preven-tiva, porém, ainda que não haja previsão temporal no nosso atual Código de Processo Penal, partindo-se dos princípios balizadores do Processo Penal, em especial o da razoabilidade, nada mais adequado do que se fixar um tempo máximo para a prisão preventiva, como o fez o magistrado.

Na decisão interlocutória em comento, o magistrado foi precioso em sua fundamentação, merecendo especial atenção da comunidade jurídica, pois o exemplo, como dito alhures, é paradigmático.

Criteriosamente, o magistrado, após fundamentar a necessidade de fixação de prazo da prisão preventiva, entendeu por razoável que se O

DIR

EITO

PO

R Q

UEM

O F

AZ

Page 3: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1547Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

EXECUçÃO PENAL. CONDENADA COM FILHO MENOR OU DEFICIENTE FÍsICO OU MENTAL. DIREITO À AMAMENTAçÃO. FALTA DE EsTABELECIMENTO PRIsIONAL ADEQUADO. VIOLAçÃO DOs DIREITOs HUMANOs.

Vara Central da Infância e da juventude de são PauloProc. 0001116-18.2012.8.26.0100j. 13.02.2012 – public. 23.02.2012

Promove o Ministério Público esta Ação Civil Pública contra o Estado de São Pau-lo – Fazenda Pública, alegando e pedindo, em resumo, o seguinte: no cumprimento de seu mister, o Estado vem descumprindo ditames legais e princípios constitucionais ao expor a risco de morte bebês recém-nascidos e crianças de tenra idade, fi lhos e fi lhas de mães detentas; estas, após darem à luz a seus fi lhos, permanecem com eles “internadas” no bloco (ala) D da unidade de internação do Hospital Penitenciário, pelo prazo mínimo de seis meses; tal prazo é o que estabelece a Lei de Execução Penal para que as detentas que deem à luz permaneçam com seus fi lhos para deles cuidar e amamentá-los até, ao menos, o sexto mês de vida deles (art. 83, § 2.º); esse período de convivência, segundo os ditames legais, deve ser cumprido em espaço próprio e adequado, dentro dos estabelecimentos penais, de modo a garantir o direito das crianças de serem alimentadas pelas mães, que estão presas, bem como o direito delas, crianças, à saúde e bem-estar; a permanência dessas mães e fi lhos, em ala do Hospital Peni-tenciário, ofende as determinações legais que exige, para tal, espaço adequado (art. 83, § 2.º, da LEP); pede-se a antecipação da tutela a fi m de garantir a vida e saúde dos bebês, os quais, enquanto permanecerem na ala D do Hospital Penitenciário, estão expostos a doenças e risco de morte; e houve surto de varicela, que atingiu várias crianças, além de conviverem elas em ala próxima daquela que abriga portadores de doenças infectoconta-giosas (tuberculose, HIV).

A inicial veio instruída com farta docu-mentação produzida durante inquérito civil público, que teve início em 2003, inquérito

esse originado em razão de dados obtidos e relatados pelo Conselho Regional de Medici-na do Estado de São Paulo, que, em vistoria realizada no Centro Hospitalar do Sistema Pe-nitenciário, apurou lá diversas irregularidades, sendo, uma delas, a situação irregular imposta às crianças de terna idade, fi lhas das detentas que deram à luz dentro da prisão.

Este o relatório.

DecidoA antecipação de tutela é de rigor. Tratados Internacionais, a Constituição

Federal e o Estatuto da Criança e do Adoles-cente garantem às crianças e aos adolescentes o direito “à proteção da vida e saúde, desde o nascimento, promovendo, ainda, seu desen-volvimento sadio e harmonioso, em condi-ções dignas de existência” (art. 7.º do ECA).

Os dados apresentados no inquérito civil público, e toda a documentação que o em-basa, conferem verossimilhança às alegações apresentadas na inicial (...)

Ao Estado cabe criar e por em prática políticas públicas que atendam à situação da mulher encarcerada e aos direitos de seus fi lhos, em especial quando nascidos estes dentro do sistema prisional.

Da imensa população carcerária, que hoje conta cerca de 500 mil detentos, por volta de 34 mil são mulheres. Sendo São Paulo o Estado que concentra a maior parte dessa po-pulação presa, não é dado ao Poder Executivo procrastinar o atendimento às detentas-mães e seus fi lhos, vindos à luz dentro dos estabe-lecimentos prisionais.

Assim, ainda que se anuncie projeto em andamento para a construção de espaço adequado para as detentas e seus fi lhos, urge que o Estado cesse a conduta lesiva, descrita na inicial (...)

O direito à vida, à saúde, à convivência com a mãe, para ser cuidado e amamentado,

por, no mínimo, seis meses, em ambiente salubre e digno, tem de ser garantido às crianças, fi lhas e fi lhos de detentas, que se encontram sob a custódia do Estado de São Paulo.

Assim, presentes os requisitos legais, e com vistas a evitar danos graves e irreparáveis aos bebês e crianças que nascem e vivem temporariamente com suas mães, dentro dos estabelecimentos prisionais, defi ro a tutela solicitada, antecipadamente, para determinar:

a) que, no prazo de 180 dias, a contar da data da intimação desta decisão, o Estado de São Paulo abstenha-se de en-viar ao Hospital Penitenciário detentas recém-paridas e seus respectivos fi lhos, exceto em caso de ocorrência médica que exija a internação; se a detenta vir a dar à luz a seu fi lho em dito hospital, deverá, após a alta hospitalar, ser dali removida, juntamente com o filho, para local adequado;

b) que, no mesmo prazo, o Estado de São Paulo indique local adequado (art. 83, § 2.º, da LEP) para que detentas e seus bebês convivam, para lá transferindo--os, no mesmo prazo; e

c) que, mensalmente, o Estado de São Paulo encaminhe a este juízo relatório das providências adotadas para o cum-primento integral desta decisão.

O não cumprimento desta ordem, no prazo estabelecido, implicará na incidência de multa diária de R$ 1.000,00.

Cite-se o Estado de São Paulo, na pessoa do Exmo. Procurador-Geral do Estado, para apresentar contestação no prazo legal.

Int.São Paulo, 13 de fevereiro de 2012.

Dora Aparecida Martins de MoraisJuíza de Direito

no procedimento especial do júri o legislador fi xou o prazo máximo de 90 dias para a conclusão da primeira fase, a prisão preventiva poderá ter no máximo este mesmo prazo. A partir daí, advindo uma pronúncia, será nesta decisão que se fará nova análise da cautela.

A par de todas estas ponderações, não se pode deixar de observar que a fi xação de prazo da prisão garante zelo maior por parte de todo o Judiciário, em especial dos servidores do cartório criminal, a fi m de que sejam rigorosamente cumpridos todos os prazos processuais, desde a citação do réu, até a audiência de instrução,

debates e julgamento, em que deverá ocorrer o fi m da primeira fase do rito especial do júri.

Seria extremamente louvável que todos os magistrados seguissem este exemplo, pois assim veríamos uma Justiça mais célere, efi caz e “justa”.

Paulo Sérgio de OliveiraMestre em Direito pela Universidade de Franca. Professor de Direito Processual Penal na EPD.

Advogado.

Page 4: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1548 Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

Anotação: Em 13.02.2012, a Juíza de Direito da Vara Cen-tral da Infância e da Juventude de São Paulo, Dora Martins de Morais, deferiu a tutela antecipada requerida pelos Promotores de Justiça, Luiz Faggioni e Luciana Tchorbadjian, em autos de ação civil pública, determinando que, pelos próximos seis meses, o Estado de São Paulo não poderá enviar ao Hospital Peniten-ciário detentas recém-paridas e seus respectivos filhos, exceto em caso de ocorrência médica que exija a internação. A decisão toma por base inquérito civil público iniciado em 2003 a partir de relatórios do Cremesp sobre as irregularidades encontradas naquele local, em especial quanto à manutenção de crianças de tenra idade, nascidas de mulheres que deram à luz dentro da prisão. A exposição a risco de contração de doenças graves torna patente o fundado receio de ocorrência de danos irreparáveis e fundamenta a concessão da liminar, que fixou multa diária de mil reais para o caso de descumprimento.

A decisão se funda no art. 83, § 2.º, da LEP (“os estabelecimen-tos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo até 6 (seis) meses de idade”), e o estabelecido nos Tratados Internacionais, Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente, que garantem às crianças e aos adolescentes o direito “à proteção da vida e saúde, desde o nascimento, promovendo, ainda, seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (art. 7.º do ECA).

A concessão da tutela antecipada interrompeu, de forma cora-josa, a série de desmandos do Estado de São Paulo no atendimento às mulheres encarceradas, no caso, parturientes, lactantes e seus filhos recém-nascidos que, desde fevereiro de 2007, vinham ocupando a ala D daquele equipamento público de saúde, em razão da superlotação e posterior desativação do Centro de Aten-dimento Hospitalar à Mulher Presa. Dos 375 leitos destinados principalmente ao tratamento de patologias infectocontagiosas (em sua maioria, tuberculose e AIDS), as mulheres e seus bebês ocupavam 124 vagas, misto de cela e quarto, regime fechado e alojamento social, segurança e saúde. Por não ser nem uma coisa, nem outra, o atendimento era prestado de forma improvisada, a exemplo do que é feito na maioria das unidades prisionais femininas do Estado.

Foram observadas irregularidades quanto à legislação sanitária na estrutura física da unidade de internação (condições físicas dos quartos e banheiros, antigas celas); puérperas acomodadas no hospital, sem necessidade de qualquer tipo de tratamento médico-hospitalar, e desrespeito ao ECA, por ausência de políticas sociais públicas e condições dignas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso.

Os relatórios de vistoria realizados pelo Cremesp e as informa-ções da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (conveniada com a SES desde abril de 2009, para gestão do Hospital Penitenciário e atendimento da demanda por serviços de saúde existente nas Secretarias de Administração Penitenciária e Segurança Pública), e da Corregedoria dos Presídios (Decrim VI) confirmaram a inadequação do local (hospital penitenciário não é local para isso). Até então, apenas medidas procrastinatórias haviam sido adotadas para o enfrentamento da questão.

Neste cenário, a antecipação da tutela é um marco jurídico. As raras decisões que reconheceram a inadequação do local e a indignidade da prisão hospitalar o fizeram em favor de requerentes pontuais, contempladas com liberdade provisória ou prisão do-miciliar, mesmo antes da vigência da Lei 12.431/2011 (v. TJSP,

HC 990.10.339280-9, rel. Angélica de Almeida, j. 20.10.2010).Vale lembrar o exemplo dado pela Vara das Execuções Penais

de Passos/MG (Proc. 0479.08.141420-9) ao deferir pedido de prisão domiciliar, embora a sentenciada não fizesse jus ao benefício e não houvesse previsão legal, porque o presídio local não dispunha de condições físicas para os cuidados necessários para os primeiros meses de um recém-nascido. Sobre essa decisão, Luís Fernando Camargo de Barros Vidal (Boletim IBCCRIM, n. 201, ago. 2009) escreveu: “Em tempos de intolerância, nos quais o ódio e a cólera animam a concretização da política criminal, vem das Minas Gerais a novidade da prisão domiciliar de maternagem. Ante falta de condições estruturais para a permanência da mãe com o filho no sistema de reclusão, decide-se que a sentenciada deve ser removida à sua casa para ali ter com o rebento. ... Vem da vila de Passos a novidade de juízes e promotores que cumprem a lei. Sim, existe legalidade naquelas terras”.

A Secretaria de Administração Penitenciária esclareceu nos autos do inquérito civil público haver projeto de construção de ala na Penitenciária Feminina de Sant’Ana, contudo, a Resolução 15/COMPRESP/2001 cuida do seu tombamento e, nos termos da legislação preservacionista, mesmo as obras de conservação e manutenção do bem protegido devem ser aprovadas previamente pelo COMPRESP, o que jamais foi cogitado pela Pasta. Como se sabe, desde 2005, várias obras foram executadas na antiga área livre do presídio e não possuem documentação suficiente sobre as intervenções realizadas, nem mesmo sobre a edificação da Coordenadoria da Capital e Grande São Paulo. Em defesa do interesse histórico, a 5.ª Promotoria do Meio Ambiente deter-minou a desativação daquela unidade, nos termos do Relatório de Vistoria oferecido pelo CAEX (IC 132/05). Com razão, o projeto da SAP foi considerado pela Juíza incapaz de suprir a necessidade de alocar mães presas e suas crianças, por falta de perspectiva real de mudança.

A decisão anotada é exemplo a ser seguido também nas demais unidades da Federação, pois a situação irregular não é privilégio nosso. A concessão da liminar reforça a necessidade de respon-sabilização do Estado pela omissão e risco imposto à saúde de centenas de mulheres e crianças que passaram pelo Hospital Penitenciário e da implantação de efetivas políticas públicas em favor da manutenção das relações afetivas. Não se pode esquecer que São Paulo possui mais de 12 mil mulheres presas e há um déficit superior a 5.200 vagas, sendo histórico o aproveitamento de unidades masculinas desativadas para o aprisionamento de mulheres.

A tarefa não é fácil, contudo, “sendo São Paulo o Estado que concentra a maior parte dessa população presa, não é dado ao Poder Executivo procrastinar o atendimento às detentas – mães e seus filhos, vindo à luz dentro dos estabelecimentos prisionais”.

Por fim, importante destacar que São Paulo se vale da reco-mendação do período mínimo de seis meses de amamentação para torná-lo o máximo de tempo permitido de convivência, o que também é irregular e mereceria ser objeto de outra ação civil pública porque, sim, existe legalidade também nestas terras.

Sonia Regina Arrojo e DrigoCo-fundadora e ex-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.

Membro do Conselho da Comunidade da VEC. Integrante do GET “Mulheres Encarceradas”.

Advogada.

O D

IREI

TO P

OR

QU

EM O

FA

ZO

DIR

EITO

PO

R Q

UEM

O F

AZ

Page 5: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1549Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

Direito Processual Penal. Calúnia. Crimes de responsabilidade de funcionários públicos. Recebimento da denúncia. Inversão dos atos do processo. Defesa prévia/ Defesa preliminar. Falta de fundamentação do recebimento da denúncia. Nulidade insanável.

“(...) Quando a inversão implica nulidade absoluta, descabe trans-portar para a fase prevista no art. 396 do Código de Processo Penal

a ordem alusiva às alegações fi nais. Apresentada defesa prévia em que são articuladas, até mesmo, preliminares, é cabível a audição do Estado-acusador, para haver defi nição quanto à sequência, ou não, da ação penal. (...).” (STF – 1.ª T. – HC 105.739 – rel. Marco Aurélio – j. 07.02.2012 – public. 28.02.2012 – Cadastro IBCCRIM 2750)

Pesquisadores: Leandro Ayres França e Michelangelo Corsetti

sUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

jURIsPRUDÊNCIA ANOTADA

sUPR

EMO

TR

IBU

NA

L FE

DER

AL

Anotação: Ofertada a denúncia e apresentada a resposta con-testatória à acusação (arts. 396 e 396-A do CPP), o Juízo da 33.ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro determinou que o Ministério Público se manifestasse novamente, para rebater as alegações preliminares da defesa. Em seguida, sem cientifi car o acusado do conteúdo da manifestação ministerial, o magistrado recebeu a denúncia designando data para a audiência de instrução. Sob o fundamento de ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa pela inversão da ordem processual, foram sequen-cialmente impetrados habeas corpus perante o Tribunal estadual e o STJ, os quais não foram acolhidos (a defesa também alegou, alternativamente, falta de justa causa para a ação penal). Desse não acolhimento, formalizou-se novo habeas à Corte Suprema.

Antes do advento da Lei 11.719/2008, o juiz, após o recebimen-to da exordial, abria prazo para a defesa prévia, a qual se destinava, preponderantemente, à arguição de exceções, à negativa de autoria e ao arrolamento das testemunhas da defesa. Com as modifi cações introduzidas pela nova lei, estabeleceu-se um momento processual para a defesa reagir à acusação, possibilitando àquela rebater a denúncia, atacando seus elementos formais e evidenciando even-tuais nulidades. Conforme a redação legal, passo seguinte, deve o magistrado se manifestar quanto à rejeição (art. 397 do CPP) ou recebimento (art. 399) da exordial. Com a reforma processual, o legislador pretendeu assegurar à dinâmica judicial a igualdade das partes, prevista expressamente nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Nos moldes da previsão constitucional e da Lei Processual Penal, o processo caracteriza-se como um confl ito disciplinado e dialeticamente ritualizado. Para sanar a desigualdade substancial entre os sujeitos nele envolvidos – desigualdade potencializada no âmbito penal, em que, de um lado, tem-se o aparelho estatal de persecução penal (Polícia e Ministério Público) e, de outro, o indivíduo que arrisca ser submetido a uma pena pública, a quem cabe reagir à imputação proposta, nos limites de sua hipossufi ci-ência –, são garantidos, pois, o direito de se informar quanto ao conteúdo da acusação (contraditório) e o direito de contradizer a imputação (exercício de defesa). A fi xação de uma ordem pro-cedimental acusação-defesa visa a proteger exatamente a essencial contradição dialética do processo, tão necessária para o magistrado construir sua decisão como, nas palavras de Francesco Carnelutti, o oxigênio no ar que respiramos (Principi del Processo Penale. Milão: Morano, 1960.p. 139).

A hipótese de o parecer ministerial extrapolar, de qualquer forma, os limites de seus requerimentos iniciais, sem que seja oportunizado acesso e espaço de manifestação para a defesa, con-fi gura uma imperfeição processual que gera evidente prejuízo: a decisão do magistrado será defi citária por não ter esgotado todos os argumentos e refutações das partes.

Em recente escrito sobre esta questão, Luiz Guilherme Rorato Decaro (Pode o Ministério Público manifestar-se sobre a resposta à acusação antes de o juiz a apreciar? Boletim IBCCRIM, n. 229, dez. 2011.) foi além e apontou também o desrespeito ao devido processo legal. De fato, o Código de Processo Penal não prevê, em nenhuma hipótese, que, após a apresentação da defesa preliminar pelo acusado, o Juízo de primeiro grau remeta os autos novamente ao Ministério Público para sua manifestação acerca das alegações defensivas. Na verdade, em assim procedendo, o magistrado oportuniza uma espécie de réplica para o Ministério Público (sem a devida tréplica), criando um novo modelo de ampla acusação – e não mais de ampla defesa.

Na decisão em apreço, o Ministro relator afastou o reconhecimen-to da nulidade apontada na antítese defensiva. Quando da análise do mérito, assinalou o Ministro que, tendo a peça da defesa trazido ao processo “razões diversifi cadas” – alegações de ausência de justa causa (pela inexistência de suporte probatório mínimo), de incom-petência do Juízo, de ilegitimidade ativa, de confi guração de cláusula de excludente de ilicitude (direito de informação) e de culpabilidade (ausência de dolo), de atipicidade da conduta imputada –, descaberia o transporte da ordem processual acusação-defesa (inquestionável em fase das alegações fi nais) para o momento anterior à designação de audiência. A audição do Ministério Público, nos dizeres do seu voto, dera-se em “momento peculiar”. A liminar anteriormente concedida foi cassada e a ordem de habeas corpus, denegada.

A interpretação do STF ratifi ca procedimento que tem se tor-nado corriqueiro nos Juízos de primeira instância e que fere, com único ato, os princípios do contraditório (reserva de informação), da ampla defesa (ausência de oportunidade para a contradição) e do devido processo legal (atipicidade formal). Trata-se, pois, de ato processual que dá causa a nulidade absoluta porque viola princípios fundamentais do processo penal. De acordo com Eugênio Pacelli (Curso de Processo Penal, 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 696), esses vícios processuais que decorrem de nulidade absoluta referem-se ao processo penal como função jurisdicional, pondo em risco a própria função judicante, com refl exos irreparáveis na qualidade da jurisdição prestada.

Ofertada a denúncia e apresentada a defesa, não cabe a qualquer parte a defi nição quanto à sequência, ou não, da ação penal. Cabe ao magistrado sintetizá-la. Nesse caso, a inversão da ordem dos fatores prejudica o produto.

Leandro Ayres FrançaMestrando em Ciências Criminais (PUC-RS).

Advogado.

Michelangelo Corsetti Mestre e especialista em Ciências Criminais (PUC-RS).

Professor de Direito Penal da Universidade de Caxias do Sul – RS. Advogado.

Page 6: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1550 Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

TRIBUNAL REGIONAL FEDERALDireito Processual Penal. Lavagem de dinheiro. Cabimento de habeas corpus. Princípio do juiz natural. Nulidade dos atos decisórios.

“(...) I – Prevê o art. 399, § 2.º, do Código de Processo Penal, que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Essa norma processual já estava em vigor quando os autos da ação penal questionada no writ foram conclusos para sentença. II – No âmbito do Direito Processual Penal a aplicação da lei no tempo é regrada pelo princípio do efeito imediato, representado pelo brocardo tempus regit actum, conforme estabelece o CPP, art. 2.º. III – O fundamento da

aplicação imediata da lei processual é que se presume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos interesses da Justiça, salvaguardar melhor o direito das partes, garantir defesa mais ampla ao réu etc. IV – Havendo a instrução processual, desde o recebimento da denúncia até as audiências de interrogatório dos réus e oitiva das testemunhas, com a abertura dos prazos processuais para produção de provas e alegações finais, sido presidida pelo Juiz Federal Substituto da Vara Federal, e não pelo magistrado que proferiu a sentença, tem-se demonstrada a não observância do preceito processual vigente, notada-mente diante de qualquer óbice ou impedimento daquele à época. (...)

sUPE

RIO

R T

RIB

UN

AL

DE

jUsT

IçA

TRF

sUPERIOR TRIBUNAL DE jUsTIçA

Anotação: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de réu pronunciado como incurso no art. 121, § 2.º, I, III e IV, e § 4.º, do CP, por ausência de justa causa para a ação penal. Segundo consta em relatório, indignada com a decisão de pronúncia, a defesa interpôs recurso em sentido estrito, cujo provimento fora negado pelo TJSP, ora autoridade coatora. Na ocasião, a Corte paulista rechaçou as teses aduzidas pela defesa, tendo em vista que a existência de depoimentos testemunhais, corroborada ainda pela confissão do réu em etapa inves-tigatória, bem como a impossibilidade de realização de perícia técnica eram suficientes para suprirem a falta de exame de corpo de delito, nos termos do art. 167 do CPP.

Em seu voto, a relatora denegou a ordem do writ, pois a aplicação do mencionado dispositivo legal pela autoridade coatora se mostrou acertada, diante as peculiaridades do processo. Apesar de o paciente ter conduzido a autoridade policial até o lugar onde havia deixado o cadáver da vítima, o local era de difícil acesso e não foi possível localizar o corpo.

Embora o teor do art. 158 do CPP estabeleça o exame de corpo de delito como indispensável para a comprovação da materialidade do deli-to, apenas em hipóteses excepcionais, quando não há mais possibilidade de produção da prova pericial, adotam-se outros meios de prova para o convencimento do julgador, tais como o depoimento testemunhal, por força do art. 167 do Diploma Processual (nesse sentido: Freitas, Vitor de. A indispensabilidade do exame do corpo de delito diante da CF/88. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>, acesso em: 28 nov. 2002). Assim, a decisão em análise se encontra em harmonia com a jurisprudência do STJ, conforme análise dos precedentes desta Corte: HC 110.642/ES, HC 79.735/RJ, HC 33.300/RJ, entre outros. Em similar entendimento: Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 179).

Acerca do exame do corpo de delito, a doutrina pátria diferenciou a regra e sua exceção, denominando a primeira como exame de corpo de delito direto, isto é, a análise feita por peritos dos vestígios do crime; e, a segunda como exame de corpo de delito indireto. No tocante ao exame indireto, Guilherme Madeira Dezem (Da prova penal: tipo

processual, provas típicas e atípicas. Campinas: Millenium, 2008. p. 163) aponta que a redação do art. 167 comporta diferentes interpretações, formando dois grupos: o primeiro grupo afirma que análise pericial não se confunde com singelo depoimento de testemunhas, uma vez que o exame pericial consiste em um juízo de valor de peritos, ou seja, “o exame pericial deve decorrer da congregação dos métodos científicos e é por isso que se justifica e tem tanta importância. Não faz sentido nomear de perícia o que decorre de outras provas já nominadas, e de conteúdo valorativo diverso” (Couto de Brito, Alexis; Fabretti, Humberto Barrionuevo; Lima, Marco Antônio Ferreira. Processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012. p. 186). Por seu turno, para o segundo grupo, o exame de corpo de delito indireto não demanda atuação dos peritos, bastando o cotejo realizado pelo magistrado das demais provas, como testemunhas ou documentos. Este último entendimento é defendido pela jurisprudência majoritária, especialmente do STF (HC 85.955/RJ, HC 89.708/BA, HC 69.591/SE, entre outros).

Quanto ao caráter excepcional do exame indireto, vale ressaltar que há entendimento jurisprudencial no sentido de que o exame de corpo de delito não precisa ser realizado, ainda que exista possibilidade de efetuar perícia técnica, desde que o acervo probatório colhido ateste a materialidade da conduta (STJ, HC 43.739/SP). Para os adeptos dessa corrente, observado que o art. 155 do CPP estabelece o sistema do livre convencimento motivado e o mandamento do art. 158 representa resquício do sistema da prova tarifada, a atenuação empreendida pelo art. 167 poderia ter sua aplicação expandida. Entretanto, embora não seja cabível atribuir valor absoluto para qualquer meio de prova, a imprescindibilidade do exame pericial direto não constitui retrocesso, afinal representa um dos meios mais eficazes para o devido esclareci-mento dos fatos, devendo ser afastado apenas nas hipóteses que não puder ser produzido, quando substituído pela prova testemunhal, sob pena de nulidade absoluta, nos termos do art. 564, III, b, do CPP.

Danilo Dias TicamiPós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana

Mackenzie e em Direito Constitucional pela Escola Superior da Advocacia. Advogado.

Direito Processual Penal. Homicídio qualificado. Ausência de prova de materialidade. Prova testemunhal. Exame de corpo delito. supressão por prova testemunhal.

“(...) 1. Nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal, a prova testemunhal pode suprir a falta do exame de corpo de delito, caso desaparecidos os vestígios. Esta Corte já decidiu que tal situa-ção se aplica inclusive aos casos de homicídio, se ocultado o corpo da vítima. 2. Hipótese em que a Corte estadual, no julgamento do recurso em sentido estrito, entendeu pela existência de outras provas que demonstrariam a materialidade do crime, indicando a confissão

do paciente e depoimentos testemunhais. 3. Diante desse contexto, não se mostra possível avaliar profundamente as provas carreadas aos autos para se concluir de modo diverso. Ademais, caberá aos jurados competentes a análise detida dos elementos de convicção carreados, por ocasião do julgamento pelo Tribunal do Júri, mostrando-se prematuro o estancamento do feito. 4. Ordem denegada. (...)” (STJ – 6.ª T – HC 170.507 – rel. Maria Thereza de Assis Moura – j. 16.02.2012 – pu-blic. 05.03.2012 – Cadastro IBCCRIM 2749)

Pesquisador: Matheus Silveira Pupo

Page 7: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1551Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

Tj

Anotação: Trata-se de habeas corpus em que se alega a nulidade de sentença condenatória porque proferida por juiz que estava “sem jurisdição”, vez que, à época, estava afastado das suas funções, por ter sido convocado para auxiliar a presidência do STJ; também seria nula por violar a regra do § 2.º do art. 399 do CPP, na medida em que toda a instrução foi realizada pelo juiz substituto, mas a sentença foi proferida pelo juiz titular. A ordem de habeas corpus foi concedida, reconhecendo-se a violação da regra da identidade física do juiz, uma vez que o juiz substituto, que havia presidido toda instrução, não se encontrava em nenhuma das situações de impedimento previstas no art. 132, parte fi nal, do CPC. Ao mais, entendeu-se que, com base no art. 2.º do CPP, a regra da identidade física do juiz tem aplicação mesmo no caso de processo que já estava tramitando, quando a Lei 11.719/2008 entrou em vigor, se ainda não tivesse sido prolatada a sentença. Por estes fundamentos, a sentença foi anulada, determinando-se a baixa dos autos para que outra fosse prolatada pelo juiz substituto que estava vinculado ao processo.

Para a análise da alegação de nulidade da sentença, basicamente, duas foram as questões enfrentadas no aresto: (1) a ausência de juris-dição do magistrado sentenciante; e (2) a sentença ter sido proferida por juiz diverso do que presidiu a instrução, contrariando o art. 399, § 2.º, do CPP. No caso, desde o recebimento da denúncia, passando pela instrução, interrogatório do acusado e abertura de prazo para alegações fi nais, tudo se deu perante o juiz substituto ofi ciante na Vara. Assim sendo, era este que estava vinculado à sentença e deveria proferi-la. O acórdão destaca, ainda, que as exceções à identidade física do juiz, previstas no art. 132 do CPC, também são aplicáveis ao Processo Penal, embora, por se tratar de restrição à regra geral do art. 399, § 2.º, do CPP, somente podem ser aplicadas ao julgador que estiver vinculado. No caso, o juiz federal substituto que presidiu toda a instrução deveria julgar o feito, porque não ocorreu qualquer das exceções da Lei Processual Civil. Ao contrário, o juiz titular que, mesmo sem ter praticado qualquer ato no processo, porque teria começado a estudar o feito e elaborado a sentença em suas férias, bem como porque foi convocado para auxiliar a presidência do STJ, solicitou ao Corregedor-Geral que, a despeito de ser autorizada a suspensão de suas férias, continuasse “com jurisdição”, para julgar o processo em questão. Consta do acórdão: “se não presidiu a instrução, não poderia a autoridade coatora pleitear a excepcional extensão de jurisdição, ainda que somente para julgar um ou dois feitos, sobretudo alegando para o Corregedor uma identidade física que não existia”.

A decisão é correta, principalmente, considerando-se o posicio-namento prevalecente, no sentido de que a regra da identidade física do juiz deve ter o término da instrução como marco defi nitório do magistrado que irá sentenciar o processo. Isso porque, em tal caso, a regra se limita a estabelecer quem será o juiz vinculado à sentença.

Partindo dessa premissa, o art. 399, § 2.º, do CPP simplesmente estabelece quem será fi sicamente o juiz que deverá sentenciar o processo. Trata-se, pois, de regra a ser aplicada só no momento da sentença. Assim, se no caso concreto, em tal oportunidade, o art. 399, § 2.º, já estava em vigor – o que ocorreu no dia 23 de agosto de 2008 –, não há porque negar-lhe aplicação. Ao contrário, o art. 2.º do CPP, neste caso, acolhendo a regra de direito inter-temporal tempus regit actum, impõe a aplicação do art. 399, § 2.º, do CPP, mesmo aos processos iniciados antes da vigência da Lei 11.719/2008, mas cujos autos foram conclusos para sentença após o Reforma do CPP de 2008.

Por fi m, como o acórdão faz referência à garantia constitucio-nal do juiz natural (CF, art. 5.º, LIII), é preciso ter cuidado e não confundi-la com a regra da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 2.º), embora se tratem de garantias que podem e devem funcionar integradamente, com vista a assegurar o juiz imparcial. Como já tivemos oportunidade de anotar (Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A garantia do juiz natural no processo penal: delimitação do conteúdo e análise em face das regras constitucionais e legais de determinação e modifi cação de competência no direito processual penal brasileiro. Tese (Livre-docente) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. p. 239): “A regra da identidade física do juiz está fortemente ligada à garantia do juiz natural, embora uma possa subsistir sem a outra. É possível que haja necessidade de que a competência do juiz seja previamente defi nida por lei, inclusive no que respeita ao juiz que, individualmente, será o competente para julgar o feito, mas se admita que, defi nido o juiz competente, possa haver alteração da pessoa que irá sentenciar. O órgão competente continuará o mesmo, mas a pessoa do juiz terá variado ao longo do processo. Por outro lado, é possível que se admita variações das regras de competência, inclusive com alteração do juiz competente ao longo do processo, mas que a partir de um determinado momento, por exemplo, o término da instrução, o juiz que pessoalmente irá julgar o feito está determinado. É inegável, porém, que a atuação conjunta, tanto da garantia do juiz natural, quanto da regra da identidade física do juiz, será de grande reforço para se assegurar a imparcialidade do juiz. Aliás, a imparcialidade, por óbvio, é um atributo de pessoas, e não de órgãos”.

Sobre o tema, ver também: Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A regra da identidade física do juiz na reforma do Código de Processo Penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 200, p. 12-13, jul. 2009.

Gustavo Henrique Righi Ivahy BadaróLivre-Docente.

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP.Professor associado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da USP.

Advogado.

Direito Penal. Crimes ambientais. Princípio da insignificância. Bem jurídico difuso. Bem jurídico coletivo. Princípio da exclusiva proteção do bem jurídico.

“(...) Finalmente, o pleito de aplicação do princípio da insig-nifi cância deve ser desprovido. Esta colenda Câmara tem segui-damente se manifestado acerca da impossibilidade de aplicação deste princípio aos crimes ambientais, tendo em vista que o dano ao meio ambiente é cumulativo, afetando, inclusive, as gerações

futuras. Ainda mais inviável é a aplicação do princípio da insigni-fi cância em se tratando de lesão à área de preservação permanente, dada a sua importância ecológica, sublinhada pelo próprio Código Florestal. Veja-se que a Lei 4.771/1965, na redação acrescida pela Medida Provisória 2.166-67/2001, ao defi nir a área de preservação permanente, ressaltou sua importância ambiental: Art. 2.º, § 2.º, II – ‘Área de Preservação Permanente: área protegida nos termos dos arts. 2.º e 3.º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com

TRIBUNAL DE jUsTIçA

VI – Ordem concedida para anular a sentença condenatória proferida na Ação Penal 2007.84.00.003656-8 (ACR-7412/RN), devendo seus autos, nesta eg. Corte em sede de apelo, serem baixados para outra sentença ser prolatada pelo juiz competente. (...).” (TRF 5.ª R. – 4.ª

T. – HC 0014412-71.2011.4.05.0000 – rel. Margarida Cantarelli – j. 13.12.2011 – public. 12.01.2012 – Cadastro IBCCRIM 2715)

Pesquisador: Fabiano Yuji Takayanagi

Page 8: TRIBUNAL DO jÚRI. PRIsÃO CAUTELAR. PRIsÃO PREVENTIVA ... · de REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN- ... sua lógica também é possível na análise de um pedido de prisão preventiva.

1552 Boletim iBCCRim - Ano 20 - nº 233 - ABRil - 2012

Anotação: Cuida-se de trecho de acórdão do TJRS, proferido em sede de apelação criminal, em que se discutiu a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância a suposto crime ambiental praticado em área de preservação permanente. O tribunal decidiu pela não aplicação do mencionado princípio ao caso.

A posição adotada pelo TJRS reflete a orientação majoritária da jurisprudência brasileira sobre a matéria, que afirma não ser possí-vel a aplicação do princípio da insignificância a crimes ambientais porque o dano causado por tais condutas seria cumulativo e afetaria um bem jurídico indisponível, difuso e afeto às gerações futuras. Há julgados que mencionam, ainda, a imprevisibilidade dos danos que podem decorrer das condutas ambientalmente lesivas e, em muitos casos, também sua imensurabilidade como razões a afastar a aplicação da insignificância. No julgado ora analisado, além de tais argumentos de cunho mais genérico, afirmou-se a não aplicação do princípio da insignificância em razão de se tratar de suposto crime praticado em área de preservação permanente, que apresentaria grande relevância ambiental decorrente da função de manutenção de nascentes, prevenção da erosão, do assoreamento de riachos, manutenção de faixa contínua de vegetação, a proporcionar o fluxo biológico tanto da fauna quanto da flora, dentre outras.

O entendimento adotado pelo julgado, s.m.j., parece-me bastante equivocado, pois se fundamenta em uma visão errônea do princípio da insignificância. Mencionado princípio opera, no Direito Penal, afastando a tipicidade da conduta quando a lesão ou perigo ao bem jurídico se revelou insignificante, ou seja, penal-mente irrelevante. Trata-se de vetor interpretativo fundamental no sistema penal, pois há hipóteses em que, muito embora se enqua-drem formalmente à descrição típica, não representam qualquer dano ou perigo para o valor subjacente à norma.

Estando assim construído teoricamente, o princípio da insig-nificância deve ter plena aplicação também em face de normas que tutelam bens jurídicos difusos ou coletivos, pois o parâmetro adotado não é o dano realístico, mas a lesão ou colocação em perigo do bem jurídico, que é concebido normativamente – seja individual, seja difuso. É verdade que constatar a colocação em perigo ou a lesão de bens jurídicos difusos ou coletivos consiste em tarefa mais complexa do que quando empreendida diante de bens jurídicos individuais. Entretanto, isso não afasta a aplicação do princípio da insignificância a tais crimes, como já observou Fabio D’Avila:

“Não são poucos os julgados em matéria penal ambiental que, v.g., simplesmente consideram inaplicável o princípio da insignificância, sob o argumento de ela versar sobre bens jurídicos supraindividuais. Como se a principiologia penal devesse se adaptar à matéria de proteção e suas vicissitudes e não o contrário. E isso partindo de uma premissa igualmente equivocada, i.e., partindo da ideia de que bens supraindividuais não são suscetíveis de análise em termos de insignificância. Ora, nada mais equivocado. É exatamente o caráter supraindividual dos crimes ecológicos, associado à técnica de tutela adotada, que reforça ainda mais a importân-TR

IBU

NA

L D

E jU

sTIç

A

cia da análise de significação para a definição do âmbito de proteção da norma” (D’Avila, Fabio Roberto. Breves notas sobre o direito penal ambiental. Boletim IBCCRIM n. 214, set. 2010).

Da mesma forma, não deve prevalecer, em um Direito Penal fundado na responsabilidade pessoal, o argumento de que as condutas ambientalmente lesivas causam danos cumulativos e, por isso, não se aplica o princípio em discussão, punindo-se criminalmente condutas irrelevantes em razão da possibilidade de que uma série de outras pessoas pratiquem a mesma conduta, levando o resultado da somatória de todas essas condutas a um dano ambiental. Tal percepção contraria um dos pilares mais relevantes do Direito Penal: o de que a pena se destina a punir a conduta (e o consequente resultado juridicamente relevante) causada pela pessoa apenada. Não há responsabilidade penal por fato de terceiro em Direito Penal – e a lógica do dano cumulativo subverte tal fundamental premissa.

Caso se adotasse a ideia de cumulatividade como critério de afastamento do âmbito de aplicação do princípio da insignificân-cia, ele não seria aplicado sequer aos casos de furtos insignificantes em grandes supermercados – âmbito de aplicação por excelência do princípio. Afinal, é evidente que uma série de furtos irrelevantes praticados contra o mesmo estabelecimento causa um dano de monta àquele patrimônio.

Além disso, não se discute que as áreas de preservação permanente desempenham, efetivamente, funções ecológicas relevantíssimas. Todavia, não há razão para tamanha inflexibilidade no campo penal se considerarmos que é possível intervir ou suprimir vegetação em áreas de preservação permanente, desde que seja em casos de utili-dade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, sempre com prévia autorização do órgão ambiental, conforme dispõe a Resolução 369/2006 do Conama. Assim, se até mesmo no campo administrativo se preveem tais exceções, não há razão específica para se afastar a aplicação do princípio da insignificância a condutas praticadas em área de preservação permanente.

Infelizmente, o princípio da insignificância não tem sido apli-cado, pela jurisprudência, com a consistência dogmática com que a doutrina o cunhou. Na seara ambiental, não há motivos para rechaçar, em abstrato, a aplicação de tal princípio. Da mesma forma como se deve proceder diante de todo e qualquer outro tipo penal, também aqui é necessário verificar qual o bem jurídico tutelado, sua forma de lesão ou colocação em perigo e se os fatos concretos efetivamente levaram o bem jurídico em questão a uma situação de vulnerabilidade relevante.

Helena Regina Lobo da CostaProfessora Doutora da Faculdade de Direito da USP.

Professora do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal Econômico da Fundação Getúlio Vargas.

Advogada.

a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas’. Então, é convir que quando há um desmatamento, por menor que seja, em área de preservação permanente, não são apenas as árvores abatidas pela ação ilícita que se perdem para o meio am-biente e para a população (presente e futura). Há danos ambientais importantes associados, como a perda do solo, que carregado aos leitos dos rios, tem sido responsável não só pela perda econômica dos agricultores, como pelas enchentes nas cidades, pela diminuição dos peixes, da pesca, do lazer, das aves, enfim, de toda a cadeia de fauna e do fluxo gênico entre espécies (vegetais e animais). Não é

à toa que a prioridade dos órgãos gestores de meio ambiente tem sido a formação ou manutenção dos poucos corredores ecológicos ainda existentes, para os quais as áreas de preservação permanente desempenham fundamental papel. É que, sem elas, muitos animais morrem, não só eles, as próprias árvores não têm como se reproduzir, acabando por ficar isoladas em ecossistemas que pouca valia terão para desempenho de suas funções. (...) (Ementa não oficial).” (TJRS – 4.ª Câm. Crim. – AP 70046425161 – rel. Constantino Lisbôa de Azevedo – j. 19.01.2012 – public. 27.01.2012 – Ca-dastro IBCCRIM 2716)

Pesquisador: Roberta Werlang Coelho