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KAPP, Silke. A cidade como espaço teórico. In: Alice Serra; Rodrigo Duarte; Romero Freitas (ed.). Imagem, Imaginação, Fantasia: 20 anos sem Vilém Flusser. Belo Horizonte: Relicário, 2014. A CIDADE COMO ESPAÇO TEÓRICO Silke Kapp 1 1 )urante toda a sua vida intelectual, Flusser se ocupou, mais ou menos esporadicamente, do tema da cidade. O presente texto é uma tentativa de recuperar parte dessas diversas concepções da cidade e da relação entre cidade e teoria. A partir de textos publicados e de alguns manuscritos iné- ditos (disponíveis no Vilém-Flusser-Archiv de Berlin), procurarei delinear, numa ordem aproximadamente cronológica, cinco modos flusserianos de pensar essa relação. Alguns conceitos e imagens desse percurso de Flusser se somam, outros se contrapõem e até se contradizem, mas dois pontos me parecem decisivos: a transformação das reflexões de Flusser sobre a cidade depois da década de 1970; e a fragilidade do lugar ocupado em cada um dos cinco momentos pela produção material da cidade e para a cidade, isto é, por aquilo que Marx costumava chamar de trocamaterialcom a natureza. A cidade como objeto (da teoria] Comecemos por uma concepção que caracteriza três textos (presumivelmen- te) mais antigos de Flusser e que entendo como a menos frutífera de todas elas: "Coisas que me cercam" (1970); "Avoltà' (s/d.a); "Projetos superpostos" (s/d.b ). O primeiro desses textos é um breve prefácio de 1970, escrito para uma coletânea de artigos que acabou não sendo publicada. Nele, Flusser explica suas intenções filosóficas e chama seu próprio trabalho de "poesia jornalísticà '. Ele diz que, à semelhança dos jo rnais, quer tratar de coisas próximas, efêmeras, cotidianas: "Há, pois, um clima fenomenológico numa 1. Arquiteta, mes tre e doutora em Filosofia, Profes sora associada da Escola de Arqu itetura da UFMG, pesquisadora do CN Pq e coordenadora do Grupo de Pesquisa MO M (www . 1110111.a rq.u fmg .br ). 191

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KAPP, Silke. A cidade como espaço teórico. In: Alice Serra; Rodrigo Duarte; Romero Freitas (ed.). Imagem, Imaginação, Fantasia: 20 anos sem Vilém Flusser. Belo Horizonte: Relicário, 2014. 

A CIDADE COMO ESPAÇO TEÓRICO

Silke Kapp1

1 )urante toda a sua vida intelectual, Flusser se ocupou, mais ou menos esporadicamente, do tema da cidade. O presente texto é uma tentativa de recuperar parte dessas diversas concepções da cidade e da relação entre cidade e teoria. A partir de textos publicados e de alguns manuscritos iné­ditos (disponíveis no Vilém-Flusser-Archiv de Berlin), procurarei delinear, numa ordem aproximadamente cronológica, cinco modos flusserianos de pensar essa relação. Alguns conceitos e imagens desse percurso de Flusser se somam, outros se contrapõem e até se contradizem, mas dois pontos me parecem decisivos: a transformação das reflexões de Flusser sobre a cidade depois da década de 1970; e a fragilidade do lugar ocupado em cada um dos cinco momentos pela produção material da cidade e para a cidade, isto é, por aquilo que Marx costumava chamar de troca material com a natureza.

A cidade como objeto (da teoria]

Comecemos por uma concepção que caracteriza três textos (presumivelmen­te) mais antigos de Flusser e que entendo como a menos frutífera de todas elas:"Coisas que me cercam" (1970); "A voltà' (s/d.a); "Projetos superpostos" (s/d.b ). O primeiro desses textos é um breve prefácio de 1970, escrito para uma coletânea de artigos que acabou não sendo publicada. Nele, Flusser explica suas intenções filosóficas e chama seu próprio trabalho de "poesia jornalísticà '. Ele diz que, à semelhança dos jornais, quer tratar de coisas próximas, efêmeras, cotidianas: "Há, pois, um clima fenomenológico numa

1. Arquiteta, mestre e doutora em Filosofia, Profes sora associada da Escola de Arqu itetura da UFMG, pesquisadora do CN Pq e coordenadora do Grupo de Pesquisa MOM (www . 1110111.a rq.u fmg .br ).

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práxis filosófica como a minha . É toda ela voltada para as coisas da minha cisrcunstância e disposta a conceder a palavra a elas" (Flusser, 1970: 2).

Em "A voltà' (s/d.a), Flusser tenta então abordar a cidade nessa matri z, cm analogia às coisas do cotidiano, como se ela fosse um objeto delimitad o e estruturado. Isso o leva necessariamente a subtrair sua complexidad e, a ponto de fazer desaparecer o que pretendia elucidar. Exemplifica-o a comparação que propõe da cidade de São Paulo com um objeto utilitário .

São Paulo é coisa do tipo 'instrumento'. Foi produzida para ser útil. Camas servem para dormir (ou guardar dinheiro), canetas servem para escrever (ou coçar as costas). [ ... ] Para que serve o instrumento São Paulo? Qual a sua utilidade? (Flusser, s/d.a: 2)

Flusser não formula resposta a essas perguntas, mas aponta que a "enor­midade transhumana" de São Paulo tornaria tal resposta "possível apena s

por diálogo com os outros " (s/d.a: 2). Porém, justamente essa enormidad e ou complexidade põe limites a uma prática filosófica de "clima fenomeno­lógico': mesmo se ela recorresse ao diálogo. Tentar precisar os propósitos de São Paulo é algo que me parece tão desprovido de sentido quanto tentar definir os propósitos da língua portuguesa , pois a cidade, assim como a língua, é ao mesmo tempo instrumento, cenário, produtora e produto de um emaranhado de processos sociais.

Outro exemplo dessa concepção de cidade-objeto está numa tentativ a que Flusser empreende de analisar Brasília, criticamente, como obra de arte. Em "Projetos superpostos" (s/d.b), ele parte do princípio de que obras de arte - ou obras de urbanismo concebid as como obras de arte - devem ser criticadas mediante a comparação com seu projeto , "a fim de constatar o

grau de realização alcançado" (Flusser, s/d.a). Mas o resultado dessa tenta ­tiva é apenas a constatação de que Brasília seria fruto de pelo menos dois projeto s contraditório s entr e si: um geopolítico e um antropológico. Dad a essa contradiç ão, o crítico - isto é, o próprio Flusser - se veria incap az de comparar projeto e obra, incapaz de critic ar.

Em outras palavras, mesmo uma cidade que, diferentem ente da maioria , tem projeto e autori a se furt a à análise que Flusser pretend e nesse mom en­to. A analogia de cidade e obra não pro cede, e menos aind a, a de cidade e obr a produzid a via design ou projeto autoral. Repito: falta uma concepção dos proc essos sociais que produzem a cidade e nos quais, necessariam ente,

infinito s proj etos se sobrepõem. Assim, tampouco compar ece na no ção

da cidade-objeto (instrumento oú obra de arte) o trabalh o mater, ialque a

constituiria. No exemplo de São Paulo, importam os habitante , u suá1 riosdo instrumento; no de Brasília, importam os autores intele tuais daobra11

A cidade como produtora [de teoria)

Numa segunda concepção, já bem mais elaborada, Flusser preen che s 1

lacuna, considerando tanto a produção material, quanto a interdependên iade cidade e produção teórica . Tal concepção da cidade como produtora ( deteoria) se encontra, sobretudo, num texto intitulado "Private und õffentlichc

Rãume" (1979a) ou, na versão em português com ligeiras modificações, "Espaço públicos e espaços privados" (1979b).

Em discussão explícita com Hannah Arendt, ele começa pela catego­rização platônica de três "espaços existenciais" urbanos: a vida privada, restrita ao oikos, à necessidade, aos escravos e às mulheres; a vida ativa que se faz na liberdade do espaço público da ágora e que reúne arte e política (nessa reunião Flusser difere de Arendt); e, por fim, a vida contemplativa, teórica, em espaços de ócio, preservados da economia e da política.

O esquema histórico que Flusser constroi a partir disso distingue três fases e três formas de cidade. A primeira, de Antiguidade e Idade Média, seria protagonizada pelo homo sapiens, para o qual a sabedoria é o maior valor. Na pólis grega, escravos e mulheres dão conta das necessidades elementares e, assim, permitem a constituição de uma esfera político-artística, que dá conta da organização social e, por sua vez, possibilita a constituição de uma esfera teórica . A escravidão é um meio para a liberdade, a liberdade é um meio para a sabedoria . Flusser acentua que esse construto urbano se funda no oikos, no trabalho material doméstico: "se os escravos fossem libertados, a política e a teoria se desmantelariam e todos seriam escravos": A segunda fase, chamada por Flusser de revolução burguesa e iniciada no Renascimento, é protagonizada pelo homofaber, que põe a liberdade acima de todas as coisas e inverte a hierarquia anterior: a busca da verdade deixa de ser o fim último e é posta a serviço da liberdade política e artística ; o espaço do ócio e da contempl ação teórica deixa de existir; o trabalho começa a sair do oikos para a fábrica. A situação mais recente, que Flusser denomina segundarevolução industrial e que corresponderia ao século XX, é protagonizada pelo homo oeconomicus, guiado pelo consumo. Flusser situa aí uma nova inversão: a economia se torna o valor mais elevado, e todos nós vivemos

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como escravos entre um espaço privado de trabalho e outro espaço privad o de consumo, sem conhecer nenhum verdadeiro espaço público, nem mui lo menos um verdadeiro espaço de ócio teórico. Esse totalitarismo, segund ) Flusser, não é relativizado pela entrada de informações ditas públicas no espaço privado (via televisão, por exemplo), porque tais informações serv m apenas à massificação, não à politização. Assim, num futuro próximo, "[a] cidade toda será Auschwitz aperfeiçoada: os seus habitantes funcionar ão em função da função, absurdamente, e colaborarão com o aparelho no seu próprio aniquilamento" (1979b: 4).

A conclusão de "Espaços públicos e espaços privados" é dedicada àdesmontagem desse prognóstico e das categorias platônicas que o funda ­mentam. Em primeiro lugar, diz Flusser, não precisamos seguir a antro ­pologia de Platão de homens caídos do mundo das ideias imutáveis qu só se salvam pela sua rememoração. A própria cidade seria um argument contra essa antropologia:

Toda cidade é empresa que visa superar a solidão humana pela comunicação. [ ... ] A cidade, a comunicação, é método para tornar vivível a consciênciada solidão da morte. [ ... ] Somos imortais na medida em que publicamos. O espaço público nos torna memoráveis. [ ... ] A nossa consciência da his­toricidade do homem (da sua mortalidade natural e imortalidade cultural), nos permite tentar reconstruir a cidade. (Flusser, 1979b: 5)

Podemos , portanto, transcender o automatismo do aparelho e em­preender a reconstrução emancipatória da cidade. Ela começaria por um a radicalização da privacidade dos próprios espaços privados. Flusser diz que esses, de fato, já não têm qualquer autossuficiência porque estão inteir a­mente predeterminados pelo aparelho. Radicalizar a privacidade significaria retirá -los dessa predeterminação, como que criando recortes ou refúgio s nos quais os indivíduos podem dar as costas ao aparelho e se dedicar no­vamente a ideias. Já não se trataria da contemplaç ão de ideias platônica s imutáveis, mas de um jogo de ideias históricas, elaboradas e reelaborada s na experiência e no diálogo. Por isso, elas gerariam um mercado de tro ca (de ideias), também ele inacessível ao aparelho totalitário e constituído pela "rede de comunicações dialógicas " que as novas tecnologias pos sibilitam. Por fim, esse "espaço público pós-industrial projetaria, de si, um novo tipo de escola [ ... ] lugar de um novo tipo de 'theor ia"' (Flusser, 1979b: 8-9) e centro da nova cidade do homo lud ens. A partir disso, o aparelho ser ia

reprogramado para funcionar, tão somente, como escravo para a troca material com a natureza.

Essa visão de uma resistência como que por dentro, a partir d s i nd iví­duos em comunicação, parece inspirada pelos movimentos so iai urban bastante intensos no Brasil e em outros lugares na décad a de 1 7 . 1 luLI s r os imagina providos de uma estrutura de comunicação semelhant à usa da,por exemplo, nas revoltas no mundo árabe de 2011. Mas Flu r tambémimagina um amadurecimento da reflexão dialógica até o ponl o m quearevolta política se tornaria desnecessária. Nas revoltas recent s, a municação parece, ao contrário, ter sido capaz de abalar estrutura s s 1 entes,mas não de sustentar uma reflexão sobre o que fazer dep oi .

A cidade como palco da teoria

Uma terceira concepção da cidade aparece em texto s qu Flusserr 'Is creveem meados da década de 1980: "Der stad tische Raum un I die n euen

Technologien" (1997 [1985]) ou, na versão em portugu ê , "Espa p urb ano e

as novas tecnologias" (1985). Ela também compa re , um pouLI omais tarde·, em "Vermassung und Vernetzung" (1992 [1991]). N a n ep ão, grande· esquema histórico que esbocei no item ant r i r p rsist , mas s obrep ostoa outra categorização: em vez de cidad e antiga, bur guesa pós in dustriale utópica, Flusser passa a aplicar à cidad a distin ão ntre pr -hisl ria,históri a e pós-história.

A fase pré-históri ca é pou co relevante nesse ontex to, p rque , na n­cepção de Flusser, ela não conhece espaços púb licos nem cida des propri a­mente ditas. Já a fase histórica se caracter izaria justament e pela exposição e acumulação de informações em espaços público s, e pelo seu proces same nto em espaços privados. Flusser entende a cidade histórica como um palco da teoria, não como sua produ tora. O indivíduo viveria num movimen to pendular entre esse palco , onde emite ou recebe inform ações, e o espaço privado, onde reelabora tais informações para depois public izá-las nova­

mente. A consciência (da cidade) histórica seria a consciência de que todo processamento privado é destinado ao espaço público e, porta nt o, políti co. Por isso mesmo, diz Flusser, trata-se de um a consciência infeli z , tal como Hegel a compreende : nunca se pode ter as duas coisas - quem encontra o mundo perde a si mesmo, quem encontra a si mesmo perde o mundo. A cidade seria o lugar onde o filósofo expõe e vende filosofia em discursos e

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livros,\ que ali serão guardados, admirados e até discutidos, mas não elaborados. /\ elaboração é, em última análise, solipsista.

Flusser usa essa concepção não para mitificá-la, mas para lhe contrapor .1 cidade pós-histórica, apoiada nas tecnologias que transportam informa­ções diretamente entre espaços privados. Se em "Espaços públicos e espaços privados" (Flusser, 1979b) essa conexão ainda parecia tênue ou até utópica, os textos da década de 1980 descrevem o espaço privado como algo perfu­rado de todos os lados por conexões das quais as tecnologias clássicas do século XX (rádio, telefone, televisão) seriam meras precursoras. A chamada telemática teria de fato tornado obsoleto o espaço público e, com ele, a polis, a política. E, agora, Flusser já não pretende recuperar esse espaço urbano político. Ele propõe, em vez disso, o engajamento no caráter dialógico das conexões, de modo que cada indivíduo seja tanto receptor quanto emissor. "Devemos aprender a pensar ciberneticamente, em vez de politicamente:' (Flusser, 1985: 2). Quanto ao trabalho material, ele desaparece novamente do cenário; o que, aliás, já fica evidente no simples fato de constelações tão diversas quanto a cidade medieval, a renascentista e a industrial passarem a pertencer à mesma categoria geral de "cidade histórica':

A cidade como espaço imaterial

Uma quarta abordagem da cidade na obra de Flusser, formulada na mesma época da anterior e não incompatível com ela, procura ir além das dimen­sões de tempo e espaço especificamente urbanas, isto é, além do tempo histórico e do espaço geométrico .

Ela está sobretudo em "Die Stadt als Wellental in der Bilderflut" (1997 [1988)) e "Raum und Zeit aus stadtischer Sicht" (1991), onde Flusser argu­menta que aquele velho mundo das 'coisas que nos cercam', o mundo da vida, perdeu sua evidência. No espaço sideral e no espaço quântico, nossas categorias convencionais de espaço e tempo não teriam validade , da mesma man eira que a noção de indivíduo . Se as novas tecnologias abrem possibili­dades que, convencionalmente, parecem oxímoros , tais como a telepresença, isso provaria que o mundo da vida está se dissolvendo em redes e nós de relações. Quando os nós são desatados, não sobra nada .

Em outras palavras, a cidade , que Flusser anteriormente havia procurado compreend er como objeto (instrumento ou obra de arte) é agora entendida como não coisa, ou, na sua própria tradução de Unding, como "inobj eto".

Flusser faz então o pleito de que deveríamos deixar d · con · eber\·r , idade · geometricamente, como uma superfície delimitada, epassar 1 concebê latopologicamente, como dobra ou distorção num camp o, s emelhante • 1 11111

campo gravitacional ou a uma rede. Nela, "as relaçõe s int er humanas sãotecidas com maior ou menor densidade em diferentes lu ger·l (Fluss r,1997 [1988): 179). Lugares mais densos formariam dobras em qu e os nós :, · aproximam entre si e que funcionam como atratores em rela ão ao1 · 1 m po)

adjacente, tornando-se cada vez mais densos. Com a maior pro ximid I de,os nós se atualizariam uns aos outros- a cidade seria o lugar da atualizaçãode virtualidades intra-humanas. A "imaterialidade" (Flusser mesm põ · otermo entre aspas) dessa cidade seria sua característica mais relevant ·: elanão teria casas, nem praças, nem templos, mas apenas emaranhados de fios.Deixaríamos de ser sujeitos para nos tornarmos projetos (emancipado s dasujeição, portanto), e a cidade seria a projeção intra-humana desses projetos. Flusser menciona que à rede intra-humana se misturariam outras red es, inclusive a rede ecológica e a rede material. Mas ele apenas comenta qu e teremos que aprender a conviver com o caos daí resultante, sem esperar por uma teoria geral que sintetize as conjunções numa nova totalidade.

Se compararmos essa nova concepção com a tentativa (frustrada) de analisar Brasília (Flusser, 1979a) a partir de seu projeto, vê-se que a ideia de cidade como processo ou conjunto de processos sociais passou a ser central. No entanto, o que considero particularmente problemático nessa concepção é, por um lado, a irrelevância a que Flusser relega a troca material com a natureza e o trabalho a ela relacionado. Por outro lado,

pode-se questionar seu pressuposto de que a imagem comum da cidade, aquela com que os habitantes operam no cotidiano, seria a de um espaço geométrico. Na realidade, a geometrização da cidade corresponde mais à ideologia do espaço urbano com a qual planejadores costumam operar, do que à percepção sensível e ao imaginário dos habitantes urbanos ( ou àquilo que Lefebvre chama de espaço percebido e espaço vivido). Ninguém percebe ou vive a cidade como malha geométrica; todos sabem que ela não é superfície neutra, que há adensamentos de significados e relações, que um mesmo evento em pontos urbanos diferentes se torna diferente,

que os mapas mentais ou imaginários que construímos para nos orientar e nos perder na cidade não são esquemas de casinhas e ruas como num jogo de tabuleiro.

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A c idade como espaço teórico

A última concepção flusseriana da cidade que quero apontar aqui é de um texto de 1988, intitulado "Stadte entwerfen" (1994 [1988]), isto é, "Projetarcidades''. Seu ponto de partida é a radicalização da "liberdade do migrante " e do "nomadismo", em busca de uma alternativa à civilização, isto é, à vida urbana que conhecemos.

Flusser passa aqui por várias das concepções que esbocei anteriormen ­te, mas o que me interessa especificamente é a contraposição entre aldeia e cidade, cultura e civilização. A aldeia, nessa equação, corresponderia à conjunção relativamente simples daqueles que semeiam, esperam a colheita e a protegem dos inimigos. Todos os aldeões são lobo s vegetarianos, próxi­mos da natureza, com uma diferenciação relativamente restrita de papéis. Já as cidades são conjunções complexas de muitos papéis, inclusive aqueles que não têm nenhuma relação com a materialidade da sobrevivência. Mas ambos, a cultura (da aldeia) e a civilização (da cidade) são "formas de conexão ao campo relacional intersubjetivo, duas estratégias de geração, armaze nag em e distribuição de informações por meio dos fios de relações intra-humanas" (Flusser, 1994 [1988]: 214).

Flusser propõe construir novas cidades, não novas aldeias (nem muito menos uma aldeia global). A razão disso é simples : "porque a aldeia não abre espaço teórico " ou, inversamente, porque "assim que os aldeões te­orizam, a vida da aldeia se urbanizà' (Flusser, 1994 [1988]: 215). O tempo livre que a aldeia tem a oferecer não é de um lazer teórico, mas apenas de uma espécie de pausa na luta com a natureza e com os outros. Já a cidade cria uma divisão de classes entre escravos que laboram, executivos que superv isionam e fazem política, e alguns poucos que, por isso mesmo, po­dem se retirar da luta e fazer teoria. Então Flusser pergunta : porque seria desejável abrir esse espaço teórico, projetando cidades em vez de aldeias? Ele rejeita a resposta platônica de que a teoria leva à verdade, ao belo e ao bem , e põe em seu lugar uma teoria entendida como projeç ão de sentido:

A teoria é a força de conexão das relações intra-humanas, à qual devemos a produção de informações. [ ... ] Portanto, se a rede intra-humana tem a tendência [ ... ] de produzir informações à revelia da entropia universal, o espaço teórico é seu alfa e ômega. [ ... ] O projeto de cidades alternativas deve se concentrar no projeto de espaços teóricos. (Flusser, 1994 [1988]: 176)

E aqui Flusser pergunta claramente se isso não significar ia ncglig nciar os fundamentos econôm icos e políticos sobre os quais essa torr d·emarfim seria construída . A resposta é que:

[ ... ] desde os tempos dos faraós (e de Platão) algumas coisas mudaram

sobretudo essa: tornou-se minimamente possível pensar que o mer cado · as residências privadas poderiam ser entregues a simulacros de humanos

e que então todos os cidadãos humanos poderiam ser acomodados no templo. (Flusser, 1994 [1988): 177)

Autômatos trabalhariam para nós , computadores inteli g entes ·o­mandariam os autômatos e todos nós produ zir íamos inform a õ es num

ambiente pacífico de lazer dialógico, apenas programando o m ·r ado eas residência s privadas. O desenho dessa cidade seguiria a con epção lo espaço imaterial (ver item ante rior), isto é, uma topologia de ampos em

vez de uma geometria de superfícies . A cidade seria um a dobra no ampode forças que atr ai as relações intra-hum anas, sustentada por um spaaço teórico mais abrangente e não, como na utopia platônica, t nd um restrito espaço teórico por parasita . E Flusser também descreve p ríodo de· transiç ão entre as nossas cidades e essa nova cidade ou nova iviliza ã . Num primeiro momen to, ele diz, apenas algumas pesso as estarãotadas teoric amente, enqua nto a maiori a ainda estará conec tada e politicamente. Mas com o tempo todos entrarão no espa t ri o. �(espaço teórico a ser projetado dessa mane ira é um a escola ( u m 1 u garde lazer), porque todo o trabalho (toda transformação de camp os r la ionais) será .mecaniza do e relegado a subumano s" (Flusser, 1994 [1988 !: 18 ) .

Flusser admite que no estado de coisas atua l (de 1988) tudo isso parece um sonho fantástico, mas que, por outro lado, há tend ên ias concretas nessa direção. Se elas parecem desastrosas a alguns , são, para Flusser "mais realistas do que o cenár io oferecidos pelos pessimistas - entre ou tras coisas pela curiosa razão de que a realidade agora pode ser reconh ecida corno fantasia" (Flusser, 1994 [1988]: 180) .

Em lugar de um a conclusão, ape nas gostaria de deixar uma pergun ta . Por mais que sejamos adeptos e simp áticos à teor ia, será que a utopia de Flusser, como tod as as utopias assim pintadas em cores (ausgemal t, como se diria em alemão), não perp etua as mesmas estru turas de dom inação existentes, sobretudo a dominação do corpo pela alma, do trabalho mate­rial pelo trabalho intelectual? E de resto, num mundo de espaço qu ânt ico

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e . id eral, onde todos os conceitos se relativizam e a reauoaae e ramas1a, ( omo exatamente definiríamos o limite entre os hum anos e esses pobres

subumanos que trabalhariam para nós? Sabemos todos, por experiência

histórica, o quanto essas definições são perigosas.

Agradecimentos

Agradeço especialmente a Lorena Melgaço pela pesquisa e disponibilizaçã o de textos no Vilém-Flusser-Archiv de Berlin.

Este trabalho foi possibilitado pelos apoios de pesquisa do CNPq e da

FAPEMIG.

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