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TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS MILITARES DA CAPITANIA DO RIO GRANDE (SÉCULOS XVII-XIX) MAIARA SILVA ARAÚJO NATAL-RN 2019

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TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS MILITARES DA

CAPITANIA DO RIO GRANDE (SÉCULOS XVII-XIX)

MAIARA SILVA ARAÚJO

NATAL-RN

2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA I: FORMAÇÃO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO

DOS ESPAÇOS

TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS MILITARES DA

CAPITANIA DO RIO GRANDE (SÉCULOS XVII-XIX)

MAIARA SILVA ARAÚJO

NATAL-RN

2019

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MAIARA SILVA ARAÚJO

TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS MILITARES DA

CAPITANIA DO RIO GRANDE (SÉCULOS XVII-XIX)

Dissertação apresentada como requisito parcial

para obtenção do grau de mestre no curso de

Pós-Graduação em História da Universidade

Federal Rio Grande do Norte, com Área de

Concentração em História e Espaços, vinculado

à Linha de Pesquisa Formação,

Institucionalização e Apropriação dos Espaços.

Orientador:

Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de

Macedo

NATAL-RN

2019

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MAIARA SILVA ARAÚJO

TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS MILITARES DA

CAPITANIA DO RIO GRANDE (SÉCULOS XVII-XIX)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de mestre no curso de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal Rio Grande do Norte, pela comissão formada

pelos professores:

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________

Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo (UFRN)

Orientador

_________________________________________________________

Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia (UFRN)

Avaliador interno

________________________________________________________

Prof. Dr. Francis Albert Cotta Formiga (UFMG)

Avaliador externo

NATAL-RN,_____de____________de 2019.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas,

Letras e Artes – CCHLA

Araújo, Maiara Silva.

Tropas pagas e ordenanças: perfil social dos militares

da capitania do Rio Grande (séculos XVII-XIX) / Maiara

Silva Araújo. - Natal, 2019.

234f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas,

Letras e Artes, Pós-Graduação em História, Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientador: Porf. Dr. Helder Alexandre Medeiros de

Macedo.

1. Administração militar - Dissertação. 2. Capitania

do Rio Grande - Dissertação. 3. Ribeira do Seridó -

Dissertação. I. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. II.

Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU

94:355.6(813.2)

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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AGRADECIMENTOS

A produção desse texto ocorreu em consonância com a minha gravidez e, quando minha

bebê nasceu, eu ainda estava cursando as disciplinas que haviam sido oferecidas aos mestrandos

pelo PPGH da UFRN. A escrita dessa dissertação, portanto, foi marcada pelo momento mais

importante da minha vida, o nascimento da minha Alice, o que significa afirmar que cada página

desse texto foi construída com muito afeto. O meu amor pela pesquisa, pelos documentos

coloniais, pela leitura historiográfica foi fortalecido por um amor ainda maior e que me ensinou

que é possível ser mulher, mãe e pesquisadora.

No entanto, as dificuldades e as renúncias foram muitas, o que implica na certeza de que

a construção desse trabalho não teria sido possível sem a presença amorosa de Deus, meus

familiares e amigos. Nesse sentido, expresso, inicialmente, a minha gratidão ao Criador do

universo, aquele que me inspirou e que esteve ao meu lado em todos os momentos da minha

vida, bem como a Santa Rita de Cássia, de quem eu sou devota e que intercedeu por mim ao

pai em muitas ocasiões da minha vida.

Sou grata, também, aos meus familiares, representados aqui por minha mãe, Marlete, e

meu irmão, João. Minha mãe fez um esforço imensurável para me oferecer um lar onde eu

pudesse crescer em segurança e, assim como tantas outras mulheres, criou a mim e a meu irmão

sozinha. Mãe sempre nos incentivou a estudar e a conquistar nosso espaço no mundo. Quanto

ao meu irmão, sou grata pelas vivências e sonhos partilhados. Saiba que aprendo muito com a

sua força de vontade e com o seu amor pela vida.

Felipe Tavares, meu doce amor, é parte dessa pequena família também. Conheci Felipe

no meu primeiro ano de faculdade, em meados de julho de 2012. Na época, ele estava cursando

o mestrado em História e eu ainda nem havia iniciado a Iniciação Científica. Felipe, portanto,

passou a ser, além de meu amor, alguém em que eu me inspirava diariamente para trilhar os

caminhos da pesquisa e da docência. Hoje, ele continua sendo alguém em quem eu me inspiro,

seja pelo seu amor à arte em forma de música ou poesia ou pelo seu anseio de mudar o mundo,

de torná-lo melhor para nossa filha e para as gerações futuras. Além disso, Felipe foi meu porto

seguro, aquele que me incentivou a conciliar, mesmo em meio às dificuldades, a maternidade

com a pesquisa. Meu amor, muito obrigada por ter confiado em mim e por me apoiar em minhas

decisões.

Além de Felipe, meus sogros, Cleide e Laerson, e minha cunhada, Raissa, fazem parte

da minha história de vida. Cleide, em especial, abdicou de suas tardes para cuidar de Alice e

me possibilitar pesquisar, escrever e participar de eventos científicos. Esse trabalho, certamente,

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não seria possível sem a sua presença amiga em minha vida. Obrigada por ter acreditado nessa

pesquisa, Cleide, e por ser esse ser humano acolhedor e generoso. Diariamente aprendo com

você a ser mais sensível às necessidades do outro e a manter a calma em meio às dificuldades.

Quanto à Raissa e Laerson, suas palavras de apoio e incentivo tornaram essa pesquisa menos

árdua. Ademais, Laerson, em particular, me auxiliou com a construção de um banco de dados

da documentação militar que transcrevei para compor esta pesquisa, o que foi imprescindível

para os cruzamentos de fontes que efetivei nesse texto. Portanto, sou muito grata à vida por

vocês serem parte da minha família.

Concluindo os agradecimentos aos familiares, não poderia deixar de agradecer a minha

filha, Alice. Minha pequena, fiz o curso de iniciação à docência quando já estava com 9 meses

de gravidez. Você, melhor do que qualquer outro ser, me acompanhou ao longo desses 2 anos

e 6 meses de mestrado. Ainda quando você estava em meu ventre, fiz a seleção para o mestrado

e cursei as disciplinas ofertadas pelo PPGH no primeiro semestre de aula. Após isso, em muitas

ocasiões, li e escrevi enquanto te amamentava ou te colocava para dormir. Portanto, dedico todo

esse esforço de pesquisa a você, a quem eu serei eternamente grata por ser minha tão amada

filha.

Ao longo da minha trajetória de vida contei também com a presença de pessoas muito

queridas e que me possibilitaram chegar até aqui. Dentre essas, cito minhas amigas Izanete,

Jucilene e Marcela, que, junto comigo, formavam o quarteto inseparável no Ensino Médio. Com

vocês, percebi que a pesquisa se torna mais suave e gratificante quando é delineada pela

presença de pessoas amadas. Obrigada por todas as tardes compartilhadas com cafés, filmes e

boas conversas ao longo do tempo em que nos conhecemos. Vocês contribuíram muito para o

ser humano que sou hoje e as considero como as irmãs que não tive, mas que a vida me

presenteou.

Agradeço também aos amigos da graduação e do mestrado. Expresso minha gratidão,

especialmente, a Lidiane e a Pedro. Com Lidiane, durante a graduação, partilhei as angústias

iniciais dessa pesquisa e hoje eu tenho a dádiva de poder compartilhar o amor pela arte, pelos

livros, pelos filmes e séries e, principalmente, o amor por Deus. Com Pedro, ao longo do

mestrado, partilhei os desafios dessa pesquisa, das disciplinas cursadas e as dificuldades para

conciliar a transcrição das fontes com a escrita dos capítulos. Ademais, Pedro é um grande

amigo, com quem partilho a vida e o amor pelas séries.

Institucionalmente, agradeço à UFRN, espaço no qual cursei minha graduação e

mestrado. Sou grata a todos os professores que me acompanharam nesse processo de formação

acadêmica, cada um contribuiu de forma singular para que eu me tornasse uma licenciada em

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História que ama pesquisar. Todavia, agradeço de forma singular aos professores Lourival

Andrade Júnior, Juciene Batista Félix Andrade, Helder Alexandre Medeiros de Macedo, Renato

Amado Peixoto e José Evangelista Fagundes. O professor Lourival Andrade, em suas aulas

sobre a História da Arte despertou o meu interesse e o meu amor pela arte. As aulas de arte que

ministrei após o término da graduação não teriam sido tão produtivas sem os seus preciosos

ensinamentos. Já a professora Juciene Andrade, em suas aulas de metodologia da pesquisa

histórica, ensinou os primeiros procedimentos para a realização de uma pesquisa

historiográfica, no que concerne ao uso de fontes e metodologias, procedimentos estes que

carrego comigo até hoje e que são essenciais na minha atividade de escrita.

Já o professor Helder Macedo foi a pessoa que me acolheu como sua bolsista de

Iniciação Científica. Em 2013, ingressei no Projeto de Pesquisa Populações Mestiças no Seridó

e, dentre as atividades que deveria desenvolver, estava exatamente a transcrição de fontes

coloniais, atividade que despertou em mim o interesse pela pesquisa com fontes dessa época da

História do Brasil e, em específico, pela história dos mestiços e das instituições administrativas

do que hoje corresponde ao estado do Rio Grande do Norte. Sou muito grata a Helder Macedo

por ter acreditado em mim, por ter me ensinado a pesquisar e a escrever. Depois de tantos anos

de convivência e de partilha de vida, considero Helder como um grande amigo, que além de ter

me orientado na graduação, me orientou durante o mestrado e me mostrou que o rigor da

pesquisa exige, também, a delicadeza da poesia, pois, afinal, é da história de vidas humanas que

estamos falando e, desse modo, não podemos ignorar os possíveis sentimentos que alimentavam

as vivências diárias desses homens e mulheres que habitaram o território custodiado por

Portugal na América.

Quanto ao professor Renato Amado, sou grata pelos aprendizados obtidos durante a

disciplina Teoria e Metodologia da Pesquisa Histórica, onde tive a oportunidade de refletir

sobre quais caminhos teóricos e metodológicos deveria trilhar na escrita desse trabalho. E, por

fim, agradeço ao professor Evangelista Fagundes, que me acompanhou durante o estágio à

docência, realizado na disciplina História do Rio Grande do Norte I, onde refleti e aprendi sobre

os desafios da docência no Ensino Superior, visto que antes só havia tido experiência de sala

de aula com a Educação Básica.

Expresso minha gratidão, ainda, à professora Carmen Margarida Oliveira Alveal e aos

professores Thiago do Nascimento Torres de Paula e Lígio José de Oliveira Maia, que

participaram de minha banca de qualificação e apresentaram contribuições significativas para

a escrita desse texto.

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A escrita desse trabalho não seria possível sem o uso de fontes e, nesse sentido, agradeço

a Tiago Tavares, historiador do Laboratório de Documentação Histórica do Centro de Ensino

Superior do Seridó, da UFRN, Campus de Caicó que tão prontamente digitalizou algumas das

fontes judiciais que utilizei nessa pesquisa. Agradeço também ao professor João Felipe da

Trindade, que pesquisou e digitalizou assentos de praça e baixas no acervo do IHGRN e os

cedeu ao genealogista Eliton Macedo, que, por sua vez, franqueou-os gentilmente para a

realização de nossa pesquisa e uso na dissertação, sem os quais esse trabalho, certamente, não

seria possível do modo como havíamos arquitetado.

Por fim, agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de mestrado que recebi nesses dois

anos de mestrado. Sem esse auxílio financeiro, provavelmente, essa pesquisa não teria se

efetivado.

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Diz Koster: “Conversando com um homem de cor a meu serviço,

perguntei-lhe se certo capitão mor era mulato: ‘Era, porém já não é’!

E como eu pedi explicação, concluiu: ‘Pois, senhor, um capitão mor

pode ser mulato’”?

Henry Koster (1816, p. 480).

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RESUMO

Examina o ingresso de sujeitos mestiços na administração militar da Capitania do Rio Grande,

com ênfase naqueles que residiram na Ribeira do Seridó, sertões da Capitania do Rio Grande,

entre os séculos XVII, XVIII e XIX. Para tanto, discute, também, o perfil quantitativo dos

colonos que ingressaram na administração militar do Rio Grande para, assim, entender qual foi

o lugar ocupado pelo colono mestiço na administração militar desse espaço em relação aos

demais que eram de qualidade branca, indígena e negra. Em consonância com isso, investiga o

processo de institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande e salienta

as dificuldades presentes no serviço militar regular desse território colonial. A presente análise

envolve, também, o papel da instituição militar no processo de territorialização da Ribeira do

Seridó, que teve como primeiro marco territorial e institucional, em meio ao processo de

interiorização da atuação lusitana na América, uma estrutura de caráter militar: a Casa Forte do

Cuó, edificada entre os anos de 1686 e 1687, salientando, desse modo, a relação existente entre

esta instituição administrativa e o processo de construção de territórios coloniais no contexto

em análise. Metodologicamente, tomou como base o intercurso de escalas, discutido pelo

historiador francês Jacques Revel, onde o macro (Capitania do Rio Grande) e o micro (Ribeira

do Seridó) espaços se encontram no intento de abordar o papel da administração militar no

processo de territorialização da Ribeira do Seridó, bem como da composição social dos corpos

militares existentes na Capitania do Rio Grande. Em termos documentais, tem como

fundamento fontes militares (assentamentos de praça), paroquiais (registros de batismo,

matrimônio e óbito) e judiciais (inventários post-mortem e cartas de alforrias) referentes ao

recorte espaço-temporal citado e que são examinadas através de um cruzamento de dados e das

metodologias quantitativa, serial e qualitativa. O trabalho possibilita preencher lacunas

historiográficas no que concerne à existência de pesquisas que discutam a administração militar

na Ribeira do Seridó e na própria Capitania do Rio Grande, tendo como foco a atuação de

sujeitos mestiços nesse âmbito da administração colonial.

Palavras-Chave: Administração militar. Capitania do Rio Grande. Ribeira do Seridó.

Mestiços.

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ABSTRACT

This examines the admission of “mestiços” (mixed race) individuals into the Captaincy of Rio

Grande’s military administration, with an emphasis on the ones who resides in Ribeira do

Seridó, in the backlands of Captaincy of Rio Grande’s riverside, between the 17th, the 18th, and

the first years of the 19th centuries. To do that, it also discusses the quantitative profile of the

settlers who took on roles in the Rio Grande military administration, in order to therefore make

sense of the role reserved for “mestiços” in the aforementioned space in comparison to others

qualified as white, black, or indigenous individuals. In consonance with this, it also investigates

the institutionalization process of the military administration in the Captaincy of Rio Grande

and underlines the difficulties involved with the military service in this colonial territory. This

analysis also includes the role of the military institution in the process of territorialization of

Ribeira do Seridó, which had a military structure as its first territorial and institutional

landmark, in between the Lusitanian efforts to expand towards the American countryside: the

Casa Forte do Cuó (“Cuó Stronghold”), built between 1686 and 1687, furthermore highlighting

the existing relationship between this administrative institution and the construction of colonial

territory in the analyzed context. Methodologically, this has taken into consideration the play

of scales, as discussed by French historian Jacques Revel, in which macro (the Captaincy of

Rio Grande) and micro (Ribeira do Seridó) spaces meet to make it possible to approach the

military administration’s role in territorializing Ribeira do Seridó, as well as the social

composition of the military corps then existent in the Captaincy of Rio Grande. In terms of

documentation, this is supported by military (assignments of army personnel), parochial

(baptism, marriage and death registries), and judicial (post-mortem inventories) sources,

determined by the aforementioned temporal-spatial outline and submitted to data cross-

examination, as well as to quantitative, serial and qualitative analyses. This work makes it

possible to fill in some of the historiographic gaps in terms of research concerning the military

administration in Ribeira do Seridó and in the Captaincy of Rio Grande itself, focusing on the

role of “mestiços” within that field of colonial administration.

Key words: Military administration. Captaincy of Rio Grande. Ribeira do Seridó. “Mestiços”.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Espaços da Capitania do Rio Grande que possuíam companhias de ordenanças na

segunda metade do seiscentos .............................................................................................. 64

Quadro 2 – Peças da artilharia e munição existentes na Fortaleza, 1669 ............................... 76

Quadro 3 – Efetivo da Fortaleza dos Reis Magos, 1669 ........................................................ 76

Quadro 4 – Terço do Mestre de Campo Cristóvão de Mendonça .......................................... 87

Quadro 5 – Companhias militares presentes na Capitania do Rio Grande, 1698 a 1725 ........ 89

Quadro 6 – Qualidade dos ocupantes do posto de tambor na Capitania do

Rio Grande (1749-1789) .................................................................................................... 101

Quadro 7 – Justificativas apresentadas para dispensa no serviço militar (1698- 1725) ........ 121

Quadro 8 – Sesmeiros-Militares na Ribeira do Seridó, 1701-1750 ...................................... 129

Quadro 9 – População da Vila do Príncipe conforme suas qualidades, 1805 ....................... 135

Quadro 10 – Companhia 1, pertencente ao Capitão Matheus Mendes Pereira, 1727-1737 ... 141

Quadro 11 – Companhia 2, pertencente ao Capitão Francisco Ribeira Garcia, 1726-1739 .. 142

Quadro 12 – Corpos militares existentes na Capitania do Rio Grande, 1795 ....................... 143

Quadro 13 – Companhias de ordenanças existentes na Capitania do Rio Grande, 1806 ...... 168

Quadro 14 – Territórios que necessitam de companhias de ordenanças na Capitania

do Rio Grande, 1806 .......................................................................................................... 169

Quadro 15 – Qualidade dos oficias das ordenanças da Ribeira do Seridó, 1778 a 1820 ....... 181

Quadro 16 – Cargos políticos ocupados pelos oficiais das ordenanças da Ribeira

do Seridó ........................................................................................................................... 182

Quadro 17 – Descrição dos bens de Manoel de Souza ........................................................ 194

Quadro 18 – Descrição dos bens de João Antônio Ferreira das Neves ................................ 199

Quadro 19 – Bens que Manoel Guedes recebeu em dote, 1789 ........................................... 206

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Efetivo militar do Estado do Brasil, 1612 ............................................................ 56

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Efetivo das companhias de Presídio do Estado do Brasil em 1612 ..................... 59

Gráfico 2 – Qualidade dos soldados e oficiais que assentaram praça e receberam baixa

na Capitania do Rio Grande, 1698-1725 ............................................................................... 95

Gráfico 3 – Qualidade dos soldados identificados como índios na Capitania

do Rio Grande ...................................................................................................................... 97

Gráfico 4 – Qualidade dos colonos identificados como mestiços na Capitania

do Rio Grande ...................................................................................................................... 98

Gráfico 5 – Naturalidade dos militares que atuaram no Rio Grande (1698-1725) ................ 113

Gráfico 6 – Sesmarias concedidas na Ribeira do Seridó, 1695-1750 ................................... 126

Gráfico 7 – Perfil social dos soldados da Ribeira do Assú, 1789 a 1799 ............................ 174

Gráfico 8 – Perfil social dos soldados da Ribeira do Seridó, 1797 a 1806 .......................... 179

Gráfico 9 – Ofícios desempenhados por pardos na Ribeira do Seridó,

séculos XVIII a XIX .......................................................................................................... 210

LISTA DE ORGANOGRAMAS

Organograma 1 – Oficiais que deveriam constituir as companhias de ordenanças

no Estado do Brasil .............................................................................................................. 30

Organograma 2 – Oficiais que deveriam constituir as Milícias no Estado do Brasil .............. 44

Organograma 3 – Efetivo militar da Capitania do Rio Grande, 1612 .................................... 56

LISTA DE GENEAGRAMAS

Geneagrama 1 – Descendência da família Taveira da Conceição ........................................ 144

Geneagrama 2 – Descendência da família Genealogia dos Soares de Oliveira .................... 148

Geneagrama 3 – Descendência da família Genealogia dos Souza Forte .............................. 186

Geneagrama 4 – Descendência da família Genealogia dos Fernandes das Neves ................ 195

Geneagrama 5 – Descendência da família Genealogia dos Guedes do Nascimento ............. 202

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

1ºCJ 1º Cartório Judiciário

AHU Arquivo Histórico Ultramarino

Cód. Códice

CPSJ Casa Paroquial São Joaquim

Cx. Caixa

DC Diocese de Caicó

Doc. Documento

FCC Fundo da Comarca de Caicó

FGSSAS

IHGB

IHGRN

Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

Instituto Histórico Geográfico Brasileiro

Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte

LABORDOC Laboratório de Documentação Histórica, Centro de Ensino Superior do

Seridó, Campus de Caicó, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

PSC Paróquia de Sant’Ana de Caicó

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 18

2 INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO MILITAR NA CAPITANIA DO

RIO GRANDE (XVII) ....................................................................................................... 38

2.1 Tropas regulares e auxiliares: definição, aproximações e distinções ............................. 38

2.2 O serviço militar na Capitania do Rio Grande no início do Seiscentos ......................... 48

2.3 “Das grandes necessidades que padecem estes poucos soldados”: situação da tropa

paga que guarneceu na Fortaleza dos Reis Magos pós presença holandesa ........................ 65

2.4 E assim estâ hoje a fortalleza de tratamos sem hú soldado”: o socorro militar prestado

pela Coroa às necessidades que padeciam os soldados da Fortaleza

dos Reis Magos, 1670-1680 .............................................................................................. 77

3 ÍNDIO FORRO, TAPUIAS, PARDOS, TRIGUEIROS E MULATOS: COMPOSIÇÃO

DAS TROPAS COLONIAIS DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NA GUERRA DOS

BÁRBAROS (1698-1725) ................................................................................................... 85

3.1 Análise do perfil social dos praças e oficiais que constituíram o efetivo militar do Rio

Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros, 1698-1725 ................................................. 93

3.2 João, índio que “disse ser forro”: considerações acerca da condição do efetivo militar do

Rio Grande, 1698 a 1725 ............................................................................................... 105

3.3 Naturalidade dos militares que guerrearam na Guerra dos Bárbaros .......................... 111

3.4 Pobreza, deserções e resistência: casos de baixa no serviço militar do Rio Grande .... 117

3.5 Militares e sesmeiros: a presença de oficiais militares na territorialização da Ribeira do

Seridó, pós-guerra dos Bárbaros .................................................................................... 121

4 CARACTERIZAÇÃO SOCIAL DOS MILITARES MESTIÇOS DA CAPITANIA DO

RIO GRANDE, 1726-1820 ............................................................................................... 137

4.1 Efetivo militar da Capitania do Rio Grande posteriormente à Guerra dos Bárbaros ... 137

4.2 Quadro organizacional das tropas auxiliares no Rio Grande ...................................... 154

4.3 “Antônio Francisco da Costa, solteiro, cabelo preto, olhos castanhos,

criador de gado”: análise do perfil social dos soldados das ordenanças ........................... 170

4.4 Manoel de Souza Forte: capitão, juiz de órfãos, pai de pardos e sesmeiro da

Ribeira do Seridó ........................................................................................................... 185

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4.5 Manoel Guedes do Nascimento, pardo, soldado das ordenanças da

Ribeira do Seridó ........................................................................................................... 194

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 213

FONTES ........................................................................................................................... 219

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 225

APÊNDICES .................................................................................................................... 235

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1 INTRODUÇÃO

Henry Koster,1 ao conversar com um homem de cor que estava a seu serviço, interrogou-

o acerca da qualidade de certo capitão-mor, perguntando-lhe se o mesmo era mulato. Para tal

questionamento, Koster obteve a seguinte resposta: “Era, porém já não é”! Provavelmente, o

paradoxo presente na afirmação de seu serviçal o deixou confuso, visto que logo em seguida

pediu-lhe uma explicação para tal contradição. Todavia, dessa vez, o viajante europeu foi

surpreendido pela objetividade e clareza da assertiva de seu serviçal, que respondeu-lhe com

um outro questionamento: “Pois, senhor, um capitão mor pode ser mulato”? 2

A resposta emitida por este homem de cor denotava algo que o próprio Koster teve a

possibilidade de constatar em suas viagens pelo Norte do Brasil: a desigualdade da sociedade

colonial com base na qualidade que um indivíduo possuía. Um exemplo de nossa assertiva é a

transcrição abaixo, onde Koster justificou o porquê de negros não ingressarem nas tropas de

linha de Recife:

Os negros crioulos do Recife são de um modo geral, operários de todas as

profissões, mas não chegam às altas classes sociais, agricultores e negociantes. [...] são excluídos do sacerdócio e dos ofícios que os mulatos podem

concorrer, incluindo a lei, porque sua inequívoca e visível coloração lhes

proíbe inteiramente pleitear. [...] São julgados incapazes de servir nos

Regimentos de Linha, por causa de sua cor, assim como noutros Regimentos, excetuando os privativos [...].3

Desse modo, é evidente que a qualidade e a condição de um colono, elementos caros a

uma sociedade constituída com base nos pressupostos do Antigo Regime, podiam implicar em

maior ou menor possibilidade de ingresso nas instituições administrativas da colônia. Apesar

da qualidade e condição serem fatores que condicionavam o acesso a ofícios administrativos,

1 Henry Koster era filho de um comerciante inglês que, provavelmente devido às suas atividades comerciais, era

residente em Lisboa, onde Henry Koster nasceu e passou parte de sua vida. A enfermidade que esse último possuía,

possivelmente tuberculose, foi apontada pela historiografia como a causa de sua viagem para a América Portuguesa

em 1809, onde escolheu a Capitania de Pernambuco como destino e onde faleceria em 1820, ou seja, passados 11 anos de sua chegada à América. Segundo o historiador Sergio Willian de Castro Oliveira Filho, “cerca de um ano

após sua chegada, crendo ter obtido melhoras em seu estado de saúde, Koster decidiu empreender suas viagens

inicialmente por localidades próximas a Recife e, posteriormente, por outras Capitanias (Paraíba, Rio Grande do

Norte, Ceará e Maranhão). Ao retornar de sua jornada no Maranhão, optou por tornar-se arrendatário de

propriedades em Pernambuco e empreender as atividades inerentes a um senhor de engenho”. OLIVEIRA FILHO,

Sergio Willian de castro. Um anglo-lisboense no Brasil Joanino: escravidão, religião e política sob o olhar de

Henry Koster. Temporalidades, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 171, maio-ago. 2014. 2 KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliana Eletrônica, 1942. p. 480. 3 Ibid. p. 382.

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como constatou Koster, existiram casos singulares de colonos mestiços 4 que conseguiram

ocupar cargos no âmbito militar e jurídico da administração colonial. Um exemplo claro disso

é o caso de Martinho Soares de Oliveira,5 pardo, residente nos sertões da Capitania do Rio

Grande e que ocupou o cargo de escrivão de alcaide na Vila Nova do Príncipe. Assim como

ele, temos o caso, dentre outros, de Manoel de Souza Forte, um sesmeiro residente nos sertões

dessa Capitania que era pai de indivíduos qualificados, nos registros da Igreja, como pardos.

Ele ocupou o cargo de juiz de órfãos e o posto de tenente-coronel na Vila do Príncipe.6 Isso

demostra que, apesar da qualidade e condição serem fatores que indicavam qual lugar o

indivíduo deveria ocupar no cenário colonial, alguns sujeitos, mesmo sendo mestiços,

conseguiram ocupar cargos em instituições da administração colonial.

O objetivo deste estudo, portanto, é investigar o ingresso de colonos mestiços na

administração militar da Capitania do Rio Grande com ênfase naqueles que residiram,

especificamente, nos sertões7 desta Capitania, em particular na Ribeira do Seridó, entre os

4 O termo mestiço não consta na documentação examinada nesta dissertação, a não ser de forma esparsa em

registros paroquiais. Nos assentos de praça e baixa constam apenas os seguintes termos: pardo, trigueiro, mulato

e, dentre outros, mameluco. Dessa forma, estamos fazendo uso do conceito fundamentados na análise de Eduardo

França Paiva, para quem mestiço é um termo que aglutina indivíduos que foram qualificados como sendo resultado do intercurso biológico ocorrido entre grupos sociais distintos e que foram definidos nos registros do Estado e da

Igreja como pardos, mulatos, mamelucos e, dentre outros, cabras. Dessa forma, o conceito de mestiço não é

homogêneo e aglutina pessoas de diferentes qualidades e condições. Esse termo, segundo Paiva, sofreu alterações

ao longo do tempo e do espaço. Inicialmente, o mesmo foi empregado na Ibero-américa para designar apenas os

filhos de europeus com índias. Porém, a partir do século XVIII teve seu uso ampliado e passou a definir indivíduos

de diferentes “tipos”, que fossem resultados do intercurso biológico entre grupos sociais distintos. Nessa

perspectiva, para este autor, um conceito congênere ao de mestiço seria o de mestiçagem. (PAIVA, Eduardo

França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e

XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. 286f. Tese. (Concurso para Professor Titular

em História de Brasil – Departamento de História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

PAIVA, Eduardo França. Escravo e mestiço: do que estamos efetivamente falando? In.: CHAVES, Manuel f.

Fernandez; GARCIA, Rafael M. Pérez; PAIVA, Eduardo França. (Orgs.). De que estamos falando? Antigos

conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2015). 5 ARAÚJO, Maiara Silva; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências “mestiças” e administração

colonial nos sertões da Capitania do Rio Grande: o caso da família Soares de Oliveira (séculos XVIII-XIX).

Espacialidades, Natal, v. 10, p. 14-44, jul-dez. 2016. 6 PARÓQUIA DE SANT’ANA DE CAICÓ (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Óbitos nº 1.

Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1811, fl. 37. (Manuscrito). 7 Os sertões da Capitania do Rio Grande referem-se a um espaço que foi constituído por diferentes instituições

coloniais, como a eclesiástica, a militar e, dentre outras, a judicial. Essas instituições, além de serem responsáveis

por normatizarem a forma de viver dos colonos, eram mecanismos responsáveis pela delimitação e territorialização

dos espaços sob tutela de Portugal. Assim, a instituição religiosa, por exemplo, remetia à presença de uma igreja

matriz que se localizava em uma freguesia, sede da administração religiosa. A freguesia, dessa forma, era um marco territorial e implicava, também, na presença de um estabelecimento cristão (Igreja) que deveria assegurar a

cristianização das almas daquela localidade. Nessa perspectiva, em nosso texto, sempre que nos remetemos aos

sertões do Rio Grande estamos fazendo referência a esse espaço delimitado e territorializado por instituições

portuguesas que foram importadas para o Ultramar. Evidentemente que esse processo de territorialização foi

descontínuo e ocorreu em consonância com a realidade social e econômica desse espaço. Por fim, o que estamos

considerando como sertões da Capitania do Rio Grande é concernente, na atualidade, ao que seria a região do

Seridó, situada no estado do Rio Grande do Norte e que, no contexto colonial, foi definido, também, como Ribeira

do Seridó, em decorrência do rio homônimo que cortava seu território. Sobre o conceito de Seridó verificar os

estudos de (MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo

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séculos XVII, XVIII e os primeiros anos do século XIX.8 Dessa forma, pretende-se discutir

quem eram esses mestiços, de quais corpos militares fizeram parte e quais ofícios

desempenharam nessa instituição colonial. Para tanto, pretende-se, também, problematizar o

perfil quantitativo9 dos colonos que ingressaram na administração militar do Rio Grande para,

assim, entender qual foi o lugar ocupado pelo colono mestiço na administração militar desse

espaço em relação aos demais que eram de qualidade branca, indígena e negra. Em consonância

com isso, pretendemos, ainda, investigar o processo de institucionalização da administração

militar na Capitania do Rio Grande e salientar as dificuldades presentes no serviço militar

regular desse território colonial no que concerne, em específico, à situação precária a que

estavam submetidos os soldados que guarneciam na Fortaleza dos Reis Magos, na Cidade do

Natal, na segunda metade do Setecentos. 10 Por fim, discutiremos, também, o papel da

instituição militar no processo de territorialização da Ribeira do Seridó, salientando a relação

existente entre esta instituição administrativa e o processo de construção de territórios coloniais.

O recorte espaço-temporal escolhido para esta pesquisa ocorreu em decorrência da

existência de fontes militares, paroquiais e judiciais que nos possibilitaram empreender uma

análise quantitativa e qualitativa dos soldados e oficiais que atuaram na Capitania do Rio

Grande no contexto colonial e, dessa forma, identificar padrões nos assentos de praça e baixas

seridoense. Natal: Sebo Vermelho, 2005) e de Helder Alexandre Medeiros de Macedo (MACEDO, Helder

Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte

(séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife,

2013.) 8 Esta pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRN, que tem como área de

concentração História e Espaços. Em decorrência disso, em nosso estudo, estivemos preocupados com o papel das

instituições coloniais no processo de territorialização da Capitania do Rio Grande, com ênfase no papel da

instituição militar nesse processo de construção de territórios. 9 É importante destacar que a documentação que examinamos é referente, majoritariamente, ao assento no serviço militar de soldados. Entretanto, em diferentes ocasiões, a documentação analisada apresentou, também, colonos

que eram militares de ofícios menos importantes na hierarquia militar do Ultramar, como, por exemplo, homens

que ocupavam os postos de alferes e, dentre outros, cabos de esquadras. Em poucas ocasiões, a documentação

apresentou, também, o nome e a qualidade de colonos que eram capitães de companhia, como foi o caso de Antônio

Gago de Oliveira, mestiço que era responsável por uma companhia no Terço dos Paulistas, no contexto da Guerra

dos Bárbaros. Desse modo, em decorrência desses oficiais militares que constaram na documentação, sempre que

nos remetermos ao perfil quantitativo dos militares do Rio Grande estaremos nos referindo a colonos que eram

principalmente soldados, mas também a colonos que eram oficiais. Infelizmente, devido à quantidade significativa

de assentos que examinamos e ao próprio caráter da documentação, que estava organizada de forma avulsa e sem

nenhuma ordem cronológica, bem como ao próprio tempo que tínhamos para efetuar esta pesquisa, optamos por,

nessa ocasião, não separar o perfil quantitativo dos praças e oficiais. Contudo, esperamos dar continuidade a esta pesquisa em estudos posteriores e, dessa forma, construir perfis quantitativos e qualitativos separados, o que nos

possibilitaria perceber as distinções existentes entre o perfil do colono que era soldado e daquele que ocupava um

posto oficial nas forças militares estudadas, mesmo que esses ofícios não fossem os principais na hierarquia militar

da colônia. 10 O interesse da autora por esta temática adveio da participação da mesma na Iniciação Científica, na Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó, onde

atuou como bolsista no projeto de pesquisa Populações mestiças no Seridó: demografia e relações familiares

(séculos XVIII e XIX), no decorrer de 2013 a 2015, sob orientação do professor Helder Alexandre Medeiros de

Macedo.

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no serviço militar da Capitania, bem como o lugar destinado aos mestiços na administração

militar dessa territorialidade.

O trabalho, do ponto de vista teórico-metodológico, se insere no campo da História

Social. De acordo com Hebe Castro, essa dimensão historiográfica se preocupa com as ações

humanas, coletivas e individuais, no contexto histórico em que cada sujeito viveu.11 Assim, é

possível fazer uma História Social das mestiçagens e dos sistemas administrativos coloniais,

mais especificamente da instância militar da administração colonial, uma vez que, por trás dos

cargos, por exemplo, o que se busca são os sujeitos, as vivências dos mesmos nos corpos

militares da Capitania do Rio Grande, os significados dos postos militares ocupados por esses

indivíduos, bem como as hierarquias presentes na distribuição dos postos militares, onde, por

exemplo, indígenas e negros ocupavam, sobretudo, o posto de soldado e, em contrapartida, os

colonos brancos e até mesmo os mestiços ocupavam cargos de maior importância na hierarquia

militar, como foi o caso de Antônio Gago de Oliveira.12

No que concerne à organização dos campos historiográficos, consideramos pertinentes

as elucidações do historiador Eric Hobsbawn.13 Para este teórico, não é possível fazer uma

análise do social sem se considerar, por exemplo, a própria estrutura econômica da sociedade,

tendo em vista que esses são aspectos indissociáveis do social. Isso significa dizer que o ser

humano vive em uma dada conjuntura histórica e que essas suas vivências são perpassadas por

aspectos econômicos e culturais que constituem a complexa teia das relações sociais. Portanto,

apesar de delimitarmos nossa pesquisa no campo da História Social, dialogaremos, sempre que

possível, com a História Cultural e Econômica, já que, na prática, as dimensões da vida humana

são imbricadas e, dessa maneira, não é possível examinarmos um grupo social, no caso os

mestiços que eram militares, eliminando elementos que constituíram as suas vivências diárias

de forma conjunta.

11 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (orgs.) Domínios da

História: ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 44. 12 Antônio Gago foi qualificado como trigueiro e ocupou o posto de Capitão de uma companhia do Mestre de

Campo Manuel Alves de Morais Navarro. Evidentemente que o ofício de capitão era inferior ao ofício de capitão-

mor ou de mestre de campo e, portanto, os critérios para ocupa-lo, conforme o Regimento das Ordenanças, eram

mais tolerantes com colonos que não fossem de qualidade branca, apesar de preconizar que os mesmos fossem

ocupados por indivíduos de qualidades. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1725 – Arquivo

Histórico do IHGRN. Regimento dos Capitães-Mores e mais Capitães e Oficiais das Companhias da gente de

cavalo e de pé e da ordem que terão em se exercitarem, 1570. Disponível em:

<http://www.arqnet.pt/exercito/1570capitaesmores.html>. Acesso em: 11 jan.2018. 13 HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.72-73.

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Na historiografia brasileira, as discussões sobre mestiçagens14 e sobre a forma como

esse processo foi engendrado não são recentes. Deparamo-nos com as mesmas ainda no século

XIX, mais especificamente na primeira metade do século XIX, quando Von Martius afirmou

que a escrita de uma história nacional deveria partir das singularidades do Brasil, ou seja, do

fato do mesmo ser produto da mescla de três grupos sociais distintos: índios, negros e

portugueses. Contudo, a proposta de uma história nacional partindo da unidade das três culturas

citadas por Martius não se efetivou, visto que o mesmo se recusou a escrever o que seria a

“História Geral do Brasil”. Coube a Francisco Adolfo de Varnhagen essa missão atribuída pelo

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB.15

Desse modo, Varnhagen publicou, em 1854, o primeiro volume da “História Geral do

Brasil”. Este, em sua obra, invisibilizou as tensões sociais ocorridas no período colonial e

homogeneizou a identidade brasileira, atribuindo-a apenas ao português. As poucas páginas

destinadas aos negros foram delineadas por lamentos pela presença de africanos na história

brasileira. Os índios tiveram mais espaço em seu estudo, mas foram descritos como “bárbaros”,

14 Conforme Paiva, mestiçagem deve ser entendida como um processo ocorrido em decorrência da ocidentalização

das terras da América e que remete ao cruzamento biológico e cultural dos diferentes grupos sociais que habitaram

a Ibero-América. Todavia, é pertinente salientar que o conceito de mestiçagem é relativamente recente, data do

século XIX, onde emergiu com um forte teor biológico e racial. Sendo assim, para Paiva, os historiadores, ao

empregarem este termo para interpretar as relações constituídas na colônia, precisam ser cautelosos, tendo em vista

que, apesar de ser um procedimento teórico-metodológico válido, este conceito não foi encontrado na

documentação referente a esse contexto histórico e as mesclas ocorridas nesse cenário possuíam um sentido

distinto daquele que lhe foi atribuído na segunda metade do século XIX. As mestiçagens na colônia referiam-se às

trocas biológicas, mas também aos cruzamentos culturais que resultaram em um léxico próprio e que foi

incorporado pelos habitantes desse contexto. Sendo assim, o teor evolucionista e racial voltado, especificamente,

para a questão da “cor” da pele não fez parte do modo de conceber as relações delineadas por mestiçagens nesse período, como ocorreu na segunda metade século XIX. Nesse sentido, é pertinente salientar, também, que a

sociedade colonial era marcada “naturalmente” por distinções, que se davam com base na qualidade e na condição

dos indivíduos e não simplesmente na sua “cor”. Essas distinções, segundo Paiva, eram incorporadas com

“naturalidade” pelos habitantes da colônia. Dessa forma, a qualidade mestiça de um determinado sujeito no

Setecentos, assim como a sua condição, podia indicar maior ou menor receptividade na hierarquia social desse

contexto. Um exemplo dessa assertiva são as categorias mestiças de pardo ou cabra. O termo pardo, para a

Capitania do Rio Grande, conforme percebemos nas fontes que examinamos para compor esse estudo, era uma

tipologia mestiça que denotava maior facilidade para o ingresso nos corpos militares existentes nesse território,

diferentemente, por exemplo, do termo cabra, como discutiremos no primeiro capítulo. PAIVA, Eduardo França.

Escravo e mestiço: do que estamos efetivamente falando? In.: CHAVES, Manuel f. Fernandez; GARCIA, Rafael

M. Pérez; PAIVA, Eduardo França. (Orgs.). De que estamos falando? Antigos conceitos e modernos

anacronismos – escravidão e mestiçagens. p.80. 15 É importante salientar que, apesar de Von Martius destacar a importância de se escrever a História do Brasil

com base no cruzamento de negros, índios e portugueses, o mesmo enxergou o português como sendo superior ao

índio e ao negro. Para José Carlos Reis, a proposta de uma história nacional de Von Martius era “a história de um

ramo dos portugueses”, este seria o portador de uma cultura superior, a qual os índios e negros “reagiram”

positivamente e, em decorrência disso, não poderiam ser esquecidos, ou seja, sua proposta de uma história nacional

parte da ideia de mesclas, mas sem considerar as particularidades do sujeito mestiço e colocando o português em

um patamar social superior ao índio e ao negro. REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil – de Varnhagen a

FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 26-27.

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civilizados pela bondade do português.16 Quanto aos sujeitos mestiços, a heterogeneidade

presente nesse conceito que abrigava colonos de qualidade parda, trigueira, mameluca e, dentre

outras, mulata, não foi considerada em sua “História Geral do Brasil”.17 Portanto, Varnhagen

deixou lacunas na historiografia brasileira no que concerne à sua formação social, heterogênea

e desigual.18

Parte dessas lacunas foi preenchida por Gilberto Freyre no clássico Casa Grande e

Senzala, publicado na década de 30 do século passado. Nessa obra, o autor problematizou a

formação social brasileira no contexto colonial, que, para o mesmo, ocorreu através de mesclas

biológicas e culturais efetivadas entre índios, portugueses e africanos. Segundo esse sociólogo

brasileiro, a colonização portuguesa havia sido um sucesso e as mesclas culturais e biológicas

materializavam essa vitória lusitana em seus empreendimentos coloniais. No entanto, na análise

de Freyre, o português é posto em um patamar social e cultural superior aos demais habitantes

da colônia. No capítulo dois de sua obra, por exemplo, o autor asseverou que o encontro entre

nativos e europeus foi a ocasião em que aconteceu o contato entre a “raça atrasada” e a

“adiantada”.19 Para este autor, a cultura nativa, diferentemente da portuguesa, ainda estava em

desenvolvimento. Portanto, apesar de inovadora pela metodologia utilizada, fontes e conceitos,

Casa Grande e Senzala possui limites20 no modo como trata os habitantes da colônia e seus

aspectos culturais, tendo em vista que, além de atribuir ao português e sua abertura ao outro o

caráter vitorioso das mesclas, elimina as tensões sociais ocorridas nesse contexto. Esse texto

ignora, também, a heterogeneidade das populações mestiças 21 que se constituíram com a

16 REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. p.35-45; VARNHAGEN, Francisco

Adolfo de. História Geral do Brasil: Antes de sua separação e Independência de Portugal. Tomo I. 2.ed. Rio de

Janeiro: Em Casa de E. & H. Laemmert, 1877. 17 No entanto, é importante que o lugar social do autor e a forma de se conceber História da época não sejam

desconsiderados, tendo em vista que a escrita da História está diretamente associada ao seu contexto de produção.

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In.: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 56. 18 É evidente que o lugar social de Varnhagen, a instituição da qual o mesmo fazia parte (IHGB) e o modelo de

História que estava em voga não podem ser desconsiderados no momento em que se examina sua forma de

conceber e escrever a “História Geral do Brasil”. Para mais informações sobre o lugar social deste autor ver REIS,

José Carlos. Op cit. p.23. 19 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 51.ed. Rio de Janeiro: Global, 1933, p.157. 20 Gilberto Freyre define a casa grande e a senzala como o palco das mestiçagens. No entanto, essa realidade

econômica e social não esteve presente em todo o Estado do Brasil. Na verdade, foi uma peculiaridade da zona açucareira, sobretudo da Capitania de Pernambuco. Portanto, entendemos que essa homogeneização do cenário

colonial da América Portuguesa pode ser considerada como outro limite de Casa Grande e Senzala. 21 Nacionalmente, percebemos a disseminação de estudos que buscam compreender o sujeito mestiço e seu

universo cultural em relação aos demais grupos sociais existentes na colônia em fins do século XX e início do

século XXI. Estes estudos não estão apenas preocupados em asseverar que a sociedade brasileira é produto de

mesclas, mas buscam entender como viviam os colonos que eram resultados desses intercursos culturais e

biológicos. Data desse contexto, também, as pesquisas comparativas entre a América espanhola e a portuguesa,

percebendo-se as especificidades das dinâmicas de mestiçagem em ambas as territorialidades coloniais. É neste

cenário que se inserem, por exemplo, os trabalhos do historiador francês Serge Gruzinski e do historiador brasileiro

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ocidentalização das terras da América, assim como ignora a forma como esses indivíduos

viveram o cenário histórico.

No entanto, até a publicação de Casa Grande e Senzala na década de 30 do século

passado, as mestiçagens haviam sido tratadas de forma estereotipada em decorrência das teorias

raciais e eugênicas que haviam chegado ao Brasil em fins do século XIX. Sobre esse tema,

conforme Lilia Moritz Schwarcz,22 o Brasil, em fins do século XIX e início do XX,

Era descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém, em

transição. Essas, passando por um processo acelerado de cruzamento, e depuradas mediante seleção natural (ou quiçá milagrosa), levariam a supor

que o Brasil seria, algum dia, branco.23

Além de serem tratadas de formas estereotipadas, as mestiçagens e os sujeitos mestiços

foram, também, invisibilizados nas produções historiográficas do IHGB. Conforme Manoel

Luís Guimarães Salgado,24 as produções do IHGB, fundamentadas em uma concepção de

História engendrada no século XIX e centrada em datas, “grandes acontecimentos” e “grandes

homens” definiram o Brasil como um espaço com formação social assentada apenas nos valores

da cultura europeia e do homem “branco”, aspecto evidente, por exemplo, na obra de

Varnhagen, citada acima. Isso foi, de certa forma, desconstruído por Freyre, visto que, apesar

Eduardo França Paiva. Estes historiadores, através de um diálogo entre a História Cultural e a História Social,

examinam processos de mestiçagens no contexto colonial. Eduardo França Paiva, como exemplo, em seu estudo

intitulado Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e

XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho) discutiu a heterogeneidade da sociedade mestiça que

se constituiu na América ibérica, salientando as diferenças existentes entre mestiços a partir de suas qualidades,

que possibilitavam maior ou menor inserção na dinâmica sócio histórica da época. (GRUZINSKI, Serge. O

pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das letras, 2001; PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma

história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. 286f. Tese. (Concurso para Professor Titular em História de Brasil – Departamento

de História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012). Por fim, outro estudo pertinente e

que busca discutir o sujeito “mestiço” no contexto colonial é a tese da historiadora Janaína Bezerra Santos. Neste

estudo, a autora problematizou a inserção de sujeitos mestiços, especificamente de pardos, na elite colonial de

Pernambuco, evidenciando, dessa forma, que apesar das hierarquias existentes neste contexto, pessoas de cor

conseguiram se inserir na dinâmica política, econômica e cultural da sociedade setecentista (SANTOS, Janaína

Bezerra. A fraude da tez branca: a integração de indivíduos e famílias pardas na elite colonial pernambucana

(XVIII). 2016. 323f. Tese. (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016). 22 A historiadora analisou como, no contexto de consolidação das faculdades de direito e dos institutos de pesquisas

no Brasil, as teorias raciais, importadas da Europa, foram bem aceitas e propagadas nas produções científicas de

fins do século XIX e início do XX. Nesse cenário, conforme a autora, o atraso econômico e social do Brasil era atribuído ao fato do mesmo ser “mestiço”. Nesse sentido, existia a crença, impulsionada pelas teorias raciais, de

que a sociedade brasileira passaria por um processo de transição de uma cultura mestiça para uma cultura branca.

Desse modo, é nesse contexto delineado pelas ideias de um branqueamento do “ser brasileiro” que a obra de Freyre

ganha tanta visibilidade ao positivar a mestiçagem e acalentar os corações de uma elite mestiça e por isso, apesar

dos limites existentes nesse estudo, o mesmo foi tão inovador. SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças:

cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1780-1930). São Paulo: Companhia das letras, 1993. 23 SCHWARCZ, Lilia M. Op cit. p. 16. 24 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos trópicos: o IHBG e o projeto de uma História

Nacional”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1, 1988, 5-27.

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deste sociólogo enaltecer os empreendimentos coloniais lusitanos, ele não invisibilizou as

mesclas culturais e biológicas ocorridas no contexto colonial que engendraram, na concepção

do mesmo, uma sociedade mestiça.

Quanto às produções do IHGB, a assertiva que fizemos acima acerca da valorização da

cultura europeia ganha visibilidade e consistência quando nos remetemos às obras publicadas

pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) acerca do período

colonial da Ribeira do Seridó da Capitania do Rio Grande, espaço para o qual nos voltamos de

forma qualitativa nesta pesquisa. Nesse sentido, constatamos que os trabalhos publicados até a

década de 80 do século XX por membros do IHGRN ou adeptos da concepção de História

produzida por essa instituição, como os estudos de José Augusto Bezerra de Medeiros,25 José

Adelino Dantas26 e, dentre outros, os de Olavo de Medeiros Filho,27 deixaram abertas lacunas

no que se refere ao estudo das populações mestiças que habitaram nos sertões do Rio Grande

no contexto colonial.

Esses autores, em linhas gerais, defenderam a tese de que foi a pecuária a causa do

“povoamento” da Ribeira do Seridó pelo elemento colonizador. Conforme José Augusto, o

processo de ocupação dessa territorialidade colonial teve início apenas em fins do século XVII,

“quando da guerra dos bárbaros [...], o homem civilizado exterminou os selvagens que

habitavam as margens do rio Açu [...]”.28 Para este mesmo autor, a pecuária, além de possibilitar

o “povoamento” dos sertões, permitiu também que “os fundadores das grandes famílias”29 se

instalassem nesse território colonial e aí constituíssem suas parentelas. O que José Augusto

define como as grandes famílias dialoga com o que Medeiros Filho define como sendo as

25 MEDEIROS, José Augusto Bezerra de. Seridó. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. 26 DANTAS, José Adelino. O coronel de milícias Caetano Dantas Correia – um inventário revelando um

homem. Natal: CERN, 1977. 27 Com relação a Olavo de Medeiros Filho, é possível perceber que não existe uma linearidade nas produções deste

pesquisador no que concerne à forma como este analisou os habitantes da Ribeira do Seridó. Dessa forma, é

possível perceber que, em um primeiro momento, mais especificamente nos anos de 1981 e 1983, quando publicou

Velhas Famílias do Seridó e Velhos inventários do Seridó, Medeiros Filho estava preocupado diretamente com a

análise genealógica das famílias de qualidade branca. No entanto, já em 1984, quando publicou a obra Índios do

Açu e Seridó é perceptível um rompimento com essa postura historiográfica, tendo em vista que este historiador

colocou os índios dos sertões como protagonistas de suas análises, buscando entender quem eram e como se

organizavam socialmente e culturalmente. Essa mesma ressalva deve se estender ao que se refere aos estudos

produzidos sobre a administração militar na Capitania do Rio Grande, visto que na obra Aconteceu na Capitania do Rio Grande e mesmo em Índios do Açu e Seridó Medeiros Filho buscou tecer breves considerações acerca da

administração militar no Rio Grande. Exercício semelhante foi feito em Velhos Inventários do Seridó, quando

Medeiros Filho abordou a existência de companhias de ordenanças da Ribeira do Seridó. MEDEIROS FILHO,

Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1981; MEDEIROS FILHO,

Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1983; MEDEIROS FILHO,

Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado 1984; MEDEIROS FILHO, Olavo de.

Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997. 28 MEDEIROS, José Augusto Bezerra de. Seridó p.15. 29 Ibid., p.24.

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Velhas famílias do Seridó, que, em suma, eram pessoas de qualidade branca, oriundas de

Portugal ou descendentes de portugueses. Nessas obras, os negros são vistos apenas como bens

semoventes e os indígenas, especificamente no estudo de José Augusto, como “selvagens”

exterminados na Guerra dos Bárbaros. Quanto ao colono mestiço, este sequer aparece nesses

estudos, que consideram somente as famílias de qualidade branca e portadoras de cabedal,

expresso na posse de terras e escravos.30

Essa mesma tese acerca do “povoamento” da Ribeira do Seridó e da sua demografia está

presente na obra de José Adelino Dantas. Todavia, este autor, diferentemente dos demais,

preocupou-se com a análise apenas da genealogia dos Dantas, da qual era descendente. José

Adelino Dantas, em sua obra, reconstituiu a genealogia de Caetano Dantas Corrêa e neste

exercício buscou salientar que o tronco da família Dantas era descendente de português. Ainda

de acordo com esse autor, Caetano Dantas Corrêa havia sido casado com uma também

descendente de português, Josefa de Araújo Pereira, desfazendo, dessa forma, “a velha lenda,

segundo a qual Caetano teria desposado uma índia”.31 Em sua obra, o caráter português da

ascendência Dantas é compreendido como algo relevante e que demonstra a qualidade de

Caetano Dantas, “desbravador e sentinela do sertão de outrora”.32

Os sujeitos mestiços, assim como os demais grupos sociais que habitaram a Ribeira do

Seridó, passaram a ser considerados em estudos recentes produzidos no âmbito da academia.

Dentre esses, citamos os trabalhos Cláudia Cristina do Lago Borges,33 Muirakytan Kennedy de

30 Contudo, fazemos a mesma ressalva que realizamos em nota anterior, onde destacamos que é preciso ter cautela

ao realizar uma análise historiográfica, visto que não é possível dissociar o pesquisador de seu lugar social e

institucional. Portanto, não podemos exigir que Medeiros Filho e outros autores citados nesse texto tenham as

mesmas preocupações historiográficas que possuímos hoje, uma vez que a história enquanto produção é filha de sua época e de sua forma de conceber a vida e o outro. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In.:

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p.56. 31 DANTAS, José Adelino. O coronel de milícias Caetano Dantas Correia – um inventário revelando um

homem, p.11. 32 Ibid., p.10. 33 A historiadora, em linhas gerais, discutiu a escravidão na Ribeira do Seridó e, por fim, examinou a Irmandade

de Nossa Senhora do Rosário dos Homens pretos. BORGES, Cláudia Cristina do Lago. Cativos do Sertão: um

estudo da escravidão no Seridó, Rio Grande do Norte. 2000. 131p. Dissertação (Mestrado em História).

Universidade Estadual Paulista. Franca, SP.

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Macêdo 34 e Helder Alexandre Medeiros de Macedo. 35 Damos ênfase, especialmente, ao

trabalho de Helder Macedo. Este autor, em sua tese de doutorado intitulada Outras famílias do

Seridó: genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX) examinou

genealogias mestiças na Freguesia do Seridó no decurso do século XVIII e dos primeiros anos

do século XIX, problematizando a trajetória de vida de três homens cujas descendências

tiveram, majoritariamente, presença de elementos não-brancos: Nicolau Mendes da Cruz,

Feliciano da Rocha de Vasconcelos e Francisco Pereira da Cruz. Os estudos de Helder Macedo

são pioneiros no que concerne à análise da temática das mestiçagens na Capitania do Rio

Grande, espaço para o qual constatamos um avanço significativo nas pesquisas realizadas

acerca do período colonial nos últimos anos.

Sobretudo entre 2015 e 2018, houve um avanço expressivo nas pesquisas desenvolvidas

acerca do contexto colonial da Capitania do Rio Grande no interior do Programa de Pós-

Graduação em História da UFRN. Esses trabalhos, em linhas gerais, buscaram examinar o

processo de territorialização do Rio Grande e a institucionalização e funcionamento de

instâncias da administração lusitana instaurada nesse território colonial. 36 Portanto, nosso

trabalho se insere nesse quadro de produção historiográfica sobre o período colonial no Rio

Grande e busca preencher lacunas referentes aos sujeitos mestiços que habitaram nesse cenário

histórico.

Nessa perspectiva, buscamos examinar o sujeito mestiço inserido em uma instituição

colonial específica: a militar. Estudos referentes à presença de colonos mestiços e/ou colonos

de qualidade negra/preta na instância militar da administração colonial e com os quais

dialogaremos ao longo desta dissertação já foram produzidos para as Capitanias de

34 As contribuições de Muirakytan Macêdo sobre o período colonial da Ribeira do Seridó, sertões da Capitania do

Rio Grande, são significativas. Em A penúltima versão do Seridó, o historiador discutiu de forma contundente o

processo de territorialização dos sertões no primeiro capítulo. Já em sua tese de doutorado, intitulada Rústicos

cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do Seridó (Séc. XVIII), examinou o cotidiano nos sertões,

problematizando, dentre outros elementos, aspectos da estrutura familiar e do cabedal dos colonos que habitavam

esse espaço, delineado economicamente pela prática da pecuária e da agricultura de subsistência. MACÊDO,

Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense. Natal: Sebo Vermelho, 2005. Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do

Seridó (Séc. XVIII). 2007. 286f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. 2007. 35 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: história

e mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó:

genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). 2013. 360f. Tese (Doutorado em

História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. 36 Ver Apêndice A – Lista de trabalhos recentes sobre a territorialização e institucionalização de espaços

administrativos relativos à Capitania do Rio Grande do Norte.

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Pernambuco,37 Minas Gerais38, São Paulo39 e, dentre outras, do Ceará.40 Porém, quanto à

Capitania do Rio Grande, deparamo-nos com lacunas não apenas nas pesquisas que tratam da

temática das mestiçagens, mas também com estudos que se proponham a examinar a

institucionalização e sistematização da administração militar nesse território colonial. Essa

mesma ausência de pesquisas sobre a institucionalização da administração militar permanece

também na Ribeira do Seridó, sertões desta Capitania.41

Acerca da administração militar do Rio Grande, na historiografia produzida no século

passado, deparamo-nos com três pesquisas que têm como objetos de estudos aspectos da

administração militar, como as obras Capitães-mores e Governadores do Rio Grande do

Norte42 (volume I e II), de Vicente de Lemos e Tarcísio Medeiros, e a História da Fortaleza da

Barra do Rio Grande,43 de autoria de Hélio Galvão. O estudo de Vicente Lemos e Tarcísio

Medeiros,44 em síntese, discute o oficio de capitão-mor na Capitania do Rio Grande, elencando,

dentre outros aspectos, dados biográficos dos capitães-mores que atuaram na Capitania entre os

séculos XVII, XVIII e a década de 20 do século XIX. Tanto o volume I quanto o II são obras

descritivas, que elucidam os feitos dos capitães-mores durante seus governos. O volume I,

sobretudo, discute os limites deste ofício no espaço em estudo. Já o estudo de Hélio Galvão se

preocupa principalmente com a história da Fortaleza dos Reis Magos, definida pelo autor como

Fortaleza da Barra do Rio Grande. Nesse sentido, o autor discute, dentre outros elementos, o

processo de construção da Fortaleza, salientando o caráter vagaroso dessa edificação que se

37 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar na Conquista do Sertão

de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. Tese. (Doutorado em História). UFPE, 2003. 38 COSTA, Ana Paula pereira. Corpos de Ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735-

1777). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014; COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: políticas da ordem

e o universo militar nas Minas setecentista. 2004. 307 f. Tese. (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. 39 LEONZO, Nanci. As companhias de ordenanças na capitania de São Paulo. 1975. 150 f. Dissertação

(Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São

Paulo. 40 GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. 41 Com exceção dos trabalhos de Olavo de Medeiros Filho, como já afirmamos em nota anterior. Entendemos, na

verdade, que Medeiros Filho foi percussor dessa discussão na Ribeira do Seridó, visto que mesmo não tendo a

administração militar como objeto de análise teve a preocupação de tecer breves considerações sobre essa

instituição colonial em suas pesquisas. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília:

Centro Gráfico do Senado Federal, 1983; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro

Gráfico do Senado 1984. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridonese. Mossoró: Fundação Guimarães Dutra/Fundação Vingt-Um Rosado, 2002. 42 LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal

do Commercio de Rodrigues & C, 1912. v.1; LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e

governadores do Rio Grande do Norte. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980.

v.2 43 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. Rio de Janeiro: Conselho Federal de

Cultura, 1979. 44 O segundo volume da obra Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte foi iniciada por Vicente

Lemos. Todavia, em decorrência do falecimento do mesmo, foi concluída por seu neto, Tarcísio Medeiros.

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estendeu até a década de 30 do século XVII bem como as dificuldades presentes nas vivências

diárias dos soldados e dos oficiais que guarneceram nessa fortificação inacabada na primeira

metade do século XVIII.

Esses estudos, fundamentados também em uma concepção de História engendrada no

século XIX centrada em datas, “grandes acontecimentos” e “grandes homens” não se

preocuparam, evidentemente, em discutir a sistematização da administração militar no espaço

em estudo e nem o perfil social dos soldados e dos oficiais que atuaram no contexto colonial da

Capitania do Rio Grande.

Ainda com relação à administração militar no Rio Grande, recentemente, foram

produzidas duas dissertações de mestrado no Programa de Pós-Graduação de História da UFRN

que também abordam aspectos dessa instituição colonial na Capitania do Rio Grande. Foram

os trabalhos de Marcos Arthur Viana da Fonseca45 e Leonardo Paiva de Oliveira.46 Ambas as

pesquisas apresentam contribuições significativas acerca do oficio de capitão-mor na Capitania,

inclusive, no caso do trabalho de Oliveira, percebendo o perfil e a trajetória dos capitães-mores

tanto do Rio Grande quanto do Ceará.

Portanto, nosso estudo, em contato com essa bibliografia, propõe-se a discutir algumas

questões que consideramos pertinentes e que ainda não foram abordadas nas pesquisas

produzidas sobre o contexto colonial do Rio Grande, como, por exemplo: Qual o perfil social

dos soldados dos corpos militares existentes no Rio Grande? Qual o lugar ocupado pelo colono

mestiço em relação aos demais colonos no serviço militar da Ribeira do Seridó? Como ocorreu

o processo de institucionalização e sistematização da administração militar na Capitania do Rio

Grande e nos sertões da mesma? Como viviam os soldados que guarneceram na Fortaleza dos

Reis Magos na segunda metade do setecentos? O que motivou os pedidos de dispensas e as

fugas efetivas pelos militares do Rio Grande? Existia alguma semelhança entre o perfil dos

militares que guerrearam na Guerra dos Bárbaros com o perfil da gente de guerra que

permaneceu no serviço militar após a Guerra dos Bárbaros? Qual a relação existente entre a

administração militar e a construção de territórios coloniais na Ribeira do Seridó?

45 FONSECA, Marcos Arthur Viana da. Sob a sombra dos governadores de Pernambuco? Jurisdição e

administração dos Capitães-mores da Capitania do Rio Grande (1701-1750). 2018, 194 f. Dissertação (Mestrado

em História). Universidade Federal do rio Grande do Norte, Natal. 46 OLIVEIRA, Leonardo Paiva de. Capitães-mores das Capitanias do Norte: Perfis, trajetórias e hierarquias

espaciais no Rio Grande e Ceará (1656-1755). 2018, 166 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade

Federal do rio Grande do Norte, Natal.

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Para a construção dessa análise, principalmente do perfil social dos soldados, dois

conceitos foram determinantes: qualidade e condição. Para Eduardo França Paiva,47 o conceito

de qualidade, antes de ser empregado na América colonial, havia sido utilizado na Europa

durante o Antigo Regime para distinguir os “homens bons”, de qualidades - não possuíam

sangue infecto ou defeito mecânico - daqueles que não eram providos de qualidades. Todavia,

segundo esse autor, quando esse conceito foi importado para o Novo Mundo teve o seu

significado ampliado, passando a designar, além da origem e/ou religião, o fenótipo dos

indivíduos. Assim, qualidade passou a abranger todos os indivíduos, mas alguns possuíam

qualidades que faziam com que fossem tidos como “homens bons” (homem branco, cristão e

portador de cabedal) e outros possuíam qualidades que os colocavam em uma escala social

inferior (mestiços, negros, judeus e, dentre outros elementos, defeito mecânico). Sendo assim,

a qualidade hierarquizava e distinguia os habitantes da Ibero-américa, elucidando o lugar que

cada habitante desse contexto deveria ocupar na dinâmica sócio histórica da época.

Como afirmamos no início desse texto, apesar de a qualidade ser um fator de

diferenciação e hierarquização, a partir de um conjunto de elementos indivíduos que não eram

tidos como “homens bons” em decorrência de suas qualidades conseguiram se inserir na

dinâmica social e econômica da colônia. Em se tratando da instituição militar, temos o clássico

exemplo de Henrique Dias, negro e ex-escravo que recebeu a patente militar de mestre-de-

campo e foi condecorado com a Cruz da Ordem de Cristo devido aos serviços militares

prestados à Coroa quando da ocupação holandesa. Assim, buscamos, em nosso estudo, a partir

do conceito de qualidade, observar o perfil quantitativo dos homens que ingressavam no serviço

militar do Rio Grande com ênfase no perfil do colono mestiço residente na Ribeira do Seridó.

O conceito de qualidade é amplo e o estamos considerando em nosso texto para nos

referirmos não apenas ao que hoje seria compreendido como sendo a “cor” da pele de um

indivíduo. Em nosso texto, quando empregamos esse termo, estamos nos remetendo a um

conjunto de elementos presentes na documentação que compulsamos e que eram listados na

ocasião em que o colono se matriculava no serviço militar. Como exemplo, apresentamos o

caso de Antônio Freitas da Costa, filho de Dionísio Freitas, natural da Capitania do Rio Grande,

que assentou praça de soldado aos 34 anos de idade em 13 de maio de 1735 e foi descrito na

documentação examinada da seguinte forma: “homem pardo, estatura alta, seco do corpo, cara

comprida, olhos pardos, com os dentes de antes da parte de cima menor, com um sinal de ferida

47 PAIVA, Eduardo França, Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 17.

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acima da sobrancelha direita; sobrancelhas abertas”.48 Essa descrição de Antônio Freitas da

Costa compreendemos como sendo sua qualidade.49

O conceito de condição também foi discutido por Paiva. De acordo com este autor, esse

termo era empregado na América colonial para designar a situação jurídica de um indivíduo,

que, nesse contexto, podia ser classificado nas fontes judiciais de três formas: livre, liberto e

escravo.50 Os conceitos de qualidade e condição nos possibilitaram perceber as distinções

sociais existentes na sociedade colonial e entender, dessa forma, como essas distinções eram

experienciadas no serviço militar do espaço em estudo.

Outros conceitos pertinentes para construção desse estudo foram o de espaço e o de

território. Entendemos, em diálogo com as discussões desenvolvidas pelo geógrafo Antonio

Carlos Robert de Morais,51 que as investidas coloniais para ocupação das terras americanas

resultaram na construção de espaços. Para este autor, o espaço produzido é resultado das ações

humanas em um dado contexto histórico e resulta em um conjunto de objetos que refletem as

intencionalidades dos agentes envolvidos nesse processo histórico. A definição de espaço

produzida por este autor dialoga com a concepção de espaço do geógrafo brasileiro Milton

Santos,52 para o qual o espaço é uma construção humana e histórica.

De acordo com Santos, o território53 pode ser compreendido como sendo sinônimo do

espaço habitado, do espaço humano. Para o mesmo, essa categoria espacial só pode ser

examinada por meio do seu uso. É o uso do território que o torna objeto de análise social,

portanto, assim como o espaço, o território só pode ser problematizado através das ações do

sujeito. Entretanto, entre território e espaço não existe homogeneidade, mas sim unidade, tendo

em vista que o espaço contém o território. Nesse sentido, a configuração territorial seria parte

do espaço, constituinte deste. De forma mais objetiva, o território é produto da ação humana

sobre determinada espacialidade, que resulta em uma configuração que materializa as

intencionalidades dos agentes históricos envolvidos nesse processo. Para Morais, em se

48 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 49 Esse conceito, ao longo do capítulo primeiro e segundo dessa dissertação, foi essencial para discutirmos não

apenas o perfil social do colono que ingressava no serviço militar, mas também para percebermos as hierarquias

existentes na instituição militar instaurada no Ultramar, que delegava, sempre que possível, os postos oficiais e patentes a colonos de qualidade branca. 50 PAIVA, Eduardo França, Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 176. 51MORAIS, Antonio Carlos Robert de. A questão do sujeito na produção do espaço. In: MORAIS, Antonio Carlos

Robert de. Ideologias geográficas. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 15-26. 52 SANTOS, Milton. A natureza do espaço – Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 53 SANTOS, Milton. O retorno do território. OSAL: Observatorio Social de América Latina, Buenos Aires, v.

6, n. 16, jun. p. 249-261. 2005. Disponível em:<

<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf>.

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tratando do espaço colonial, Portugal funcionava como um centro difusor de instituições e

homens que eram responsáveis pela territorialização54 das terras americanas. Nesse processo,

Igreja e Estado trabalharam de forma conjunta e, em decorrência disso, os espaços coloniais

foram delineados por limites administrativos de ambas as instituições, que na prática se

imbricavam e constituíam o que seria definido por Santos como sendo território usado ou,

simplesmente, território.

Partindo desses pressupostos, o conceito de espaço nos foi útil para discutirmos, dentre

outros elementos, o processo de territorialização da Ribeira do Seridó, percebendo, dessa

maneira, como esse espaço foi apropriado pelo colonizador após a Guerra dos Bárbaros e como

a ocupação do mesmo foi ocorrendo de forma efetiva através da edificação de instituições

coloniais e dos requerimentos de sesmarias. Esses últimos foram efetivados, inclusive, por

colonos que eram militares e que haviam guerreado em prol dos interesses da Coroa no conflito

bélico citado bem como em prol de seus próprios interesses, representados, por exemplo, pelo

desejo de obtenção de terras e patentes militares por seus feitos bélicos.

Um conjunto de fontes diversas possibilitou a realização deste estudo. Foram essenciais

para construção desse trabalho os assentos de praça e baixas, localizados no IHGRN. Essa

documentação, riquíssima para quem deseja entender o perfil quantitativo e qualitativo dos

soldados que viveram no contexto colonial, em linhas gerais, apresenta o nome do colono que

se alistou no serviço militar, o ano em que esse assento ocorreu, a idade, filiação, naturalidade,

condição e qualidade do soldado em questão. Nos assentos é listada, ainda, a companhia à qual

o soldado matriculado pertencia, a data do ingresso no serviço militar, valor dos soldos

recebidos, quando se tratava de tropas de linha e, dentre outras informações, a data em que o

soldado recebeu baixa e a causa dessa dispensa no serviço militar. Esses dados não estão

presentes em todos os assentos e nem se aplicam a todos os colonos. Conforme discutiremos

no segundo capítulo, a descrição do colono ocorria em consonância com a sua qualidade. Essa

documentação de caráter militar foi primordial para a construção da análise do perfil social do

colono que assentou praça na Capitania do Rio Grande. No total, foram catalogados 1.834

registros que correspondem a assentos e/ou baixas no serviço militar do Rio Grande.55 Contudo,

54 Territorialização, para o geógrafo Rogério Haesbaert, constitui o processo de construção de territórios sobre

determinada espacialidade. Portanto, territorialização corresponde às ações utilizadas pelos grupos humanos

envolvidos no processo de construção de territórios. No caso do cenário colonial, em se tratando da Capitania do

Rio Grande, a construção da Fortaleza dos Reis Magos, por exemplo, foi um mecanismo utilizado pelos agentes

da conquista para garantir que aquele espaço fosse territorializado por Portugal. Portanto, a Fortaleza é ao mesmo

tempo produto da territorialização e elemento que possibilita esse processo. HAESBAERT, Rogério. Territórios

Alternativos. São Paulo: Contexto, 2006. 55 Os dados catalogados nessa documentação foram organizados em um banco de dados construído no Microsoft

Access pelo professor Helder Macedo.

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não foi possível examinar nesse estudo todos esses assentos e/ou baixas. Desse modo, no

segundo capítulo analisaremos o total de 414 registros e no capítulo seguinte o total de 462

registros, o que contabiliza 876 assentos e/ou baixas. Portanto, ainda existe uma quantidade

significativa de assentos que poderão ser analisados em estudos posteriores, inclusive de forma

cruzada com outras fontes que abordam aspectos da administração militar, como, por exemplo,

as cartas patentes.

Os assentos de praça e baixas, especialmente, foram examinados nos capítulos segundo

e terceiro através dos pressupostos metodológicos da História serial e quantitativa. Para o

historiador francês Pierre Chaunu, a História serial pressupõe a utilização de fontes maciças

que possuem certa homogeneidade na forma de organizar seus dados, uma vez que são esses

elementos que permitem que o pesquisador serialize as informações ali presentes para, dessa

forma, identificar as regularidades, os ciclos e os padrões presentes em dado contexto

histórico.56 François Furet,57 em concordância com Chaunu, seu contemporâneo, afirmou que

a História serial só tem sentido se for conduzida a longo prazo, visto que só assim o pesquisador

conseguirá distinguir regularidades e estabelecer comparações. Portanto, na concepção dos

historiadores citados, a História serial é uma forma de compulsar as fontes com certo nível de

homogeneidade em um recorte temporal de longa duração.

Partindo desse pressuposto, a escolha por esta metodologia ocorreu em contato com a

própria documentação militar que catalogamos, onde observamos que possuíamos uma

documentação ampla, referente aos séculos XVII, XVIII e XIX e que a mesma continha

padrões, regularidades e que, em decorrência desses aspectos, podíamos, fundamentados na

História serial, examinar esses padrões e quantificá-los. Conforme Furet, a História serial não

implica na quantificação, na representação matemática das informações catalogadas na

documentação analisada. Em contrapartida, os procedimentos da história quantitativa implicam

na elaboração de séries esse tipo conteúdo numérico. Assim, essas duas metodologias podem

ser utilizadas de forma associada, ainda que reconheçamos as suas especificidades.

Para o historiador citado, a “ambição ao mesmo tempo mais geral e mais elementar da

História quantitativa é constituir o fato histórico em séries temporais de unidades homogêneas

e comparáveis, e poder assim medir a sua evolução por intervalos de tempo dados, em geral

anuais”. 58 Assim, para Furet, um dos aspectos que irá diferenciar esses mecanismos

56 CHAUNU, Pierre. Os novos domínios da História Serial. In.: SILVA, Maria Beatriz Nizza (org.). Teoria da

História. Editora Cultrix, 1976. p. 68-69. 57 FURET, François. A História quantitativa e a construção do fato histórico. In.: SILVA, Maria Beatriz Nizza

(org.). Teoria da História. Editora Cultrix, 1976. p. 85. 58 Ibid., p.76.

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metodológicos do fazer historiográfico é a quantificação do fenômeno histórico. A História

quantitativa pretende observar a realidade a partir da noção de números, de valores que podem

ser representados graficamente, por meio de recursos matemáticos. Dessa forma,

fundamentados nesses caminhos metodológicos, buscamos perceber regularidades e

descontinuidades no perfil social dos soldados e dos oficiais do Rio Grande ao longo do recorte

temporal estudado, enfatizando os militares com qualidade mestiça.

A documentação do Arquivo Histórico Ultramarino também foi fundamental para a

análise da relação estabelecida as autoridades locais e o reino no que concerne, sobretudo, ao

estudo da situação à qual estavam submetidos os soldados e oficiais que guarneceram na

Fortaleza dos Reis Magos na segunda metade do século XVII. Essa documentação, juntamente

com os seguintes relatórios: Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua

Magestade tem na Costa do Brasil e o Livro que dá razão do Estado do Brasil, de autoria de

Diogo de Campos Moreno,59 militar que esteve no Estado do Brasil à serviço da Coroa na

primeira metade do Seiscentos, foi fundamental, também, para a análise do processo de

institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande ao longo do recorte

temporal estudado. Essa documentação, assim como os assentos de praça, foi examinada de

forma quantitativa e qualitativa.

Em consonância com esse corpus documental, as fontes disponíveis de forma online na

Biblioteca Nacional,60 assim como as fontes paroquiais61 e judiciais presentes no Laboratório

de Documentação Histórica – LABORDC do Ceres da UFRN foram essenciais para que este

estudo ganhasse forma. No caso específico das fontes paroquiais (livros de batizado – 1803-

1845; casamento – 1788-1849; óbito – 1788-1857) e judiciais (inventários post-mortem – 1737-

1830; Cartas de alforrias – 1792-1814), elas foram utilizadas, sobretudo, para o estudo

qualitativo dos mestiços que estavam inseridos na administração militar da Capitania do Rio

Grande e que eram residentes nos sertões da mesma. Essa documentação, por meio de um

cruzamento de dados, possibilitou-nos reconstruir aspectos da trajetória de vida de Manoel de

Souza Forte e Manoel Guedes do Nascimento, mestiços residentes na Ribeira do Seridó que

serão examinados de forma minuciosa ao longo do terceiro capítulo.

59 Sobre Diogo de Campos Moreno, ver Apêndice B. 60 Com relação à documentação disponível na Biblioteca Nacional, utilizamos, até o momento, apenas o volume

12, referente às patentes e provisões dos anos de 1668 a 1677. Patentes e Provisões. Documentos Históricos da

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. XII,1668-1677. 61 Os registros de batismo, matrimônio e óbito estão disponíveis na Casa Paroquial São Joaquim, localizada no

município de Caicó. Essa documentação já foi digitalizada e catalogada nos projetos de pesquisas dos professores

Muirakytan Kennedy de Macêdo e Helder Alexandre de Macedo e, atualmente, estão disponíveis de forma digital

no LABORDOC e no site da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (https://www.familysearch.org).

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Para a análise da trajetória de vida desses mestiços, utilizamos o método onomástico

proposto por Carlo Ginzburg e Carlo Poni. De acordo com estes autores,62 o nome é o que existe

de mais singular em um indivíduo e, por isso, podemos utilizá-lo como fio condutor de uma

pesquisa histórica. Segundo esses historiadores, ao examinarmos um conjunto documental

diverso e ao nos deparemos com um mesmo sujeito em ocasiões distintas, o que nos permitirá

levantar a hipótese de que se trata do mesmo sujeito é o nome. Evidentemente que outros

elementos devem ser considerados, como o local de moradia, a idade e, dentre outros a

qualidade, mas o nome é o que torna aquele indivíduo singular.

Ainda no que concerne aos aspectos metodológicos desse estudo, nossa dissertação foi

estruturada através de um intercurso de escalas espaciais. Isso significa dizer que, ao

examinarmos a relação existente entre administração militar e a construção de territórios

coloniais na Ribeira do Seridó, consideraremos pertinente problematizar também o modo como

ocorreu a institucionalização da administração militar na própria Capitania do Rio Grande

devido às lacunas existentes tanto na historiografia clássica quanta na produzida recentemente,

na academia, sobre essa temática. Consideramos importante, ainda, examinar quantitativamente

o perfil social dos soldados e oficiais que guarneceram o Rio Grande assim como as

dificuldades presentes no cotidiano desses colonos para, dessa forma, entender o lugar do

mestiço nesse espaço macrossocial. Portanto, ao longo de todo o nosso texto, examinaremos de

forma quantitativa a Capitania do Rio Grande, espaço que entendemos como macro, e de forma

qualitativa a Ribeira do Seridó, espaço que definimos como micro, percebendo as

singularidades da relação existente entre administração militar, construção de territórios

coloniais e trajetórias de vidas de militares mestiços.

Sobre esse intercurso de escalas espaciais, de acordo com Jacques Revel, historiador

francês, em uma análise histórica, “é o princípio da variação que conta, não a escolha de uma

escala em particular”. 63 visto que a troca de escalas não consiste, apenas, em representar um

dado histórico em tamanho maior ou menor, mas sim em uma escolha metodológica que torna

possível a análise daquilo que é representável em escala maior ou menor. Além disso,

entendemos que uma análise micro histórica deve ocorrer em contato com o macro, visto que,

por mais particular que seja uma realidade, a mesma faz parte uma situação histórica mais ampla

que possibilita, inclusive, que a mesma seja engendrada.

62 GINZBURG. Carlo; PONI, Carlo. “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”. In.: A micro-

história e outros ensaios. Lisboa: Difel: Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169-78. 63 REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In.: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a

experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 20.

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Quanto aos capítulos, ao longo do primeiro capítulo, intitulado Institucionalização da

administração militar na Capitania do Rio Grande (século XVII), discutimos como ocorreu o

processo de institucionalização da administração militar nesse espaço macro-social e histórico

examinado. Desse modo, discutimos como ocorreu a construção da Fortaleza dos Reis Magos

na Cidade do Natal, quantas e quais forças militares existiam no Rio Grande ao longo do recorte

temporal estudado e como era a situação do efetivo militar desse espaço quando comparado

com outras Capitanias do Estado do Brasil. Por fim, dentre outros aspectos, abordamos também

a situação precária na qual viviam os soldados e oficiais da tropa paga atuante na Fortaleza dos

Reis Magos na segunda metade do Seiscentos e como essa situação militar precária não era uma

particularidade da Capitania do Rio Grande, mas sim uma realidade que afetou outras capitanias

do Estado do Brasil.

Já no segundo capítulo, intitulado Índio forro, tapuias, pardos, trigueiros e mulatos:

composição das tropas coloniais da Capitania do Rio Grande na Guerra dos Bárbaros (1698-

1725), problematizamos o perfil social e quantitativo dos soldados e oficiais que guerrearam na

Capitania no contexto da Guerra dos Bárbaros, destacando as singularidades desse contexto

histórico, no que concerne à composição social das forças militares atuantes. Nesse capítulo,

abordamos também o lugar ocupado pelo índio nas forças militares do Rio Grande,

especialmente o Terço dos Paulistas, e salientamos que, apesar dos nativos serem

quantitativamente superiores aos militares de qualidade branca e mestiça, esses não

conseguiram obter um tratamento igual a esses militares, visto que, diferentemente destes,

ocuparam majoritariamente o posto de soldado e receberam apenas meio soldo pelos serviços

militares prestados à Coroa. Por fim, discutiremos a relação existente entre a administração

militar e a construção de territórios coloniais, onde salientamos o papel da instituição militar

não apenas enquanto uma força de guerra, mas também enquanto uma instituição que era

composta por homens que, além de militares, eram sesmeiros e possuíam interesse pelas terras

ocupadas pelos índios dos sertões. Essa relação entre administração militar e territorialização

foi realizada tendo como base o processo de ocupação territorial da Ribeira do Seridó.

Quanto ao terceiro capítulo, intitulado Caracterização social de militares mestiços da

Capitania do Rio Grande, 1726-1820, abordamos o quadro organizacional das forças auxiliares

e regulares do Rio Grande ao longo do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, com

ênfase na composição social dessas forças militares. Procuramos perceber, dessa forma, o lugar

social ocupado pelos mestiços nessa instituição colonial bem como o modo como as forças

militares do Rio Grande se expandiram após a Guerra dos Bárbaros e como os mestiços estavam

presentes tanto nas forças regulares quanto nas auxiliares da Capitania. Em consonância com

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isso, discutiremos trajetórias de vidas mestiças, com ênfase em dois mestiços, Manoel de Souza

Forte e Manoel Guedes do Nascimentos. Ambos eram membros das ordenanças da Ribeira do

Seridó, mas ocuparam posições distintas tanto nesse corpo militar quanto na sociedade colonial

em que viveram. Além desses mestiços, citamos o caso da ex-escrava parda, Catarina Maria de

Jesus, que conseguiu, através do matrimônio, obter sua alforria, acumular cabedal e torna-se

uma senhora de escravos. O caso de Catarina, juntamente com o dos mestiços citados acima, é

representativo de como, apesar da sociedade colonial ter como fundamento a desigualdade, com

base na qualidade e condição de seus habitantes, era possível fazer uso de diferentes estratégias

(matrimônio, embranquecimento e, dentre outras, acúmulo de cabedal) para ascender

socialmente e romper, desse modo, com aquilo que estava posto oficialmente pela legislação

colonial, que destinava apenas a alguns homens a obtenção de prestígio social, por meio do

ingresso em instituições coloniais.

Por fim, dentre outros aspectos, esperamos que esse estudo possibilite vislumbrar o

perfil social dos soldados e oficiais que constituíram os corpos militares existentes na Capitania

do Rio Grande ao longo do recorte temporal estudado, e, sobretudo, o lugar do mestiço nessa

instituição militar instaurada no ultramar no processo de conquista e territorialização das terras

da América.

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2 INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO MILITAR NA CAPITANIA DO

RIO GRANDE (SÉCULO XVII)

Este capítulo será destinado à análise do processo de institucionalização da

administração militar na Capitania do Rio Grande ao longo do século XVII. Dessa maneira, ao

longo do mesmo, discutiremos como ocorreu a emergência da instituição militar no Rio Grande

e como estava organizado o efetivo que guarneceu na Fortaleza dos Reis Magos nesse contexto.

Em consonância com isso, discutiremos as dificuldades vivenciadas pela tropa de linha

que era responsável pela defesa da capitania e que guarnecia na Fortaleza na segunda metade

do seiscentos. Entendemos que essa discussão é pertinente visto que, como abordamos na

introdução, estudos que discutem a temática militar na Capitania do Rio Grande são incipientes.

Assim, acreditamos que a nossa pesquisa pode preencher algumas dessas lacunas existentes na

historiografia produzida sobre o período colonial do Rio Grande do Norte.

Por fim, consideramos importante iniciar nossa discussão tecendo breves considerações

acerca de cada corpo militar atuante na Capitania do Rio Grande e que, na prática, constituíam

a instituição militar existente no Estado do Brasil ao longo do contexto colonial. Dessa forma,

a seguir, passaremos a problematizar a definição desses corpos militares e em quais aspectos

esses se aproximavam, no que concerne ao modo como eram providos e organizados

hierarquicamente.

2.1 Tropas regulares e auxiliares: definição, aproximações e distinções

O serviço militar no Estado do Brasil estava dividido em três corpos: as tropas de linha,

as ordenanças e as milícias.64 Essas últimas eram consideradas tropas auxiliares, ou seja, tropas

não pagas, permanentes e estáveis. As ordenanças e as milícias, em contrapartida das tropas de

linha, eram corpos militares institucionais, regidos pelo Estado português, mas sem o auxílio

financeiro das capitanias onde atuavam. 65 Portanto, eram distintas, também, dos bandos

particulares, como as tropas de escravos, bandeiras e, dentre outras, as companhias de índios,

64 Segundo Francis Cotta, esses corpos militares trabalhavam de forma integrada no contexto colonial. De acordo com o mesmo, essa integração das forças militares coloniais as caracterizam como um Sistema Militar

Corporativo. Todavia, essa articulação não implicava em perda da autonomia e das especificidades de cada corpo

militar. Para o caso da Capitania do Rio Grande, uma ocasião em que as forças militares atuaram de forma

integrada foi a Guerra dos Bárbaros, onde tropas pagas e forças auxiliares trabalharam de forma conjunta contra

as forças nativas dos sertões. COTTA. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte:

Crisálida, 2010. p.35. 65 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação

de Cultura Cidade do Recife, 2001. p. 79.

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que, na prática, atuavam como tropas auxiliares, mas não possuíam nenhum vínculo

institucional com o Estado Português.

No que concerne às ordenanças, em 10 de dezembro de 157066 foi instituído em Portugal

o Regimento Geral das Ordenanças67 que, além de regular a atuação desse corpo militar na

metrópole, definiu também as atribuições do mesmo no Ultramar. Segundo esse regimento, era

obrigatória a matrícula no serviço militar de todo e qualquer colono, com exceção dos fidalgos

e eclesiásticos, residente nas capitanias do Estado do Brasil e que tivesse entre dezoito e

sessenta anos. Os habitantes de cada cidade, vila ou conselho, conforme este regimento,

deveriam organizar-se nas companhias de ordenanças em esquadras de vinte e cinco homens

comandadas por um cabo de esquadra, que era um oficial indicado pelo alferes das companhias

de ordenanças e escolhido pelos “homens bons” das Câmaras Municipais.

Cada companhia de ordenança existente nas cidades, vilas e conselhos deveria ser

constituída por 250 homens, organizados em 10 esquadras sob o comando de “um capitão, um

alferes, um sargento, um meirinho, um escrivão e dez cabos”,68 como demonstra o organograma

abaixo:

66 O Regimento Geral das Ordenanças foi complementado pela provisão de 15 de maio de 1574 (Provisão sobre

as ordenanças agora novamente feita com algumas declarações que não estavam nos Regimentos, 15 de maio de

1574. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes, compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa,

Tomo V. Lisboa, 1574.). Sobre esse aspecto da administração militar, bem como outras alterações na legislação

militar ver SALGADO, Graça (Coord.) Fiscais e meirinhos - a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira/Pró-Memória/ Instituto Nacional do Livro, 1985. p. 97. 67 De acordo com a historiadora Ana Paula Pereira Costa, foi a partir do século XVI que a estrutura militar lusitana

passou a adquirir um formato mais consistente no intento de reformar a antiga organização bélica portuguesa, que

ainda possuía um caráter medieval. Nessa perspectiva, o historiador José Eudes Gomes afirmou que durante o contexto medieval o “‘serviço das armas’ no reino lusitano era tido como uma obrigação a que estavam sujeitos

todos os homens livres e ‘capazes de tomar armas’ com menos de 60 anos, sendo que só deveriam se reunir em

caso de necessidade, em virtude do chamado do monarca ou do senhor das terras nas quais viviam”, ou seja, até o

século XVI Portugal não possuía uma força militar permanente, disciplinada, uniforme e, consequentemente, nem

uma legislação específica que regulasse essa instância da administração lusitana. (GOMES, José Eudes. As

milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p.61). Dessa maneira, o

Regimento Geral das Ordenanças que, na verdade, foi intitulado como “Regimento dos Capitaes mores, e mais

Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da ordem que terão em se exercitarem”, foi

antecedido por dois alvarás (o Alvará de regimento da gente de ordenanças e das vinte lanças da guarda de 1508 e

o Alvará de ordenanças de 7 de agosto de 1549) que tinham exatamente como finalidade a instituição de uma força

militar permanente e apta a defender o reino de forma permanente. Dessa maneira, o Regimento de 1570, que foi complementado pela Provisão de 1574, ampliou e complementou as medidas que já haviam sido tomadas

anteriormente e instituiu a obrigatoriedade do serviço militar entre homens que estivessem em idade produtiva.

Por fim, a tentativa de organização militar em Portugal, segundo Costa, foi um processo complexo, visto que

rompia com uma longa tradição medieval que reunia homens apenas em situações de guerra, como já elucidamos.

COSTA, Ana Paula pereira. Corpos de Ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735-

1777). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 17. 68 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570.

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Organograma 1 – Oficiais que deveriam constituir as Companhias de Ordenanças no Estado do Brasil

Fonte: elaborado por Maiara Araújo com base no Regimento Geral das Ordenanças de 1570.

Assim como nas milícias e nas tropas de linha, existia uma hierarquia militar entre os

ofícios existentes nas ordenanças e presentes no Organograma 1. Dessa forma, mesmo sendo

obrigatória a matrícula no serviço militar de todo colono residente em um território sob a

jurisdição de Portugal, existiam ofícios nas companhias de ordenanças que deveriam ser

exercidos, preferencialmente, pelos “principais da terra”, que tivessem “partes e qualidades para

os ditos cargos”, como era o caso do ofício de capitão, principalmente quando se tratasse do

ofício de capitão-mor.69 Em linhas gerais, nesse contexto, ser considerado como principal da

terra remetia a um colono que fosse de qualidade branca, cristão e que possuísse cabedal. Sendo

assim, é evidente que, em meio a uma situação emergencial, todo colono era um “homem de

guerra”, mas nem todos recebiam o mesmo prestígio e ocupavam postos militares privilegiados.

Nessa perspectiva, as companhias de ordenanças, além de atuarem na defesa dos

territórios coloniais, foram concebidas como mecanismos de manutenção das diferenças

existentes entre os homens constituintes de uma sociedade fundamentada nos princípios do

Antigo Regime, onde a qualidade de um indivíduo implicava diretamente no posto militar que

este viria a ocupar, como discutiremos no segundo capítulo. Ademais, a ocupação dos postos

oficiais das ordenanças, conforme o historiador José Eudes Arrais Barroso Gomes, nos sertões

das capitanias do Norte do Estado do Brasil, era um modo de ascender socialmente, ou seja, de

obter prestígio. Assim, a patente enobrecia aqueles que possuíam cabedal e viviam nos sertões

da pecuária.70

69 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570. 70 GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. p.48.

Capitão-mor

Capitão de Companhia

Alferes

Cabo de esquadra

Soldados

Sargento-mor

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É importante destacar que as ordenanças, apesar de não ser referente à uma força militar

profissional 71 , cumpria um papel importante no ordenamento dos sertões, território onde,

normalmente, não existiam tropas regulares e, portanto, o poder da administração lusitana, no

sentido bélico, era representado por esse corpo militar, que inseria os territórios mais

longínquos do Ultramar ao vasto Império Português. Sobre esse aspecto, Caio Prado Junior

afirmou o seguinte:

Sem exagero, pode-se afirmar que são elas que tornaram possível a ordem

legal e administrativa neste imenso território, de população dispersa e escassez de funcionários regulares, [estendendo-se com elas,] sobretudo aquele

território, as malhas da administração, cujos elos teria sido incapaz de atar,

por si só, o parco funcionalismo oficial que possuímos; concentrado ainda

mais como estava nas capitais e maiores centros.72

O historiador Francis Cotta, em consonância com as discussões desenvolvidas por

Prado, asseverou que a ausência de estruturas judiciais ou a fragilidade daqueles existentes nos

sertões fortaleciam o poder dos oficiais das ordenanças que ali residiam e permitiam que esses

atuassem com mais autonomia no ordenamento e controle desses territórios pertencentes à

Coroa73. Portanto, evidente que as ordenanças cumpriam um papel importante como símbolo

da ordem e do governo militar no Ultramar e, além disso, serviam como um instrumento de

manutenção de uma hierarquia que já se fazia presente na ordem social existente na colônia,

enobrecendo aqueles que conseguiam galgar o feito de ingressarem nos postos oficiais, fosse

por sua qualidade, por seu cabedal ou pelas relações de parentesco que mantinham com outros

ocupantes de postos oficiais, visto que cabia ao capitão de companhia a escolha, por exemplo,

de seu alferes e sargento. Além disso, a experiência militar nas ordenanças podia ser útil para o

71 Os membros das ordenanças viviam das atividades laborais que desempenhavam em suas vivências diárias e só

eram reunidos militarmente em caso de conflitos que ameaçassem a integridade dos territórios coloniais em que

residiam. Portanto, tratava-se de uma força militar local e constituída por homens que viviam do que obtinham em

suas atividades laborais, como era o caso, dentre outros, de Carlos Barbosa de Oliveira, solteiro, filho de João de

Oliveira Barbosa, membro das companhias de ordenanças da Freguesia do Assú e que vivia como vaqueiro no ano

de 1793. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. Sobre esse

aspecto, segundo Francis Cotta, a participação de oficiais das ordenanças e dos auxiliares no comércio, por

exemplo, além de permitida, era incentivada pela Coroa nas Minas e em outras capitanias do Estado do Brasil. Em

contrapartida, os militares das forças regulares podiam receber baixa por desempenharem qualquer atividade laboral, visto que deviam viver apenas dos soldos que recebiam por constituíram uma força militar regular e

profissional. Sobre esse aspecto, o historiador citado abordou o caso de Tomás da Costa Rebelo e Silva, sargento-

mor comandante da Brigada de Artilharia da Legião de Voluntários Reais da capitania de São Paulo, que “fora

tirado do seu posto em virtude da acusação de ‘desacatar a lei que proibia os oficiais militares de comercializar’”.

COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: políticas da ordem e o universo militar nas Minas setecentista.

2004. 307 f. Tese. (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. p.232-233. 72 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.

344. 73 COTTA, Francis. Op cit. p. 183.

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ingresso em postos de comando nas milícias, por exemplo. Na capitania do Rio Grande, no ano

de 1739, nos deparamos com o caso de militares que eram indicados para o posto de capitão de

companhia de uma milícia e que tinham como elementos que os tornariam aptos àquele posto

a experiência militar nas companhias de ordenanças, como discutiremos a seguir.

Trata-se do caso de Antônio de Paiva da Rocha, que havia servido vinte anos em

companhias de ordenanças como soldado, posteriormente passou a Capitão das mesmas e, em

1739, foi indicado pelo Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei D.

João para o posto de capitão de companhia de uma milícia na capitania do Rio Grande. Na

mesma ocasião, Gaspar de Paiva da Rocha, possivelmente irmão de Antônio Paiva, filho do

Capitão-mor de Goianinha, Antônio Pais da Rocha, que havia servido há dezesseis anos como

soldado das ordenanças e depois passou a ocupar o posto de capitão desse corpo militar, também

foi indicado pelo Governador de Pernambuco como um opositor possível para ocupar o posto

de capitão de companhia dos auxiliares no Rio Grande.74 Nesse contexto, foram indicados

outros militares que haviam sido membros das ordenanças e das tropas de linha para o ingresso

na milícia em um posto de comando de uma companhia. Portanto, como afirmamos, as

ordenanças, mesmo reunindo homens que na prática não eram militares, cumpriam um papel

importante para a ascensão social nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, para obtenção

de prestígio e como instrumento de mobilidade dentro da hierarquia militar que estava posta

para as tropas de linha e auxiliares no cenário da colônia.

No que concerne às milícias, foram instituídas em Portugal no ano de 164275 como

tropas deslocáveis e que deveriam atuar em conjunto com as tropas regulares, instituídas no ano

de 1640. Esse corpo militar era regulado pelo Alvará de 24 de novembro de 1645, conhecido

como Regimento das Fronteiras.76

O Regimento das Fronteiras, dentre outros aspectos, instituiu o posto de Vedor-Geral

do Exército. O Vedor-Geral, conforme este Regimento, deveria ser auxiliado por quatro

74 CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre a indicação de

pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão das nove companhias do Rio

Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas indicadas para os postos e carta do governado de

Pernambuco, 1741. Papéis Avulsos, Cx. 5, doc. 10. 75 De acordo com Costa, a Guerra da Restauração em Portugal exigiu novos esforços para o recrutamento de

homens para atuar nesse conflito e, em consonância com isso, exigiu uma reorganização das forças bélicas

lusitanas, que, conforme Gomes, sofriam com o alto índice de deserções e recusa das ordenanças para servir nas

fronteias. Dessa forma, esses elementos, conforme os autores citados, teriam resultado na criação de uma nova

força militar em Portugal, as milícias, que foram instituídas enquanto uma tropa deslocável para, dessa forma,

defenderem exatamente nas fronteiras luso-castelhanas. COSTA, Ana Paula Pereira. Op cit. p.19. GOMES, José

Eudes. Op cit. p.83-84. 76 Regimento das Fronteiras, 15 de agosto de 1645. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1645.

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Comissários de Mostra e quatro Oficiais de Pena, que eram responsáveis pela inscrição dos

soldados e oficiais nas tropas e pela elaboração de listas onde constasse os dados pessoais e o

fenótipo dos militares de determinada companhia. Além disso, o Regimento apresentava

também os critérios para o provimento dos postos oficiais dos militares, como o de alferes e o

de sargento, do sistema de promoções, baixas e pagamentos dos soldos.

Conforme esse Regimento, apenas alguns militares podiam servir em duas praças e

vencer dois soldos, como era o caso do mestre-de-campo que, além deste posto, ocupava o

ofício de capitão de companhia, como demonstra a transcrição abaixo:

Ninguém poderá servir em duas praças, nem vencer dois soldos, salvo os Mestres de Campo, que além de seu soldo tem o de Capitão de uma Companhia das do seu

Terço, e o General da Cavalaria, em cujo soldo se inclui o de Capitão de uma

Companhia de Couraças, e o Tenente General da Cavalaria, no qual se inclui tambem o soldo de Capitão de Clavinas; e em nenhuma Companhia de Clavinas se assentará

praça de Alferes, pelo risco que nelas correm as bandeiras; e que nenhum Capitão

que servir com soldo de Clavinas, terá titulo de Capitão de Couraças.77

As milícias eram um corpo militar de base territorial, organizadas em terços e

companhias. Assim como as ordenanças, não recebiam soldo, fardamento, armamentos e

suprimentos, a não ser quando estivessem em serviço, em situação de guerra. Eram formadas e

constituídas pela população local, com base em critérios étnicos (qualidade dos colonos) e

monetários. Segundo Vitor Izecksohn,78 a abertura para o acolhimento de pessoas de cor nas

milícias foi uma peculiaridade das sociedades ibero-americanas, tendo em vista, que nas

colônias inglesas, homens de cor eram acolhidos no serviço militar apenas em situações

emergenciais e, a posteriori, não conseguiam maior integração entre a gente de guerra.

Diferentemente, no Estado do Brasil é possível perceber uma atuação de pessoas de cor que

ultrapassa os períodos emergenciais, como é o caso, por exemplo, dos terços de pessoas

mestiças e negras comandadas pelo crioulo forro Henrique Dias, que, durante a ocupação

holandesa encontraram um cenário propício para atuarem e se institucionalizarem.79

Hierarquicamente, as milícias estavam estruturadas da seguinte forma:

77 Regimento das Fronteiras, 15 de agosto de 1645. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1645. 78 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros.

In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial 3, 1720-1821. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2014. p. 500. 79 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: história de

homens, militarização e marginalidade na capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p.77.

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Organograma 2 – Oficiais que deveriam constituir as Milícias no Estado do Brasil

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base no Regimento das Fronteiras de 1645

Conforme Francis Cotta, os sargentos, furriéis e cabos de esquadra eram considerados

oficiais inferiores. Em contrapartida, o mestre-de-campo, os sargentos-mores, capitães e

tenentes, ocupavam os postos mais altos das milícias e recebiam cartas patentes. 80 Já os

soldados, não eram oficiais e nem recebiam cartas patentes. Por fim, o provimento dos ofícios

nas milícias, além da experiência militar, como exigia o Regimento das Fronteiras, considerava,

também, a qualidade do militar indicado, como demonstra o caso de Gaspar de Albuquerque

Maranhão, indicado pelo Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei D.

João V em 1739 para o posto de mestre-de-campo de um terço de auxiliares da capitania do Rio

Grande. Nessa ocasião, Gaspar de Albuquerque foi indicado para o posto de mestre-de-campo

por ser da “principal nobreza” da Capitania e pela experiência militar que possuía, como

demonstra a transcrição abaixo:

Proponho e informo para Mestre de campo deste terso e inprimeiro lugar, a

Gaspar de Albuquerque Maranhão morador em Cunhaû, distrito da mesma

capitania por ser da principal Nobreza daquela capitania, Fidalgo cavaleiro da casa de V.M.; ter çido Sargento mor do Estado da Ordenança e capitão mor

das entradas por patente de V.M.; junta folha corrida e seus papeis correntes.81

Na mesma ocasião, foi indicado também como opositor a este posto, Manoel Teixeira “sem

embargo de naõ ser de Nobreza e conhecida” e por apresentar os “ofícios de soldado pago na

80 COTTA, Francis. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. p.42. 81 CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre a indicação de

pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão das nove companhias do Rio

Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas indicadas para os postos e carta do governado de

Pernambuco, 1741. AHU, Papéis Avulsos, Cx. 5, doc. 10.

Mestre-de-Campo

Sargentos-mores

Capitães

Tenentes

Alferes

Sargentos

Furriéis

Cabos de esquadra

Tambores

Anspessadas

Soldados

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Infantaria de hum anno três mezes e vinte e quatro dias”.82 Portanto, além da experiência

militar, a qualidade do indivíduo e a posse de cabedal eram elementos considerados no

provimento dos postos de comando das tropas auxiliares.

Além das ordenanças e milícias, existiam as tropas de linha, que, também, podiam ser

definidas como tropas regulares. Esta última força militar referia-se ao efetivo profissional e

regular existente tanto em Portugal quanto no Estado do Brasil. Nesse sentido, a gente de guerra

que constituía esse corpo militar deveria dedicar-se exclusivamente ao serviço militar e ser

mantida sempre treinada e em prontidão para defender o território ultramarino de possíveis

inimigos estrangeiros ou internos. Portanto, os membros das tropas de linha deveriam receber

das Câmaras Municipais, regularmente, soldo, fardamento, armamento, assistência médica e

alimentos. Entretanto, conforme discutiremos nesse capítulo, as dificuldades enfrentadas pelas

tropas de linha na capitania do Rio Grande e em outras capitanias do Estado do Brasil eram

muitas, sendo comum o atraso dos soldos e a falta de armamento e munições, o que resultava

em constantes deserções, falta de mostras e em pedidos de baixas.

No Estado do Brasil, as tropas de linha recebiam, mesmo que de forma escassa, o envio

de soldados reinóis, que deveriam guarnecer nas fortalezas litorâneas. Para completar o efetivo

eram alistados, de forma obrigatória, os elementos “incômodos” da sociedade, como

criminosos, vadios, pobres e degredados.83 De acordo com Caio Prado Junior, “em princípio,

só brancos deviam ser alistados” nas tropas de linha. No entanto, devido à escassez de reinóis

e ao próprio “caráter da população” local, “havia [...] grande tolerância com relação à cor, os

pretos, contudo, e os mulatos muito escuros, eram excluídos”.84 Dessa maneira, a qualidade dos

colonos, como estamos enfatizando ao longo desse texto, era um aspecto fundamental para o

ingresso nas forças militares coloniais, bem como para o provimento dos postos oficiais.

Os recrutamentos para as tropas de linha costumavam ser problemáticos. Segundo

Izecksohn85, os soldados para essas tropas costumavam ser obtidos por meio de recrutamentos

forçados, como assinalamos acima, e que ocorriam, muitas vezes, de forma arbitrária dentro

das ordenanças. Além disso, os colonos conviviam com o desprestígio que o ofício de soldado

possuía e com as dificuldades inerentes ao sistema militar colonial, como o clássico caso dos

soldos atrasados. As dificuldades e o desprestígio eram tantos que nem mesmo os oficiais

82 CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre a indicação de

pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão das nove companhias do Rio

Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas indicadas para os postos e carta do governado de

Pernambuco, 1741. AHU, Papéis Avulsos, Cx. 5, doc. 10. 83 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. p.330. 84 Ibid., p. 329. 85 IZECKSOHN, Vitor. Op cit. p. 492.

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regulares desejavam que seus filhos ingressassem nas tropas pagas, como demonstrou Kalina

Silva:

Os três governadores interinos do Brasil em 1761, um dos quais era o

comandante da guarnição da Bahia, informou o governo da metrópole de que

os baianos tinham um tal de horror ao serviço militar que ‘nenhum deles quer persuadir o seu filho a alistar-se, o que é pior ainda, até os que servem como

oficiais regulares, que tem uma quantidade prodigiosa de filhos do sexo

masculino, não tentam induzir nenhum deles a alistar-se’. Os homens das unidades regulares da Bahia eram portanto recrutados sobretudo entre

‘vagabundos itinerantes e mulatos nascidos localmente.86

Entretanto, apesar disso, não era incomum o caso de assentamentos de praça voluntários no

cenário colonial, aspecto que constatamos na documentação examinada na pesquisa. Um caso

de assentamento voluntário foi o de Belchior Pinto de Melo. Homem solteiro, filho de João

José, de idade de 16 anos, natural da Cidade do Natal e morador nesta, assentou praça de

soldado “de sua livre vontade”, no ano de 1782. Este soldado vencia87 soldo, farda e capim,

assim como os demais. O mesmo foi descrito na documentação da seguinte forma: “branco,

sem ponta de barba, de baixa estatura, seco do corpo, rosto comprido, testa de cantos, olhos

pardos, nariz afilado, cabelo crespo”.88

Outro caso de assentamento voluntário foi o de José Bezerra Cavalcanti, pardo, de idade

de 20 anos, natural da Freguesia da Muribeca, localizada na capitania de Pernambuco, o qual

assentou praça de soldado voluntariamente no dia 20 de junho de 1723.89 Entretanto, não

podemos afirmar que as matrículas no serviço militar, de forma voluntária, eram um padrão

comum, tendo em vista que, no total de 1.834 assentos de praça e baixas que examinamos,

apenas 94 foram identificados na documentação como sendo assentos voluntários.

Possivelmente, esses assentamentos voluntários foram motivados pela busca de

melhores condições de vida e/ou até mesmo pela possibilidade de ascender socialmente através

do serviço militar, visto que, apesar de todas as adversidades presentes no exercício militar

colonial, existia a possibilidade do colono ingressar como soldado de um corpo militar regular

ou auxiliar e, posteriormente, ascender para um posto oficial ou até mesmo receber patentes e

mercês por suas ações a serviço da Coroa.

86 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p.108. 87 Vencer soldo é um termo que está presente nos assentos de praça e significa que determinado soldado e/ou

oficial recebeu pagamento pelos serviços militares prestados à Capitania a que está servindo enquanto membro de

uma tropa regular. 88 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 89 Idem.

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Um exemplo de mobilidade dentro do serviço militar, na documentação que

examinamos, é o caso de Manoel Vieira, que ingressou no serviço militar no ano de 1747 como

Sargento de Número.90 Este, ao longo de sua estadia no serviço militar, recebeu duas patentes,

a de alferes e a de tenente. No ano de 1750, por nomeação do seu Capitão, Luís Bernardes de

Morais, e confirmação do Senhor Governador e Capitão General de Pernambuco, Luís José

Corrêa, passou ao posto de Alferes. Passados cinco anos do recebimento desta patente, no ano

de 1755, por nomeação do Capitão-mor do Rio Grande, Pedro de Albuquerque de Melo, passou

ao posto de Tenente. Na documentação que compulsamos, Manoel Vieira não é um caso isolado

de ascensão na hierarquia militar da colônia. Todavia, não é, também, um padrão. Deparamo-

nos, na verdade, no contexto em estudo, com poucos casos de promoções no serviço militar.

Dentre esses, observamos que, em um universo amostral de 1.834 assentos de praça e baixas,

ocorreram apenas 25 casos de promoções. Essas promoções eram referentes à passagem do

posto de soldado ao de cabo-de-esquadra.91

A escolha dos soldados que passariam ao posto de cabo-de-esquadra ou a indicação e

eleição de um militar para o posto de alferes ou qualquer outro posto oficial não era um processo

impessoal. De acordo com Francis Cotta, as indicações e eleições para postos oficiais no

contexto colonial normalmente obedeciam a uma lógica clientelar, “baseada em critérios de

amizade, parentesco, fidelidade, honra e serviço”.92 Nesse cenário histórico, o recebimento de

uma patente ou mesmo a passagem para um posto oficial hierarquicamente superior nas

ordenanças ou nas milícias não implicava em ganhos monetários, mas, sim, em prestígio social,

aspecto extremamente importante em uma sociedade fundamentada nos princípios do Antigo

Regime. Além disso, acreditamos que a atuação em um posto oficial no serviço militar podia

dialogar, também, com as intencionalidades dos colonos.

Dessa forma, um caso pertinente e que demonstra isso, no contexto em estudo, é o do

Coronel Antônio de Albuquerque da Câmara, que ficou responsável por comandar parte das

tropas de homens vindos de Pernambuco e da Paraíba no contexto da Guerra dos Bárbaros.

Todavia, para além de todo o prestígio que essa atuação militar pudesse oferecer, Antônio de

90 Esse ofício militar foi instituído no ano de 1739. Contudo, conforme Graça Salgado, esse ofício não teve discriminada as suas atribuições na ordem régia que o instituiu. Desse modo, não temos como precisar, até o

momento, as atribuições militares desse oficial das ordenanças. SALGADO, Graça, coord. Fiscais e meirinhos -

a administração no Brasil colonial. p. 167. 91 O cabo-de-esquadra era responsável por controlar a presença dos soldados pertencentes a sua esquadra nos

exercícios militares realizados nas companhias de ordenanças. Este militar deveria prestar conta dos soldados

faltosos nos exercícios militares obrigatórios das ordenanças ao capitão de companhia. Segundo Graça Salgado,

os cabos-de-esquadra podiam ser escolhidos para assumirem o posto de alferes, ou seja, podiam ser promovidos

caso o alferes tivesse que assumir o posto de capitão de companhia na ausência desse oficial militar. Ibid., p. 167. 92 COTTA, Francis. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. p. 06.

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Albuquerque da Câmara, juntamente com seus irmãos e cunhado, haviam solicitado terras na

Ribeira do Acauã no ano de 1679 e no ano de 1684.93 Assim, é evidente que o mesmo possuía

interesse que aquele espaço fosse territorializado pela Coroa portuguesa para que, dessa

maneira, pudesse ocupar suas terras, preenchê-las com gados e, assim, obter cabedal através da

pecuária. Portanto, além da ascensão no serviço militar e da obtenção de prestígio social por

meio de patentes, outros aspectos podiam motivar o ingresso voluntário nos corpos militares

coloniais.

Os corpos militares coloniais,94 em linhas gerais, tinham como principal finalidade

assegurar a defesa dos territórios que estavam sob a tutela lusitana. Em consonância com isso,

deveriam garantir que o processo de ocidentalização se expandisse e se consolidasse não apenas

no litoral, mas também nos sertões. Isso explica, por exemplo, como iremos discutir no capítulo

seguinte, a vinda de soldados das Capitanias de Pernambuco e da Paraíba para assentarem praça

na capitania do Rio Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros, ocasião de resistências

indígenas, de expansão da colonização e, consequentemente, de territorialização dos sertões.

Ademais, deveriam atuar de forma conjunta em situações emergenciais, como foi o caso da já

citada Guerra dos Bárbaros, conflito que reuniu em um mesmo território companhias de

ordenanças, milícias e tropas de linha, bem como homens de diferentes qualidades e condições,

como demonstraremos ao longo desse estudo.

2.2 O serviço militar na Capitania do Rio Grande no início do Seiscentos

A emergência das forças bélicas coloniais em cada cidade, vila ou freguesia das

capitanias do Estado do Brasil ocorreu em consonância com o processo de ocupação e

territorialização desses espaços pelo elemento colonizador. Isso significa afirmar que a

instauração da administração militar no Ultramar não foi um processo linear, contínuo, assim

93 Carta de data e sesmaria concedida a Antonio de Albuquerque da Camara, Luiz de Souza Furna, Lopo de

Albuquerque da Camara e Pedro de Albuquerque da Camara, de sobras no Rio Acahuã. In.: MEDEIROS FILHO,

Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p.114. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó:

genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII e XIX). p.167. 94 Esse modelo militar existente na colônia passou por mudanças ao longo da segunda metade do século XVIII.

Segundo os estudos de Kalina Silva, nesse contexto, teve início um processo de sistematização e centralização da

administração militar que teve seu ápice em 1808, com a vinda da Família Real, e que teve como ponto principal uma profissionalização dos oficiais de artilharia e infantaria. Conforme esta autora, essa foi a última ação colonial

no âmbito militar, visto que após isso o que tivemos foi uma mudança estrutural, ou seja, a passagem de uma

organização institucional portuguesa para uma estrutura nacional preocupada com os interesses de um Estado

nacional independente. Esse processo de estatização da administração militar teve início a partir de 1822, com a

independência da Colônia e a criação da Guarda Nacional. A Guarda Nacional foi instituída, de fato, apenas em

1831 e extinta na Primeira República em um processo que teve início em 1918, quando a mesma foi incorporada

ao exército. Sobre essa discussão ver: ALMEIDA, Adilson José de. Uniformes da Guarda Nacional (1831-1852):

a indumentária na organização e funcionamento de uma associação armada. Anais do Museu Paulista, São Paulo.

v. 8/9. p. 77-147. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Op cit. p. 95-6.

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como não foi, também, a instauração dos sistemas administrativos fazendário, eclesiástico ou

judiciário. Essa organização da administração portuguesa no Estado do Brasil, para as

historiadoras Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho, foi adequada às

especificidades econômicas e sociais de cada capitania.95 Nessa perspectiva, em se tratando da

Capitania do Rio Grande, entendemos que o processo de institucionalização da administração

militar teve como marco inicial a construção da Fortaleza dos Reis Magos, no ano de 1598,

visto que a edificação dessa estrutura de caráter militar implicou na vinda de soldados e oficiais

para guarnecer nesse espaço e assegurar a defesa da recém ocupada Capitania.

A construção da Fortaleza dos Reis Magos fez parte do projeto de expansão das

fronteiras coloniais no Norte do Estado do Brasil empreendido por Filipe II, rei de Portugal e

da Espanha, no contexto de União das Coroas Ibéricas, que entre os anos de 1696 e 1697

solicitou por meio de cartas régias que a Capitania do Rio Grande fosse, de fato, ocupada.96

Nesse processo de expansão do projeto colonial ibérico e, consequentemente, de conquista de

espaços e constituição de territórios, Filipe II ordenou ao Governador-Geral do Estado do

Brasil, Dom Francisco de Souza, que solicitasse aos Capitães-mores de Pernambuco e da

Paraíba, Manuel Mascarenhas Homem e Feliciano Coelho de Carvalho, respectivamente, que

organizassem uma expedição militar a fim de expulsar os franceses desse espaço e assegurar,

dessa maneira, a posse da Capitania do Rio Grande à Coroa.97 Portanto, o domínio do espaço

do Rio Grande pela Coroa Ibérica atendia aos seus anseios políticos, dentre outros, de afastar

os franceses das capitanias do Norte do Estado do Brasil e, dessa forma, tornar esses espaços

úteis à metrópole.

É importante salientar que, em se tratando do contexto da União das Coroas Ibéricas,

houve, nesse período, uma preocupação com o ordenamento administrativo do Estado do Brasil,

tanto no âmbito militar quanto fiscal. No caso do reinado de Filipe II, Filipe III da Espanha,

segundo o historiador José Manuel Santos Peréz, dentre suas ações para o Estado do Brasil,

esteve a realização de uma reforma fiscal, bem como uma preocupação com a defesa desse

território,98 que implicou em uma política de organização dessas instituições coloniais no

Ultramar. Assim, a construção da Fortaleza dos Reis Magos, na Capitania do Rio Grande, fez

95 BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Orgs.). O Antigo Regime

nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 96 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande.

Coleção Digital Oswaldo Lamartine. Sd. p.72-73. 97 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de

Imprensa, 1997. p. 21. 98 PÉREZ, José Manuel Santos. Visita, residência, venalidade: as “práticas castelhanas” no Brasil de Filipe III. In:

MEGIANI, Ana Paula Torres; PÉREZ, José Manuel Santos; SILVA, Kalina Vanderlei (Org.). O Brasil na

Monarquia Hispânica (1580-1668): Novas interpretações. São Paulo: Humanitas, 2014. p.24.

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parte de um conjunto de medidas administrativas direcionadas ao Estado do Brasil pela

Monarquia dos Habsburgo no intento de obter um maior controle desse território e de torná-lo

rentável à Coroa.

Segundo esse autor, uma particularidade do reinado de Filipe II foi a tentativa de

aproximação administrativa entre a América Espanhola e o Estado do Brasil. Essa aproximação

burocrática, conforme o autor, ocorreu exatamente por meio da incorporação de práticas

administrativas já existentes na América Espanhola e que podiam ser aplicadas no Estado do

Brasil para um maior controle e centralidade por parte da Coroa sob este território. Dentre essas

práticas, definidas como “práticas castelhanas” por Pérez, citamos a “visita”, que consistia no

envio de um oficial para verificar o funcionamento das instituições coloniais existentes no

ultramar e investigar possíveis casos de corrupção.99 A visita, assim como outras “práticas

castelhanas” foram implantadas no Estado do Brasil. Assim, houve no período dos Habsburgo

uma preocupação com a funcionalidade administrativa dos territórios coloniais sob sua

custódia. Essa preocupação, além de ter resultado na ocupação da Capitania do Rio Grande e,

consequentemente, na construção da Fortaleza dos Reis Magos, engendrou a constituição de

documentos acerca do estado do território e do funcionamento das instituições existentes no

mesmo. Um exemplo desses documentos são os relatórios produzidos pelo Sargento-mor Diogo

de Campos Moreno e que serão examinados adiante.

Retornando ao processo de ocupação da Capitania do Rio Grande, esse empreendimento

colonial ficou sob a responsabilidade do Capitão-mor de Pernambuco, Manuel Mascarenhas

Homem, que comandou uma expedição militar que aportou na barra do Rio Grande no natal de

1597 e assegurou a posse desse território colonial após os embates com os nativos e os franceses

aliados aos mesmos. 100 Segundo Hélio Galvão, a Fortaleza dos Reis Magos só teve sua

construção iniciada no ano seguinte, precisamente no dia 06 de janeiro de 1598, “Dia de Reis”

ou “dos Santos Reis”, e, em decorrência disso, recebeu o nome de Fortaleza dos Reis Magos.101

Conforme este mesmo autor, inicialmente a mesma foi construída de pau a pique e teve como

idealizador de sua arquitetura um jesuíta espanhol, Gaspar de Samperes, que havia

acompanhado Manuel Mascarenhas Homem nessa empreitada colonial.102

99 PÉREZ, José Manuel Santos. Visita, residência, venalidade: as “práticas castelhanas” no Brasil de Filipe

III. p. 26-27. 100 Ibid., p.26. 101 GALVÃO, Hélio. Op cit. 14. 102 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p.14.

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Em 24 de junho do mesmo ano, dia de São João Batista, a Fortaleza foi dada por

concluída, “por já se achar a mesma em ‘estado de defensão’”, 103 conforme Manuel

Mascarenhas Homem. Nesse contexto, essa fortificação foi descrita como estando “muito bem

fornecido de gente, artilharia, munições, mantimentos, e tudo o mais necessário [...]”.104

Todavia, salientamos que, o que estava finalizado em julho de 1698 “era uma fortificação

provisória, com o mínimo de segurança para abrigar a gente da expedição, protegendo-a contra

inesperado ataque do gentio”.105 Nesse sentido, de acordo com Hélio Galvão, a Fortaleza só foi,

de fato, finalizada no ano de 1628 e, em decorrência disso, os primeiros soldados que

guarneceram na recém ocupada Capitania tiveram que conviver com um conjunto de

dificuldades, como a falta de uma cisterna e, dentre outros aspectos, da casa de pólvora, como

demonstra a citação abaixo:

Toda esta fortaleza do Rio Grande está por acabar naõ chega por algua’s partes

ao cordaõ, e assy tem menos de dezoito palmos de alto, faltaõ lhe todos os

parapeitos, e antulhos das quartinhas todas as casas da vivenda, e almarzens naõ tem poço, nem cisterna, ne’ fonte, antes co’ muito trabalho todos os dias

se provem de muito longe em vasilhas de aguoa, ou de casinhas da praya, naõ

tem restrello, nem contra portas, e ate as portas da mesma fortaleza estaõ

consumidas do tempo final mente hé a mais, miserável Vivenda, q’ se pode achar no mundo por naõ estar acabada, pelo q’ os soldados fogem della como

da morte.106

Portanto, a construção da Fortaleza dos Reis Magos ocorreu processualmente, ao longo

de quase três décadas. Nesse contexto, foi evidente a intervenção humana no processo de

constituição territorial e social da Capitania do Rio Grande por meio da distribuição de

sesmarias e da instauração dos sistemas administrativos importados de Portugal e adaptados à

situação colonial, como a instituição militar, materializada pela edificação da Fortaleza dos Reis

Magos.

Nesse sentido, reiteramos que compreendemos a construção da Fortaleza dos Reis

Magos como marco inicial da instauração da administração militar na Capitania, tendo em vista

que foi através da edificação dessa estrutura militar, mesmo em seu estágio “provisório”, que o

Rio Grande passou a possuir gente de guerra para atuar na defesa desse espaço colonial.

Certamente, a gente de guerra que permaneceu na Fortaleza logo após a sua construção era

103 MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. p.22. 104 SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brazil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1989 [1627]. p. 155. 105 GALVÃO, Hélio. Op cit. p.22. 106 MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do

Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968 [1612]. p. 78.

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constituída de homens vindos das Capitanias de Pernambuco e/ou da Paraíba e que haviam

atuado contra os nativos que residiam no litoral do Rio Grande para garantir a ocupação desse

espaço pelo colonizador.107

Outro aspecto importante de ser mencionado é o papel dessa fortificação militar no

processo de construção territorial do Rio Grande. Território, conforme o geógrafo francês

Claude Raffestin, é o produto da ação humana sob o espaço. Conforme este autor, o território é

produto de um conjunto de intencionalidades e projetos que são empreendidos por um dado

grupo humano, em um contexto histórico específico. Dessa forma, para este geógrafo, o ser

humano territorializa o espaço. Logo, territorializar pode ser visto e compreendido, no contexto

que estamos discutindo, como o sinônimo de construção.108 Portanto, o território só pode ser

entendido a partir da ação do ser humano, que em dado contexto histórico se apropria do espaço

geográfico e o modifica, por meio de edificações que atendem aos seus interesses políticos e

econômicos. Assim, no caso da sociedade colonial, entendemos que esse ato de territorializar

ocorreu por meio da distribuição de sesmarias e da edificação das instituições administrativas

(fazendária, religiosa, civil, judiciária e militar) importadas de Portugal e adaptadas à realidade

de cada capitania do Estado do Brasil. Essas instituições, além de normatizarem a vida dos

homens e mulheres na sociedade colonial, eram responsáveis por delimitarem o território

colonial.

Nessa perspectiva, em se tratando especificamente do Rio Grande, a Fortaleza dos Reis

Magos foi a primeira modificação física conhecida no espaço da Capitania, materialização do

projeto colonial expansionista de Filipe II, mas também, e principalmente, produto da ação

humana sob o espaço. Sobre esse aspecto, conforme Hélio Galvão, nos anos iniciais da

construção da Fortaleza, “o trabalho era pesado e exigente. Praticamente não se utilizava a

energia mecânica: tudo era a força humana, energia muscular. Os homens trabalhavam quase

nus, desprotegidos do sol e da chuva, apenas uma tanga [...]”, e, ainda, tinham que lidar com o

temor das resistências indígenas a essa empreitada colonial, de apropriação e modificação do

espaço nativo.109

107 A prática de envio de praças de Pernambuco para guarnecerem na Fortaleza dos Reis Magos prevaleceu na segunda metade do século XVII. No entanto, nesse contexto, deparamo-nos com objeções a esta prática tanto da

Câmara de Natal quanto do Capitão-mor do Rio Grande. A justificativa para as objeções do Senado da Câmara e

do Capitão-mor quanto ao envio de praças da capitania de Pernambuco eram decorrentes das fugas praticadas por

estes militares que, para Manuel Muniz, Capitão-mor do Rio Grande, para se revolver esse “o problema da fuga”

“os soldados” deveriam ser “recrutados entre os naturais da terra”. Retornaremos a esta discussão posteriormente,

quando tratarmos dos casos de baixa no serviço militar do Rio Grande. GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza

da Barra do Rio Grande. p. 126. 108 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993. p. 2. 109 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p. 22-23.

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Nesse contexto, a recém ocupada Capitania possuía um efetivo militar constituído por

cerca de 200 praças, além dos oficiais.110 Esse efetivo, instalado na Fortaleza dos Reis Magos,

permaneceu no Rio Grande durante a situação de “guerra”, conforme Diogo de Campos

Moreno, ou seja, no contexto de conflitos envolvendo colonos e nativos que resistiram ao

processo de ocupação e edificação de territórios coloniais na Capitania. Todavia, o total de

soldados que guarneceu na Fortaleza até a década de 1610, segundo relato de Campos Moreno,

foi oscilante. Já em 1603, por exemplo, esse corpo militar foi modificado e passou de 200

soldados, mais os oficiais, para cerca de 60 praças. Posteriormente, o total de praças da

Capitania foi reduzido a 30. Infelizmente, o autor não informou o ano dessa modificação.

Entretanto, certamente, um efetivo de 30 soldados não deve ter sido considerado suficiente para

manutenção de um território colonial em construção, visto que, logo em seguida, esse corpo

militar foi reforçado com mais 10 soldados e a partir de 1609 passou a possuir um efetivo

regular de 80 mosqueteiros, um capitão e oficiais maiores e menores.111

Quanto à fortaleza, em 1609, foi descrita por Campos Moreno como inacabada e

portando “vinte oito pessas a saber nove de broze e dezenoe de ferro”, que não possuíam “nenhu

efeito por estarem comidas de tempo e naquelas partes (ilegível) tao actualmente so de bronze

la servem”.112 Portanto, com base nas observações realizadas pelo autor citado, é possível

constatar que a administração militar na Capitania, na primeira metade do seiscentos, passava

por um processo de organização, que se estendeu, de forma descontínua, até o ano de 1628,

visto que, apesar da Fortaleza ainda estar inacabada, as peças de bronze e ferro já estavam

desgastadas pelo efeito do tempo.

Nesse mesmo período, a administração fazendária113 também passava por um processo

de organização institucional, o que demonstra que nos primeiros anos do século XVII a

Capitania do Rio Grande foi delineada por um conjunto de práticas que visavam organizar

administrativamente esse espaço, práticas essas que dialogavam com a política de ordenamento

administrativo empreendido pela Monarquia Habsburgo. Esse processo de organização militar,

fazendária, civil e eclesiástica ocorreu pari passu com a distribuição de sesmarias. Sobre esse

último aspecto, a análise do Auto de Repartição feito pela historiadora Elenize Trindade,

110 MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem

na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0007.TIF. 111 MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem

na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0007.TIF. 112MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem na

Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0013.TIF 113 Sobre a administração fazendária na Capitania do Rio Grande sugerimos os estudos da historiadora Lívia

Barbosa. BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Op cit, 2017.

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referente às sesmarias doadas até o ano de 1614, demonstrou que cerca de 54% das terras doadas

na Capitania não eram aproveitadas. Dessas, 34% eram consideradas devolutas e 20% não

ofereciam boas condições para o plantio ou desenvolvimento de outras atividades. Dessa forma,

de acordo com a autora, apenas 6% das terras doadas na capitania eram destinadas ao criatório,

6% à pesca e uma quantidade pequena, na região do Cunhaú, à plantação de cana-de-açúcar.114

Os dados quantitativos apresentados por Trindade nos permitem perceber que apenas

uma quantidade pequena das terras doadas nesse contexto eram, de fato, aproveitadas

economicamente, o que demonstra as dificuldades dos primeiros sesmeiros de se manterem nas

terras recebidas. Certamente, essas dificuldades não estavam associadas apenas ao fato das

terras concedidas pela Coroa não serem úteis para o desenvolvimento de atividades econômicas,

visto que o potencial das terras existentes na Capitania para o cultivo foi um aspecto destacado

também por Campos Moreno em sua visita à Capitania, no ano de 1609.115 Dessa forma, outras

dificuldades, possivelmente, emergiram nesse processo de ocupação colonial e, provavelmente,

a falta de cabedal pode ter sido um desses, visto que, segundo Trindade, algumas das casas

construídas pelos sesmeiros caíram e não foram reconstruídas.116 Ademais, Campos Moreno,

mesmo tendo a preocupação de ressaltar o quanto as terras do Rio Grande possuíam potencial

para o desenvolvimento da agricultura e do criatório, salientou também a pobreza que afetava

os moradores do Rio Grande, que, em 1609, não passavam de 25 na Cidade do Natal.117

Outro aspecto abordado por Campos Moreno foi o perigo de invasões externas (por mar)

e de invasões internas (por terra) à Capitania, bem como a importância da Coroa concluir a

construção da Fortaleza dos Reis Magos e “provela de moradores”,118ou seja, instituir uma tropa

militar formada por homens naturais da Capitania, fato que só se concretizou no século XVIII.

Durante o século XVII, a tropa paga que guarneceu na Fortaleza dos Reis Magos era importada

da Capitania de Pernambuco. Conjecturamos essa hipótese com base na documentação

existente para segunda metade do século XVII, onde a administração civil e militar do Rio

Grande recorreu à Coroa para que obrigasse a Capitania de Pernambuco a prover a Fortaleza,

114 PEREIRA, Elenize Trindade. Das terras doadas ouvi dizer: doação de sesmarias na fronteira do Império,

capitania do Rio Grande (1600-1614). Revista acadêmica Historien, Petrolina, n. 10, jan/jun. 2014. p. 178. 115 Segundo Campos Moreno, no Rio Grande existiam as seguintes frutas: melão, laranja e limão. Era cultivado ainda alguns cereais (arroz, milho), além de legumes (abóbora, pepino) e raízes (mandioca). No âmbito do

criatório, existiam os seguintes animais: bois, vacas, cabras e porcos MORENO, Diogo Campos. Relação das

praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da

Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0010.TIF. 116 PEREIRA, Elenize Trindade. Op cit. p. 178. 117 MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem

na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0010.TIF. 118MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem na

Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0013.TIF.

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“com a goarnição com que foi criada (athe ser tomada do olandes)”.119 Na documentação

produzida nesse período, o número de praças e oficiais dialoga com os dados apresentados por

Campos Moreno em seu relatório e que foi citado acima. Conforme esse relatório, foi a partir

de 1609 que a Capitania passou a possuir um efetivo regular de 80 praças, visto que, como já

assinalamos, até 1609 o número de soldados e oficiais foi oscilante, de acordo com as

necessidades de um território em construção.

Possivelmente, no período anterior à presença dos batavos na Capitania, Pernambuco,

além de fornecer os praças e oficiais para a Fortaleza, era responsável também pela manutenção

dessas tropas, no que concerne ao fardamento, pagamento, suprimento e armamento, visto que,

segundo a historiadora Lívia Barbosa, nesse contexto a Provedoria da Capitania do Rio Grande,

assim como a instituição militar, passava por um processo de institucionalização. Conforme

essa autora, nos anos iniciais do seiscentos não é possível atestar uma dinâmica comercial na

Capitania, visto “que não existem indícios [...] da cobrança de direitos alfandegários e da

taxação sobre o comércio”, práticas que se ocorreram apenas na segunda metade do século

XVII. Ademais, os rendimentos anuais, de acordo com Campos Moreno,120 eram de apenas 220

réis anuais, o que indica, segundo Barbosa, uma produção para o autoconsumo.121

Em 1612, por exemplo, a Capitania foi descrita, como já havia sido três anos atrás por

Campos Moreno, como um território pobre. Segundo esse militar, assim como em 1609, a

Cidade do Natal possuía apenas 25 moradores. A Capitania como um todo possuía cerca de 80

moradores. No entanto, era um território, mesmo sendo descrito como pobre, que

administrativamente estava se organizando e consolidando. Em 1611, por exemplo, atendendo

às solicitações dos moradores, o Rio Grande passou a ter “modo de governança”, ou seja, uma

Câmara, que possuía “Juiz hu vereador, escrivaõ da câmara, procurador do cons; e provedor

dos Indios”.122 Quanto à administração militar, desde 1609, após um período oscilante na

quantidade de soldados que guarneceram na Fortaleza, possuía um efetivo regular constituído

por 80 praças, além dos oficiais.

No ano de 1612, a Capitania permanecia possuindo um efetivo semelhante ao ano de

1609, como demonstra o organograma abaixo:

119 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 120 MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem

na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0011.TIF. 121 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Op cit. p. 69. 122 Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e

Cultura, 1968.

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Organograma 3 – Efetivo militar da capitania do Rio Grande, 1612

Fonte: Organograma elaborado por Maiara Araújo com base no Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de

Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968.

Para esse contexto, com base na obra Livro que dá razão ao Estado do Brasil, datado de 1612

e de autoria de Campos Moreno, temos informações que nos possibilitam comparar o efetivo

militar da Capitania do Rio Grande, sistematizado acima, em relação a outras Capitanias do

Estado do Brasil que, também, foram visitadas em 1612 por esse militar que estava a serviço

da Monarquia Ibérica. Para uma melhor análise comparativa desses dados, organizamos os

mesmos na tabela abaixo:

Tabela 1 – Efetivo militar do Estado do Brasil, 1612

Capitanias Corpos Militares Composição Total da Gente

de Guerra

Rio Grande (a) 1 Companhia de Presídio capitão(b); alferes;

abandeirado; sargento;

tambor; condestável; 2 bombardeiros; 4 cabos de

esquadra; 40 mosqueteiros;

40 arcabuzeiros

12 oficiais e 80

soldados

Total: 92

Porto Seguro 1 Companhia de Presídio 10 soldados; cabo de

esquadra

1 oficial e 10

soldados

Total: 11

Ilhéus Vila de São Jorge: 1 Companhia de

Ordenanças

107 homens brancos com

armas (c)

107 soldados

Total: 107

Bahia Salvador: 2 Companhias de

Ordenanças

Recôncavo: 8 Companhias de

Ordenanças

5 Companhias de Presídio (d)

“Mais” de 300 arcabuzeiros

800 homens em armas

Forte de Santo Antônio capitão; tenente; cabo de

esquadra; 10 mosqueteiros

Forte de Tapagipe

capitão; tenente; 10

mosqueteiros

Companhia de Presídio (e)

capitão; pagem; alferes

abandeirado; sargento; tambor mor; tambor

1.240 soldados

44 oficiais

Total: 1.284

Capitão

Alferes

Sargento

40 Mosqueteiros 40 Arcabuzeiros

4 Cabos de esquadra

Condestável

2 Bombardeiros

Abandeirado

Tambor

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Capitanias Corpos Militares Composição Total da Gente

de Guerra

ordinário; 4 cabos de

esquadra; 40 arcabuzeiros;

20 mosqueteiros

Companhia de outro

Capitão (f)

capitão; alferes; sargento; 2

tambores; 4 cabos de

esquadra; 40 arcabuzeiros;

20 mosqueteiros

Artilharia dos referidos

presídios

condestável mor;

condestável de Tapagipe;

condestável de Santo;

Antônio; condestável de

Santo Alberto; condestável

do Forte da Água dos

Meninos; 5 bombardeiros na

estância de São Diogo; 7

ajudantes para todos os

presídios; 2 bombardeiros

para a capitania

Sergipe 2 Companhias de Ordenanças 150 soldados, mais oficiais(g)

150 soldados Total: 150

Pernambuco Vila de Olinda: Companhias de

Ordenanças (h)

Vila do Recife: Companhias de

Ordenanças

2 Companhias de Presídio (i)

Companhia do Presídio

capitão; alferes; sargento;

tambor; abandeirado; 3 cabos de esquadra; 50 arcabuzeiros;

13 mosqueteiros

Companhia de Presídio do

Arecife

capitão; alferes; sargento

abandeirado; tambor; cabo de

esquadra; condestável; 19

mosqueteiros

82 soldados

15 oficiais

Total: 97

Itamaracá 4 Companhias de Ordenanças (j) 250 arcabuzeiros 20 homens

com cavalos (k)

270 soldados

Total: 270

Paraíba 2 Companhias de Ordenanças (l)

1 Companhia de Presídio (m)

300 Arcabuzeiros; 30

homens com cavalos (n)

Forte de Cabedelo

capitão do Forte de Cabedelo; alferes;

embandeirado; tambor; cabo

de esquadra; condestável; 2

Bombardeiros; 10

Arcabuzeiros; 10

Mosqueteiros

350 soldados

8 oficiais

Total: 358

(a) Com exceção do Rio Grande, as demais capitanias foram organizadas na tabela conforme a ordem posta

no documento.

(b) Organizamos os praças e oficiais das capitanias de presídio conforme a ordem estabelecida no relatório

de Campos Moreno.

(c) O autor, infelizmente, não identificou os oficiais existentes nessa companhia de ordenança.

(d) Além das companhias de ordenanças e de presídios, a capitania da Bahia possuía mais 3 capitães, sendo 1 capitão-mor de mar, 1 sargento-mor do estado e 1 tambor, 1 sargento-mor da capitania, 1 ajudante do

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sargento-mor e, por fim, 1 capitão responsável pela guarda do Governador. Todos esses oficiais eram

pagos e foram identificados por Campos Moreno como Ministros da Guerra.

(e) O autor não identificou a qual presídio pertencia esta companhia.

(f) Da mesma forma, o autor não assinalou a qual presídio pertencia esta companhia.

(g) Os oficiais não foram citados pelo autor, o mesmo apenas salientou a falta de um tambor e de abandeirado.

(h) O autor não especificou a quantidade de companhias de ordenanças existentes nas vilas da capitania de

Pernambuco e nem a composição das mesmas. Segundo Campos Moreno, além das companhias de

ordenanças existentes na Vila de Olinda e na Vila do Recife, na capitania existiam freguesias que

possuíam, também, companhias de ordenanças que no alardo chegavam a reunir “mais de mil homés”, o

que demonstra a existência de um efetivo auxiliar numeroso na capitania de Pernambuco, nos anos iniciais

do seiscentos. (i) Além desse efetivo militar, a capitania possuía um Capitão-mor e um Sargento-mor.

(j) Não foi especificado a localidade onde atuavam essas companhias de ordenanças. A capitania, conforme

Campos Moreno, possuía também um Sargento-mor.

(k) Segundo Campos Moreno, os demais homens não participavam dos alardos e ficavam de guardas em suas

fazendas.

(l) Não foi especificado a localidade onde atuavam essas companhias de ordenanças. A capitania, conforme

Campos Moreno, possuía também um Capitão-mor.

(m) A capitania possuía ainda um Capitão-mor e um Sargento-mor.

(n) Segundo Campos Moreno, os demais homens não participavam dos alardos e ficavam de guardas em suas

fazendas.

Fonte: Tabela elaborado por Maiara Araújo com base no Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968.

Com base nos dados quantitativos destacados acima, é evidente que a Capitania da Bahia

se sobressaía, no que concerne ao seu efetivo militar, quando comparada com outras Capitanias

do Estado do Brasil. Provavelmente, o fato da Bahia, nesse contexto, ocupar um papel de

destaque tanto no sentido administrativo quanto no econômico, sendo responsável, por

exemplo, pela manutenção de 50 engenhos,123 justificou a constituição de um corpo militar

regular e auxiliar numeroso. Todavia, quando comparamos a Capitania do Rio Grande às

demais, percebemos que a mesma, assim como Porto Seguro, não possuía companhias de

ordenanças. Acreditamos que a justificativa para a ausência dessa tropa auxiliar pode estar

condicionada ao processo inicial de ocupação colonial e territorialização do Rio Grande e,

consequentemente, ao modo como estavam organizados os moradores desse território. Sobre

esse último aspecto, em 1612, segundo Campos Moreno, a Capitania do Rio Grande possuía

105 moradores. Estes, no entanto, não se concentravam em um único território. A Cidade do

Natal, por exemplo, possuía apenas 25 moradores, “pobremente acomodados”. Os demais

colonos estavam distribuídos pelo território litorâneo da Capitania, concentravam-se ao longo

dos rios próximos ao Potengi124 e viviam de suas “rocas, e redes, e fazendas”.125

123 MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do

Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968. p. 39. 124 DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira

do Apodi-Mossoró. p.44. 125 MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do

Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968. p. 77.

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Sendo assim, essa ausência de ordenanças em 1612 pode ser justificada, então, pelo

modo como a Capitania estava ocupada e ao processo inicial de territorialização desse espaço

e consequente organização administrativa deste. A Cidade do Natal, por exemplo, teria apenas

o total de moradores suficientes para constituição de apenas uma esquadra de uma companhia

de ordenanças. Os demais habitantes estavam dispersos pelo território do Rio Grande e,

possivelmente, o capitão-mor deve ter encontrado dificuldades para arregimentar esses homens

e organizá-los militarmente. Portanto, o estágio inicial de ocupação da Capitania e de tentativa

de consolidação das instituições coloniais podem ser caminhos explicativos para a ausência de

companhias de ordenanças no Rio Grande nos anos iniciais do seiscentos.

Todavia, no que concerne às companhias de presídio, o Rio Grande possuía um efetivo

militar quantitativamente significativo, próximo ao efetivo militar existente na Capitania de

Pernambuco e que estava dividido em dois Fortes, como demonstra o gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Efetivo das companhias de Presídio do Estado do Brasil em 1612

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base no Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro:

Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968.

Nesse sentido, enquanto o Rio Grande possuía na Fortaleza dos Reis Magos 80 soldados

e 12 oficiais, Pernambuco possuía 82 soldados e 15 oficiais divididos em dois Fortes, como

demonstra a Tabela 1. Evidentemente que a presença significativa de tropas auxiliares em

Pernambuco fazia com que o mesmo se sobressaísse militarmente em relação ao Rio Grande e,

provavelmente, eram consideradas suficientes, em conjunto com as tropas de linha, para a

defesa desse território colonial. Todavia, esse não é o aspecto que desejamos abordar. O fato

que chamou nossa atenção e que gostaríamos de examinar foi a existência de uma tropa paga

no Rio Grande tão significativa quantitativamente, semelhante ao efetivo existente em

Pernambuco e constituída para guarnecer dois Fortes.

92

11

181

97

28

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200

Rio Grande Porto Seguro Bahia Pernambuco Paraíba

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Sobre esse aspecto, é importante salientar que a existência de uma tropa regular em uma

Fortaleza implicava em um dispêndio que deveria ser responsabilidade do Senado da Câmara.

Todavia, tanto a Câmara do Natal quanto a Provedoria estavam nesse contexto passando por

um processo de organização. Nesse sentido, como já assinalamos, coube a Pernambuco o ônus

de enviar uma tropa paga para a Fortaleza dos Reis Magos e, provavelmente, mantê-la.126 Dessa

maneira, o que justificava a existência e a manutenção de um efetivo regular tão significativo

quantitativamente em um território que passava por um processo de organização territorial e

administrativo nos anos iniciais do século XVII?

Acreditamos que os caminhos explicativos para tal questionamento perpassam pelo

interesse da Monarquia Ibérica de consolidar o processo de ocupação das capitanias do Norte

do Estado do Brasil e, nesse processo, a conquista do Rio Grande e a construção da Fortaleza

dos Reis Magos fizeram parte desse projeto expansionista conduzido por Filipe II. Todavia,

esse empreendimento colonial não eliminou o risco de um possível ataque estrangeiro ao Norte

do Estado do Brasil, segundo a historiadora Fátima Lopes. Para esta autora, as capitanias do

Maranhão, Amazonas e Grão-Pará eram tão vulneráveis aos ataques estrangeiros quanto as

capitanias do Leste e, nessa conjuntura, a conquista do Rio Grande, a construção da Fortaleza

dos Reis Magos e a constituição de um efetivo militar regular teve um papel fundamental

funcionando “como um posto avançado, que garantiria um contingente militar disponível e

melhor posicionado”127 para a continuidade da conquista em direção ao Norte.

Outro aspecto pertinente apontado por Lopes foi a importância da conquista do Rio

Grande para a constituição de um caminho terrestre que ligaria as capitanias do litoral leste do

Estado do Brasil às do litoral norte, tendo em vista que as primeiras tentativas de ocupação do

126 Um dado importante apresentado por Campos Moreno refere-se ao estado precário da Fortaleza dos Reis

Magos. Nesse sentido, apesar da capitania possuir um efetivo militar próximo ao de Pernambuco, segundo o relato

desse militar, o estado da Fortaleza era complexo. Conforme o mesmo, “toda esta fortaleza do Rio Grande está por

acabar naõ chega por algua’s partes ao cordaõ, e assy tem menos de dezoito palmos de alto, faltaõ lhe todos os

parapeitos, e antulhos das quartinhas todas as casas da vivenda, e almarzens naõ tem poço, nem cisterna, ne’ fonte,

antes co’ muito trabalho todos os dias se provem de muito longe em vasilhas de aguoa, ou de casinhas da praya,

naõ tem restrello, nem contra portas, e ate as portas da mesma fortaleza estaõ consumidas do tempo final mente

hé a mais, miserável Vivenda, q’ se pode achar no mundo por naõ estar acabada, pelo q’ os soldados fogem della

como da morte”. Para Campos Moreno, a Fortaleza dos Reis Magos era “a mais miseráveis de toda a costa” e por

isso não trataria do pagamento e do mantimento dos soldados que guarneciam nessa fortificação. Essa descrição

da Fortaleza, além de demonstrar as dificuldades enfrentadas pelos oficiais e praças que aí atuaram, evidencia como a construção da Fortaleza ocorreu de forma lenta e descontínua e, em decorrência disso, mesmo essa estrutura

militar estando por acabar, suas portas já estavam consumidas pelo tempo. Por fim, o estado precário da Fortaleza

do Rio Grande demonstra que o papel significativo e estratégico atribuído à capitania no processo de expansão da

fronteira colonial no Norte do Estado do Brasil não se refletiu em políticas para agilizar a construção dessa

fortificação e assegurar, dessa forma, a existência de um espaço fortificado apto a acolher os soldados que ali

fossem guarnecer. MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro:

Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968. p. 78. 127 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande. p.

101.

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Maranhão, Amazonas e Grão-Pará foram complexas devido exatamente às dificuldades de

alcançá-las por mar.128 Sendo assim, a Capitania do Rio Grande ocupou um papel fundamental

nesse processo de expansão colonial no Norte do Estado do Brasil, tanto no sentido militar

quanto no que concerne a sua localização geográfica,129 que possibilitou essa ligação terrestre

entre as capitanias do litoral leste e do litoral norte. Por fim, o papel da capitania de Pernambuco

nesse processo de expansão colonial no Norte do Estado do Brasil também não deve ser

desconsiderado. Segundo Campos Moreno, Pernambuco ajudou “a conquista e povoar o Rio

Grande, Seará, Maranhaõ; e graõ pará”.130 Portanto, se a existência de uma tropa regular

expressiva no Rio Grande pode ser associada ao interesse Ibérico de consolidar a conquista do

litoral do Norte do Brasil, esse não seria um processo simples sem o suporte militar e econômico

fornecido pela capitania de Pernambuco.

Um elemento interessante que podemos perceber examinando o relatório produzido por

esse militar, que estava a serviço da Coroa Ibérica, é a importância da religião e dos símbolos

da fé cristã na dinâmica social da colônia. Segundo o autor desse relatório, no ano de 1611, o

Forte de Cabedelo, localizado na Capitania da Paraíba,131 que possuía uma tropa regular de 20

soldados, como demonstra a Tabela I, corria o risco de ficar abandonado nos dias de missa. De

acordo com Campos Moreno, esse Forte não tinha “Capellaõ, Oratorio, nem Misa”132 e isso não

era justo com os soldados, que “por comprire’ co’ a obrigação da missa, deixará deserta a

fortaleza”.133 Outro ponto pertinente referente à Capitania da Paraíba é concernente ao modo

como o Capitão dividia os 20 soldados pagos existentes nesse território, que, para Campos

Moreno, era problemático. Conforme o mesmo, o Capitão costumava manter 10 soldados no

128 Ibid., p. 104-105. 129 O caráter estratégico da Capitania do Rio Grande também foi salientado por Campos Moreno. Segundo esse

sargento-mor, a Fortaleza dos Reis Magos “por natureza olha ambas as contas deste estado, assy de norte ao sul

como a de leste oeste até o Maranhaõ donde se acaba nossa conquista pello qual respeito foi, este porto o mais

demandado, e mais defendido dos cossairos, que outro algú do brasil […]”. Portanto, a Capitania do Rio Grande

era um território estratégico para expansão dos empreendimentos Ibéricos no Norte do Estado do Brasil e

conservação dos novos espaços conquistados e que viriam a ser territorializados. MORENO, Diogo de Campos.

Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e

Cultura, 1968. p. p. 77. 130 MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do

Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1968. p. 62. 131 Quanto à Capitania de Porto Seguro, era o território colonial que possuía o menor efetivo regular. Além disso, não possuía companhias de ordenanças. A explicação para a inexistência de companhias de ordenanças pode estar

associada à falta de homens para constituí-las. Segundo Campos Moreno, em 1612 Porto Seguro estava

praticamente despovoada. A própria formação de uma tropa regular, mesmo pequena e sem os oficiais necessários,

ocorreu, dentre outros motivos, para evitar que esse território acabasse despovoado, visto que, segundo Campos

Moreno, os moradores estavam fugindo da capitania, certamente por não se sentirem seguros. MORENO, Diogo

de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da

Educação e Cultura, 1968. p. 24. 132 Ibid., p. 71. 133 Idem.

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Forte e 10 permaneciam com ele para “guardar a cidade”.134 No entanto, em algumas ocasiões,

o Forte de Cabedelo ficava “tao falto”135 destes 10 que o tornava vulnerável. Dessa maneira, é

possível aprender desse relato que apenas 10 soldados não eram suficientes para guarnecer no

Forte da Paraíba. No entanto, Campos Moreno não sugere a arregimentação de mais homens,

apenas critica a administração do Capitão de Companhia, o que demonstra que, na concepção

do mesmo, 20 soldados seriam suficientes, desde que esses não atendessem “ao primor dos

capitãos”,136 ou seja, aos seus interesses.

Por fim, o Livro que dá razão ao Estado do Brasil nos possibilita compreender a

organização militar de algumas Capitanias do Estado do Brasil entre os anos de 1611 e 1612.

Esse documento, materialização do desejo de conhecimento da Coroa Ibérica acerca do

funcionamento de sua colônia no continente americano, demonstra como o processo de

expansão da fronteira colonial dependia da instância militar da administração colonial

instaurada no ultramar, não apenas nos embates com os indígenas, mas também para a

manutenção dos colonos nos territórios ocupados, protegendo-os de prováveis levantes

indígenas e assegurando-lhes a continuidade do processo de territorialização das terras

concedidas pela Coroa.

O quadro militar do Rio Grande, no que se refere ao efetivo regular, permaneceu até a

ocupação holandesa na Capitania. Uma alteração significativa que ocorreu no período anterior

à presença batava no Rio Grande foi referente às tropas auxiliares. Tavares de Lyra, com base

em um documento cedido por Capistrano de Abreu, afirmou que na década de 20 do século

XVII, já existia na Capitania cerca de 300 moradores dos quais se constituía duas companhias

de ordenanças e uma esquadra de até 40 homens de cavalo. Segundo o mesmo autor, essas

companhias eram conduzidas por capitães que já haviam atuado na Fortaleza dos Reis Magos

e que, portanto, possuíam competências militares para ocuparem tal posto de comando.137

Em 1630, o quadro militar efetivo existente na Capitania do Rio Grande teve que lidar

com um inimigo estrangeiro: os holandeses, que saíram vitoriosos desse embate e passaram a

guarnecer na Fortaleza até o ano de 1654.

De acordo com Hélio Galvão, o receio português acerca de uma invasão flamenga já era

sentido no início da década de 1620, visto que nesse contexto o Provedor-Mor da Fazenda,

Antonio Barreiros, visitou a Fortaleza dos Reis Magos no Rio Grande e fez um levantamento

134 Ibid., p. 71. 135 Idem. 136 Idem. 137 LYRA, Tavares de. História do Rio Grande do Norte. p.58.

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do que já havia sido finalizado da sua construção para, assim, poder provê-la “do necessário

[...] e as mais do norte pelo que se temia de o inimigo alguma facsão por serem acabadas as

pazes com os olandezes [...]”.138 O temor causado pela expectativa de uma invasão holandesa

fez com que Antonio Barreiros sugerisse que fossem entregues armas aos moradores do Rio

Grande para o caso de “algua fraqueza na Fortaleza”,139 ou seja, ele fez com que todo colono

fosse considerado um homem de guerra em meio a uma situação que ameaçasse a integridade

do território lusitano no Rio Grande. Na ocasião, Antonio Barreiros sugeriu, ainda, que os

soldados fossem “adestrados” e que os equipamentos de guerra fossem renovados, visto que

era “nesesario acudir destas faltas com muito conselho e diligencia pelo que podia resultar

avendo algum cometimento de inimigos”.140

O temor português se concretizou e todas as suas diligências não foram suficientes para

conter os holandeses, que ocuparam a capitania e guarneceram na Fortaleza dos Reis Magos

por cerca de 24 anos.141 A presença dos flamengos, conforme é discutido tanto na historiografia

clássica 142 quanto em estudos recentes 143 , foi uma “pausa” no processo de expansão da

colonização lusitana, não apenas no espaço em análise, mas também na Capitania de

Pernambuco. No entanto, a ocupação holandesa nas capitanias citadas, no sentido militar,

engendrou processos distintos. Enquanto na Capitania de Pernambuco o domínio holandês

resultou na emergência de terços de gente preta e parda e em um processo de militarização da

sociedade144, o Rio Grande sofreu com a falta de soldados, armas, munições e com o estado de

138 GALVÃO, Hélio. Op cit. p.39. 139 Idem. 140 Idem. 141 Segundo Hélio Galvão, no contexto da invasão holandesa, a Fortaleza dispunha apenas de 85 homens, enquanto

os holandeses possuíam 8 companhias que reuniam cerca de 808 homens. Portanto, militarmente é evidente que o Rio Grande estava em desvantagem. Todavia, o Capitão-mor do Rio Grande, Pero Mendes de Gouveia, havia

solicitado socorro à Paraíba, que lhe respondeu com o envio de 350 homens comandados pelo Sargento-mor

Antônio de Madureira Trigo e mais 4 companhias com cerca de 200 homens cada, comandas pelos seguintes

capitães: Cosme da Rocha, André de Melo e Albuquerque, Rui Calaza Borges Serpa e Miguel Padilha.

Possivelmente, o socorro militar que vinha da Paraíba explica a tentativa de resistência do capitão-mor do Rio

Grande, que enquanto estava ferido o efetivo que se encontrava na Fortaleza negociou a rendição e a entrega dessa

fortificação aos flamengos. Dessa forma, o reforço que estava a caminho, segundo o autor citado, retornou à

Paraíba. No contexto de domínio holandês, a Fortaleza passou a ser chamada de Kasteel Keulen, em homenagem

ao comandante da ocupação, e passou a contar com 150 praças, além dos oficiais. Sobre esse tema e o processo de

retomada da capitania do Rio Grande pelos portugueses ver: GALVÃO, Hélio. Op cit. p.64. 142 Com relação à historiografia clássica nos referimos à obra de Tavares de Lyra, História do Rio Grande do Norte. LYRA, Tavares. Op cit. p. 129. 143 Quanto à historiografia recente, nos remetemos à dissertação de mestrado de Patrícia Dias, também já

referenciada nesse texto. DIAS, Patrícia de Oliveira. Op cit. p. 43. 144 Em detrimento, no pós-guerra, a Câmara Municipal de Olinda sofria com a obrigatoriedade de ter que despender

recursos para manter uma tropa burocrática, grande e ociosa, constituída por três terços, com um total de 1.913

soldados, em um contexto em que seus serviços já não eram mais necessários. Na verdade, a presença da gente de

guerra em Pernambuco, especificamente das tropas pagas, foi tema de um conjunto de discussões entre a capitania

de Pernambuco e a Coroa, onde a Câmara de Olinda buscava ficar isenta do ônus de ter que sustentar as tropas

burocráticas existentes em Pernambuco. E, por fim, as tropas pagas de Pernambuco foram, nesse contexto, objeto

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ruínas da Fortaleza, que havia sido concluída pouco antes da ocupação holandesa. De forma

específica, após a expulsão dos holandeses, a Capitania possuía apenas uma tropa paga

importada da Capitania de Pernambuco e companhias de ordenanças, como demonstra o quadro

abaixo:

Quadro 1 – Espaços da Capitania do Rio Grande que possuíam companhias de ordenanças na segunda

metade do seiscentos

Espaços

Cidade do Natal

Distrito de Cunhahú

Distrito Guarahiras

Distrito de Goyana

Ribeira de Mopobú

Ribeira de Putigy

Ribeira do Siará Mirim

Distrito do Syará debaixo

Ribeira de Paguçara

Distrito de Goyana

Distrito de Gorayras

Fonte: elaborado por Maiara Araújo com base nos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional.

(Patentes e Provisões. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, v. XII,1668-1677.).

Contudo, o fortalecimento da administração militar e o alistamento obrigatório de todos

os colonos nas ordenanças deveria ser uma preocupação do Capitão-mor do Rio Grande, como

demonstra o Regimento de 04 de outubro de 1663, escrito pelo Conde de Óbidos Dr. Vasco

Mascarenhas, em 01 de outubro de 1663 e dado ao capitão-mor Valentim Tavares de Cabral

(1663-1670). As determinações presentes neste Regimento recomendavam a constante

vigilância em tudo que dissesse respeito à defesa da capitania, ao estado da fortaleza, artilharia,

munições e armamento. Determinavam também que fosse feito mostra a todos os moradores da

capitania e que aqueles em condições de pegar em armas fossem obrigados a possuí-las.145 Foi

nesse contexto, por exemplo, que João de Barros Coutinho foi nomeado Capitão de Infantaria

das Ordenanças que deveria constituir nos Distritos de Guaraíras e Goianinha da Capitania do

Rio Grande, citados no quadro anterior.146 Assim, a máxima que estava posta na segunda

de uma reforma militar conduzida por Brito Freyre no governo de Mendonça Furtado. Portanto, enquanto no Rio

Grande o problema era a falta de homens para o serviço militar, a falta de munições e armas e uma busca para sistematizar o serviço militar nesse espaço e armar todos os colonos que tivessem aptidão para as armas,

Pernambuco experienciava o oposto. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da

sociedade colonial: História de homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos

XVII e XVIII. p.153. 145 Regimento do Conde Vice-rei com que veio o Capitão-mor Valentim Tavares Cabral, a entrar no governo desta

Capitania. In: LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro:

Typografia do Jornal do Commercio, 1912. v. 1. p. 85-7. 146 Patentes e Provisões. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v.

XII,1668-1677. p. 75-76.

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metade do seiscentos era a de que todo colono que tivesse aptidão para pegar em armas fosse

transformado em um homem de guerra e que o capitão-mor deveria alistá-lo nas ordenanças

tornando-o oficialmente um militar a serviço da defesa desse território.

Por fim, o funcionamento da administração militar na Capitania do Rio Grande, pós-

presença holandesa, será abordado com mais afinco no tópico seguinte.

2.3 “Das grandes necessidades que padecem estes poucos soldados”: situação da tropa

paga que guarneceu na Fortaleza dos Reis Magos pós presença holandesa147

Os anos que se seguiram ao governo do capitão-mor Valentim Tavares de Cabral (1663-

1670) foram de retomada da colonização através da distribuição de sesmarias feita pelos

capitães-mores, bem como de reestruturação da própria administração militar. Nesse sentido, o

que se percebe, a partir do ano de 1665, é o envio de cartas, tanto da Câmara de Natal quanto

dos capitães-mores do Rio Grande, ao Rei D. Afonso VI acerca do estado de ruína da Fortaleza

dos Reis Magos, da falta de soldados, armas e munições. Nesse cenário, o que estava sendo

colocado eram as dificuldades para manutenção da administração militar durante a retomada da

expansão da presença portuguesa nas terras do Rio Grande, bem como a necessidade de se

reorganizar a capitania administrativamente para, dessa forma, o processo de ocupação de

território ser retomado de forma exitosa.

Dessa maneira, no ano de 1665, o capitão-mor do Rio Grande, Valentim Tavares Cabral,

enviou uma Carta ao rei, Dom Afonso VI, informando o estado precário no qual se encontrava

a administração militar instaurada no Rio Grande.148 De acordo com Valentim Tavares de

147 Os flamengos permaneceram na Capitania do Rio Grande por cerca de vinte anos, mais precisamente entre os anos de 1633 a 1654. Segundo o pesquisador Olavo de Medeiros Filho, a historiografia que aborda esse período

da história colonial do Rio Grande costuma fazer referência principalmente aos episódios sanguentos ocorridos

nos engenhos de Cunhaú e Uruaçú, ocasião em que índios, aliados dos holandeses, mataram portugueses e luso-

brasileiros que residiam nesse território colonial. Entretanto, conforme este autor, outros aspectos marcaram a

presença batava no Rio Grande, como a construção de uma cidade próxima ao Castelo Keulen, antiga Fortaleza

dos Reis Magos, bem como a tentativa de desenvolver atividades associadas ao criatório e a exploração do sal

marinho, presente nas salinas naturais que atingiam na época os rios Guamaré, Açu e Upanema, que hoje

correspondem ao município de Mossoró. Portanto, apesar da presença holandesa no Rio Grande, como salientou

os estudos de Tavares de Lira e da historiadora Patrícia Dias, ter sido compreendida como uma pausa no processo

de expansão da colonização da Capitania empreendida pelos portugueses, foi um momento, de acordo com

Medeiros Filho, em que os holandeses também buscaram explorar economicamente o Rio Grande, através da pecuária, atividade importante para a manutenção dos engenhos existentes no litoral e sustento dos moradores da

Capitania de Pernambuco. Além disso, a ocupação do Rio Grande era uma forma de assegurar aos flamengos a

sua presença no Norte do Estado do Brasil e, dessa forma, a manutenção desse território colonial. DIAS, Patrícia

de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró.

p. 43. LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. p. 129. MEDEIROS FILHO, Olavo de.

Os holandeses na Capitania do Rio Grande. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte,

1998. 148 Acerca da situação precária da Fortaleza dos Reis Magos na segunda metade do seiscentos, ver POSSAMAI,

Paulo. A Fortaleza dos Reis magos na segunda metade do século XVII. In.: POSSAMAI, Paulo (Org.) Conquistar

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Cabral, a Capitania não tinha mais que 6 soldados, “couza incrível, que esteja [...] sô seis

soldados quando 500 saõ poucos”149 Ademais, o capitão-mor salientou, também, o estado

precário da Fortaleza que, pós-presença holandesa, necessitava de reparos. Valentim Tavares

de Cabral foi enfático ao afirmar que já havia solicitado “por duplicadas vezes” socorro à

Capitania de Pernambuco, mas que esta “naõ quer acudir com couza nenhuma”,150 devido aos

conflitos que o Capitão General desta capitania tinha com o Vice-rei. Dessa maneira, resolveu

recorrer ao Reino, visto que Pernambuco não atendia às suas solicitações e nem mesmo às do

Governo Geral, que já havia pedido, sem sucesso, “que daquella praça de Pernam. se mandasse

p prisidiar esta fortalleza 80 soldados, como sempre teve des de seu principio, fora os officiais

necessarios. Como Alferes da dita fortaleza, Sargento, Ajudante, Condestável, com seus

artilheiros”.151

O efetivo solicitado por Valentim Tavares e pelo Governo Geral é semelhante ao

existente no período anterior à presença batava no Rio Grande. Um efetivo constituído por 80

soldados e os oficiais precisos, como assinalamos anteriormente, foi instituído na Capitania em

1609152 e guarneceu na Fortaleza até a chegada dos holandeses, em 1633. A quantidade de

soldados existentes ao período que antecedeu o governo dos flamengos na capitania serviu de

referência aos administradores do Rio Grande no período post-bellum, que solicitaram

incansavelmente à Coroa Ibérica a mesma quantidade de soldados e oficiais existentes até 1633.

Nessa perspectiva, a súplica encaminhada pelo capitão-mor, Valentim Tavares, não foi

a única carta enviada à Coroa relatando a precariedade da administração militar existente na

Capitania153. Assim, em 28 de julho de 1665, os camarários enviaram também uma Carta ao

e Defender: Portugal, países Baixos e Brasil (Estudos de História Militar na Idade Moderna). São Leopoldo:

Oikos, 2012. 149 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Valentim Tavares Cabral, ao rei [D. Afonso VI] sobre o

estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições. AHU-RIO GRANDE DO

NORTE. 1665. Cx. 1; doc. 5. 150 Idem. 151 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Valentim Tavares Cabral, ao rei [D. Afonso VI] sobre o

estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições. AHU-RIO GRANDE DO

NORTE. 1665. Cx. 1; doc. 5. 152 MORENO, Diogo Campos. Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem

na Costa do Brasil. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1609. PT-TT-MR-1-68_m0007.TIF. 153 Em resposta à súplica encaminhada por Valentim Tavares, o Governo Geral, em 1668, escreveu ao Governador

de Pernambuco e pediu que este enviasse a “fortalleza a guarnição que devia ter”. Todavia, acreditamos que

Pernambuco permaneceu indiferente ao pedido do Governo Geral, visto que em 1669, quando o sucessor de

Valentim Tavares assumiu o posto de capitão-mor, Antônio de Barros Rego, este informou que Pernambuco em

nada tinha socorrido o Rio Grande e que, devido a isso, a Fortaleza, em 1670, estava “sem hú soldado” e só

assistiam “nella dois artilheiros”, ou seja, o efetivo estava sendo cada vez mais reduzido e, em decorrência disso,

resolveu recorrer à Coroa, obtendo, dessa forma, um posicionamento da mesma em 1671, como discutiremos mais

adiante. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro, sobre representação dos oficiais da

Câmara de Natal e carta do capitão-mor António de Barros Rego, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos Reis

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Rei, Dom Afonso VI, atestando o estado precário da Fortaleza dos Reis Magos. Os oficiais da

Câmara do Natal dialogaram com o capitão-mor, Valentim Tavares, ao apresentarem à Coroa

a situação militar do Rio Grande, pós presença holandesa, destacando, dessa maneira, a falta de

soldados, que não eram mais que seis na época, a falta de munições, pólvora e a ausência dos

administradores da Capitania de Pernambuco, que, anterior à ocupação holandesa, costumavam

oferecer uma tropa de cerca de 80 soldados para Capitania do Rio Grande154.

A “ausência” da Capitania de Pernambuco foi um problema apontado tanto na carta do

Capitão-mor quanto dos camarários, no ano 1665. Sobre esse aspecto, acreditamos que um

elemento que pode explicar essa “omissão” de Pernambuco é o processo de reorganização

militar pelo qual a Capitania estava passando. Acerca disso, segundo Kalina Silva, a Capitania

de Pernambuco, pós-presença holandesa, foi alvo de um conjunto de ações que visavam realizar

uma reorganização política, econômica e militar. No âmbito militar, aspecto que nos interessa

nesse estudo, a Capitania, pós conflito com os flamengos, havia se tornado um espaço

militarizado, delineado pela emergência das tropas auxiliares (milícias de pretos e mestiços

comandadas por Henrique Dias), mas também pela presença de um corpo regular numeroso,

armado e sem atividade, com a expulsão dos batavos. Assim, no contexto pós-guerra, diante

das dificuldades para manutenção de uma tropa regular numerosa e ociosa, Pernambuco foi

alvo de uma reforma militar empreendida por Francisco de Brito Freyre, que implicava

exatamente na redução das tropas de linha e na constituição de tropas auxiliares.155

Para Francisco de Brito Freyre, governador de Pernambuco nesse contexto, as milícias

eram um corpo militar mais rentável que as tropas de linha, visto que não implicavam em

nenhum dispêndio para a Fazenda Real e ainda haviam se mostrado eficientes na luta contra os

holandeses. 156 Dessa forma, acreditamos que a tentativa de controle dessa sociedade

militarizada somada ao dispêndio causado pelo sustento das tropas de linha, justificou o não

envio de socorro da Capitania de Pernambuco para a Capitania do Rio Grande, como costumava

acontecer na primeira metade do século XVII.

Outro elemento importante de ser destacado é a própria situação da Capitania do Rio

Grande na primeira metade do seiscentos. Segundo Fátima Lopes, como já assinalamos para

Magos. Anexo: representação dos oficiais; inventário da artilharia, munições e guarnição da Fortaleza dos Reis

Magos e cartas, 1670. Papéis Avulso. Cx. 1, doc.7. 154 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 155 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p. 217. 156 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p. 217.

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esse contexto, a Capitania ocupava uma posição estratégica no processo de expansão da

empresa colonial, empreendido por Filipe II, onde a Fortaleza dos Reis Magos deveria

funcionar como um suporte militar na conquista do Norte do Estado do Brasil.157 Esse aspecto,

evidentemente, justificava a presença de uma tropa regular enviada por Pernambuco que, ao

longo do século XVII, segundo a historiadora Maria do Socorro Ferraz, funcionou como um

centro difusor de homens, armamentos e suprimentos nos empreendimentos lusitanos de

expansão da empresa colonial no Norte do Estado do Brasil.158 Em contrapartida, na segunda

metade do seiscentos, tanto Pernambuco159 quanto o Rio Grande buscavam mecanismos para

se reorganizarem administrativamente. No entanto, essa restruturação do Rio Grande

perpassava pelo socorro militar de Pernambuco ou de outro território colonial, visto que a

Capitania não possuía uma arrecadação suficiente que a possibilitasse arcar com esse ônus.

Nesse sentido, segundo os camarários, os soldados da Fortaleza dos Reis Magos na

segunda metade do seiscentos enfrentavam “grandes nessecidades” e “mizeria” que os

obrigadavam “a largarem a obrigação”160 militar, ou seja, a situação precária da Fortaleza

implicava em deserções, deixando, dessa forma, a administração militar da Capitania ainda

mais fragilizada, com a Fortaleza em ruínas e sem efetivo suficiente para defender esse

território. Conforme os oficiais da Câmara, a miséria era tanta “q há seis ou sete mezes ou mais”

que os soldados estavam sem farinha, “vivendo com esperanças” que Pernambuco, Bahia ou

mesmo os moradores locais os socorressem os suprimentos precisos, algo pouco provável

diante da “sugeiçaõ com q vivem os pobres moradores da terra”,161 Assim, em meio a esta

instabilidade do sistema defensivo do Rio Grande, da pobreza dos moradores e da falta de

socorro de Pernambuco os camarários faziam o seguinte apelo à Coroa:

V. Magestade mande socorrer esta sua fortalleza com a goarnição com que foi

criada (athe ser tomada do olandes) q saõ oitenta soldados com seus oficiais um condestavel com os Artilheiros q forem necessarios para o governo de

trinta peças de artilharia que tem, polvora, muniçois para a sua defençaõ soldo,

157 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande. p.72-

73. 158 FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de dentro e de

fora. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial, 1580-1720. V.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 171-226. 159 A Capitania de Pernambuco, quando Francisco de Brito Freyre assumiu o governo, possuía três tropas de linha,

que se somavam às tropas de linha importadas para as Capitanias anexas, como a do Rio Grande. Sobre essa

organização militar da Capitania de Pernambuco após presença holandesa, recomendamos os estudos de Evaldo

Cabral: MELLO, Evaldo Cabral. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1645. São Paulo: Ed.

34, 2007. p.231. 160 Idem. 161 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

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e sustento para os soldados, como se dava antes de asenhorearem os inimigos,

e finalmente pedimos a V. Magestade mande reedificar as Roínas da dita

Fortalleza para q assombra della sepouse esta Capitania [...].162

Em consonância com esse apelo, afirmavam que o socorro militar prestado pela Coroa

resultaria em ganhos para a Fazenda Real, visto que o processo de territorialização da Capitania

estava condicionado à segurança que esse território poderia oferecer para os seus colonos, pois,

do contrário, era mais viável aos moradores abandonarem a Capitania e irem para outras que

lhes oferecessem, de fato, segurança para o cultivo de suas fazendas.163 Os oficiais da Câmara,

além de recorrerem à importância monetária que a capitania poderia oferecer caso fosse

socorrida, apelavam também para o caráter imprescindível da instituição militar no Rio Grande

para assegurar a posse desse território sob custódia do Reino, visto que, conforme os mesmos,

sem uma guarnição que defendesse a capitania esta estaria susceptível aos perigos internos

(levantes “do barbaro tapuia”) e a “coaquer enemigo do mar ou da terra”, onde, certamente, a

capitania “facilmente se perderia”.164

Portanto, as Cartas enviadas tanto pelo capitão-mor quanto pelos camarários atestam a

importância da administração militar para a manutenção de um território colonial. Na

concepção desses administradores, um efetivo militar numeroso e uma Fortaleza proeminente

eram símbolos do poder Real no Ultramar, que asseguravam a segurança dos colonos para

edificar seus engenhos e tornar as terras concedidas pela Coroa produtivas para a fazenda Real.

Esse caráter estratégico da administração militar justifica o fato da administração civil e militar

trabalharem conjuntamente para fortalecer o sistema defensivo da Capitania na segunda metade

do seiscentos.

Sobre esse contexto, as cartas enviadas ao rei D. Afonso pelo capitão-mor e pelos

camarários demonstram, além de um esforço conjunto da administração civil e militar para

reorganizar o Rio Grande territorialmente e militarmente, as fragilidades administrativas

existentes na própria Capitania, pós presença holandesa. Nesse período, segundo as

informações presentes nessa documentação, os poucos moradores existentes na Capitania,165

162 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 163 Idem. 164 Idem. 165 Segundo essa documentação, os moradores novos que foram trazidos à Capitania pelo capitão-mor Antônio

Vaz Gondim, eram, em sua maioria, soldados vindos da guerra de Pernambuco. Homens pobres, que acreditavam

ser possível obter com mais facilidade seu sustento em um espaço que estava se reorganizando territorialmente e

administrativamente. Certamente, eles esperavam obter algum tipo de prestígio por meio do cultivo das terras

recebidas e mercês devido aos seus feitos militares em Pernambuco. Os oficiais da Câmara não afirmam quais

foram as guerras enfrentadas por esses soldados em Pernambuco, mas, tendo como base o recorte temporal em

que ocorrem essas migrações, acreditamos que as mesmas se referiram às lutas contra os batavos que também

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que nesse contexto contabilizavam apenas 40, não tinham condições para manterem suas terras

e possuíam pouco cabedal, o que impossibilitava a cobrança da finta. Para os camarários, apenas

dois moradores da Capitania possuíam um cabedal significativo e estes eram militares. Tratava-

se, portanto, de Antônio Vaz Gondim, que havia sido capitão-mor do Rio Grande até 1663

antecedendo, dessa maneira, Valentim Tavares de Cabral, e o capitão das ordenanças Manuel

Soares de Abreu, conforme demonstra a transcrição abaixo:

[...] deixando o enemigo olandes a terra taõ abrazada e despovoada pelas

mortes q imjustamente deu aos moradores della como se sabe e estar de prezente taõ mal povoada como se ve nem ouve lugar para o estar mais por q

avendo oito annos q veio por capitão mor p esta praça Antônio Vaz achou so

morador nesta cappitania ao Vigario Leonardo Tavares de Mello que se o

acompanhou passante de dous annos, da fim dos coais por diante começaraõ ce acudir algus por novos povoadores q e dos antigos poucos dos poucos q

escaparaõ da mortandade q na terra ouve sendo hus e outros q vieraõ de pouco

ou nenhum cabedal e os mais delles soldados da guerra de pernambuco q casandoce pobres se vieraõ a esta cappitania fiados em q por ser povoada de

novo teriaõ nella o sustento com menos deficuldade do q em outra parte de

hus e de otros chega a tanto a pobreza [...] q essa manifesta a empossibilidade

de pagar fintas [...] de quarenta moradores pouco mais ou menos q ha na capitania e q o capitão mor Antônio vas p ella trouxe so o mesmo capitão mor

e o capitão Manuel de Abreu Soares (ilegível) saõ os q tem algum cabedal

[...].166

Assim, é evidente que a situação da Capitania era complexa entre os anos de 1660 e

1670. Como assinalamos, o processo de territorialização desse espaço havia sido interrompido

pela presença batava no Rio Grande e, juntamente com ele, a consolidação dos sistemas

burocráticos instalados nesse território, como o militar. No entanto, outro elemento importante

que essa documentação atesta é tentativa de retomada do processo de territorialização e de

reorganização administrativa desse território pós-presença holandesa no Rio Grande. Sobre esse

último aspecto, os esforços empreendidos pelo capitão-mor Antônio Vaz Gondim, antecessor

de Valentim Tavares, que por meio da publicação de editais e da distribuição de sesmarias, para

trazer os antigos moradores de volta, bem como novos homens para ocupar este espaço e torná-

lo produtivo,167 são apenas alguns dos exemplos das ações conduzidas pela administração

militar para retomar o processo de ocupação territorial da capitania.

estavam de posse de Pernambuco. Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado

de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc.

5. 166 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 167 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

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É importante salientar que, na segunda metade do seiscentos, os percalços enfrentados

pela administração militar não eram uma particularidade da Capitania do Rio Grande. Nessa

perspectiva, apesar da importância da administração militar na defesa e manutenção dos

territórios custodiados por Portugal, a precariedade dessa instituição colonial, no que concerne

à falta de soldados, de armamentos, suprimentos e ao atraso dos soldos não foi uma

particularidade do espaço em estudo, mas sim um problema enfrentado, também, por outros

administradores das demais Capitanias existentes no Estado do Brasil. Citamos aqui o caso,

dentre outros, das capitanias da Paraíba e do Ceará, vizinhas da capitania do Rio Grande, que

na segunda metade do seiscentos também solicitaram socorro militar à Coroa.

Assim, no início do seiscentos, mais especificamente, em 25 de maio de 1619, o

Capitão-mor do Ceará, Martin Soares Moreno, enviou um Requerimento ao Rei, Dom Filipe II,

solicitando meios para reconstruir a Fortaleza edificada por ele anos antes e que estava, nesse

momento, em estado precário. Martin Soares Moreno solicitou, também, munições, soldados,

oficiais, armamentos e pólvora. A justificativa apresentada por este Capitão-mor para tal

Requerimento era garantir que a Capitania estivesse em defensa dos “alsaltos dos inimigos da

terra” e dos inimigos do mar também.168

Segundo Gomes, nos anos de 1624 e 1625, Martin Soares Moreno liderou seus homens

na defesa do Forte de São Sebastião contra os ataques franceses e holandeses, obtendo a vitória

e, consequente, manutenção da fortificação. Nos anos seguintes, conforme este autor, o capitão-

mor do Ceará retornaria ao rei com os mesmos pedidos de socorro militar, todavia, este não foi

atendido em suas solicitações, mesmo afirmando o caráter de importância de seus pedidos para

a defesa e manutenção da Capitania.169 Os argumentos utilizados por Martin Soares Moreno

dialogavam com os mesmos apresentados pelos oficiais camarários e pelos capitães-mores do

Rio Grande, entre os anos de 1660 e 1670, acerca da pertinência desse socorro para a

manutenção do território da própria Capitania, que sem esse auxílio militar ficava exposta aos

perigos dos “inimigos” do mar e aos assaltos dos naturais da terra.

A Capitania da Paraíba, assim como a do Rio Grande e a do Ceará, também esteve

exposta a um conjunto de limites na instância militar da administração colonial presente nesse

espaço. Dessa maneira, em 15 agosto de 1679, deparamo-nos, nos documentos de época, com

o capitão-mor da Paraíba, Alexandre de Souza Azevedo, enviando uma Carta à Coroa, onde

168 REQUERIMENTO do capitão-mor do Ceará, Martim Soares Moreno, ao rei [D. Filipe II], a pedir meios para

reconstruir a fortaleza, soldados e seus oficiais, armas, munições e pólvora para defesa dos ataques dos holandeses

e franceses, e escala dos navios que do estado do Brasil vão ao do Maranhão, 1619. Papéis Avulsos. 169 GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. p.25.

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relatava os percalços que estava enfrentando em meio aos problemas existentes na Fortaleza de

Cabedelo, localizada na Capitania da Paraíba. De acordo com Alexandre de Souza Azevedo, a

Fortaleza de Cabedelo necessitava de consertos, de pólvora, munições e de um capelão para

realizar as solenidades da fé cristã para os soldados que guarneciam na mesma.170 Assim, à

exceção do capelão, os mesmos elementos colocados à Coroa como precisos na Fortaleza de

Cabedelo 171 também eram necessários nas Fortalezas das Capitanias do Rio Grande e da

Paraíba.

É interessante notar que a falta de um capelão já havia sido um problema na Fortaleza

de Cabedelo, em 1612. Nesse contexto, como assinalamos, faltava a esta fortificação um

capelão e na ausência desse os soldados eram impelidos a largarem suas obrigações militares

“por comprire’ co’ a obrigação da missa, deixando deserta a fortaleza”.172 Não sabemos se esse

problema foi solucionado na época, no entanto, uma Consulta do Conselho Ultramarino, ao

príncipe regente D. Pedro, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba, Alexandre de Sousa e

Azevedo, em 1680, demonstra que, se solucionado, este problema retornou décadas depois e,

em consonância com este, outros empecilhos também emergiram como a falta de munições e o

estado precário da Fortaleza de Cabedelo.

Na segunda metade do seiscentos, não foram apenas os administradores das Capitanias

do Norte do Estado do Brasil que tiveram que lidar com problemas para a manutenção da

administração militar atuante em seus territórios. A falta de soldados e oficiais também foi um

problema presente na capitania do Rio de Janeiro, na segunda metade do seiscentos, como

demonstra os estudos de Christiane Figueiredo Pagano de Mello. Segundo essa historiadora, o

Rio de Janeiro serviu de suporte para a ação militar na região platina mantendo, dessa maneira,

a Colônia do Sacramento com os seus próprios recursos. Em decorrência disso, a Capitania teve

sua defesa afetada, devido à falta constante de mantimentos e guarnição.173

Portanto, dada as especificidades econômicas e sociais das Capitanias citadas, um

elemento comum que se fez presente nesses territórios foi a precariedade das tropas pagas

existentes nas mesmas. Esse elemento comum nos possibilita, inclusive, questionar a eficiência

170 CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao príncipe regente D. Pedro, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba,

Alexandre de Sousa e Azevedo, acerca da ruína da fortaleza do Cabedelo, 1680. AHU, Papéis Avulsos, Cx. 2, doc. 109. 171 Sobre a Fortaleza de Cabedelo, o Conselho Ultramarino foi de parecer favorável às solicitações encaminhadas

pelo Capitão-mor da Paraíba à Coroa e salientou a importância dessa fortificação para a defesa dos territórios

coloniais. CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao príncipe regente D. Pedro, sobre a carta do capitão-mor da

Paraíba, Alexandre de Sousa e Azevedo, acerca da ruína da fortaleza do Cabedelo, 1680. Papéis Avulsos, Cx. 2,

doc. 109. 172 Idem. 173 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. O Rio de Janeiro: uma praça desfalcada “dos melhores soldados e

oficiais” (séculos XVII-XVIII). História, São Paulo, v.31, n. 1. p. 216, jan-jun. 2012.

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militar das tropas regulares 174 no Ultramar durante o século XVII, tendo em vista que a

precariedade das tropas de linha era uma situação que se fazia presente em diferentes Capitanias

do Estado do Brasil nesse contexto. Evidentemente que os percalços enfrentados na

administração militar de cada território colonial possuía suas particularidades, no entanto a falta

de homens, armamentos, suprimentos e soldo parece ter sido um elemento comum no Estado

do Brasil, como já demonstrou, dentre outros, os estudos de Christiane Figueiredo Pagano

referentes à Capitania do Rio de Janeiro175 e os de Kalina Silva, concernentes à Capitania de

Pernambuco.176

Em consonância com esses estudos, a própria documentação que examinamos atesta o

caráter precário da administração militar instaurada no Estado do Brasil. Sobre esse aspecto, o

parecer do Conselho Ultramarino, de 1693 e sobre o qual falaremos adiante, apontou

exatamente essa fragilidade da administração militar presente nas Capitanias do Brasil, como

evidencia a transcrição abaixo, extraída de uma consulta do Conselho Ultramarino ao Rei:

Pareçeo ao Conselho conçiderados os avizos que tem recebido de todas as capitanias do Brazil do miserável estado, em que se achaõ as praças e

fortalesas delle, incapases de se poderem conçervar se houver inimigos que

intentem comete-las, por se acharem faltas de todo o meyo da sua defença e

as conçequençias que da sua perda pode resoutar a esta Coroa, e seja muito conveniente ao serviço de V.M. q se trate por todo o caminho de seu remédio,

e que se acuda, e obre nelas tudo o que for necessário, para que estejão com

toda obra prevenção e segurança, quando se offereca a ocasião de serem invadidas.177

174 Apesar da precariedade do serviço militar nas tropas regulares, o ingresso como soldado nesse corpo militar,

como elucidamos nesse texto, oferecia a possibilidade de mobilidade dentro da administração militar. Essa mobilidade poderia ocorrer dentro da própria tropa regular ou servir de experiência militar para o ingresso em

outra força militar, ocupando um posto que fosse oficial. Sobre esse aspecto, deparamo-nos, no ano de 1739, com

a indicação de 9 militares para o posto de capitão de companhia de uma milícia na capitania do Rio Grande. Dentre

os elementos destacados na indicação desses militares estava presente a atuação de alguns como soldados pagos,

ou seja, membros das tropas de linha, como foi o caso de Manoel Gomes da Silveira, filho do Capitão das

ordenanças Bartholomeu da Costa e que havia servido como soldado pago por quatro anos. Além disso, havia sido

tenente de cavalos, ajudante de cavalaria. CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire,

ao rei [D. João V] sobre a indicação de pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de

capitão das nove companhias do Rio Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas indicadas para

os postos e carta do governado de Pernambuco, 1741. AHU, Papéis Avulsos, Cx. 5, doc. 10. 175 CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre a indicação de pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão das nove companhias do Rio

Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas indicadas para os postos e carta do governado de

Pernambuco, 1741. AHU, Papéis Avulsos, Cx. 5, doc. 10. 176 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Op cit. 177 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre diversas cartas recebidas acerca do estado de

ruína da capitania do Rio Grande do Norte e da Fortaleza dos Reis Magos por causa da Guerra dos Bárbaros.

Anexo: aviso; parecer do Conselho Ultramarino (minuta); cartas do ouvidor-geral da Paraíba, Diogo Rangel Castel

Branco, do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Sebastião Pimentel, dos oficiais da Câmara de Natal e do

governador de São Tomé, Ambrósio Pereira de Berredo, 1693. Papéis Avulsos, Cx. 01; Doc. 32-35.

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Portanto, as fragilidades às quais estavam expostas as tropas regulares nos permitem, inclusive,

questionar a eficiência desse corpo militar na segunda metade do seiscentos no espaço em

estudo, visto que a falta de soldados, oficiais e o estado precário da Fortaleza, como afirmavam

os Capitães-mores e os camarários, deixavam a Capitania do Rio Grande e seus moradores

desprotegidos e susceptíveis a todo e qualquer perigo, como os “alsaltos dos inimigos da

terra”,178 fato que se concretizaria em fins do seiscentos com a chamada dos Guerra dos

Bárbaros.

Por fim, na segunda metade do seiscentos, a situação não era crítica apenas no Ultramar.

Nesse contexto, pós-Guerra da Restauração (1640-1668), Portugal buscava mecanismos para

legitimar a dinastia Bragança no trono lusitano e, em consonância com isso, assegurar seu poder

enquanto monarca tanto no cenário europeu quanto em suas possessões ultramarinas. Ademais,

a Coroa precisava reestabelecer-se economicamente, visto que, como assinala o historiador

Marcelo Loureiro, os holandeses desestruturaram o comércio europeu no Ocidente e no Oriente.

Segundo o autor,

No Oriente, desde 1621, as complicações se agravaram. Com o fim da trégua

com os holandeses, neste mesmo ano, eles tomaram a ilha de Banda. No ano seguinte, os persas dominaram Ormuz. Os holandeses pressionaram Macau

em 1623 e 1626. Em 1631, os árabes e cafres arrasaram os portugueses em

Mombaça, recuperada em 1632. Em 1634, em dissonância com a Companhia

de Jesus, os japoneses não comercializaram mais com os portugueses em Macau, uma das principais fontes de prata e escoadouro da seda chinesa. De

1637 a 1644, os holandeses bloquearam a barra de Goa e, em 1638, iniciam a

campanha do Ceilão, terminada somente em 1659. Ou seja, as condições da presença portuguesa no Oriente eram péssimas. Assim,

os holandeses ‘devastaram sistematicamente o comércio português asiático

desde o golfo pérsico até ao Japão, e destruíram grande parte da longa cadeia de colônias costeiras portuguesas, conquistando-as uma a uma’. O resultado

foi que a Companhia Holandesa das Índias Orientais conseguiu, em poucos

anos, retirar dos portugueses o controle dos fluxos mercantis do cravo da índia

e da noz-moscada das Molucas, da canela da costa do Ceilão e da pimenta do Malabar.179

Nesse sentido, se no Ocidente, com a ocupação das capitanias do Norte do Estado do

Brasil, o principal produto cobiçado pelos holandeses foi o açúcar, no Oriente os flamengos

conseguiram retirar dos portugueses o controle sobre as especiarias na Índia e na Costa africana,

dentre outras medidas, os batavos conseguiram, partir de 1641, dominar a praça africana de São

178 REQUERIMENTO do capitão-mor do Ceará, Martim Soares Moreno, ao rei [D. Filipe II], a pedir meios para

reconstruir a fortaleza, soldados e seus oficiais, armas, munições e pólvora para defesa dos ataques dos holandeses

e franceses, e escala dos navios que do estado do Brasil vão ao do Maranhão, 1619. Papéis Avulsos. 179 LOUREIRO, Marcelo. “Em miserável estado”: Portugal, as guerras de restauração e o governo do Império

(1640-1654). p. 198.

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Paulo de Luanda e controlar os lucros do tráfico negreiro. 180 Portanto, as dificuldades

enfrentadas pela Coroa lusitana pós-Guerra da Restauração (1640-1668) eram muitas e,

possivelmente, foi em decorrência desse cenário complexo, de reorganização econômica e

política de Portugal, que os problemas apresentados pelas cartas enviadas pela administração

civil e militar da Capitania do Rio Grande só obtiveram respostas em 1671, ou seja, seis anos

após terem sido enviadas.

No entanto, até obterem um posicionamento da Coroa, os administradores do Rio

Grande permaneceram enviando incansáveis pedidos de socorro tanto à Capitania de

Pernambuco como ao próprio Governo Geral. Em carta à Coroa, em 20 de maio de 1670, por

exemplo, o capitão-mor do Rio Grande, Antônio de Barros Rego, sucessor de Valentim

Tavares, afirmou que não havia faltado de sua parte “a diligencia de pedir socorro ao

Governador e Capitam Geral deste Estado Alexandre de Souza Freire”, que, em resposta aos

seus pedidos ordenou que recorresse ao Governador de Pernambuco, Bernardo de Miranda

Henriques, para que este socorresse o Rio Grande, como costumava fazer. Todavia, o capitão-

mor encerra sua carta relatando que Pernambuco permaneceu ausente, mesmo após o

pronunciamento do Governo Geral, e que a situação da Capitania era complexa, visto que “naõ

quer nenhum soldado assistir nella” e, devido a isso, recorria ao Reino, pois “se lhe naõ paga

coiza algua como hera”, os soldados e oficiais não retornariam à Fortaleza.181

Antecedendo essa carta, Antônio de Barros Rego, ao assumir o posto de capitão-mor,

visitou a Fortaleza dos Reis Magos e fez um inventário da artilharia e munição existente nessa

fortificação. De acordo com esse documento, a situação das peças de artilharia e da munição

existente na Fortaleza era complicada, como demonstra o quadro abaixo:

Quadro 2 – Peças da artilharia e munição existentes na Fortaleza, 1669

Artilharia e munição Descrição

12 peças de artilharia de bronze Peças “muito velhas e gastadas do tempo, e que

naõ servem para cousa alguma”

12 peças de ferro Peças “roins, e gastadas da ferrugem em carretas

velhas, gastadas do tempo, e quebradas”

7 peças de ferro sem carretas “saõ gastadas da ferrugem”

10 barris de pólvora -

800 balas de artilharia -

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D.

Pedro, sobre representação dos oficiais da Câmara de Natal e carta do capitão-mor Antônio de Barros Rego, 1670. Papéis Avulsos. Cx. 1, doc.7.

180 Idem. 181 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro, sobre representação dos oficiais da

Câmara de Natal e carta do capitão-mor António de Barros Rego, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos. Anexo: representação dos oficiais; inventário da artilharia, munições e guarnição da Fortaleza dos Reis

Magos e cartas, 1670. Papéis Avulso. Cx. 1, doc.7.

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Além da descrição da artilharia, munição e outros objetos existentes na Fortaleza, o inventário

apresentou informações referentes à gente de guerra presente na fortificação, como demonstra

o quadro 3:

Quadro 3 – Efetivo da Fortaleza dos Reis Magos, 1669

Gente de Guerra Função

Gregorio Fernandes Sem identificação

João Lopes Artilheiro

(Ilegível) Artilheiro

João de Alemanha Artilheiro

Domingos da Costa Minhoto Sargento

Francisco de Oliveira Banhos Ajudante

Antonio Coelho Barbeiro

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro, sobre representação dos oficiais da Câmara de Natal e carta do capitão-mor Antônio de Barros Rego,

1670. Papéis Avulso. Cx. 1, doc.7.

Tendo como base os dados acima, é possível perceber que o efetivo da Capitania era

semelhante ao existente no ano de 1665, conforme a descrição dos camarários e de Valentim

Tavares, anteriormente mencionada. No entanto, enquanto em 1665 existiam cerca de 6

soldados, em 1669 consta apenas a presença de 3 artilheiros, como demonstra a quadro 1.

Todavia, é provável que Gregório Fernandes atuasse também como soldado da Fortaleza, visto

que este foi o único que não teve seu posto identificado. Em contrapartida, em 1665, não foi

relatada a presença de nenhum oficial, aspecto que não se repetiu em 1669, visto que o capitão-

mor relata a existência de um sargento na Fortaleza, como foi o caso de Domingos da Costa.

Entretanto, esse corpo militar da Fortaleza, ficou ainda mais deficitário

quantitativamente em 1670, onde a Fortaleza foi descrita como possuindo apenas 2

artilheiros.182 Assim, é evidente que o socorro militar, seja da Coroa, do Governo Geral ou de

Pernambuco era imprescindível ao Rio Grande nesse contexto de reorganização administrativa,

visto que sem esse auxílio o efetivo da Capitania permanecia sendo reduzido, ao ponto de

permanecerem apenas 2 artilheiros na Fortaleza.

Quanto às peças de artilharia, também é claro o estado precário das mesmas,

enferrujadas, quebradas e desgastadas pelo tempo. Portanto, entre os anos de 1660 a 1670

percebemos o esforço conjunto da administração civil e militar para tentar reverter esse quadro

182 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro, sobre representação dos oficiais da

Câmara de Natal e carta do capitão-mor António de Barros Rego, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos. Anexo: representação dos oficiais; inventário da artilharia, munições e guarnição da Fortaleza dos Reis

Magos e cartas, 1670. Papéis Avulsos. Cx. 1, doc.7.

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precário da Capitania do Rio Grande no que se refere à falta de gente de guerra e de armamentos

e suprimentos.

Por fim, a representação enviada pelos camarários e a carta enviada pelo capitão-mor,

Antônio de Barros Rego, em 1669, obtiveram um parecer favorável do Conselho Ultramarino

acerca da necessidade de se socorrer a Capitania. Sobre o parecer do Conselho Ultramarino e

da Coroa passaremos a discorrer no tópico seguinte.

2.4 “E assim estâ hoje a fortalleza de tratamos sem hú soldado”: o socorro militar

prestado pela Coroa às necessidades que padeciam os soldados da Fortaleza dos Reis

Magos, 1670-1680

Em 1670, o Conselho Ultramarino remeteu ao Rei uma representação dos camarários

da Cidade do Natal e uma carta do capitão-mor, Antônio de Barros Regos, que tratavam dos

problemas enfrentados pela administração civil e militar da Capitania, em decorrência da

fragilidade da Fortaleza dos Reis Magos, da falta de guarnição, armamento e munição. Esses

mesmos problemas haviam sido relatados em 1665, como elucidamos, pela Câmara e por

Valentim Tavares. No entanto, na época, apenas o Governo Geral se pronunciou sobre essa

matéria e a ordem dada pelo Governo do Estado do Brasil não foi cumprida por Pernambuco.183

Dessa maneira, em 1670, o Conselho Ultramarino se posicionou de forma favorável às

solicitações enviadas pelos administradores do Rio Grande e sugeriu que fosse enviado socorro

militar diretamente do Reino para esta capitania. Esse socorro militar sugerido pelo Conselho

Ultramarino deveria ter se dado através do envio de “polvora ballas e munições” para a

“defença” da Fortaleza.”184

Certamente, em decorrência desse parecer do Conselho Ultramarino, a Coroa se

pronunciou em 1671, acerca da situação da Capitania do Rio Grande. Dessa forma, em 26 de

janeiro de 1671, por meio de uma Carta Régia, a Coroa solicitou que a Capitania de Pernambuco

socorresse militarmente o Rio Grande, enviando 20 soldados para a Fortaleza dos Reis Magos

e pólvora. 185 Todavia, é possível que a Capitania de Pernambuco não tenha atendido de

imediato essa solicitação real, visto que, tendo como base a Consulta do Conselho Ultramarino

de 1674, podemos inferir que esses soldados não estavam na Capitania até o ano de 1673, ou,

se enviados por Pernambuco, estes devem ter fugido.

183 Idem. 184 Idem. 185 CARTA Régia de 26 de janeiro de 1761 apud GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio

Grande. p.121.

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Asseveramos isso tendo como base a carta de Antônio de Vaz Gondim, datada de 1673,

onde este afirmou que ao tomar posse novamente do posto de capitão-mor havia se deparado

com a Fortaleza sendo guarnecida por apenas 8 soldados, mas que esta, no ano seguinte,

contexto no qual escrevia à Coroa, já se encontrava com 20 soldados.186

No entanto, possivelmente entre as décadas de 1660 e 1670 algum socorro foi enviado

à Capitania do Rio Grande, visto que em 1671, mais precisamente em 8 de novembro de 1671,

o Governador-Geral, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, interpelou a Antônio de

Vaz Gondim, capitão-mor do Rio Grande, e a Paulo Pereira de Miranda, 187 Provedor da

Capitania, a prestarem contas do que estava sendo feito na Fortaleza, visto que, conforme o

mesmo, há muitos anos o dízimo da capitania vinha sendo despendido com a “reedificação da

Fortaleza sem luzir as obras dela”. O Governador Geral foi enfático ao cobrar um

esclarecimento ao Provedor, como demonstra a transcrição abaixo,

Vejo o que Vossa Mercê me diz sobre a despesa que aí se faz do rendimento dos dízimos pelo Sr. Conde de Óbidos vice-rei que foi deste Estado na

reedificação dessa Fortaleza (...) Vossa Mercê me mande em particular relação

das braças de obra, e o que custou cada uma, se foi de empreitada e o que se dava ao pedreiro por dia, se a jornal: e de tudo o mais que convier, para eu ter

inteira notícia desta despesa.188

No entanto, contraditoriamente, os pedidos de socorro, atestando o caráter precário da

Fortaleza, permaneceram, como demonstram as cartas enviadas pelos camarários e pelo

capitão-mor, em 1673, o que nos permite conjecturar que, provavelmente, os recursos

empregados na reedificação da Fortaleza não eram suficientes, ou, do contrário, não estavam

sendo bem administrados. Todavia, acreditamos que a primeira hipótese é mais plausível, visto

que, entre as décadas de 1660 e 1670, a Provedoria do Rio Grande, tal qual a administração

militar, passavam por um processo de reestruturação. Ademais, os rendimentos da Provedoria

186 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro sobre cartas do capitão-mor do Rio Grande

do Norte, António Vaz Gondim, e dos oficiais da Câmara de Natal, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos

Reis Magos, da falta de munições e infantaria e acerca da reconstrução da matriz [de Nossa Senhora da

Apresentação]. Anexo: inventário das munições e apetrechos da Fortaleza dos Reis Magos (cópia); cartas e

certidão, 1674. Papéis Avulsos, Cx. 01. doc.9. 187 Segundo Barbosa, Paulo Pereira de Miranda recebeu o posto de Provedor em decorrência de um casamento.

Conforme a historiadora, Valentim Tavares de Cabral recebeu a mercê do ofício de Provedor pelos serviços

prestados à Coroa e concederia esse posto a quem se casasse com sua irmã. No caso, Paulo Pereira de Miranda, de

fato, uniu-se em matrimônio com uma parente desse Capitão-mor. No entanto, o que é interessante é que essa não

foi uma particularidade da capitania do Rio Grande, de acordo com a autora, mas sim uma prática que se repetiu

na Paraíba e em Pernambuco, o que demonstra algumas das estratégias utilizadas pelos colonos para conseguirem

ingressar nas instâncias administrativas existentes no Estado do Brasil. BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Op cit,

p. 96. 188 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p. 123.

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não eram suficientes sequer para pagar a farinha dos soldados da Fortaleza, como demonstram

as cartas enviadas pelos camarários e pelos capitães-mores. Segundo esses mesmos

administradores, os rendimentos da Capitania orçavam 200 réis, valor insuficiente para arcar

com o ônus de uma tropa paga e com as reformas de uma Fortaleza.189

Dessa maneira, em 1673, as administrações civis e militares da Capitania novamente

recorreram à Coroa, solicitando que Pernambuco socorresse o Rio Grande com “efetivos oitenta

infantes e dous artilheiros, com as armas e munições neçessarias, para segurança daquelle povo,

e temor do gentio”.190 Além desses elementos, já salientados em outras cartas, o capitão-mor

da Capitania pediu o auxílio do Reino para concluir as reformas que estava realizando na Igreja

Matriz, instituição imprescindível, na concepção do mesmo, para se “repovoar” a Cidade do

Natal, que permanecia assolada pela pobreza de seus moradores, pela falta de efetivo e pelo

temor do “gentio”.

Nessa perspectiva, além da instância militar da administração colonial, a Igreja foi vista

nesse contexto como uma instituição estratégica no processo de reorganização territorial da

Capitania, empreendido pela administração civil e militar. Portanto, apesar de toda a pobreza

destacada na documentação, é importante salientar a existência e o funcionamento da instituição

militar, representada pelo capitão-mor, e civil, materializada pelos oficiais da câmara do Rio

Grande, que buscavam mecanismos para tornar esse território ocupado pelo colono e produtível

economicamente, fosse através dos pedidos de socorro militar, da distribuição de sesmarias ou

da edificação de uma Igreja. Em síntese, além da pobreza e precariedade militar, existia o desejo

de adensamento da ocupação colonial e, consequentemente, da edificação de territórios

coloniais, materializado pelas instituições da administração civil, eclesiástica, jurídica, militar

e fazendária.

Retornando às solicitações militar e civil de 1673, o Conselho Ultramarino, através da

Consulta de 1674, sugeriu que Portugal ordenasse à capitania de Pernambuco que enviasse ao

Rio Grande 25 soldados para guarneceram na Fortaleza dos Reis Magos, na Cidade do Natal,

juntamente a um alferes, um sargento e um engenheiro para verificar a situação da Fortaleza

189 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Valentim Tavares Cabral, ao rei [D. Afonso VI] sobre o

estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições. AHU-RIO GRANDE DO

NORTE. 1665. Cx. 1; doc. 5. 190 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro sobre cartas do capitão-mor do Rio Grande

do Norte, António Vaz Gondim, e dos oficiais da Câmara de Natal, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos

Reis Magos, da falta de munições e infantaria e acerca da reconstrução da matriz [de Nossa Senhora da

Apresentação]. Anexo: inventário das munições e apetrechos da Fortaleza dos Reis Magos (cópia); cartas e

certidão, 1674. Papéis Avulso, Cx. 01. doc.9.

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que ainda necessitava de consertos.191 O posicionamento do Conselho Ultramarino, que foi

atendido, inclusive, pelo Príncipe Regente, D. Pedro, não supriu as expectativas dos

administradores do Rio Grande, visto que os mesmos haviam pedido que a Coroa fizesse com

que Pernambuco fornecesse um efetivo de cerca de 80 soldados, juntamente com seus oficiais,

mais armamento e munições necessárias “para segurança daquelle povo, e temor do gentio”.192

Possivelmente, o Conselho Ultramarino, considerou suficiente um efetivo de 25

soldados, além dos oficiais, para guarnecerem em uma Capitania que retomava o seu processo

de ocupação colonial e que não ocupava mais uma posição estratégica na conquista das

capitanias do Norte do Estado do Brasil, como ocorreu na primeira metade do seiscentos. Por

outro lado, a necessidade de um efetivo numeroso, na concepção dos administradores do Rio

Grande, era justificada pelo temor de um levante dos índios dos sertões, que, segundo os oficiais

da Câmara, todo ano vinham ao litoral e poderiam perceber a precariedade da Fortaleza193.

Portanto, uma guarnição numerosa deixaria “gentio mais atemorizado” e o “povô mais

seguro”.194

Até o momento, é possível constatar uma linearidade nos aspectos presentes nas

solicitações enviadas, entre as décadas de 1660 e 1670, pelos oficias da Câmara da Cidade do

Natal e pelos Capitães-mores do Rio Grande, à Coroa. Esse diálogo entre a administração civil

e militar demonstra o trabalho conjunto dessas instituições na tentativa de solucionar os

percalços presentes na instância militar da Capitania, pós-presença holandesa.

Esse trabalho conjunto, em nossa concepção, ocorreu devido o interesse da

administração civil e militar do Rio Grande de fazer com que o projeto de territorialização desse

espaço colonial se expandisse e se consolidasse na segunda metade do seiscentos, visto que o

mesmo havia sido “interrompido”, como assinalamos, com a presença batava no Norte do

Estado do Brasil. Esse interesse de expansão e consolidação da empresa colonial estava presente

nas cartas enviadas à Coroa nas ocasiões em que camarários e capitães-mores afirmavam que a

191 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro sobre cartas do capitão-mor do Rio Grande

do Norte, António Vaz Gondim, e dos oficiais da Câmara de Natal, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos

Reis Magos, da falta de munições e infantaria e acerca da reconstrução da matriz [de Nossa Senhora da

Apresentação]. Anexo: inventário das munições e apetrechos da Fortaleza dos Reis Magos (cópia); cartas e certidão, 1674. Papéis Avulsos, Cx. 01. doc.9. 192 Idem. 193 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis Avulsos, Cx. 1, doc. 5. 194 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. Pedro sobre cartas do capitão-mor do Rio Grande

do Norte, António Vaz Gondim, e dos oficiais da Câmara de Natal, acerca do estado de ruína da Fortaleza dos

Reis Magos, da falta de munições e infantaria e acerca da reconstrução da matriz [de Nossa Senhora da

Apresentação]. Anexo: inventário das munições e apetrechos da Fortaleza dos Reis Magos (cópia); cartas e

certidão, 1674. Papéis Avulsos, Cx. 01. doc.9.

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segurança dos moradores desta capitania, assegurada por uma Fortaleza bem guarnecida, era

condição determinante para que os mesmos se mantivessem no Rio Grande e não migrassem

para outras Capitanias.195 Assim, nas entrelinhas de cada carta enviada ao Reino acerca do

estado precário da Fortaleza dos Reis Magos residia, também, o interesse de expandir e

consolidar os empreendimentos coloniais no Rio Grande, processo que estava em curso através

da distribuição de sesmarias.

Sobre esse último aspecto, segundo Patrícia Dias, é possível perceber que entre as

décadas de 1660 e 1670 as doações de sesmarias avançaram em direção ao oeste da Capitania,196

ou seja, à medida em que os administradores do Rio Grande pediam socorro militar à Coroa,

eles buscavam mecanismos para assegurar a expansão da empresa colonial em direção ao

interior da Capitania, espaço definido na época, como sertões.197

O desejo de garantir um efetivo apto a defender a Capitania, provavelmente, dialogava

com o receio de um possível enfrentamento com os índios que viviam nos sertões, visto que

nessas cartas eram relatadas, também, as vindas desses nativos ao litoral anualmente, o que lhes

possibilitaria, na concepção dos oficiais da Câmara, perceberem o quanto a Capitania estava

vulnerável, no sentido militar198, como assinalamos acima. Além disso, com a distribuição de

sesmarias em território habitado por esses índios o receio de um confronto entre colonos e

nativos, na verdade, se tornava iminente e se tornou uma realidade em fins do seiscentos.

É evidente, portanto, que apesar da administração militar ter sido instituída na Capitania

com a construção da Fortaleza dos Reis Magos, no ano de 1598, a sua consolidação se deu

processualmente, assim como a própria expansão da presença lusitana no Rio Grande. A

“pausa” de trinta anos, devido à presença holandesa, deixou sequelas na administração militar

do espaço em estudo que foram sentidas na segunda metade do século XVII. Nesse sentido, no

Rio Grande, diferentemente da Capitania de Pernambuco, onde percebemos um processo de

militarização da sociedade e das tentativas de institucionalização dos terços de gente parda e

preta, o que constatamos na historiografia examinada e nas fontes compulsadas é uma tentativa

de sistematização da administração militar, que ocorreu pari passu com a retomada da

distribuição de sesmarias e consequentemente com a territorialização desse espaço. Dessa

195 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 196 DIAS, Patrícia de Oliveira. Op cit. p.55. 197 Sobre o conceito de sertão ver: AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,

v. 8, n. 15, 1995, p. 145-51; FONSECA, Claudia Damasceno. Arraiais e vilas d'el rei: espaço e poder nas Minas

setecentistas. Belo Horizonte: EDUFMG, 2011. 198 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

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forma, o que temos até então é apenas a gente de guerra pertencente às companhias de

ordenanças e uma tropa paga deficitária, pertencente à Capitania de Pernambuco. As tropas

regulares 199 do Rio Grande se constituíram somente no século seguinte, pós-Guerra dos

Bárbaros.

Dessa maneira, é provável que os problemas enfrentados pelos administradores civis e

militares do Rio Grande e as dificuldades encontradas para solucionar esses percalços que se

estenderam entre os anos de 1660 e 1670 fizeram com que eles não conseguissem conter os

índios dos sertões no contexto da Guerra dos Bárbaros, desencadeada na década de 1680, o que

levou os administradores do Rio Grande a solicitar socorro militar às Capitanias da Paraíba e

de Pernambuco, como discutiremos no capítulo seguinte.

Nesse sentido, os problemas enfrentados pelos administradores da Capitania do Rio

Grande na segunda metade do seiscentos demonstram a fragilidade da instituição militar

existente na Capitania que, como asseveramos, não foi uma particularidade do Rio Grande, no

que se refere à atuação das tropas de linha ao longo século XVII. Assim, o que existe de peculiar

nesse contexto é o esforço conjunto da administração civil e militar do Rio Grande na

reorganização territorial, administrativa e econômica do espaço em estudo. Nesse cenário, em

meio às cartas enviadas à Coroa acerca da precariedade da administração militar na capitania,

ocorreu de forma tímida a distribuição de sesmarias no interior do Rio Grande 200 , o que

desencadeou, dentre outros aspectos, a Guerra dos Bárbaros.

Dessa forma, a necessidade de um efetivo para guarnecer na Fortaleza foi posta pelos

administradores do Rio Grande como uma condição para assegurar a segurança dos moradores

da Capitania, para impedir que os mesmos migrassem para outras territorialidades coloniais,

para garantir que os índios dos sertões não assaltariam o litoral diante de um efetivo eficiente

e, por fim, para assegurar a integridade desse território colonial. Esses aspectos, além de

demonstrarem a importância da instituição militar para manutenção dos territórios coloniais,

evidenciam a particularidade de cada Capitania do Estado do Brasil, visto que apesar das

fragilidades das tropas de linha e das fortalezas serem uma realidade do cenário colonial, a

199 Salientamos que, apesar das tropas regulares constarem na bibliografia lida e na documentação consultada

apenas no século XVIII, durante a Guerra dos Bárbaros as milícias que atuaram eram pagas. Além disso, o Terço

dos Paulistas se institucionalizou enquanto tropa paga nesse contexto. Posteriormente, especificamente em 1716,

segundo Olavo de Medeiros Filho, este Terço deixou de guarnecer no Rio Grande. No entanto, alguns soldados e

oficiais que constituíam essa tropa paga passaram a integrar a primeira tropa regular da capitania, instituída para

substituir o Terço dos Paulistas na Fortaleza dos Reis Magos. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na

Capitania do Rio Grande. Departamento Estadual de Imprensa, 1997. p.135. 200 DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira

do Apodi-Mossoró. p.55.

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forma como esses elementos eram postos e os contextos eram distintos,201 o que evidencia a

importância de uma análise comparativa da sociedade colonial.

Outro aspecto pertinente e evidente em nosso estudo é a precariedade a qual estavam

expostos os soldados que guarneceram na Fortaleza dos Reis Magos, seja na primeira metade

do seiscentos ou na segunda. Esses homens, ao longo do século XVII, conviveram com um

conjunto de adversidades que resultou em constantes deserções. Na primeira metade do século

XVII, como demonstramos em nossa análise, as deserções eram causadas em decorrência da

construção da Fortaleza dos Reis Magos e na segunda devido ao estado precário da Fortaleza.

Assim, nossa pesquisa demonstra também que, apesar da Fortaleza dos Reis Magos ser descrita

na documentação consultada como a “milhor do Estado do Brasil”, na prática, a mesma era um

espaço problemático para os soldados e oficiais que lá guarneciam e não funcionava de forma

eficiente na defesa da capitania, pela falta de homens, armamentos, suprimentos e pela própria

necessidade de reparos.

É importante destacar também que, apesar dos pedidos constantes dos administradores

do Rio Grande a Pernambuco, ao Governo Geral ou mesmo à Coroa acerca do envio de uma

tropa regular para a Fortaleza, do envio de munição, pólvora e da realização de reparos na

mesma, no contexto da Guerra dos Bárbaros o que percebemos é a continuidade do estado

precário da Fortaleza, da falta de munição e de pólvora. Ademais, segundo o historiador Júlio

César Alencar,202 as primeiras vitórias das tropas coloniais na Guerra dos Bárbaros foram

condicionadas à atuação do Terço dos Paulistas, tropa, a princípio, irregular e que se

institucionalizou no contexto de guerra203. Portanto, a eficiência da tropa de linha, enviada por

Pernambuco para o Rio Grande, na década de 1670, é algo que pode problematizado, pela

situação à qual estava submetida na Fortaleza dos Reis Magos. Em contrapartida, o papel das

201 Como exemplo, temos o caso da Capitania do Rio de Janeiro, que na segunda metade do século XVII também

sofreu com a falta de efetivo. A causa desse problema na administração militar desta capitania, segundo a

historiadora Christiane Figueiredo Pagano de Mello, era o fato do Rio de Janeiro, nesse contexto, ter servido de

suporte militar para a ação da Coroa na região do Rio da Prata, mantendo a Colônia do Sacramento com seus

próprios recursos. Assim, a falta de efetivo, assim como na capitania do Rio Grande, era uma realidade. Todavia,

a situação na qual estava imersa o Rio Grande era totalmente distinta da capitania do Rio de Janeiro, o que nos

impede de homogeneizar a situação militar do Estado do Brasil, mesmo no que se refere aos aspectos que se faziam

presentes em mais de uma realidade colonial. Assim, o exercício comparativo é válido para percebemos o que existe de comum entre as capitanias do Estado do Brasil, o que, ao mesmo tempo, torna esses aspectos peculiares.

MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. O Rio de Janeiro: uma praça desfalcada “dos melhores soldados e

oficiais” (séculos XVIIXVIII). História, São Paulo, v.31, n. 1. p. 216, jan-jun. 2012. 202 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: A Câmara de Natal e a Guerra

dos Bárbaros (1681-1722). 2017, 244 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande

do Norte, Natal-RN. p.71. 203 O Terço dos Paulistas se institucionalizou e passou a ser pago a partir da Ordem Régia de 1695. PUNTONI,

Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil. Tese de doutorado,

Programa de Pós-Graduação em História Social, FFLCH/USP, São Paulo, 1998. p.201

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tropas auxiliares e do Terço dos Paulistas, que era uma tropa paga com algumas especificidades,

no contexto da Guerra dos Bárbaros, é algo a ser discutido de forma mais minuciosa, em

consonância com os estudos já existentes acerca desse tema204, para a Capitania do Rio Grande

em estudos posteriores, percebendo-se, inclusive, as estratégias de guerra utilizadas por esses

corpos militares.

Por fim, no capítulo seguinte passaremos a abordar de forma mais específica o perfil

qualitativo do efetivo da Capitania do Rio Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros,

salientando, dessa maneira, a qualidade dos soldados e oficiais que atuaram nesse contexto bem

como os motivos presentes na documentação para os casos de baixas ocorridas no serviço

militar.

204 Idem.

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3 ÍNDIO FORRO, TAPUIAS, PARDOS, TRIGUEIROS E MULATOS: COMPOSIÇÃO

DAS TROPAS COLONIAIS DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NA GUERRA DOS

BÁRBAROS (1698-1725)

Ao longo desse capítulo, discutiremos a situação do efetivo da Capitania do Rio Grande

no decurso da Guerra dos Bárbaros nos anos de 1698 a 1725, elucidando a composição social

das tropas coloniais que atuaram nesse contexto no que concerne à qualidade dos homens que

se alistaram no serviço militar, suas condições e naturalidades presentes nos assentos de praça

e baixa examinados, bem como as justificativas que constam nessa fonte para a dispensa no

serviço militar durante essa guerra.

A situação militar da Capitania do Rio Grande nesse período, como abordamos no

primeiro capítulo, era bastante complexa, visto que, pós-presença holandesa, o Rio Grande foi

delineado por um conjunto de tentativas de reorganização administrativa e territorial. Essas

medidas foram empreendidas pelas administrações civil e militar que, entre as décadas de 1660

e 1670, recorreram sem cessar a Pernambuco, ao Governo Geral e à Coroa para salientar a

precariedade militar da Fortaleza dos Reis Magos e a necessidade de se reestruturar

militarmente a Capitania em face de um provável confronto com os índios que viviam nos

sertões e que anualmente vinham ao litoral, podendo “intentar” algo contra os moradores da

Capitania205. No entanto, as diligências tomadas pela Coroa não atenderam às expectativas dos

administradores da Capitania, tendo em vista que esses não foram contemplados com o efetivo

requerido e, como temiam, tiveram que enfrentar os índios dos sertões, que resistiram às

investidas coloniais de expansão da pecuária para o interior da Capitania, território ocupado

pelos índios, definidos homogeneamente pelos colonizados e pelos índios do litoral como

tapuias.

Nesse sentido, acreditamos que os percalços enfrentados pelos administradores da

Capitania do Rio Grande na tentativa de resolver os embates envolvendo colonos e nativos, em

fins da década de 1680, ocorreu exatamente em decorrência das próprias fragilidades do serviço

militar existente nesse território, que ainda estava se reestruturando e consolidando na segunda

metade do seiscentos. Essa situação militar precária da Capitania implicou, nos anos iniciais da

guerra, em pedidos de socorros a Pernambuco e à Paraíba. Nesse contexto, membros do Terço

205 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. AHU, Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5.

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dos Paulistas206 também assentaram praça no Rio Grande e buscaram solucionar os conflitos

envolvendo nativos e colonos, embates esses que se estenderam, de forma descontínua, até o

século seguinte. Sobre os Paulistas, segundo Júlio César Vieira de Alencar, foi com o auxílio

desse terço que as tropas coloniais obtiveram as primeiras vitórias contra os índios que

resistiram às investidas da empresa colonial.207

Nesse cenário de guerra, entre os anos de 1698 a 1725,208 período para o qual possuímos

assentos de praça, constatamos na Capitania do Rio Grande a presença da atuação de tropas

auxiliares (ordenanças e milícias) e pagas209. Sendo assim, além das companhias de ordenanças,

percebemos a forte presença de companhias administradas por capitães pertencentes ao Terço

dos Paulistas. É sabido que membros do Terço de Henrique Dias210 também auxiliaram as

companhias locais nos conflitos com os nativos. Entretanto, na documentação que

investigamos, localizamos apenas a referência de seis soldados que haviam feito parte desse

Terço. Acreditamos que, nesse contexto, os homens pertencentes a essa milícia não estavam

mais sendo enviados de forma efetiva para o Rio Grande e por isso não os localizamos nos

assentos examinados. Em contrapartida, colonos que fizeram parte do Terço dos Paulistas

assentaram praça em fins de todo século XVII e ao longo dos primeiros anos do século XVIII.

Dessa maneira, localizamos o nome de 11 capitães de companhia que atuaram no Rio

Grande e que eram membros do Terço dos Paulistas, liderado por Manoel Álvares de Morais

Navarro. Foram eles: Antônio Gago de Oliveira, Salvador de Amorim e Oliveira, José Porrate

de Morais Castro, Domingos de Morais Navarro, Francisco Lemos Matoso, Francisco Ribeiro

206 Conforme Mirian Silva de Jesus, o termo “paulista” foi utilizado no contexto colonial para designar a

naturalidade dos colonos oriundos da Vila de São Paulo de Piratininga, “empenhado em percorrer sertões” e “se embrenhar pelo mato”. JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na formação da Capitania do

Rio Grande. 2007, 120 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Natal-RN. p. 15. 207 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Op cit p.71. 208 Antônio de Albuquerque Câmara (1687) e Manuel de Abreu Soares (1688) foram responsáveis por comandar

as primeiras expedições organizadas pelo Governo Geral contra os índios sublevados dos sertões. Essas expedições

eram constituídas com o auxílio militar vindo, sobretudo, das Capitanias de Pernambuco e Paraíba, onde duas

companhias dos Terços do Camarão e dos Henriques atuaram em conjunto com os infantes do presídio de

Pernambuco e com os homens das ordenanças da Capitania do Rio Grande. Nesse sentido, salientamos que, apesar

de não termos os assentos de praça dos anos iniciais da Guerra dos Bárbaros desde o início dos embates envolvendo

tropas coloniais e os índios dos sertões não houve homogeneidade, unidade no perfil social dos soldados que formaram as tropas coloniais. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do

sertão nordeste do Brasil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, FFLCH/USP, São

Paulo, 1998. p. 133. 209 O Terço dos Paulistas se institucionalizou e passou a ser pago a partir da Ordem Régia de 1695. Ibid., p.201. 210 O envio dos membros do Terço de Henriques Dias se deu em 1687. Júlio César, ao examinar a Guerra dos

Bárbaros a partir da documentação camarária, afirmou que mesmo com a vinda dos membros dessa milícia e de

homens da Capitania da Paraíba, as tropas coloniais não conseguiriam obter vitórias contra os nativos, o que fez

com que a Câmara de Natal continuasse pedindo auxílio do Governo Geral que respondeu com o envio do Terço

dos Paulistas. ALENCAR, Júlio César Vieira de. Op cit. p.68.

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Garcia, Francisco Tavares Guerreiro, Manuel da Mata Coutinho, Luís Lobo Albertin, José de

Morais Navarro e Teodósio da Rocha.211 Infelizmente, a documentação não faz referência ao

nome de todos os terços aos quais os capitães de companhias pertenciam. Dessa forma, não

conseguimos identificar o terço ao qual pertenciam os seguintes capitães: Antônio Simões

Moreira, Mateus Mendes Pereira, José Pereira da Fonseca e João da Costa Marinho. Esses

capitães de companhia podiam ter atuado tanto em uma milícia quanto nas ordenanças.

Entretanto, infelizmente, esse dado não está presente nos assentamentos de praça.

Além do Terço dos Paulistas, outros terços combateram no Rio Grande, como foi o caso

do terço do Mestre Campo Cristóvão de Mendonça, do qual era capitão Simão Cordeiro, como

demonstra o quadro abaixo:

Quadro 4 – Terço do Mestre de Campo Cristóvão de Mendonça

Nome Qualidade Naturalidade Ofício

Cristóvão de

Mendonça

- - Mestre de Campo

Simão Cordeiro - - Capitão de Companhia

José Monteiro - Cidade de Olinda,

Capitania de

Pernambuco

Cabo de Esquadra

Lazaro de Barros

Branco Cidade de Olinda,

Capitania de

Pernambuco

Soldado

Cosme da Silva

- São Lourenço, Capitania de

Pernambuco

Soldado

Lourenço Gomes Moreno Cidade de Olinda,

Capitania de

Pernambuco

Soldado

Mario da Silva

Vieira

Branco Capitania de

Pernambuco

Soldado

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 414 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1725.

A documentação examinada é bastante lacunar e não localizamos os demais membros

desse terço. No entanto, acreditamos que essa força auxiliar pertencia à Capitania de

Pernambuco, uma vez que todos os seus membros foram identificados como sendo naturais

desse território. Certamente, era um terço socialmente misto, visto que possuía tanto colonos

211 O Terço dos Paulistas, ao longo da Guerra dos Bárbaros, foi sofrendo alterações em sua composição social. À medida que o conflito se prolongava, o mesmo foi recrutando homens que eram naturais do Rio Grande e das

Capitanias vizinhas. Em detrimento, nos anos iniciais da Guerra, o Terço era composto, principalmente, por

colonos vindos das Capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Além disso, no início da atuação

deste Terço no Rio Grande, precisamente no 1698, segundo Miriam Silva de Jesus, o mesmo era constituído por

dez Companhias que foram gradativamente sendo reduzidas. Em 1701, por exemplo, existiam sete Companhias e,

em 1712, apenas duas. Conforme a autora citada, a explicação para esta redução reside no processo de

profissionalização desse corpo militar, que era facilitado se o mesmo possuísse menos homens. JESUS, Miriam

Silva de. JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na formação da Capitania do Rio Grande. p.

78.

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identificados como brancos quanto colonos identificados como sendo de cor, mais

especificamente de “cor morena”.212

O ingresso de homens de cor, em se tratando de um terço de colonos brancos, pode ter

ocorrido pela falta de homens dessa qualidade para atuarem como soldados, já que a qualidade

era um fator que diferenciava os terços e, nem sempre, a presença de colonos de cor era tolerada

em terços que congregavam pessoas de qualidade branca. Dessa forma, na documentação

examinada, um caso que exemplifica nossa assertiva é do soldado José de Lima. Este foi

membro do Terço de Henrique Dias e atuou na Capitania do Rio Grande no contexto da Guerra

dos Bárbaros. José de Lima ficou agregado na companhia do capitão Manoel Mata Coutinho e

assentou praça na mesma. Porém, recebeu baixa por ser “gente incapaz pela cor” para as

“companhias da gente branca”.213

Outros terços guerrearam nesse contexto, como o Terço do Mestre de Campo João de

Freitas da Cunha e do Mestre de Campo Antônio Dias Pereira, como demonstra o quadro

abaixo, onde sistematizamos as companhias militares existente na Capitania nesse contexto de

guerra:

Quadro 5 – Companhias militares presentes na Capitania do Rio Grande, 1698 a 1725

Companhias Qualidade dos praças

Companhia do capitão Antônio Gago de Oliveira214, pertencente ao Terço dos Paulistas

Trigueiro Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

212 O conceito de cor é distinto do conceito de qualidade. Na documentação que compulsamos, o termo cor é

empregado constantemente para definir o fenótipo dos soldados, ou seja, para qualificar esses indivíduos. No entanto, a cor, assim como o formato do rosto, a cor dos cabelos, dos olhos e a estatura dos colonos que se alistavam

no serviço militar são elementos que somados à condição, à posse de cabedal e à religião determinam o lugar que

determinado soldado ou oficial ocuparia na sociedade colonial. Todos esses aspectos constituem o que seria a

qualidade de um indivíduo habitante do Ultramar e, em decorrência dessa amplitude do conceito de qualidade, que

também era empregado na documentação da época, fizemos a opção de utilizá-lo para nos referimos ao perfil dos

colonos que ingressaram no serviço militar do Rio Grande. Evidentemente que a cor, como discutiremos no

terceiro capítulo, era um dos principais elementos de diferenciação social nesse cenário histórico, que acrescido

da condição e da posse de cabedal qualificavam e hierarquizavam o modo de viver na colônia. Todavia, a cor se

refere a apenas um dos elementos, talvez o principal, que era utilizado para diferenciar os habitantes da colônia e,

portanto, acreditamos que o termo qualidade é mais amplo para se referir ao modo como os colonos eram

classificados nos registros de época que aludiam ao fenótipo e à qualidade desses indivíduos. Sobre o conceito de cor ver os estudos de IVO, Isnara Pereira. Seria a cor, a qualidade, a condição ou o fenótipo? Uma proposta de

revisão dos critérios de distinção, classificação e hierarquização nas sociedades ibero-americanas. In.: IVO, Isnara

Pereira; PAIVA, Eduardo França. Dinâmicas de mestiçagens no mundo moderno: sociedades, culturas e

trabalho. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2016. 213 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 214 Antônio Gago de Oliveira passou a ser capitão desta companhia em 1698. Na ocasião, o mesmo foi identificado

da seguinte forma: “estatura ordinária, trigueiro, cara comprida, olhos pardos, cabello negro”. Antônio Gago

faleceu em 1713. Infelizmente, não constou na documentação a causa de sua morte. Assentos de praça e Baixas

entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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Companhias Qualidade dos praças

Companhia do capitão Domingos de Morais

Navarro215, pertencente ao Terço dos Paulistas

Pardo

Índio

Branco

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão Francisco Tavares

Guerreiro, pertencente ao Terço dos Paulistas

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Salvador de Amorim e

Oliveira, pertencente ao Terço dos Paulistas

Índio (Índio forro; índio de nação; Tapuia de

Nação)

Branco

Trigueiro

Coriboca

Os demais não tiveram suas qualidades identificadas

Companhia do mestre de campo do Terço dos

Paulistas, Manoel Alves de Morais Navarro

Branco

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão Teodósio da Rocha,

pertencente ao Terço dos Paulistas

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Francisco Ribeiro Garcia,

pertencente ao Terço dos Paulistas

Trigueiro

Pardo

Branco

Moreno

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão Bento Nunes Siqueira,

pertencente ao Terço dos Paulistas

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Luís Lobo de Albertin,

pertencente ao Terço dos Paulistas

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Manuel da Mata Coutinho, pertencente ao Terço dos Paulistas

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

José de Morais Navarro, pertencente ao Terço dos

Paulistas Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

José Porrate de Morais Castro, pertencente ao Terço

dos Paulistas Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Antônio Simões Moreira Branco

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão Mateus Mendes Pereira Branco

Moreno

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão José Pereira da Fonseca216 Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Simão Cordeiro do Terço do

mestre de campo Cristóvão de Mendonça

Branco

Moreno

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhia do capitão Euzébio (...) do Terço do

Mestre de Campo João de Freitas da Cunha

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Companhia do capitão Antônio Pinto do Terço do Mestre de Campo João de Freitas da Cunha

Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

215 Em 30 de junho de 1727, foi nomeado capitão-mor do Rio Grande por Patente Real. O mesmo tomou posse em

18 de janeiro de 1728 e governou até março de 1731. LEMOS, Vicente; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores

e governadores do Rio Grande do Norte. p.43. 216 Foi nomeado capitão-mor do Rio Grande em 17 de março de 1721. Segundo Vicente Lemos e Tarcísio

Medeiros, José Pereira da Fonseca já havia servido como soldado, alferes, ajudante e, por fim, como Capitão de

Infantaria do Terço pago da Cidade do Natal. Ibid., p.39.

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Companhias Qualidade dos praças

Companhia do capitão João da Costa Marinho Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Terço217 de Henrique Dias218 Os praças não tiveram suas qualidades evidenciadas

Terço dos Paulistas219 Branco

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Regimento de Cavalaria (Ordenanças) Branco

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Companhias sem identificação Índio (Índio de nação; Da nação Paiacu; Índio da

terra forro; Tapuya forro da nação cararis; Tapuya

forro da nação dos chamados da Silva; Tapuya forro

da nação dos chamados canide do certão; Índio

forro da aldeia das gorairas; Tapuya forro da nação

payaco da missão do (...) Padre Felipe Burel;

Tapuya da terra dos chamados da Silva; Índio da aldeia da (...) do Ceará Grande; Índio da aldeia do

Mipibu; Índio assistente na Aldeia Gorairas; Índio

da Aldeia Gorairas; Índio da Terra forro da

administração do (...) da Companhia de Manoel de

Siqueira Rondon; Índio forro, Tapuias)

Branco;

Trigueiros

Morenos

Pardos

Crioulo

Pretos

Negro e pretinho da cor Mulatos;

Curiboca forro

Cariboca forro

Os demais não tiveram suas qualidades

identificadas

Total da Gente de Guerra: praças e oficiais.

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 414 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1725

– Arquivo Histórico do IHGRN.

A documentação analisada e que resultou no quadro acima é bastante lacunar. Os assentos de

praça, na maior parte das matrículas no serviço militar, não evidenciaram os nomes dos capitães

de companhias e dos terços aos quais pertenciam. De forma precisa, em 255 ocasiões, em um

universo amostral de 414 casos de assentos e baixas. Nos assentos de praça, referentes a 1698

a 1725, o comum é serem listadas as seguintes informações: nome do militar, filiação, idade,

qualidade e naturalidade, como demonstra a transcrição abaixo:

Francisco Mendes de Souza, homem pardo, filho natural de Francisco Mendes

de Souza, natural da Villa de Igaraçu, de idade de 27 annos. Cara grande, olhos

217 A documentação não apresentou os nomes dos capitães de companhias deste terço. 218 Os membros do Terço de Henrique Dias foram agregados nas companhias dos capitães: Tavares Guerreiro,

Manoel Mota Coutinho e Francisco Fajardo Barros. 219 Em algumas ocasiões a documentação apresentava apenas o nome do Terço e não identificava, dessa forma o

nome do capitão de companhia.

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grandes, cor pálida, cabello estirado, estatura medianna, refeito do corpo. É

soldado desta Companhia desde 1699. E vense mil oyto sentos sessenta e seis

de soldo.220

E, no que concerne à companhia a qual pertencia o militar, bem como ao corpo de guerra do

qual fazia parte, o assento traz apenas este dado: assentou praça de soldado nesta companhia ou

é soldado desta companhia, como demonstra a transcrição acima. Portanto, o quadro 5, devido

a essas lacunas presentes na documentação, não possibilita uma compreensão ampla da

distribuição dos soldados nas companhias militares do Rio Grande, conforme suas qualidades.

Assim, não é possível afirmar se existiam terços compostos, por exemplo, por colonos

apenas de uma mesma qualidade, característica das milícias. O que se sabe é que o Terço dos

Paulistas, que nesse período já havia se institucionalizado enquanto uma tropa paga, reuniu

colonos de diferentes qualidades, como foi o caso da companhia do capitão Salvador de

Amorim. A companhia do capitão Salvador de Amorim era constituída por soldados de

qualidade indígena (índios forros, índio de nação, tapuia de nação), brancos e ‘mestiços’

(trigueiros e um coriboca, que “dizia ser forro”). No entanto, o fato de uma companhia de um

corpo militar ser formado por praças de diferentes qualidades, como discutiremos

posteriormente, não implicava afirmar que os seus membros conviviam de forma igualitária,

aspecto um tanto impensável em uma sociedade que tinha por base a desigualdade entre

homens, conforme suas qualidades e condição.221

Outro elemento evidente no quadro 5 é a forte presença de Paulistas nesse cenário de

guerra. Sobre esse aspecto, no capítulo anterior, constatamos que entre as décadas de 1660 e

1670 a administração civil e militar do Rio Grande solicitou um efetivo pago vindo da Capitania

de Pernambuco para guarnecer na Fortaleza dos Reis Magos e socorrê-la em caso de conflitos

internos com os índios dos sertões. No entanto, o que a documentação militar que examinamos

demonstrou foi que, apesar dos pedidos incansáveis pelo envio de uma tropa paga para atuar na

Fortaleza, no contexto da Guerra dos Bárbaros, especificamente entre os anos de 1698 a 1725,

foi o Terço dos Paulistas que socorreu efetivamente a Capitania no conflito com os nativos, em

conjunto com companhias de ordenanças e outros terços, sobre os quais infelizmente não

conseguimos obter mais informações. Portanto, o papel dos Paulistas, em específico,

220 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 221 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 17.

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inicialmente enquanto uma tropa irregular, uma milícia, e posteriormente institucionalizado

como uma tropa paga nesse contexto de guerra não pode ser visto de forma naturalizada.222

A presença dos Paulistas223 na Capitania do Rio Grande no contexto da Guerra dos

Bárbaros foi delineada por descontinuidades. Este corpo militar, à medida que o conflito se

prolongou, sofreu alterações em sua composição social. Dessa forma, se a princípio o Terço era

composto, principalmente, de militares naturais das Capitanias de São Paulo, Espírito Santo e

do Rio Janeiro, nos anos seguintes o mesmo passou a recrutar homens que eram naturais do Rio

Grande224 e que estavam dispostos a fazerem “guerra ao gentio”, como foi o caso de Antônio

Nunes Marinho. Antônio Nunes225 era natural da Capitania do Rio Grande e assentou praça de

alferes no Terço dos Paulistas “para fazer guerra ao gentio”.226

Ademais, de acordo com Mirian de Jesus, se a princípio o Terço dos Paulistas era tido

como a única força militar capaz de derrotar os indígenas dos sertões, com os nativos já

controlados pelas tropas coloniais em fins do seiscentos e início do setecentos, esse corpo

militar passou a ser causa de conflitos envolvendo as autoridades locais e os moradores da

Capitania. Os desentendimentos entre os membros do Terço dos Paulistas e as autoridades

locais do Rio Grande, em linhas gerais, podem ser explicados pelo interesse que os mesmos

tinham nos espaços antes ocupados pelos indígenas, bem como na mão de obra dessa população,

aprisionada e escravizada em consonância com os pressupostos de uma “guerra justa”. Portanto,

os paulistas passaram a disputar terras que também interessavam às autoridades locais e aos

demais colonos da Capitania.

Por fim, outro dado pertinente no quadro 5 foi referente à composição das companhias

militares que atuaram nesse contexto de guerra, onde constatamos um número significativo de

índios e mestiços constituindo as tropas coloniais, aspecto que passaremos a discutir a seguir.

222 Sobre a atuação dos Paulistas na Guerra dos Bárbaros, ver os estudos do historiador Pedro Puntoni (PUNTONI,

Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil.) e da historiadora

Mirian Maria de Jesus. (JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na formação da Capitania do

Rio Grande). 223 Sobre esse tema ver: JESUS, Mirian Silva de. Ibid., p.92. 224 Ibid., p. 86-7. 225 Posteriormente, Antônio Nunes Marinho passou a Tenente Coronel da Ordenança de pé do Rio Grande por não

ter quem o fizesse e “por ser filho da Capitania e em todas as guerras que tem havido o mesmo tem servido com

boa satisfação”, ou seja, um dos elementos que justifica o recebimento da patente de Tenente-Coronel é o fato do

mesmo estar a serviço dos interesses coloniais nos conflitos que funcionaram como empecilhos à expansão dos

empreendimentos portugueses. Portanto, o recebimento de patentes e mercês na sociedade colonial estava

condicionada, dentre outros aspectos, aos serviços prestados à Coroa em meio a situações que ameaçavam a

integridade dos territórios sob tutela portuguesa, como a Guerra dos Bárbaros. Assentos de praça e Baixas entre

os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 226 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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3.1 Análise do perfil social dos soldados e oficiais que constituíram o efetivo militar do Rio

Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros, 1698-1725

A segunda metade do século XVII e os primeiros anos do século XVIII foram delineados

por um conjunto de embates envolvendo colonos e populações indígenas nas Capitanias do

Norte do Estado do Brasil. A principal causa desses embates, definidos pela historiografia

clássica como Guerra dos Bárbaros ou levante dos tapuias,227 foi, em linhas gerais, o processo

de expansão da colonização portuguesa que, nesse contexto, buscou ocupar também as terras

habitadas pelos tapuias:228 os sertões.229 Datam desse período os primeiros assentamentos de

praça da Capitania do Rio Grande que conseguimos localizar no acervo do IHGRN. Na verdade,

de forma precisa, os primeiros assentos de praça aos quais tivemos acesso e que foram

examinados para construção desse texto são referentes ao ano de 1698, ou seja, cerca de uma

década após o início dos conflitos envolvendo índios e colonos. Desse modo, para o período

227 Guerra dos Bárbaros ou Levante dos Tapuias, conforme foi conceituado por Olavo de Medeiros Filho, foi a

definição atribuída ao conjunto de embates envolvendo colonos e indígenas de diversas etnias residentes nos

sertões das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. A principal causa desses conflitos, conforme a historiografia

clássica, foi o processo de ocupação e territorialização dos sertões empreendido pelos agentes da Coroa Portuguesa,

que compreenderam os nativos como sendo um empecilho para a expansão da empresa colonial. MEDEIROS

FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p.117. Segundo Pedro Puntoni, dois grandes conflitos constituíram essa guerra, o do Recôncavo, ocorrido na Capitania da Bahia (1651-1679) e do Assú, ocorrido na Capitania do Rio

Grande (1687-1725). No entanto, os efeitos desses embates descontínuos e sangrentos envolvendo colonos e

nativos foram sentidos nos sertões das Capitanias do Ceará, Pernambuco e Paraíba. PUNTONI, Pedro. Op cit. p.

13. O historiador Ricardo Pinto de Medeiros, corroborando com Puntoni, compreende a Guerra dos Bárbaros como

um conjunto de eventos descontínuos que foram sentidos em diferentes capitanias do Norte do Estado do Brasil.

Todavia, a análise construída por Medeiros em sua tese de doutorado considera que os efeitos dessa Guerra foram

sentidos nos sertões do Maranhão e do Piauí durante todo o século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX.

Nesse aspecto, Medeiros diverge de Puntoni, que compreende que esses conflitos se enceraram no ano de 1720.

No entanto, para Medeiros, em 1722 o que teve fim foi a Guerra do Açu, na Capitania do Rio Grande, mas os

embates envolvendo índios e autoridades coloniais persistiram em outros territórios, no caso, os sertões do

Maranhão e Piauí. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. A redescoberta dos outros: povos indígenas do sertão nordestino

no período colonial. 2000. 280p. Tese. (Doutorado em História do Brasil). Universidade Federal de Pernambuco. Recife. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Bárbaras Guerras: povos indígenas nos conflitos e alianças pela conquista

do sertão nordestino colonial. In.: XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Londrinha, 2005, Anais...

Londrina: ANPUH, 2005. p.1-8. Por fim, salientamos, portanto, que quando nos remetermos aos praças e oficiais

que atuaram na Guerra dos Bárbaros estamos fazendo referência à gente de guerra que atuou apenas nos conflitos

que se desenrolaram na Capitania do Rio Grande e, portanto, nos remeteremos, especificamente, à Guerra do Açu,

que constituí apenas parte desse conflito mais amplo ocorrido no Norte do Estado do Brasil. 228 Tapuia é um termo genérico utilizado tanto pelos índios que habitavam o litoral quanto pelos colonizadores

para se referir às populações indígenas que viviam nos sertões da Capitania do Rio Grande. Nesse sentido, esse

termo refere-se a um conjunto de etnias indígenas distintas, como os Canindé, Pega, Janduí e, dentre outros, Panati.

Sobre essas populações indígenas e a bipolaridade envolvendo os termos tapuia e Tupi ver os seguintes estudos:

PUNTONI, Pedro. Op cit; LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania

do Rio Grande. Coleção Digital Oswaldo Lamartine. Sd; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações

indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: história e mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011. 229 O termo sertões, no contexto colonial, remetia às áreas desconhecidas pelo elemento colonizador, mas que

pertenciam, formalmente, ao Império Português. Na concepção do geógrafo Antonio Carlos Robert de Morais, os

sertões coloniais referiam-se a fundos territoriais, espaços pertencentes à Coroa, “ainda não devassadas pelo

colonizador, de conhecimento incerto e, muitas vezes, apenas genericamente assinaladas na cartografia da época”.

MORAIS, Antonio Carlos Robert de. Op cit. p.69. Assim, os sertões coloniais eram espaços que ainda seriam

apropriados e territorializados pelo elemento colonizador. Sobre esse conceito ver: AMADO, Janaína. Região,

sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 145-51.

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anterior, infelizmente, não possuímos registros que nos possibilitem estabelecer

quantitativamente o perfil social dos praças que atuaram nesse cenário histórico. Portanto, nosso

recorte temporal desconsidera o perfil social dos primeiros soldados e oficiais que se alistaram

no serviço militar do Rio Grande, visto que, apesar de termos ciência da existência e da atuação

dos mesmos, não temos assentamentos que nos possibilitem construir essa análise.

Nessa perspectiva, tendo como ponto de partida especificamente o ano de 1698,

contexto em que já estava em curso a Guerra dos Bárbaros, deparamo-nos com o capitão-mor

do Rio Grande e Governador da Fortaleza dos Reis Magos, Paschoal Gonçalves de Carvalho,

convocando os moradores da Capitania “de qualquer condição que sejão” para se alistarem no

serviço militar e fazerem entradas no sertão contra o “genttio Tapuya levantado”. A gravidade

do conflito e, provavelmente, a falta de homens levou Paschoal Gonçalves a convocar inclusive

colonos que haviam cometido crimes, como demonstra a transcrição abaixo:

[...] outro sim os que o não forem asistintes e moradores destta mesma Capitania de qualquer condição que sejão e por quantoe me he notorio que os

criminozos se auzenttão do Real Serviço pello temor que tem das justiças de

Sua Magde. os não prenderem pellos tais crimes e dellitos que ham cometido; Hei por bem de lhes conceber em nome del Rey meu Sr., que possão aparecer

todos os criminozos que nesta Capitania ouver de todos e quais quer crimes e

justiças de sua Magde. não em tendão com elles e os deixem parecer e tratar como os fazem os mais desta Capittania não fazendo eixeecussão de pessoa

alguma pa. q. todos acudão ao Real Serviço e bem comum [...].230

O convite do capitão-mor do Rio Grande, presente no documento transcrito acima,

demonstra que no contexto em análise todo colono foi considerado um homem de guerra,

independentemente de sua qualidade ou condição, aspecto que ficou evidente nos assentos de

praça ocorridos entre os anos de 1698 a 1725 e que nos possibilitou construir o perfil social dos

soldados e oficiais que atuaram nesse cenário histórico. Nessa perspectiva, ao examinarmos os

assentos de praça e baixas da Capitania do Rio Grande constatamos o ingresso e a saída do

serviço militar de homens de diferentes qualidades, como demonstra o gráfico abaixo:

230 Bando que mandou botar nesta capitania do Rio Grande o Capitão Major Pachoal Glz. de Carvalho. In:

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p. 127.

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Gráfico 2 - Qualidade dos soldados e oficiais que assentaram praça e receberam baixa na

Capitania do Rio Grande, 1698-1725

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 414 Assentos de praça e Baixas entre os

anos de 1698 a 1725.

Dessa forma, examinando o gráfico acima, é perceptível que 33, 82% da gente de guerra

que atuou no Rio Grande, entre os anos de 1698 a 1725, foi definida na documentação militar

em análise como indígena. Todavia, esse não foi um padrão que se repetiu nos anos seguintes.

Na verdade, examinamos 1.834 assentos de praça e baixas referentes aos séculos XVII, XVIII

e aos primeiros anos do século XIX e apenas em fins do século XVII e nos primeiros anos do

século XVIII percebemos a presença de indígenas assentando praça ou recebendo baixa.

Precisamente, localizamos indígenas assentando praça nos seguintes anos: 1698, 1699, 1703,

1704, 1705, 1710, 1713, 1714 e 1715. Entretanto, foi no ano de 1698, 1699, 1703 e 1704 que

ocorreu uma quantidade significativa de assentamentos de indígenas, totalizando 95 assentos

em um universo amostral de 140. Nos anos posteriores, os assentos não foram superiores a 10.

Sendo assim, foi nas primeiras décadas da Guerra dos Bárbaros, contexto em que os

Paulistas já se faziam presentes no Rio Grande, que a presença indígena assentando praça foi

mais significativa. Esse fato, possivelmente, explica-se pelo fortalecimento das tropas coloniais

com a chegada do Terço dos Paulistas à Capitania, o que implicou, certamente, na constituição

de novas formas de resistência de parte dos índios dos sertões, materializada, por exemplo, pelo

ingresso dos mesmos nas tropas coloniais. Em consonância com isso, houve a necessidade de

homens para atuarem nos embates contra os indígenas do sertão, o que levou, como discutimos

Branco

7, 49%

Mestiço

16, 67%

Índio

33, 82%

Preto do Gentio da Guiné

0, 24%

Preto

3, 86%

Cor negra

0, 24%

Crioulo

0, 24%

Cor Pálida

0, 24%

Sem Identificação

37, 20%

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acima, o Capitão-mor do Rio Grande a solicitar até a presença de colonos que haviam cometido

crimes no ano de 1698.231

No entanto, é importante salientar que, apesar de não termos localizado nos assentos de

praça o alistamento de indígenas nas forças auxiliares do Rio Grande em seguida à Guerra dos

Bárbaros, os índios que viviam tanto em aldeamentos como, posteriormente, em Vilas no

Estado do Brasil eram considerados súditos da Coroa e, portanto, eram obrigados a constituírem

companhias de ordenanças e a defenderem os territórios coloniais a que pertenciam.232

Por essas razões, o que estamos definindo como sendo um padrão, uma regularidade da

Guerra dos Bárbaros é o processo de assentamento de índios em tropas pagas, como foi o caso

do Terço dos Paulistas, bem como o assento no serviço militar e a atuação conjunta de índios e

colonos mestiços e brancos. Porém, é importante destacar que a atuação conjunta de índios e

colonos brancos e mestiços não representou, como discutiremos posteriormente, a existência

de igualdade entre os militares que constituíram o Terço dos Paulistas. Ademais, o que estamos

definindo como uma singularidade desse contexto histórico da Capitania do Rio Grande é a

atuação bélica de índios aliados, inclusive índios dos sertões que passaram a viver em

aldeamentos, contra os índios que resistiram ao processo de ocupação e territorialização de suas

terras nos sertões do Rio Grande. Esses elementos transformaram, na prática, como veremos

nesse capítulo, a Guerra dos Bárbaros em um conflito bélico de índios contra índios, ou, em

outras palavras, de índios aliados contra índios dos sertões.

Dessa forma, observando o gráfico 2, é possível perceber que, além da presença de

povos indígenas, militares identificados nos assentos como sendo de qualidade mestiça (16,

67%), branca (7,49%) e preta (3,86%) se alistaram no serviço militar entre os anos de 1698 a

1725 na Capitania do Rio Grande. Todavia, o gráfico acima não é suficiente para demonstrar

a diversidade da qualidade dos homens que assentaram praça na Capitania no recorte temporal

citado, visto que o mesmo homogenizou nas categorias índios e mestiços diferentes populações

indígenas e distintas tipologias mestiças. Apenas no ano de 1698, por exemplo, tivemos índios

definidos como “tapuya forro da nação dos chamados Canide do certão”, “tapuia forro da Nação

dos Chamados da Silva” e, dentre outros, “tapuia forro da Nação Cararis” assentando praça no

231 Bando que mandou botar nesta capitania do Rio Grande o Capitão Major Pachoal Glz. de Carvalho. In:

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p. 127. 232 A presença de índios nas ordenanças e nos governos municipais da Capitania do Rio Grande foram examinados

pela historiadora Fátima Lopes que, em sua tese de doutorado, abordou o processo de instalação das vilas de índios

no espaço em estudo. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte

sob o Diretório Pombalino no século XVIII. 2005. 700f. Tese (Doutorado em História do Brasil) – Universidade

Federal d e Pernambuco, Recife, 2005.

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Rio Grande. Em decorrência disso, sistematizamos nos gráficos a seguir as diferentes tipologias

que constam na documentação para se referir aos povos indígenas e mestiços, bem como a

quantidade de indivíduos a que se refere cada categoria citada.

Gráfico 3 – Qualidade dos soldados identificados como índios

na Capitania

do Rio Grande

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 140 Assentos de praça e Baixas

entre os anos de 1698 a 1725

1

23

1

1

1

1

1

1

1

4

23

2

27

2

1

1

1

6

15

4

1

2

1

6

1

2

7

1

2

Índio de nação

Tapuya

Índio (administração do Capitão Domingos de…

Índio (administração do alferes Antônio…

Índio (administração do ajudante João Nunes…

Índio de nação (administração do Capitão…

Índio forro (administração do Capitão Salvador…

Da nação Paiacu (administração do Reverendo…

Índio (administração de (...) Francisco Barbosa)

Índio da Terra forro (administração da…

Índios forros

Índios da terra forro

Tapuya forro da Nação Cararis

Tapuya forro da Nação dos Chamados da Silva

Tapuia forro da Nação dos chamados da Silva…

Tapuya da terra dos Chamados da Silva

Tapuya forro dos Chamados da Silva

Tapuya forro da Nação dos Chamados Canide…

Tapuya forro da Nação Payaco da Missão do…

Índios forros da Aldeia das Gorairas

Índios assistentes na Aldeia Gorairas

Índio da Aldeia Gorairas

Índio da aldeia da (...) do Ceará Grande

Índio da Aldeia do Mipibu

Tapuya de Nação (...)

ÍndioS da terra

Índios

Índio que disse ser forro

Tapuia forro da Nação Canidé do Certão

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Gráfico 4 – Qualidade dos colonos identificados como mestiços na Capitania

do Rio Grande

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 69 Assentos de praça e Baixas

entre os anos de 1698 a 1725.

Com relação especificamente aos soldados identificados como indígenas e descritos no

gráfico 3, a utilização da força nativa como gente de guerra e o estabelecimento de alianças

com populações indígenas foi uma estratégia colonial comum no processo de territorialização

do Estado do Brasil. Na capitania de Pernambuco, por exemplo, segundo Maria do Socorro

Ferraz, o estabelecimento de alianças dos colonizadores com indígenas foi uma prática

necessária e que possibilitou a ocupação desse espaço, bem como, posteriormente, a expansão

da presença lusitana para os sertões de dentro e os sertões de fora.233 Portanto, não foi uma

particularidade da Capitania do Rio Grande o uso militar de pessoas de qualidade indígena. Na

verdade, Portugal esperava isso das populações indígenas existentes no Estado do Brasil. Na

concepção da Coroa lusitana, os indígenas que viviam em aldeamentos eram súditos do Rei e

deveriam estar disponíveis para serem utilizadas tanto como mão de obra pelos colonos quanto

como força militar em situações emergenciais.234

Assim, os aldeamentos eram espaços úteis para reduzir os indígenas sob um território

administrado pelos missionários da Monarquia Católica e, ao mesmo tempo, possibilitar o uso

da força militar indígena pela Coroa Portuguesa. No entanto, entendemos que as Missões

podiam ser úteis, também, para os indígenas, que em meio ao processo de territorialização de

suas terras construíram diferentes formas de resistências e sobrevivências. Esse aspecto foi

233 FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de dentro e de

fora. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial, 1580-1720. V.2. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 171-226. 234 Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa/Portugal. Códice 256, fl. 234/234v., 08\01\1687 – Carta ao

Governador de Pernambuco Caetano de Mello de Castro. Cópia de Manuscrito da Divisão de Pesquisa

Histórica/UFPE. Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa/Portugal. Códice256, fl. 261/261v., 10\01\1688– Carta

Régia ao Governador de Pernambuco Caetano de Mello de Castro. Cópia de Manuscrito da Divisão de Pesquisa

Histórica/UFPE. In: LOPES, Fátima. Op cit. p. 491-94.

38

13

13

2

1

1

1

Trigueira

Cor morena

Pardo

Mulato

Cariboca

Coriboca

Curiboca

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evidente no contexto da Guerra dos Bárbaros, onde temos não apenas a presença de índios

aldeados235 atuando no serviço militar, mas, também, a presença de índios do sertão assentando

praça, como demonstra o gráfico 3. Dessa forma, percebemos que os pedidos de paz que foram

solicitados por algumas populações indígenas que viviam nos sertões, como os chamados da

Silva e os Janduis e, posteriormente, a redução dos mesmos em aldeamentos do litoral e a

atuação em corpos militares foram estratégias de sobrevivências aos embates envolvendo

colonos e nativos.

Portanto, atribuímos a essas alianças com os portugueses e aos pedidos de paz de

algumas populações indígenas os assentos de nativos identificados como tapuias em tropas

militares da Capitania do Rio Grande, que, a princípio, diferentemente dos índios potiguaras já

aldeados do litoral, não possuíam nenhum compromisso com a Coroa Portuguesa e com suas

empreitadas coloniais. Nessa perspectiva, um caso presente na documentação que examinamos

e que materializa nossa assertiva é o do indígena João, que assentou praça em 26 de novembro

de 1698, ano em que os Chamados da Silva que estão presentes em nosso gráfico 3 haviam

solicitado paz aos colonos portugueses e sido aldeados no litoral. Nessa ocasião, João foi

identificado da seguinte forma: “Tapuia forro da Nação dos chamados da Silva” e “Assistente

na Aldeia dos índios das Gorairas desta Capitania do Rio Grande”.236

Outras aldeias do litoral também receberam a presença de índios tapuias que se aliaram

aos portugueses e atuaram como gente de guerra entre os anos de 1698 a 1725, como a Missão

de Guajuru, Guaraíras, Mipibu e Igramació.237 Todavia, as alianças com os índios dos sertões

e o estabelecimento dos mesmos em aldeamentos não foi um processo simples e linear, visto

que além das dificuldades presentes em um novo modo de vida, os índios dos sertões aldeados

tinham que resistir aos interesses dos colonos em fazer uso de sua mão de obra. Na verdade,

esse interesse por fazer uso da mão de obra indígena fez com que os oficiais da Câmara de

Natal, que também eram sesmeiros, fizessem uso da Carta Régia de 1708, que possibilitava

cativar os índios de corso e não mais reduzi-los em aldeamentos,238 ou seja, os interesses de

ocupar os sertões estavam imbricados aos interesses coloniais de oficiais da Câmara de Natal

235 Segundo Fátima Lopes, “na capitania do Rio Grande, a implantação das Missões, só aconteceu no último quartel

do século XVII, quase 25 anos depois da expulsão dos holandeses. Durante esse período de vácuo missionário, a

assistência religiosa junto aos indígenas [...] foi, muito provavelmente, assumida pelos padres seculares”. LOPES,

Fátima. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século

XVIII. p. 341. 236 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 237 LOPES, Fátima. Op cit. p. 350-59. 238 ALENCAR, Júlio Cézar Vieira de. Op cit. p. 120.

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que também eram sesmeiros e atuavam como comandantes da gente de guerra, como o caso do

Coronel Antônio de Albuquerque da Câmara que já citamos no capítulo anterior.

Juntamente com os indígenas, os militares definidos especificamente como pretos e\ou

negros também assentaram praça, majoritariamente, no contexto da Guerra dos Bárbaros. De

forma específica, localizamos 19 registros referentes às matrículas de homens identificados

como sendo de qualidade negra na documentação examinada. Desses registros, 18 são

concernentes aos anos de 1703, 1704 e 1705, ou seja, contexto em que a Guerra dos Bárbaros

ainda estava em curso. Nessa perspectiva, de um total de 1.834 assentos e baixas de praça que

catalogamos, apenas 19 são referentes a colonos identificados como pretos e\ou negros e esses

tiveram sua participação no serviço militar, como afirmamos acima, condicionadas,

praticamente, aos efeitos da Guerra dos Bárbaros, que transformou todo habitante de um

território colonial em um homem de guerra, até mesmo aqueles considerados como criminosos.

O único colono preto que não assentou praça no contexto da guerra foi Simão.

Simão foi descrito, na ocasião em que se matriculou no serviço militar, da seguinte

forma: “preto do gentio da Costa da Mina” e “escravo do Alferes Vitoriano Rois dos Santos”.

Nessa ocasião, o mesmo tinha 25 anos de idade e seu fenótipo239 foi descrito dessa forma: “seco

do corpo, rosto comprido, beiços grossos, olhos avermelhados, testa estreita”. Este cativo

assentou praça de tambor no dia 16 de março de 1780. Infelizmente, o seu assento não faz

menção a que companhia ou corpo militar o mesmo pertencia. Assim, o que chama a nossa

atenção nesse assento de praça é a condição de escravo240 do militar em questão. As tropas

pagas eram constituídas por homens livres e, apesar, da presença de escravos no serviço militar

não ser improvável, ela era uma prática comum em situações emergenciais241 ou nas investidas

239 Segundo a historiadora Isnara Pereira Ivo, a qualidade somada à condição e à fisionomia foram categorias

empregadas no Novo Mundo para definir, classificar e hierarquizar as diferentes populações que habitavam o

território ultramarino. Segundo esta autora, essas categorias não podem ser consideradas isoladamente e são

imprescindíveis para a compreensão da organização social da colônia, principalmente para o entendimento das

interdições que eram postas a indivíduos que portavam, por exemplo, a qualidade mestiça e tinham os seus

fenótipos delineados pelos signos das dinâmicas de mestiçagens biológicas. IVO, Isnara Pereira. Seria a cor, a

qualidade, a condição ou o fenótipo? Uma proposta de revisão dos critérios de distinção, classificação e

hierarquização nas sociedades ibero-americanas. In.: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França. Dinâmicas de

mestiçagens no mundo moderno: sociedades, culturas e trabalho. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2016. p.64. 240 Em um universo amostral de 1.826 assentos e baixas, os únicos militares que foram identificados como escravos

foram os que assentaram praça de tambor, no caso, um total de 4 escravos, ou seja, a matrícula de escravos em

corpos militares oficiais não foi uma prática comum no Rio Grande. 241 Como foi o caso da ocupação holandesa na Capitania de Pernambuco e no Rio Grande. Nesse contexto, segundo

Kalina Silva, a atuação de negros no serviço militar, mais especificamente nos terços conduzidos pelo crioulo forro

Henrique Dias na Capitania de Pernambuco, possibilitou que pessoas de cor se inserissem na administração militar

colonial, obtivessem prestígio pelos serviços prestados à Coroa e, por fim, alcançassem a alforria, para o caso dos

negros que eram escravos. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Op cit. p. 163.

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101

para a ocupação das terras tidas como sendo sertões.242 Todavia, em se tratando do posto de

tambor, constatamos que o mesmo, para o recorte espaço-temporal examinado, foi ocupado por

escravos, pretos e mestiços, como demonstra o quadro abaixo:

Quadro 6 – Qualidade dos ocupantes do posto de tambor na Capitania do Rio Grande

Nome Qualidade Condição Ano

Francisco Bernardes Sem identificação Sem identificação 1749243

Manoel Angola Sem identificação 1749

Simão Preto do Gentio da

Costa da Mina

Escravo do Alferes

Vitoriano Rois dos

Santos

1780

Joaquim Gentio de Angola Escravo do Capitão

Jeronimo Cabral de

Macedo

1789

Gonçalo Crioulo Escravo do Tenente-

Coronel Antonio

Ferreira de Lima e

Pereira

1789

Antônio Gentio da Guiné Sem identificação Sem identificação

Manoel Cabra244 Escravo do Capitão-mor

José Ferreira da Costa

Sem identificação

Antônio Gentio da Guiné Sem identificação Sem identificação

Fonte: Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820.

O posto de tambor foi instituído no ano de 1570 em Portugal com o Regimento Geral

das Ordenanças. O mesmo, assim como o ofício de alferes, cabo-de-esquadra e sargento, era

uma ocupação militar inferior na hierarquia militar das ordenanças. Quanto ao fato de ter sido

ocupado por escravos, mesmo em um contexto não emergencial, é pertinente observar que os

ocupantes desse ofício e que foram identificados como escravos pertenciam a outros oficiais

militares, que, certamente, fizeram uso de seus escravos “militarmente”. O escravo Gonçalo,

por exemplo, pertencia a um tenente-coronel, Manoel a um capitão-mor, Joaquim a um capitão

e, por fim, Simão a um alferes. Esses postos, com exceção do de capitão e do de alferes, eram

ofícios importantes na hierarquia militar e que eram superiores ao ofício de tambor, tanto nas

forças regulares quanto nas auxiliares. Assim, possivelmente, esses colonos fizeram uso de seus

escravos como gente de guerra.

242 FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de dentro e de

fora. p. 166. 243 Este tambor recebeu baixa no ano seguinte. O motivo dessa dispensa na prestação de serviços militares não foi

expresso na documentação examinada. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo

Histórico do IHGRN. 244 Manoel foi um único mestiço cabra listado na documentação examinada. Acerca das tipologias mestiças e das

diferenças existentes entre elas, teceremos considerações no capítulo seguinte.

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A utilização de escravos como força militar foi uma prática existente no cenário

colonial245 e que denotava prestígio aos senhores que dispunham de uma escravaria numerosa

e que podiam colocá-la a serviço dos interesses da Coroa. Entretanto, esse não é o nosso caso,

visto que não estamos tratando de milícias de negros ou mesmo de tropas particulares. Dessa

forma, acreditamos que essa “burla” no regimento militar, como asseveramos acima, ocorreu

devido ao posto de tambor ser de menor importância na hierarquia dos ofícios militares, bem

como devido ao fato de se tratar de escravos que pertenciam a colonos que também eram

militares e que estavam em uma posição militar superior a de seus escravos, e, certamente,

econômica e social também. Esses aspectos devem ter possibilitado que esses colonos fizessem

uso da força militar de seus escravos, a exemplo do que acontecia com as tropas particulares,

financiadas pelos próprios senhores.

Quanto aos demais colonos identificados como pretos e\ou negros, assim como os

colonos indígenas, segundo Maria do Socorro Ferraz, foram utilizados no Estado do Brasil

como força militar no processo de expansão da presença lusitana nos sertões. Entretanto, estes,

ao contrário dos indígenas, obtiveram maior inserção na administração militar do Ultramar,

visto que a ocupação holandesa na Capitania de Pernambuco, como asseveramos no capítulo

anterior, possibilitou que os terços de colonos de qualidade mestiços e negros se

institucionalizassem. 246 Porém, no que concerne à presença dos mesmos na administração

militar da Capitania do Rio Grande, é restrita praticamente aos anos em que se desenrolaram a

Guerra dos Bárbaros. A ausência de militares pretos e/ou negros nas tropas regulares do século

XVIII é compreensível, uma vez que essas, teoricamente, deveriam acolher apenas colonos

brancos.247 No entanto, homens de cor deviam estar presentes nas companhias de ordenanças,

que, conforme seu Regimento, deveria acolher a todos os homens em idade produtiva, a exceção

dos fidalgos e eclesiásticos. Todavia, o que constatamos nos assentamentos examinados foi a

ausência dos mesmos nos anos posteriores aos embates envolvendo colonos e nativos.

Esse padrão de assentamento de militares identificados como pretos e/ou negros não

ocorreu com os colonos mestiços e brancos. No caso dos mestiços, se entre 1698 a 1725 os

mesmos constituíram 16, 67%, entre 1725 a 1820 estes foram quantitativamente superiores aos

colonos identificados como brancos, inclusve nas tropas pagas da Cidade do Natal, que, em

245 Escravos armados e atuando militarmente foi uma prática comum na América portuguesa. No que concerne a

esta prática, a Coroa vivenciava um paradoxo, tendo em vista que mesmo temendo o armamento de escravos

acabou incorporando tal prática e incentivando, inclusive, os senhores a colocá-los em prol dos interesses coloniais.

Sobre esse tema ver: PAIVA, Eduardo França. “Milícias negras e culturas Afro-brasileiras: Minas Gerais, Brasil,

século XVIII”. (www. fafich.ufmg.br/pae/index_arquivos/page 0019.html). 246 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Op cit. p. 98-99. 247 Idem.

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tese, deveriam acolher apenas homens brancos, como abordaremos no capítulo seguinte.

Portanto, no espaço em estudo, colonos de qualidade mestiça e branca assentaram praça ao

longo de todo o período colonial. Com relação aos mestiços, conforme o gráfico três, diferentes

tipologias foram empregadas no contexto colonial para se referirem aos mesmos: pardos,

cabras, trigueiros, curibocas e, dentre outros, mulatos. Cada uma dessas tipologias fazem

referência a indíviduos que no contexto em estudo são produtos de misturas biológicas e

culturais envolvendo colonos de diferentes qualidades e condições. Portanto, o termo mestiço

não é homogêneo e aglutina indíviduos identificados de diferentes formas.

Em se tratando da documentação examinada, percebemos que ao longo do recorte

temporal estudado na dissertação, colonos identificados como pardos e trigueiros conseguiram

obter maior inserção da administração militar do Rio Grande. Entre os anos de 1698 a 1725,

por exemplo, 38 colonos foram identificados como trigueira, 13 como pardos, 13 como morenos

e apenas 2 como mulatos, em um universo amostral de 69 colonos qualificados como mestiços.

A explicação para tal fato é complexa. Em uma sociedade marcada “naturalmente248”

pela desigualdade, o nome + a qualidade + a condição249 implicavam em maior ou menor

inserção social. Dessa maneira, no contexto em estudo, existiam tipologias mestiças que

denotavam maior ou menor inserção social. Um mestiço definido como pardo, por exemplo,

em detrimento de um mestiço definido como cabra250 podia se inserir com menos dificuldades

nas instituições coloniais. No entanto, retomaremos essa discussão no capítulo seguinte.

Fizemos essa opção por perceber que existe um número significativo de mestiços nas forças

militares do Rio Grande posteriormente aos conflitos que constituíram a Guerra dos Bárbaros.

Homens mestiços, estiveram presentes tanto nas ordenanças quanto nas tropas regulares e,

portanto, não tiveram suas matriculas no serviço militar condicionadas aos eventos da Guerra

dos Bárbaros, ou seja, a uma situação histórica emergencial e que transformou todo e qualquer

colono em um homem de guerra.

248 De acordo com Eduardo França Paiva, a sociedade colonial era marcada “naturalmente” por distinções, que se

davam com base na qualidade e na condição dos indivíduos que a constituíam. PAIVA, Eduardo França. PAIVA, Eduardo França. Escravo e mestiço: do que estamos efetivamente falando? In.: CHAVES, Manuel f. Fernandez;

GARCIA, Rafael M. Pérez; PAIVA, Eduardo França. (Orgs.). De que estamos falando? Antigos conceitos e

modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 249 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 136. 250 Acerca da qualidade cabra na colônia ver os estudos de Marcia Amantino (AMANTINO, Marcia. Cabras. In.:

CHAVES, Manuel f. Fernandez; GARCIA, Rafael M. Pérez; PAIVA, Eduardo França. (Orgs.). De que estamos

falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond,

2015).

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Em nosso texto, passaremos a analisar nesse momento a condição, a naturalidade e os

motivos presentes nos assentos e baixas de praça para dispensa no serviço militar entre os anos

de 1698 a 1725. Começemos, então, pela condição desses colonos.

3.2 João, índio que “disse ser forro”: 251 considerações acerca da condição do efetivo

militar do Rio Grande, 1698 a 1725

O serviço militar colonial, institucional e pago deveria acolher apenas homens livres.

Entretanto, em situações que ameaçavam a integridade dos territórios portugueses, como a

ocupação holandesa em Pernambuco ou mesmo a Guerra dos Bárbaros nas Capitanias do Norte

do Estado do Brasil, era permitida a utilização da força escrava. Um exemplo claro disso é o

caso do Terço de Henrique Dias em Pernambuco. Ademais, escravos podiam ser utilizados

militarmente em companhias de particulares, o que denotava prestígio aos senhores de

escravarias numerosas. Portanto, em linhas gerais, a utilização de escravos como força militar

foi uma prática existente no cenário colonial.252

Todavia, nos assentos de praça que examinamos, entre os anos de 1698 a 1725, período

que configuraria como uma situação emergencial, não localizamos nenhuma matrícula no

serviço militar do Rio Grande que fosse referente a soldados que eram escravos. Na verdade, o

número de escravos que se matricularam no serviço militar nos anos posteriores,

quantitativamente, foi inexpressivo. Localizamos apenas 6 casos de assentos de escravos e,

desses, 5 desempenhavam o ofício de tambor, como é possível constatar no quadro 6, já

examinado nesse texto.

Dessa forma, todos os militares que guerrearam entre os anos de 1698 a 1725 eram

livres, como preconizava a legislação militar colonial. No entanto, 91 desses militares, em um

universo amostral de 414, carregavam o estigma da escravidão e foram matriculados no serviço

militar como forros. Curiosamente, 87 desses indivíduos eram indígenas. A escravidão indígena

foi problemática desde o início do proceso de colonização do Estado do Brasil.

Segundo a antropóloga Beatriz Perrone-Moisés, a legislação indigenista, no que

concerne ao item escravidão, era “contraditória, oscilante e hipócrita”.253 De acordo com a

autora, Portugal tentava conciliar os interesses dos missionários, principalmente jesuítas, que

desejam evangelizar os nativos e evitar que esses fossem escravizados e, em contrapartida,

251 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 252 PAIVA, Eduardo França. “Milícias negras e culturas Afro-brasileiras: Minas Gerais, Brasil, século XVIII”.

(www. fafich.ufmg.br/pae/index_arquivos/page 0019.html). 253 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período

colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manoela Carneiro da. História dos Índios no Brasil.1992. p. 116.

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buscava atender aos interesses dos colonos, que almejavam fazer uso da mão de obra indígena,

aspecto caro também à Coroa, que, evidentemente, desejava obter lucros com a colonização do

Estado do Brasil. No entanto, essa busca por atender a demandas que não dialogavam

engendrou uma legislação “contraditória e oscilante por declarar a liberdade com restrições do

cativeiro a alguns casos determinados, abolir totalmente tais casos legais de cativeiro (nas três

grandes leis de liberdade absoluta: 1609, 1680 e 1755), e em seguida restaurá-los”.254

Contudo, apesar de todas as contradições na legislação indigenista, desde a lei de 1688, era

consenso de que a escravidão indígena só seria permitida em algumas situações específicas,

como em caso de “guerra justa”, quando declarada pelas autoridades coloniais e em ocasiões

de resgates pelas forças coloniais de índios prisioneiros em guerras intertribais.255

Essas mesmas exceções nos casos de escravização indígena já haviam sido, de certa forma,

preconizados pela lei de 1655 e foram apenas reafirmados pela lei de 1688 256 . Nessa

perspectiva, a primeira conclusão que somos tentados a inferir é de que esses 87 indígenas

foram declarados escravos pela ocasião da Guerra dos Bárbaros, que foi considerada uma

“guerra justa”, e conseguiram, dessa forma, suas alforrias ao serem utilizados como força

militar nas tropas coloniais. No entanto, na prática, esse processo era complexo e não ocorria

de forma engessada, visto que alguns índios, no contexto da Guerra dos Bárbaros, se aliavam

“voluntariamente” às tropas coloniais e aceitavam viver em aldeamentos e integrar as tropas

coloniais, como foi o caso dos Janduís, liderados pelo “rey” Canidé, ano de 1692. Todavia,

estes índios aliados nem sempre cumpriam o que estava posto no Tratado de Paz, fugindo dos

aldealmentos e estando, portanto, sujeitos ao cativeiro.

Sobre o Tratado de Paz estabelecido entre à Coroa e os Janduís, por exemplo, esse

documento preconizava que, caso fosse preciso, esses índios seriam utilizados como força

militar, integrando as tropas coloniais e se empenhando na reconstrução da Fortaleza dos Reis

Magos:

5º Que do mesmo modo se obrigão a fazer guerra a todo Gentio de qualquer

nação que seja, a quem os Portugueses afiserem por ordem do Govor. Gl. Do

Estado: e prometem ser amigos das nações de q. os Portugueses oforem; e

inimigo das contrarias a nação Portuguesa: o que tambem guardaram reciprocamente os Governadores geraes, mandando os ajudar contra seus

inimigos por ser beneficio dos Portugueses.

9º Que tambem se obrigão a que sendo necessario para a reedificação da fortaleza do Rio Grande alguns Indios das Aldeias dos Janduins, lhe dem os

Principaes aquelle numero de Indios q. o Capitão mor lhes pedir

alternativamente, por ser serviço Del Rey, pagando-se-lhe por conta da fazª.

254 Ibid., p. 117. 255 Ibid., p. 123. 256 LOPES, Fátima. Op cit. p. 339.

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Rl. o tempo q. servirem. Mas não lhe poderem os Capitaens mores fazer

vexação algua.257

Em recompensa pela paz firmada, esses nativos deveriam receber terras e em hipótese alguma

serem escravizados ou vendidos “por qualquer titulo, motivo, ou ocasião que seja, passada,

presente ou futura”,258 ou seja, deveriam ter suas liberdades preservadas, “como os mais

vassallos Portugueses”,259 o que demonstra o caráter estratégico dessas alianças, tanto para a

Coroa quanto para os índios. No entanto, na prática, os índios aliados fugiam do serviço militar

colonial, como demonstram os assentamentos de praça examinados, onde constatamos que das

27 deserções ocorridas entre os anos de 1698 a 1725 23 foram praticadas por índios, definidos

na documentação como tapuias, ou seja, índios dos sertões.260

Sobre esse aspecto, um documento datado de 1741, trata exatamente do processo de

escravidão de índios dos sertões aliados, que haviam rompido com a paz estabelecida com os

portugueses na ocasião da Guerra dos Bárbaros. De acordo com essa fonte, os índios aliados,

muitas vezes, voltavam a fazer guerra aos colonos e acabavam, em decorrência desse

rompimento, sendo vendidos a “pessoa publica” e submetidos à condição de escravos. Essa

fonte, que, infelizmente, está bastante desgastado pelo efeito do tempo, é referente a uma carta

dos oficiais da Câmara de Natal enviada ao rei D. João V acerca da condição dos índios dos

sertões, que eram definidos como forros no contexto de guerra, mas que, segundo os camarários,

conforme as reclamações dos colonos, pertenciam a particulares.

Esse documento foi transcrito parcialmente, devido sua condição de desgaste, como

elucidamos acima. Em decorrência disso, não conseguimos inferir se foram identificados quem

eram esses índios dos sertões que estavam rompendo com as tropas coloniais, ou seja, de quais

nações eram. O documento atesta, apenas, que os nativos, mesmo depois de terem estabelecido

aliança com os colonos, descumpriam a paz estabelecida e voltavam a “fazer guerra”, como

evidencia a transcrição abaixo:

Muitos e continuados anos tiverão os moradores desta Capitania guerra com

várias nasonis do gentio Barbaro tapuya que abitavao os certonis della, hum q por ordem de V. Magestade e jurras dos mais governadores do Estado e de

Pernambuco passadas em virtude [?] tudo afim de se adomar aquella rebelião

[brutal] e sugeitallos ao gremio da igreja; e muitas vezes por castigar os que

257 Cópias das capitulações realizadas entre o Governador Geral do Brasil Antonio Luis Gonçalves da Camara e

Canidé Rei dos Junduins, em 10 de abril de 1692. In: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p.

132-135. 258 Idem. 259 Idem. 260Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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depois de optarem de paz se rebelavam e nos faziao guerra, em odernançia dos

captais ordens sequitava a preza que se fazia fazendo os provedores da

fazenda, vender em pessoa publica o que assim tocava V. Magestade a quem por ella mais dava, e o dinheiro que assim se dava pellos collomins [?] ou

tapuias se fazia carregar ao almoxarife em reseita viva e o resto da preza se

repartia na forma que se costuma entre os militares.261

Caso se tratasse de índios que haviam estabelecido a paz formalmente, assinando tratados, como

foi o caso dos Janduís, a liberdade era condição inegociável, em qualquer situação, o que

demonstra que os tratados não eram descumpridos apenas pelos indígenas.

No entanto, tendo como base os fatos presentes na carta dos oficiais da Câmara e no

Tratado de Paz assinado pelos Janduís, o fato é que os índios dos sertões se aliavam, quando

lhes fosse conveniente, aos colonizadores. Isso explica a presença dessas populações nas tropas

coloniais e a existência de índios livres nos assentos de praça examinados, mesmo esses

contabilizando apenas 39 militares em um universo amostral de 140 índios . A condição de

forro desses indivíduos, dado mais complexo e controverso, visto que não é estabelecido de

forma clara na documentação o porquê dessa identificação de forro, pode ser explicada tanto

pela ocasião da “guerra justa” quanto pelo fato deles pertecerem a particulares. Sobre esse

último aspecto, estamos tomando como base, principalmente, essa fonte datada de 1741 e que

remete à ocasião da Guerra dos Bárbaros, contexto em que esses índios foram cativados, visto

que eles, quando se aliavam aos portugueses e rompiam com esse tratado, eram vendidos a

particulares e repartidos entre os militares, podendo, certamente, serem utilizados como homens

de guerra.

Nessa perspectiva, acreditamos que a hipótese de que esses índios pertenciam a

particulares e eram utilizados como força militar é plausível, tendo em vista que a carta dos

camarários enviada à Coroa é concernente a um conflito envolvendo os moradores do Rio

Grande e os índios tapuias dos sertões, que eram cativos e haviam sido considerados como

forros. Apesar do estado precário do documento, é possível perceber que os moradores da

Capitania estavam contestando o fato de alguns índios cativos terem sido definidos como forros

e, em decorrência disso, se recusavam a lhes servirem. Segundo os camarários, muitos

moradores da Capitania, que possuíam índios cativos, estavam em uma situação complexa, já

que “não sao perdera o que derao a V. Magestade pelos ditos escravos como estes e o que lhe

he nesesario gastar em defenderemce e mostrarem” que esses “são seus cativos para q, lhes não

261 Cópias das capitulações realizadas entre o Governador Geral do Brasil Antonio Luis Gonçalves da Camara e

Canidé Rei dos Junduins, em 10 de abril de 1692. In: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. p.

132-135.

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venham pedindo os dias de serviso e injuria de os tratar como cativos sem o serem”.262 De

acordo com os camarários, a gravidade da situação exigia um posicionamento da Coroa, pelos

danos causados aos colonos, fossem esses monetários, ou contra as suas próprias vidas, já que

alguns índios “emtentado com este mau exemplo tirarem as vidas a seus senhores”.263 Portanto,

é evidente que as alianças com os colonizadores e o ingresso nas tropas coloniais se tratavam

de uma forma alternativa de resistência à Guerra dos Bárbaros, resistência essa, como

demonstra o documento em análise, que permaneceu mesmo com o encerramento da guerra e

com o processo de territorialização dos sertões.

Acerca da condição dos índios que eram dados como forros e que segundo os moradores

pertenciam a particulares, infelizmente não podemos inferir quando e como isso ocorreu.

Acreditamos, como já asseveramos, que o número significativo de assentos de praça de índios

forros pode ser um caminho explicativo, pela própria necessidade de homens para lutar nos

conflitos contra os índios que resistiam nos sertões quanto pelo conhecimento que esses nativos

possuíam do território em questão. Todavia, é evidente que se esses indígenas, pertencentes a

particulares, inseriram-se nas tropas coloniais, com o fim dessa guerra os “senhores” desses

“cativos” desejavam reavê-los e, certamente, fazerem uso de suas mãos de obra. Tiveram, no

entanto, que lidar com um impasse: esses índios haviam sido declarados como libertos e se

recusavam a servi-los. Como assinalamos há pouco, esse dado demonstra como a resistência

indígena permaneceu, mesmo com o fim da Guerra e ganhou novos contornos, em consonância

com a nova situação social que estava posta.264

Apesar das lacunas nos assentos de praça e na carta dos oficiais camarários, citada

acima, um elemento evidente nesse processo e que não pode ser naturalizado é a presença

significativa de índios nas tropas coloniais, constituindo de 33, 82% do efetivo da Coroa em

uma situação em que sua soberania sobre o território do Rio Grande foi ameaçada por uma forte

resistência interna, dos índios dos sertões, que lutavam contra as forças colonizadoras através

de diferentes mecanismos, até mesmo por meio de alianças que podiam ser rompidas, quando

estas não fossem mais vantajosas.

Assim, a Guerra dos Bárbaros, além de evidenciar o protagonismo dessas populações

nativas dos sertões, que resistiram de diferentes formas ao avanço da interiorização dos

262 CARTA dos oficias da Câmara de Natal ao rei [D. João V] sobre vários processos referentes aos índios cativos

que eram dados como forros, ficando os seus senhores legais obrigados a grandes gastos para reavê-los. Anexo:

informação do governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire de Andrade, 1741. Papéis avulsos, Cx. 4,

doc. 57. 263 Idem. 264 Idem.

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empreendimentos coloniais, como salientamos acima, referiu-se, acima de tudo, a uma clara

disputa territorial, visto que aos nativos interessava o mantimento dos sertões sob sua custódia,

como ocorria, evidentemente, antes da chegada dos colonizadores no Estado do Brasil. Em

contrapartida, interessava aos colonizadores o aproveitamento desse território pela Coroa, o que

implicava em conflitos diretos com os nativos, compreendidos como empecilhos ao avanço da

conquista ultramarina. Esse caráter de disputa territorial da Guerra dos Bárbaros não pode ser

ignorado, visto que esse foi o combustível que alimentou as diferentes formas de protagonismo

das populações nativas dos sertões, que guerrearam para preservar seus territórios e suas formas

de vida autóctones.

Acerca dessa disputa territorial, segundo o geógrafo Antonio Carlos Robert de Morais,

a colonização em si pressupunha o domínio de territórios, que visavam, em linhas gerais,

atender às demandas econômicas e sociais que haviam impulsionado os empreendimentos

coloniais em determinado espaço. 265 Dessa maneira, era esperado, de certa forma, que

ocorressem conflitos envolvendo colonos e nativos e que tivessem como fundamento a disputa

pelo território. Em decorrência disso, a expansão colonial tratava-se, também, conforme este

autor, antes de tudo, de uma imposição militar e não apenas política e/ou religiosa, como

discutiremos adiante, quando tratarmos do processo de ocupação territorial da Ribeira do Seridó

no pós-Guerra dos Bárbaros.

Outro dado importante que não ser ignorado, no que concerne à presença indígena nas

tropas coloniais, é referente ao número de índios alistados no serviço militar do Rio Grande.

Sendo assim, como demonstramos no gráfico 2, os índios matriculados no serviço militar

colonial (33, 82%) eram quantitativamente superiores ao número de colonos mestiços (16, 67%)

e brancos (7,48%) que constituíram o efetivo do Rio Grande na Guerra dos Bárbaros. Esse dado

quantitativo demonstra que, apesar desse conflito bélico ter como fundamento a Coroa e seus

interesses territoriais e econômicos de um lado e os nativos do sertão de outro, lutando pela

manutenção de suas terras, na prática, o que existia era uma guerra de índios contra índios, a

julgar pela composição das tropas coloniais.

Por fim, é importante salientar que, apesar do fato dos índios terem constituído uma

porcentagem significativa da força militar do Rio Grande na Guerra dos Bárbaros, isso não se

converteu na ocupação de postos de comando nas companhias militares atuantes nesse contexto.

Dessa maneira, a heterogeneidade na composição social dos corpos militares da Capitania não

265 MORAIS, Antonio Carlos Robert de. Formação Colonial e conquista de espaço. In: MORAIS, Antonio Carlos

Robert de. Território e História no Brasil. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2008.p. 65.

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implicou na existência de igualdade entre os oupantes dos postos militares. Um exemplo claro

disso é que, na documentação examinada, mesmo os índios representando 33, 82% do efetivo

militar e os brancos constituindo apenas, 7, 49%, os postos de capitães de companhia, de alferes

e, dentre outros, cabo de esquadra eram destinados a colonos de qualidade branca ou mestiça.

Dessa forma, localizamos nos assentos de praça apenas três indígenas que possuíam patentes.

Os demais foram listados em sua matrícula no serviço militar como soldados,266 que não

consistia em uma patente e nem denotava prestígio aos ocupantes de tal posto.

Os indígenas que foram definidos como possuindo patentes foram: Gaspar da Silva,

Manoel Coelho e Manoel de Abreu267. Sobre esses índios, Gaspar da Silva e Manoel Coelho

possuíam a patente de capitão. Certamente, os mesmos eram capitães de alguma companhia de

índios aliados. Gaspar da Silva foi definido em sua matrícula no serviço militar, no dia 26 de

novembro de 1698, como índio forro.268 Já, Manoel Coelho, assentou praça em 22 de outubro

de 1699, foi definido em seu ingresso na administração militar como “tapuya forro da nação

cararis”. Este último era natural da Capitania da Paraíba e recebeu baixa no serviço militar do

Rio Grande no dia 28 de dezembro de 1703, ou seja, guerreou por 4 anos na Guerra dos

Bárbaros, contra os índios dos sertões.269 Por fim, temos o caso de Manoel de Abreu, “tapuya

forro da nação payaco da missão do Padre Felipe Burel”, que assentou praça na Capitania no

ano de 1704.

Este “tapuya forro da nação payaco da missão do Padre Felipe Burel”, diferentemente

de Gaspar e Manoel, ocupou o posto de capitão-mor,270 contrariando o que estava posto, por

exemplo, no Regimento das Ordenanças, de 1570, que ordenava que os capitães,

principalmente, os mores, fossem eleitos entre as “pessoas principais das terras”, que tivessem

“partes e qualidades para os ditos cargos”.271 No que se refere às tropas regulares, estas sequer

deveriam acolher homens que não fossem brancos, aspecto que na prática não foi possível,

266 Além dos índios ocuparem, majoritariamente, o posto de soldado, estes recebiam apenas metade do soldo que

era pago aos demais colonos que também guerrearam nesse conflito, o que demonstra que o ingresso significativo

dessa população nos corpos militares que atuaram nesse contexto não se converteu em possibilidades reais de

ascensão militar dessa população e nem mesmo em um tratamento semelhante ao que colonos-militares de qualidade mestiça e branca recebiam. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico

do IHGRN. 267 As transcrições dos assentos de praça desses três índios estão presentes no Apêndice C. 268 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 269 Idem. 270 Idem. 271 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

Lisboa, 1570.

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conforme discutiremos posteriormente, pela própria falta de homens brancos para compor este

corpo militar nos espaços coloniais.272

Portanto, nem sempre o que estava posto na legislação militar era cumprido no Ultramar.

Havia casos singulares de indivíduos que rompiam com a ordem estabelecida e conseguiam

ocupar ofícios destinados, a princípio, apenas a homens brancos e portadores de cabedal.

Evidentemente que, um conjunto de elementos possibilitavam essa “burla” na hierarquia

militar, como as relações clientelares, segundo Francis Cotta.273 Todavia, não podemos inferir,

com base na documentação, quais foram os caminhos estratégicos trilhados por esses indígenas

para ocuparem postos de comando que, na teoria, deveriam ser desempenhados pelos “homens

bons” das capitanias. Ainda assim, é significativo perceber que alguns índios conseguiram uma

maior inserção na dinâmica social da colônia, mesmo em uma situação de Guerra e de disputas

por territórios. Esperamos em estudos posteriores entender um pouco mais desses casos

singulares de indígenas que se destacaram no serviço militar do Rio Grande e conseguiram

obter patentes.

3.3 Naturalidade dos militares que guerrearam na Guerra dos Bárbaros

Quando os colonos ingressavam no serviço militar colonial um conjunto de informações

eram listadas em um livro, que condensava as matrículas dos indivíduos inscritos nas

companhias militares. De acordo com o Regimento das Fronteiras, nestes livros eram listadas

as seguintes informações:

Nestes Livros se declarará o dia em que Começaram a servir e as praças de

primeira Plana se porão cada uma em sua Lauda, e as dos Soldados da mesma

maneira declarando-se em cada assento a terra de onde cada um é natural, e o

nome do Pai, e os sinais do Rosto, e estatura do Corpo e os anos de idade em que assentou a praça e à margem se notará pela Letra do ABC a Arma com

que serve pondo-se ao piqueiro um P, ao Mosqueteiro um M, e aos

arcabuzeiros um A. E se nas companhias houver vantagens ordinárias se anotarão ao pé dos assentos das pessoas que estiverem e na primeira nota que

se fizer na Lista no tempo que as começarem a Vencer se declarará o dia em

que começam a vencê-la, e nas outras Listas, que se seguirem bastará por a

nota da vantagem sem dia.274

272 Retornaremos a esta discussão da hierarquia dos postos militares conforme a qualidade de seus ocupantes

quando tratarmos de forma específica dos assentos de praça de mestiços no século XVIII e nos primeiros anos do

século XIX, população que pretendemos examinar de forma minuciosa no terceiro capítulo dessa dissertação. 273 COTTA, Francis. Negros e Mestiços nas milícias da América Portuguesa. p. 06. 274 Regimento das Fronteiras, 15 de agosto de 1645. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa,

1645.

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Certamente, esses dados eram arrolados no intento de assegurar aos capitães de companhias um

controle de seus homens e, principalmente nas ocasiões de mostras, esses homens eram

enfileirados para receber, por exemplo, seus soldos. Nessas situações, segundo o documento

citado acima, os vedores gerais e seus oficiais devem chamar os soldados por seus respectivos

nomes e antes de efetivar os pagamentos devem reconhecer os praças e oficiais pelos sinais

presentes em seus assentos, ou seja, verificar se o indivíduo em questão se tratava, de fato, de

um militar de determinada companhia. O capitão de companhia deveria acompanhar as mostras

e auxiliar nesse processo de reconhecimento dos seus soldados, visto que nos casos em que os

praças estivessem ausentes e fossem substituídos por outros soldados, estes que se apresentaram

falsamente deveriam ser punidos, sendo privados da “Companhia para nunca mais a haver”.275

Nesse sentido, além do fenótipo desses soldados, úteis nas ocasiões de mostra, eram

listados, também, os locais de moradias e os territórios dos quais eram naturais esses soldados.

Ao longo desse texto, já abordamos a questão da qualidade e da condição dos soldados e oficiais

que constituíram as companhias militares do Rio Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros.

Dessa maneira, nesse momento, passaremos a discutir a questão da naturalidade desses

militares, ou seja, do território dos quais eram originários. Essa informação, em conjunto com

a qualidade e a condição desses colonos, nos possibilitará entender como estava constituído o

efetivo do Rio Grande nesse contexto de Guerra.

Assim, tendo como base os assentamentos de praça referentes aos anos de 1698 a 1725,

constatamos que colonos de diferentes capitanias do Estado do Brasil (Rio de Janeiro, São

Paulo, Espírito Santo, Paraíba e, dentre outras, Pernambuco) estiveram presentes no Rio Grande

no contexto em estudo. Entretanto, em um universo amostral de 414 registros, não conseguimos

inferir a naturalidade de 197 colonos, que corresponde a 48% do total dos assentos analisados.

Desse modo, os números listados no gráfico a seguir precisam ser examinados de forma

cautelosa, visto que a documentação analisada apresenta uma lacuna que corresponde a quase

50% das matrículas no serviço militar do Rio Grande entre 1698 a 1725. Acerca desses dados

quantitativos, observemos o gráfico abaixo:

275 Regimento das Fronteiras, 15 de agosto de 1645. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa,

1645.

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Gráfico 5 – Naturalidade dos militares que atuaram no Rio Grande

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base 414 em Assentos de praça e Baixas entre os anos

de 1698 a 1725 – Arquivo Histórico do IHGRN.

Com base nos dados acima, é evidente que, apesar da Guerra dos Bárbaros reunir homens de

diferentes localidades do Estado do Brasil, as companhias auxiliares e pagas que atuaram nesse

contexto eram constituídas, principalmente, por colonos que eram naturais do Rio Grande (85),

de Pernambuco (40) e da Paraíba (36), ou seja, as tropas coloniais eram formadas, sobretudo,

por colonos que foram identificados como sendo naturais do território em estudo. Na verdade,

este dado já era, de certa forma, esperado, visto que as companhias de ordenanças, corpo militar

existente nesse território, deveriam arregimentar todos os colonos, à exceção dos fidalgos e

eclesiásticos, de cada vila ou freguesia existente no ultramar, segundo o Regimento de 1570.

Apenas os postos de comandos desse corpo militar, conforme o Regimento das Ordenanças,

deveriam ser ocupados com base nos critérios da qualidade.

Esse caráter local das tropas coloniais do Rio Grande permaneceu nos anos seguintes,

onde, mesmo constatando a presença de praças vindos especialmente de Pernambuco e da

Paraíba, era a capitania do Rio Grande que fornecia efetivamente homens para as companhias

auxiliares e para as tropas pagas. Em se tratando dos colonos naturais de Pernambuco e da

Paraíba, para os quais possuímos dados quantitativos significativos, desde os anos iniciais da

Guerra dos Bárbaros foi solicitada a presença de praças oriundos desses espaços para se unirem

às tropas locais. Nesse sentido, segundo Júlio César Vieira de Alencar, já em 1687 a Câmara

da Cidade do Natal reconheceu a gravidade dos embates envolvendo nativos e as tropas locais

e por isso enviou cartas à Câmara de Olinda e ao Capitão-mor da Paraíba pedindo auxílio

197

36

85

40

7

10

3

1

7

4

2

2

12

1

3

0 50 100 150 200

Sem identificação

Paraíba

Rio Grande

Pernambuco

Portugal

Rio de Janeiro

Angola

Capitania de Itamaracá

Ceará Grande

Rio Sam Francisco

Cidade da Bahia

São Paulo

Espirito Santo

Reino de Napoles

Sirgipe Del Rey

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militar. Em consonância com isso, o Capitão-mor do Rio Grande solicitou auxílio militar ao

próprio Governador-Geral do Estado do Brasil, Mathias da Cunha, que lhe respondeu afirmando

que havia solicitado “ao Governador de Pernambuco que enviasse ‘duas companhias da melhor

gente dos Terços dos Camarões e Henrique Dias’ e ao Capitão-mor da Paraíba que socorresse

aos moradores do Rio Grande ‘com o maior número de gente possível’”.276

Em 1689, o Senado da Câmara de Natal enviou um Memorial à Metrópole onde

reafirmou a importância do auxílio militar prestado por outras capitanias do Estado do Brasil.

Nesse documento, os oficiais camarários solicitaram à Coroa que ordenasse “ao Governador

Geral e os mais desta capitania que não faltem com os socorros a esta, ordenando ao Mestre de

Campo dos paulistas e ao Governador dos Índios de Pernambuco e ao Governador dos Pretos

de Henrique Dias assistam no dito sertão”.277 De acordo com esse documento, esse auxílio

militar deveria se fazer presente no Rio Grande até “se destruir e arruinar todo o gentio, ficando

estes sertões livres para se colonizarem”.278 Logo, a presença da gente de guerra de outras

capitanias, principalmente de Pernambuco, foi uma realidade que se fez presente de forma

efetiva ao longo de todo o conflito envolvendo nativos e tropas coloniais. Mais que isso, foi o

socorro militar desses soldados oriundos de outras capitanias que assegurou o controle das

tropas nativas e, consequentemente, sua derrota nos embates contra as tropas coloniais.

Dessa forma, no que concerne particularmente à Capitania de Pernambuco, segundo

Socorro Ferraz,279 esta, no contexto de conquista dos sertões, funcionou como um centro

irradiador de homens, recursos, fardamentos e alimentos para as capitanias do Norte do Estado

do Brasil. Contudo, em se tratando da relação entre o Rio Grande e Pernambuco, podemos

afirmar que o envio de socorro militar não foi restrito ao contexto de conquista dos sertões. Na

verdade, a própria ocupação das terras sob jurisdição do Rio Grande pelo elemento colonizador

se deu graças ao efetivo militar vindo de Pernambuco e da Paraíba para assegurar que o Forte

dos Reis Magos fosse construído e que o processo de territorialização desse espaço fosse

iniciado. Além disso, anteriormente à Guerra dos Bárbaros, ou seja, ao contexto de ocupação

dos sertões e consequente interiorização da conquista, o Rio Grande compreendia a Capitania

de Pernambuco como um suporte militar, que deveria socorrê-la com homens, munições e

armas, conforme elucidamos no capítulo anterior.

276 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a câmara do Natal e a Guerra

dos Bárbaros (1681-1722). p. 68. 277 Instrução e Memorial da Câmara de Natal. In: LEMOS, Vicente. Op cit. 49-55. 278 Idem. 279 FERRAZ, Maria do Socorro. Op cit. p. 215.

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Esta relação de proximidade militar entre o Rio Grande e Pernambuco, no entanto,

passou a ser problemática especialmente a partir do início do século XVIII, devido à carta régia

de 11 de janeiro de 1701 que tornou a Capitania do Rio Grande subordinada à de Pernambuco.

Essa subordinação, como percebemos na documentação examinada, refletia-se, por exemplo,

no processo de provimento dos postos militares. No entanto, essa relação complexa e

problemática entre as Capitanias citadas não foi uma preocupação nossa com este estudo.280

Quanto ao socorro militar prestado pela Capitania da Paraíba, um aspecto no envio de

soldados desse território para o Rio Grande chamou a nossa atenção. Dentre os 36 militares

encaminhados pela Paraíba, 27 eram índios. Esses, provavelmente, faziam parte de um terço,

visto um deles, Jacobe Pereira, recebeu licença do mestre de campo da sua companhia,

indivíduo responsável por comandar um terço militar. Infelizmente, o documento que

apresentou esse dado não estava completamente legível, o que nos impediu de obter o nome do

mestre de campo desse possível terço de índios da Paraíba.

Os índios vindos da Paraíba assentaram praça de soldado no Rio Grande no dia 22 de

outubro de 1699. Os mesmos foram identificados como sendo “Tapuyas Forro da Nação

Cararis”. A vinda efetiva de soldados da Capitania da Paraíba para o Rio Grande foi uma

particularidade do contexto em análise, os anos de 1698 a 1725. Nos anos posteriores à Guerra

dos Bárbaros, a presença de praças da Paraíba e de outras capitanias do Estado do Brasil, como,

por exemplo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, foi reduzida significativamente. Evidentemente,

atribuímos essa redução na vinda de colonos de outras localidades ao término dos embates

envolvendo nativos e as tropas coloniais, acontecimento que reuniu em um mesmo cenário

praças de diferentes localidades, qualidades e condições. Esse aspecto não se repetiu nos anos

seguintes, em que constatamos somente a presença de colonos mestiços e brancos no serviço

militar originários principalmente do Rio Grande, que passou, na segunda metade do século

XVIII e ao longo dos primeiros anos do século XIX, a abrigar soldados oriundos,

principalmente, de suas vilas e freguesias, como foi o caso das companhias de ordenanças

existentes na Ribeira do Assú e do Seridó.

Na verdade, ao longo da própria Guerra dos Bárbaros foi possível perceber uma tentativa

de redução de colonos vindos de outros territórios coloniais, como foi o caso do Terço dos

Paulistas que, como já asseveramos, teve suas companhias reduzidas de forma contínua ao

280 Sobre esta temática, na realidade, foi produzido pelo PPGH da UFRN um estudo recente onde o historiador

Marcos Arthur Viana da Fonseca discutiu o ofício de Capitão-mor no Rio Grande no contexto em que esta

Capitania esteve anexada a de Pernambuco e abordou os limites presentes neste ofício em decorrência dessa

subordinação a Pernambuco. FONSECA, Marcos Arthur Viana da. Sob a sombra dos governadores de

Pernambuco? Jurisdição e administração dos Capitães-mores da Capitania do Rio Grande (1701-1750). p.120.

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longo desse conflito. Para Mirian Silva de Jesus, a redução das companhias do Terço dos

Paulistas facilitaria a profissionalização dessa força militar, que ao longo da Guerra foi

responsável pelas primeiras vitórias das tropas coloniais contra os nativos e foi adquirindo um

caráter local na composição de suas companhias em decorrência da continuidade dos conflitos.

Assim, no que concerne à naturalidade dos soldados que deveriam guarnecer na

Fortaleza dos Reis Magos, percebemos no ano de 1698 reclamações tanto da administração

militar quanto civil da Capitania do Rio Grande, que afirmavam que os soldados vindos de

Pernambuco para atuarem na defesa desse presídio fugiam e deixavam a Capitania

desamparada. Em 1698, por exemplo, membros da Câmara de Natal solicitaram à Coroa que os

soldados oriundos de Pernambuco fossem matriculados no Rio Grande para, assim, evitar que

esses fugissem e que a Fortaleza ficasse sem efetivo, conforme demonstra a transcrição abaixo:

Esses soldados costumam mandar de Pernambuco até quinze e se mudam cada

anno, porém é certo que não sendo cá effectivos desobedecem a quem governa

e fogem logo e fica a fortaleza com dous ata três e às vezes sem nenhum como muitas vezes tem acontecido, e isto se evitará com serem destinados para este

presidio, e terem cá a sua matrícula, donde por castigo se dê baixa no que fugir

e se matricule outro em seu logar e desta sorte por não perderem o que tem

servido não fugirão, e servirão a S. Magestade como devem.281

Da mesma forma, o Capitão-mor do Rio Grande, Manuel Muniz, que havia governado

entre 1682 a 1685, afirmou que os soldados fossem “recrutados entre os naturais da terra para

resolver o problema da fuga”. 282 Ao longo do século XVII, os soldados pagos 283 que

guarneciam na Fortaleza eram naturais de Pernambuco e, de acordo com as autoridades locais,

o fato dos praças não pertencerem ao Rio Grande e não assentarem praça nesta Capitania

engendrava um conjunto de problemas, como a falta de soldados pagos na Fortaleza.284 As

fugas de soldados, na documentação examinada, foi um problema presente tanto no século XVII

281 Instrução e Memorial da Câmara de Natal. In: LEMOS, Vicente. Capitães-mores e governadores do Rio

Grande do Norte. 49-55. 282 GALVÃO, Hélio. Op cit. p.126. 283 Como discutimos, a primeira tropa paga do Rio Grande foi instituída após a extinção do Terço dos Paulistas,

em 1716. Anteriormente à institucionalização desse Terço, os soldados e oficiais pagos que guarneciam nesta Capitania pertenciam a Pernambuco. Apenas após as solicitações da Câmara de Natal, em 1698, a Carta Régia de

17 de dezembro de 1698 determinou que os soldados fossem naturais do Rio Grande. Todavia, esses deveriam,

antes de assentarem praça, submeterem-se “em Pernambuco a exame de capacidade e serem devidamente

identificados”. Ibid., p. 126. 284 Deste modo, existe uma diferença entre os soldados que vinham para combater os índios dos sertões e aqueles

que deveriam guarnecer anualmente na Fortaleza e que eram pagos para tal serviço. Estes últimos,

independentemente de uma situação emergencial, deveriam permanecer no presídio do Rio Grande e atuarem na

defesa militar desta Capitania. Entretanto, na prática, o que ocorria era a falta de praças em decorrência de suas

fugas.

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quanto no XVIII. As fugas, na verdade, foram a principal causa de dispensa no serviço militar,

conforme passaremos a discutir.

3.4 Pobreza, deserções e resistência: casos de baixa no serviço militar do Rio Grande

Em 1780, Lázaro de Barros Rego, soldado pago da Capitania do Rio Grande, fez a

seguinte súplica:

Diz Lazaro de Barros Rego soldado da Infantaria da Companhia deque foi

Capitam Manoel da Sª humas das Guarnição deste Presidio, de que este Suplicante sentou praça nesta Companhia voluntariamente sem ser

constrangido, e tem servido na dita (...) de soldado (...), como declara a

petiçam junta da matricula, e p q vive o Suplicante impossibilitado para poder servir pela grande pobreza emizeria, em que sevê, e tem servido mais de dês

annos na forma da Ordem de Sua Magestade recorre a Vossa Excelência para

em remuneração dos annos que tem Servido em lhemandar dar baixa para assim milhor poder tratar de sua vida para onde lhe parecer p’ tto.285

Em 1782, foi o soldado Sultério da Silva Carvalho que solicitou sua dispensa do serviço militar:

Diz Sulterio da Silva Carvalho que a prover dias se lhe assentou praça de

soldado pago (...) e sendo por demais velho e varão que há na caza para servir

seus pais de proveita idade e por estas razões deseja dar baixa ainda quando concorre mais a sua pobreza da caza para aqui já em honrados ajuda e

acompanha ao seu Pais o Capitão Antônio da Silva de Carvalho em cuja

companhia da Cavalaria auxiliar estava alistado o suplicante.286

Já, em 1791, foi a vez de Salvador Maria da Trindade requerer o fim da obrigatoriedade de seus

serviços como militar:

Diz Salvador Maria da Trindade, soldado da Cavalaria Auxiliar do Regimento da Cidade do Natal do Rio Grande de que é Coronel Francisco da Costa de

Vasconcelos; que elle sentou praça no (...) Regimento desde a criação delle,

sempre servio sem nota alguma; por em agora sevé empossibilitado para poder Continuar no Real Serviço pellas infermidades que padesse todas impedientes

(...) como sevé na (...) que junta offerece do Cyrurgiam da Infantaria paga do

prezidio da mesma Cidade, alem de outras que padesse; pelo que recorre a

Vossa (...) para que Sedignem, que attendendo as ditas infermidades lhe mandem dar baixa da praça que logra de Soldado, visto que naõ pode acodir

as operaçõnes do dito Regimento (...).287

Casos como o de Lázaro, Sultério e Salvador demonstram a precariedade do serviço militar

colonial, onde o pagamento pelo serviço prestado era a dispensa da obrigatoriedade de continuar

285 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 286 Idem. 287 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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atuando como soldado. Lazaro, em sua súplica, solicitou que sua baixa fosse concedida como

“remuneração dos annos que tem Servido”. A justificativa para sua dispensa no serviço militar

é a “grande pobreza emizeria, em que seve”. O mesmo problema foi apontado por Sulterio: a

pobreza existente em sua casa e, além disso, a velhice na qual se encontrava. Rompendo com

essas justificativas, Salvador solicita sua baixa por estar “empossibilitado” [...] “pelas

enfermidades que padesse”.

Os casos citados acima são da segunda metade do século XVIII, onde os pedidos de

baixa por enfermidades e velhice são mais expressivos. Em se tratando de fins do século XVII

e dos primeiros anos do século XVIII, os pedidos de baixa, as súplicas elaboradas pelos

soldados que evidenciavam a miséria em que se encontravam, seja em decorrência de uma

enfermidade que padeciam, da velhice que resolveu se fazer presente ou mesmo da pobreza em

que viviam, onde o miserável soldo, nem sempre pago com regularidade, parece não ser

suficiente para suprir as necessidades desses homens, não são comuns na documentação

examinada. Na verdade, para este contexto, não nos deparamos com nenhuma súplica.

Para os anos de 1698 a 1725, localizamos 92 casos de baixa no serviço militar, em um

total de 414 documentos examinados. Nesses casos, o principal problema que ocasionou a baixa

dos soldados foram as fugas. Dessas 92 baixas no serviço militar do Rio Grande, 27 foram

concedidas pelo fato dos soldados terem fugido, ou seja, nem sempre os militares realizavam

súplicas solicitando suas baixas. Em alguns casos, eles simplesmente fugiam. Na verdade, como

discutimos anteriormente, as fugas de soldados na segunda metade do seiscentos fez com que

a administração civil e militar do Rio Grande recorresse à Coroa para que os soldados fossem

naturais do Rio Grande, no intento de evitar fugas, visto que os praças que guarneciam na

Fortaleza nesse contexto eram oriundos de Pernambuco e costumavam fugir, deixando a

Capitania sem efetivo regular.

Examinando os casos de baixa de 1698 a 1725, não é possível inferir se a ordem Régia

de que os soldados passassem a ser naturais do Rio Grande evitou que casos de fugas

continuassem se repetindo, tendo em vista que dos 27 casos de fugas localizados para este

recorte temporal, 23 são de índios, identificados como tapuias, ou seja, não são concernentes

aos soldados que atuavam no presídio do Rio Grande. Porém, se ampliarmos o recorte temporal

de análise, constataremos que os casos de fugas passaram a ser insignificantes

quantitativamente na segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX.

Nesse contexto, as dispensas no serviço militar foram ocasionadas por falecimento dos

soldados, enfermidade e, dentre outros motivos, a pobreza e a velhice na qual se encontravam,

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como foi o caso de Sultério, citado acima. Dessa forma, o caráter local das tropas do Rio Grande

reduziu as fugas no efetivo militar da Capitania.

Possivelmente, os soldados que vinham de Pernambuco na segunda metade do século

XVII fugiam por não suportarem o estado de ruína no qual se encontrava a Fortaleza. Segundo

Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei Dom Afonso VI, em 1665, a miséria em que se

encontravam os soldados era “coanta” que “os obriga a largarem a obrigação”.288 Ademais,

tinham ainda que lidar com a distância de seus familiares e todos os seus referenciais sociais.

Certamente, os soldados oriundos das capitanias em que atuavam encontrariam suporte em seus

laços familiares e sociais para lidar com as adversidades do serviço militar, mas quando esses

referenciais não se faziam presente, o que eles podiam fazer? A despeito disso, o perigo dos

deslocamentos militares em situações emergenciais era algo que estava posto para todo colono

que fosse um homem de guerra e, nem sempre, resultava em fugas. Um exemplo dessa assertiva

é a fixação no Rio Grande de membros do Terço dos Paulistas.

Retornando aos casos de dispensas no serviço militar, entre 1698 a 1725, no que se

refere às fugas, especificamente as 23 fugas de indígenas, essas ocorreram em 1710. Todos os

índios foram identificados como “tapuyas”, ou seja, como índios dos sertões. Certamente, os

mesmos haviam se aliado anteriormente às tropas coloniais como forma de resistirem às

investidas lusitanas de ocupação dos sertões, como já assinalamos. Contudo, ao longo do

processo, possivelmente, não se adequaram à realidade que lhes foi imposta, como o fato de

terem que viver em um novo território, que possuía relações sociais distintas das que estavam

familiarizados e, principalmente, com o fato de serem soldados da Coroa.

Além dos casos de baixa em decorrência das 27 fugas, localizamos na documentação

mais 21 registros de fugas. No entanto, esses soldados que fugiram não receberam baixa e, em

alguns casos, retornaram ao serviço militar. Um exemplo desse retorno à instituição militar após

a fuga é o caso de Caetano de Barros Bezerra, filho de José Álvares Barros, de idade de 15 anos,

natural da Capitania do Rio Grande e que assentou praça de soldado em 15 de março de 1719.

Caetano de Barros, fugiu em mostra289 do dia 24 de julho de 1720, ou seja, após apenas um ano

e quatro meses de serviço militar e retornou a esta instituição seis anos após a sua fuga, quando

288 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis

Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx. 1, doc. 5. 289 Mostra, conforme o dicionário de Raphael Bluteau, é um termo militar que se refere à ocasião em que os

soldados eram enfileirados para verificar se havia ocorrido alguma fuga. Nas mostras, costumava-se, também,

pagar os soldos dos praças. Quanto ao fato da mostra servir para verificar se o efetivo estava completo, na prática

acabava funcionando como uma oportunidade para que as deserções ocorressem. BLUTEAU, Raphael.

Vocabulario Portuguez & Latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio da Artes da

Companhia de Jesus, 1712-1728. p. 601.

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se apresentou à provedoria da Capitania. Temos também o caso de Antônio Dias do Reis, que

assim como Caetano de Barros fugiu e retornou ao serviço militar. Antônio Dias era filho do

tenente-coronel Matheus Roiz de Sá, natural da Capitania de Pernambuco e quando assentou

praça de soldado tinha 17 anos de idade, em 1719. Este soldado escapou na mesma ocasião em

que seu companheiro Caetano, na mostra do dia 24 de julho de 1720. No entanto, decorridos 6

meses de sua fuga, deparamo-nos com o mesmo servindo de cabo de esquadra, em 21 de

fevereiro de 1721. Passados dois meses de sua atuação como cabo de esquadra foi elevado ao

posto de sargento da Fortaleza, em 24 de abril de 1721.

Infelizmente, não sabemos o que ocorreu com Caetano de Barros após sua apresentação

na Provedoria do Rio Grande. No que se refere a Antônio Dias, acreditamos que o mesmo se

ausentou apenas da mostra e logo retornou ao serviço e, em decorrência disso, foi elevado ao

posto de cabo de esquadra e posteriormente de sargento. Ademais, Antônio Dias era filho de

um tenente-coronel, o que demonstra que o mesmo já estava familiarizado com as precariedades

do serviço militar, mas também com as possibilidades de receber patentes e mercês e, assim,

ascender militarmente e, consequentemente, socialmente.

As deserções funcionavam como uma forma de resistência às adversidades impostas

pelo serviço militar. Em se tratando das fugas indígenas citadas, além da não adaptação à

realidade colonial do litoral, os índios dos sertões podem ter fugido como forma de resistência

à ocupação e territorialização de suas terras e modos de vida. Os mesmos, estrategicamente, se

aliaram em um momento e quando conseguiram fugiram da situação que lhes foi imposta.

De acordo com Kalina Silva, as fugas de colonos ocorriam como formas de resistências

ao modo como ocorriam os recrutamentos e devido aos deslocamentos forçados, impostos pela

Coroa. Conforme essa autora, em muitos casos os fugitivos retornavam para suas casas

impunemente. Esse pode ter sido o caso de Caetano. Nessa perspectiva, então, as fugas

aparentavam ser o “único processo de resistência possível”,290 já que os pedidos formais de

dispensa podiam não ser concedidos e, como demonstramos acima, em muitos casos eram

outorgados como “remuneração” pelos serviços prestados, diante de situações complexas,

como pobreza, miséria e enfermidades atestadas “impedientes”, conforme demonstra o laudo

que “offerece do Cyrurgiam da Infantaria”.

Apesar das deserções no serviço militar serem comuns no período colonial e, em alguns

casos, não engendrar castigos, essa prática era considerada um crime e, portanto, passível de

punições. As punições para tais práticas podiam “variar desde o degredo útil, ou seja, o

290 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p.254.

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deslocamento de tropas revoltosas para serviços em localidades necessitadas e bem distantes,

até as punições corporais”, 291 sendo, na verdade, as punições corporais mais comuns e o

degredo útil aplicado, apenas, em situações que ameaçassem a ordem estabelecida.

Além das fugas, outros aspectos foram apontados na documentação como justificativas

para a dispensa no serviço militar, como demonstra o quadro abaixo:

Quadro 7 – Justificativas apresentadas para baixa no serviço militar

Justificativa Quantidade de casos

Fuga292 27

Doença 6

Ausência 1

Incapacidade pela “cor” para as companhias de

gente branca293

1

Morte 19

Velhice 2

Sem identificação 36

Total 92

Fonte: elaboração da autora com base em 414 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1725.

Por fim, como demonstra o quadro 7, as deserções, à exceção dos casos em que não foi

justificada a causa da baixa militar, foram a principal causa de dispensa no serviço militar do

Rio Grande, entre 1698 a 1725. Podemos afirmar que as fugas correspondem, também, a um

padrão presente na documentação examinada e não se repetiu da mesma forma nos anos

seguintes. Em contrapartida, os casos de baixa por morte permaneceram ao longo do século

XVIII. Nesse recorte temporal as justificativas para baixa foram ampliadas, tendo como uma

de suas principais causas a mudança de distrito.

3.5 Militares e sesmeiros: a presença de oficiais militares na territorialização da Ribeira

do Seridó, pós-Guerra dos Bárbaros

A Ribeira do Seridó, território banhado pelo rio homônimo e que atualmente

corresponde, a grosso modo, à Região do Seridó,294 foi palco dos conflitos envolvendo colonos

291 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O Miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: História de

homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. p.256. 292 Além das 25 fugas que resultaram em baixa, como já asseveramos, localizamos mais 15 casos de fugas. No

entanto, esses não foram considerados na documentação como justificativas para baixa e por isso não contabilizamos todas as fugas de forma conjunta. 293 Trata-se do soldado José de Lima. Ele foi membro do Terço de Henrique Dias e atuou na Capitania do Rio

Grande no contexto da Guerra dos Bárbaros. O mesmo ficou agregado na Companhia do Capitão Manoel Mata

Coutinho e assentou praça na mesma. Porém, recebeu baixa por ser “gente incapaz pela cor” para as “companhias

da gente branca”. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 294 A Região do Seridó, atualmente, é constituída por 54 municípios divididos pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística- IBGE nas seguintes microrregiões: Seridó Oriental e Seridó Ocidental. No entanto, ao

longo desse estudo, não estamos preocupados com essa divisão territorial do Seridó atual, mas sim com a sua

definição engendrada no contexto colonial, que tinha como limites a Freguesia do Seridó. Dessa maneira,

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e nativos na Guerra dos Bárbaros em fins do seiscentos. Nesse contexto, foi edificada a casa

forte do Cuó que, em linhas gerais, pode ser compreendida como a primeira modificação física

empreendida pela administração colonial na Ribeira do Seridó.

A casa forte do Cuó, segundo Medeiros Filho, consistia em uma “base física de

operações contra o gentio”,295 ou seja, tratava-se de uma edificação militar que tinha como

finalidade servir de suporte para operações bélicas empreendidas pelas tropas coloniais contra

os índios que residiam naquela Ribeira. Nessa perspectiva, a casa forte do Cuó, bem como as

outras existentes na Capitania nesse contexto de Guerra, como a casa forte de Pium, 296

funcionava como suporte militar no combate aos indígenas dos sertões e, consequentemente,

como base de apoio ao avanço da territorialização sobre o interior da Capitania.297

De acordo com Medeiros Filho, a casa forte do Cuó foi edificada pelo Coronel Antônio

de Albuquerque Câmara,298 entre os anos de 1686 e 1687, para acolher as tropas coloniais que

estavam sob seu comando. O local escolhido para a construção dessa estrutura militar

corresponde atualmente ao que seria a Cidade de Caicó, localizada na Região Seridó. De forma

precisa, a casa forte do Cuó ficava próximo ao rio Seridó, na época definido como Acauã, no

Quipauá, atual Barra Nova, e no Sabugi. O Quipauá e o Sabugi correspondem ao que seria

atualmente o Penedo, bairro da já citada cidade de Caicó. Nesse contexto, próximo ao Quipauá

existiam três poços de água permanente, que correspondem hoje ao Poço de Santana. A

localização dessa casa forte, próximo a um poço, era importante para a própria manutenção e

sobrevivência das tropas coloniais.299

corresponde a esse Seridó histórico os seguintes municípios: Caicó, Acari, Jardim do Seridó, Serra Negra do Norte, Currais Novos, Florânia, Parelhas, Jucurutu, Jardim de Piranhas, São João do Sabugi, Ouro Branco, Cruzeta,

Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, São Vicente, São Fernando, Equador, Santana do Seridó, São José do Seridó,

Timbaúba dos Batistas, Lagoa Nova, Ipueira e Tenente Laurentino Cruz. Esses 23 três municípios foram

edificados, conforme Macedo, a partir de Caicó, o município mais antigo da Região, instituído em 1788. Portanto,

sempre que nos remetemos em nosso texto à Ribeira do Seridó, estamos nos referindo ao território que compreende

esses 23 municípios e que foram ocupados, de fato, pelo colonizador após a Guerra dos Bárbaros. Por fim, acerca

da divisão do Seridó em duas microrregiões ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E

ESTATÍSTICA- IBGE. Resolução PR, n. 51 de 31 de set. de 1989. Disponível em:

<https://biblioteca.ibge.gov.br/>. E, sobre esse Seridó histórico, engendrado no contexto colonial, ver: MACEDO,

Helder. Op cit. p. 34. 295 MEDEIROS FILHO, Olavo. Índios do Açu e Seridó. p. 123. 296 A casa forte de Pium se localiza atualmente no município de Nísia Floresta. Segundo o historiador Roberto

Airon, esta estrutura foi edificada por João Lostão Navarro e funcionou, a princípio, como uma casa de pedra. No

ano de 1698 ela foi reutilizada como uma casa forte, na Guerra contra os índios dos sertões. SILVA, Roberto

Airon. Uma arqueologia das casas fortes: organização militar, território e guerra na capitania do Rio Grande –

século XVII. 2010. 347f. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia. Salvador p.

236. 297 Ibid., p. 282. 298 MEDEIROS FILHO, Olavo. Op cit. p. 120 299 MEDEIROS FILHO, Olavo. Índios do Açu e Seridó. p. 141-142.

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Assim, o território onde foi erigida essa fortificação não foi escolhido de forma aleatória

por Antônio de Albuquerque Câmara. Além dos poços de água existentes nesse território, a

casa forte se localizava próximo aos rios Piranhas e Seridó, na fronteira entre as Capitanias da

Paraíba e o Rio Grande, que correspondiam, na época, a territórios de passagens e

possibilitavam, portanto, um controle de quem circulasse por essas áreas coloniais,300 o que

demonstra o caráter estratégico do Quipauá.

Segundo Medeiros Filho, no Quipauá, em fins do seiscentos, foi edificada uma capela,

que antecedeu a construção da Igreja Matriz, dedicada a Nossa Senhora de Santana, em 1748301.

Esse dado apresentado pelo autor citado dialoga com as investigações arqueológicas realizadas

na primeira década dos anos 2000 no Penedo pelo estudioso da arqueologia histórica Roberto

Airon Silva. De acordo com este pesquisador, nas estruturas examinadas percebeu-se a presença

de “fundações de tijolos que parecem corresponder a períodos de reutilização do espaço

construído com outros materiais construtivos”, 302 o que demonstra que uma estrutura

remanescente da casa forte foi utilizada para a construção dessa capela citada por Medeiros

Filho. Outra possibilidade, ainda de acordo com Silva, é que a capela tenha sido edificada nos

arredores da casa forte e, em decorrência disso, se utilizou de materiais dessa fortificação

militar.

A casa forte do Cuó, segundo Medeiros Filho, pode ter sido danificada no ano de 1690,

visto que nesse ano ocorreu um combate entre as tropas coloniais e os índios dos sertões no

Acauã.303 Desse modo, de acordo com este pesquisador, essa estrutura de caráter militar foi

danificada ainda no seiscentos e, certamente, como concluiu Silva por meio de suas

investigações arqueológicas, os seus materiais foram reaproveitados na edificação de uma

capela que seria dedicada à Nossa Senhora de Santana.304

Posteriormente ao embate de 1690 citado acima, mais especificamente entre os anos de

1692 e 1695, com a paz firmada com os Janduis e o aldeamento desses nativos, o conflito entre

colonos e indígenas praticamente cessou, na Ribeira do Seridó, conforme Medeiros Filho.305

Assim, após os conflitos com os índios dos sertões, o processo de territorialização empreendido

pela Coroa passou a ocorrer de forma mais efetiva, por meio da distribuição de sesmarias, como

discutiremos mais adiante. Dessa forma, é evidente que a Ribeira do Seridó foi um território

300 Idem. 301 MEDEIROS FILHO, Olavo. Cronologia Seridonese. Mossoró: Fundação Guimarães Dutra/Fundação Vingt-

Um Rosado, 2002. p. 18. 302 SILVA, Roberto Airon. Op cit. p. 319. 303 MEDEIROS FILHO, Olavo. Op cit. p. 122. 304 SILVA, Roberto Airon. Op cit. p. 319. 305 MEDEIROS FILHO, Olavo. Índios do Açu e Seridó. p. 124.

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construído, antes de tudo, como produto de uma afirmação militar por parte da Coroa lusitana

à resistência indígena a esse processo de interiorização da conquista.

Nesse sentido, segundo Morais, a colonização é um empreendimento que implica

necessariamente na conquista de espaços e na edificação de territórios. De acordo com este

autor, a colonização, normalmente, expande-se a partir de zonas de difusão, que consistem em

territórios que já possuem um modo de vida colonial consolidado e funcionam, assim, como

suporte administrativo e econômico para o avanço da colonização.306 Dessa maneira, no caso

do Rio Grande, o processo de territorialização ocorreu do litoral (zona de difusão) em direção

ao interior da capitania, os sertões.

Nessa perspectiva, segundo Dias, até o ano de 1660 a distribuição de sesmarias na

Capitania do Rio Grande estava restrita ao litoral, 307 território que já possuía certo aparato

administrativo, materializado, por exemplo, pela existência de uma Câmara na Cidade do Natal

e pela presença de um efetivo militar, que, nesse contexto, passava por um processo de

reestruturação e reorganização, assim como a administração fazendária. Todavia, a partir do

ano 1665, de acordo com essa historiadora, é possível perceber que as sesmarias distribuídas na

Capitania estavam avançando em direção ao oeste, ou seja, ao interior do Rio Grande.308

Para a Ribeira do Seridó, a primeira sesmaria concedida anteriormente à Guerra dos

Bárbaros ocorreu no ano de 1676. Esta foi doada a Teodósio Leite de Oliveira, que, após essa

Guerra, requereu novas sesmarias nessa Ribeira. Nesse contexto, Antônio de Albuquerque

Câmara, que foi responsável pela construção da casa forte do Cuó, como discutimos acima,

também requereu sesmarias na Ribeira do Seridó, o que demonstra, como abordamos no

capítulo anterior, que esse militar possuía interesse que esse espaço fosse, de fato, ocupado pelo

elemento colonizador, tendo em vista que ele mesmo, além de militar e, portanto, representante

dos interesses da Coroa no Ultramar, era um colono interessado na ocupação daquelas terras.309

No requerimento de sesmaria efetuado por Luiz de Souza Furna e seus cunhados,

Antônio de Albuquerque Câmara, Lopo de Albuquerque da Câmara e Pedro de Albuquerque

da Câmara, no ano de 1679, esses afirmaram serem moradores na Capitania do Rio Grande e

que desejavam “povoar o Sertam dos Tapuias ou dos Indios Canindez pera a parte onde elles

habitam”, no intento de criarem seus gados “e mais criaçoins”. Ademias, afirmaram que aquelas

terras estavam devolutas e que não haviam sido povoados até o presente, visto que os

306 MORAIS, Antonio Carlos Robert de. Formação Colonial e conquista de espaço. In: MORAIS, Antonio Carlos

Robert de. Território e História no Brasil. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2008. P. 69. 307 DIAS, Patrícia de Oliveira. Op cit. 55. 308 Idem. 309 MEDEIROS FILHO, Olavo. Op cit. p. 106.

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colonizadores temiam “o gentio brabo” e que eles, suplicantes, desejavam realizar tal proeza,

povoando aquelas terras com todo o dispêndio e recebendo, assim, as mercês por tal

empreendimento.310 Esse caso de Luiz de Souza Furna e seus cunhados demonstra como o papel

de militar de Antônio de Albuquerque Câmara estava imbricado aos seus interesses de colono

e portador de sesmarias na Ribeira do Seridó. Este não foi o único militar que serviu à Coroa

no intento de obter terras e prestígios. O caso do Terço dos Paulistas, institucionalizado

enquanto uma tropa paga nesse contexto de guerra, é também representativo dos anseios dos

militares que combateram a Guerra dos Bárbaros por terras e pelo cativeiro dos índios dos

sertões.

Os sertões, conforme Morais, geógrafo já supracitado nesse texto, era um espaço que

ainda não havia sido apropriado e modificado pelo colono, mas que era compreendido como

sendo de domínio da Coroa. Para este, um conceito apropriado para problematizar essa relação

do colono com o espaço é o de fundo territorial. Na concepção deste teórico, fundos territoriais,

no cenário colonial, eram as “áreas ainda não devassadas pelo colonizador, de conhecimento

incerto e, muitas vezes, apenas genericamente assinaladas na cartografia da época”. Referiam-

se, portanto, aos “‘sertões’ [...] lugares ainda sob domínio da natureza ou dos ‘naturais’”,311

mas que, teoricamente, pertenciam ao Reino e podiam, dessa maneira, serem ocupados e

territorializados em dada situação, como foi o caso da Ribeira do Seridó, após Guerra dos

Bárbaros.

Dessa forma, zonas de difusão e fundos territoriais são conceitos, dentre outros,

cunhados para examinar especificamente a relação estabelecida entre o homem e o espaço no

contexto da colônia. Todavia, essa relação de apropriação de espaços e territorialização dos

mesmos é um processo contínuo e histórico, que articula sempre uma funcionalidade, de cunho

econômico e político.312 Ademais, o projeto colonial se estabelece por meio de negociações

com os autóctones e/ou através de conflitos, como demonstra a Guerra dos Bárbaros, na

Capitania do Rio Grande. Em decorrência disso, é um projeto que possuí um caráter violento,

onde as forças militares ocupam um papel significativo nos embates com os nativos, para a

expansão das fronteiras coloniais.

310 Carta de data e Sismaria de Luiz de Souza Furna, Antônio de Albuquerque Camara, Lopo de Albuquerque da

Camara e Pedro de Alquerque da Camara de Serra Trapuha e Acahuã. In.: MEDEIROS FILHO, Olavo. Op cit. p.

110-111. 311 MORAIS, Antonio Carlos Robert de. Formação Colonial e conquista de espaço. In: MORAIS, Antonio Carlos

Robert de. Território e História no Brasil. p. 69. 312MORAIS, Antonio Carlos Robert de. A questão do sujeito na produção do espaço. In: MORAIS, Antonio Carlos

Robert de. Ideologias geográficas. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 15.

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No entanto, na interiorização da conquista, os oficiais militares não possuíam um papel

restrito aos combates bélicos. Na verdade, alguns militares também participaram ativamente do

processo de territorialização dos espaços coloniais, que antes haviam sido palcos dos embates

com nativos, como demonstra o caso da Ribeira do Seridó. Nesse sentido, examinando os

requerimentos de sesmarias efetivados após a Guerra dos Bárbaros, para esta Ribeira,

constatamos um número significativo de sesmeiros que possuíam patentes militares e, alguns

deles, inclusive, haviam guerreado contra os nativos, o que demonstra, de certa forma, a

imbricação dos interesses da metrópole, que desejava expandir seu projeto em colonial e obter

lucros com este, e dos colonos que habitavam o Norte do Estado do Brasil e que ansiavam pela

obtenção de terras e mercês, que seriam convertidos em cabedal monetário e social.

Nessa perspectiva, o gráfico abaixo demonstra a quantidade significativa de sesmeiros

que eram militares solicitando terras na Ribeira do Seridó, pós-Guerra dos Bárbaros:

Gráfico 6 – Sesmarias concedidas na Ribeira do Seridó, 1695-1750

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na obra Cronologia Seridoense (MEDEIROS FILHO, Olavo de.

Cronologia Seridonese. Mossoró: Fundação Guimarães Dutra/Fundação Vingt-Um Rosado, 2002).

Acerca desses militares, sistematizamos no quadro abaixo a patente militar que esses

possuíam quando receberam sesmarias na Ribeira do Seridó, o ano dessas concessões, bem

como os nomes desses sesmeiros-militares.

Quadro 8 – Sesmeiros-Militares na Ribeira do Seridó, 1701-1750

Nome Patente militar Ano da concessão

Matias Vidal de Negreiros Sargento-mor 1701

Marcos Rodrigues Cabral Alferes 1701

Teodósio de Oliveira Ledo Capitão-mor 1701

Diogo Pereira de Mendonça Alferes 1701

Antônio Batista de Freitas Alferes 1701

Leandro Borges Pacheco Ajudante 1702

sesmeiros com

patentes

militares

49%

sesmeiros sem

patentes

militares

51%

sesmeiros com patentes militares sesmeiros sem patentes militares

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Nome Patente militar Ano da concessão

Antônio de Mendonça Machado Capitão 1704

Pedro de Mendonça Alferes 1704

Gonçalo Rodrigues Castro Tenente-Coronel 1707

Antônio da Rocha Bezerra Coronel 1707

Antônio Martins do Vale Capitão 1711

Luís Quaresma Dourado Ajudante de

infantaria paga da

guarnição da

Paraíba

1717

João Soares de Vasconcelos Tenente-Coronel 1719

Francisco Fernandes de Souza Tenente 1723

Antônio dos Santos Guimarães Capitão 1725

Gaspar Vaz da Costa Tenente 1727

Mathias Soares Taveira Coronel 1727

Domingos Fernandes de Souza Sargento-mor 1733

Manoel Esteves de Andrade Sargento-mor 1734

Lourenço de Góis Vasconcelos Coronel 1735

Manoel de Figueira Falcão Capitão 1736

Inácio Gomes da Câmara Capitão 1736

Domingos da Silveira Capitão 1736

Cristóvão de Holanda Vasconcelos Capitão 1736

Faustino da Silveira Tenente 1736

Marçal Fernandes Penedo Capitão 1737

Cipriano Lopes Galvão Sargento-mor 1737

José Lopes Galvão Sargento-mor 1737

Manoel Pereira Monteiro Capitão 1738

Tomás Diniz da Penha Alferes 1738

Antônio da Cunha Vasconcelos Capitão 1738

Domingos Velho Barreto Capitão-mor 1739

Antônio de Souza Soares Tenente 1741

Mateus Bezerra da Costa Capitão 1741

Geraldo Ferreira das Neves Capitão 1741

Manoel da Fonseca Calaça Capitão 1741

João Gonçalves de Melo Sargento-mor 1742

Antônio dos Santos Guimarães Capitão-mor 1742

Antônio Carneiro de Albuquerque Capitão 1743

José Fernandes Freire Tenente 1743

Tomás de Araújo Pereira Capitão 1746

David Barbosa Capitão 1747

Faustino de Abreu Capitão 1748

Timóteo da Cunha Bezerra Capitão 1750

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na obra Cronologia Seridoense (MEDEIROS FILHO,

Olavo de. Cronologia Seridonese. Mossoró: Fundação Guimarães Dutra/Fundação Vingt-Um Rosado, 2002).

Assim, tendo como base os dados acima, é possível perceber que 44 colonos que eram militares

solicitaram terras na Ribeira do Seridó na primeira metade do setecentos. Alguns desses

colonos, como foi o caso de Manoel Pereira Monteiro, solicitaram terras em mais de uma

ocasião. No entanto, no quadro acima consideramos apenas o primeiro requerimento realizado

por esses sesmeiros-militares.

Outro dado que podemos constatar observando o quadro acima é que desses 44 colonos,

3 possuíam a patente de capitão-mor, 6 de sargento-mor, 5 de alferes, e, dentre outras, 18 de

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capitão. Apenas um colono, Luís Quaresma Dourado, foi identificado como pertencendo a um

corpo militar específico, no caso, a tropa paga da Capitania da Paraíba. Os demais, como

evidencia o quadro 8, tiveram apenas suas patentes citadas e, provavelmente, pertenciam a

tropas auxiliares, visto que os oficiais das tropas pagas deveriam, em tese, viver apenas de seus

serviços à instituição militar, e, consequentemente, de seus soldos, o que os impossibilitaria de

ocuparem terras nos sertões do Rio Grande e torná-las rentáveis à Coroa. Possivelmente, esse

aspecto do serviço militar pago justifica a ausência, com apenas uma exceção, já supracitada,

significativa de oficiais das tropas de linha entre os militares que tiveram sesmarias concedidas

na Ribeira do Seridó.

Esses sesmeiros-militares, em algumas situações, eram identificados como

pertencentes às Capitanias da Paraíba e Pernambuco e ao litoral da Capitania do Rio Grande,

informação que dialoga com os dados apresentados pelos estudos do historiador Muirakytan

Macêdo. De acordo com esse autor, o interior da Capitania do Rio Grande foi ocupado,

principalmente, por colonos originários de Pernambuco e da Paraíba, que possuíam interesse

nas vantagens que o criatório poderia apresentar, visto que, diferentemente da plantação de

cana-de-açúcar, a pecuária era uma atividade econômica que implicava em pouco gasto

monetário para ser efetivada, o que a tornava atrativa àqueles que possuíam pouco cabedal para

investir nas terras concedidas pela Coroa no Ultramar.313

Infelizmente, um dado que não podemos inferir de forma significativa, mesmo

realizando um cruzamento de fontes, é a qualidade desses sesmeiros-militares, ou seja, se os

mesmos, no que concerne aos seus fenótipos, foram identificados nos registros produzidos pelas

instituições coloniais como brancos, pardos, mulatos e, dentre outros, trigueiras, visto que não

possuímos fontes paroquiais para a primeira metade do setecentos. Assim, temos informações

precisas acerca de apenas alguns desses sesmeiros-militares, no que concerne às suas

qualidades, como é o caso de Manoel Pereira Monteiro, Cipriano Lopes Galvão e, dentre outros,

Tomás de Araújo Pereira, identificados como brancos por Olavo de Medeiros Filho.

Essa informação está presente nos estudos genealógicos que foram realizados por Olavo

de Medeiros Filho e José Augusto de Medeiros sobre algumas famílias que viveram na Ribeira

do Seridó no contexto colonial. Todavia, esses estudos abordam apenas genealogias brancas, o

que torna essa informação qualitativa restrita ao que foi denominado por esses autores como

sendo as “grandes famílias do Seridó” e invisibiliza, dessa maneira, os demais colonos que

também fizeram parte desse processo, como foi o caso de Francisco Taveira da Conceição,

313 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Penúltima Versão do Seridó: uma história do regionalismo

seridonese. Natal: Sebo Vermelho, 2005. p.32.

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patriarca de uma genealogia parda que recebeu sesmarias na Ribeira do Seridó, na segunda

metade do setecentos. Esse, apesar de não possuir patente militar, o que o distingue dos demais

sesmeiros-militares citados no quadro 8, possuía terras, escravos e gados. Estava, portanto,

inserido na dinâmica econômica e social do cenário colonial em que viveu.314

Todavia, apesar da ausência desse dado que é significativo em nosso estudo, um

elemento pertinente que tanto o gráfico 6 quanto o quadro 8 demonstram é que houve a presença

significativa de sesmeiros-militares na Ribeira do Seridó, participando do processo de ocupação

e territorialização desse espaço empreendido pela Coroa após a Guerra dos Bárbaros.

Consideramos esse dado quantitativo relevante, principalmente, por demonstrar que a “gente

de guerra”, expressão bastante utilizada nesse texto e presente nos assentos de praça, serviam à

Coroa através das armas e da ocupação do Ultramar. Eram, portanto, no que concerne às tropas

auxiliares, homens que viviam de suas atividades cotidianas e que eram reunidos militarmente

em situações que ameaçassem a integridade dos territórios coloniais, como foi a Guerra dos

Bárbaros. Tratava-se, portanto, de homens que possuíam uma dinâmica de vida própria,

voltada, no caso da Ribeira do Seridó, para o criatório, a agricultura de subsistência e para os

ritos da vida cristã.

Por fim, o quadro 8 demonstra, também, a inexistência de soldados entre os sesmeiros-

militares. Esse dado se justifica, possivelmente, pela pobreza que acometia esses homens,

conforme já elucidamos em outras ocasiões nesse texto. Assim, apesar dos requerimentos de

sesmarias não distinguir os homens pelas suas qualidades, como demonstra o próprio caso de

Francisco Taveira citado acima, exigia que esses possuíssem certo cabedal para tornar essas

terras produtivas315. Esse caráter das concessões de sesmarias deve explicar a ausência de

sesmeiros que eram soldados e a existência apenas de sesmeiros que possuíam patentes,

certamente das ordenanças, como já elucidamos.

De certa forma, nessa análise, é pertinente reafirmar que essas concessões de sesmarias

foram efetivadas em um contexto específico, logo após a Guerra dos Bárbaros na parte que

corresponde à Ribeira Seridó, ou seja, no momento em que esse espaço passava por um

314 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Ana Francisca Cunha. Inventariante: Francisco Taveira da Conceição. Sítio Serra das Queimadas, Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe,

Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1797. (Manuscrito). LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários

post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da Conceição. Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do

Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito). 315 Sobre o instituto de sesmarias, ver os estudos das historiadoras Márcia Motta e Carmen Alveal. (ALVEAL,

Carmen Margarida Oliveira. História e direito: Sesmarias e Conflito de Terras entre Índios em Freguesias

Extramuros do Rio de Janeiro (Século XVIII). 2002. 191p. Dissertação. (História Social) – Universidade Federal

do Rio Grande do Norte. MOTTA, Márcia. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito: 1795-1824. São

Paula: Alameda, 2010.).

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processo de territorialização. Nesse cenário, os espaços dessa Ribeira, que já haviam sido palco

de embates entre colonos e nativos e da edificação de uma estrutura militar, a casa forte do Cuó,

estavam sendo apropriados por colonos através da distribuição de sesmarias e modificados pela

ação desses homens, representadas, por exemplo, pela edificação de fazendas de criar gados,

de moradias e das próprias instituições civis e eclesiásticas, que, à medida que normatizavam a

vida na colônia, demarcavam e territorializavam os espaços sob custódia do Reino.

Sobre esse processo de territorialização da Ribeira do Seridó, em linhas gerais, foi no

ano de 1735 que esse território passou de “Arraial de Caicó”, edificado no ano de 1700 em

torno de uma capela dedicada a Santana, no Quipauá, a “Povoação do Caicó”, como demonstra

a Ata de instalação da Povoação do Caicó transcrita abaixo:

Aos sete dias do mez de julho de mil sete centos e trinta e sinco anno de Nosso

Senhor Jesus Chisto, nesta Fazenda “Penêdo, Capitania do Rio Grande do Norte, foi solenemente às 7 horas da manhã, instalada a Povoação do Caicó,

tendo o Coronel de Cavallaria Manuel de Souza Forte proferido as palavras

Indicadas nas Ordenações Filippinas, e ordenado a colocação do Pelourinho

com um (...) de profundidade, para serem aplicados castigos aos criminosos, aos escravos, aos ladrões e as filhos desobedientes aos paes. A assistencia

prorrompeu em Vivas ao Rei de Portugal Dom João V: ao Vice-Rei do Brazil

Conde de Sabugoza; ao Governador da Capitania João Teive Barreto de Menezes, e ao Coronel Manuel de Souza Forte, fundador do Caicó desde 1700

annos e hoje elevado o Arraial a Povoado. A seguir, o Reved° Messias Jozé

Pereira, natural de Goyanna celebrou a Santa Missa na Praça da Capella e da Casa da Suplicação, tendo Sua Reverendissima ao final do Santo Sacrificio

dado a Benção da Imagem de Sant’Anna, oferta do cearense Luiz da Fonte

Rangel, depois de cujo acto o povo beijou reverentemente o símbolo da nossa

fé, ofertando donativos tão próprios de solenidades taes. [...].316

No documento transcrito acima, é possível constatar que o local escolhido para sediar a

construção da casa forte do Cuó, o Quipauá, atual Penedo, foi também o espaço apropriado para

efetivar a institucionalização da Ribeira do Seridó que, nesse contexto, foi elevada ao status

administrativo de Povoação. Esse dado demonstra que o processo de territorialização da Ribeira

do Seridó e de instalação das instituições coloniais ocorreu efetivamente a partir do que seria

atualmente o município de Caicó, localizado na Região do Seridó. Além disso, nessa fonte, é

possível perceber como a Igreja Católica e o Estado Português atuavam de forma conjunta nesse

processo ocupação e territorialização do Ultramar. Esse aspecto fica evidente, por exemplo,

com a presença de símbolos e cultos da religião cristã, como a missa celebrada pelo padre

Messias Jozé Pereira e a presença da imagem de Nossa Senhora Santana, que ao ser beijada

316 Acta da Installação da povoação do Caicó. In.: MEDEIROS FILHO, Olavo. Índios do Açu e Seridó. p. 149-

150

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pelos fiéis pareceu, nessa ocasião, selar o ato institucional e burocrático de criação de um

território colonial: a Povoação do Caicó.

Um elemento interessante acerca desse processo de territorialização da Ribeira do

Seridó é concernente à presença da instituição militar nesse território colonial. Segundo

Medeiros Filho, desde 1726 existiam companhias de ordenanças na Ribeira do Seridó. No

entanto, consideramos essa informação complexa, visto que o mesmo assevera esse dado com

base apenas em um documento que não aborda de forma clara a existência dessa força militar

auxiliar nessa Ribeira. O documento a que estamos nos referindo é uma carta patente, presente

no IHGRN e que data de 1749.

Nessa fonte, o capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques,

afirmou ser “preciso haver um Coronel na Ribeira do Ceridô”.317 O militar escolhido para tal

posto foi João Gonçalves de Mello. Este foi descrito como sendo apto para ocupar determinada

patente por ter uma experiência militar significativa, tendo atuado “no decurso de quinze anos

de soldado, Tente. e Capm”.318Além disso, João Gonçalves de Mello, havia recebido do próprio

capitão-mor do Rio Grande, no ano de 1741, em mostra realizado por este na Ribeira do Seridó,

a patente de sargento-mor, a qual exercia até o momento em que foi elevado ao posto de

Coronel, em 1749.

Dessa forma, entendemos que Medeiros Filho, certamente, interpretou que João

Gonçalves de Mello serviu por 15 anos na Ribeira do Seridó e que em 1741 foi elevado ao posto

de sargento-mor das ordenanças existentes nessa Ribeira. Entretanto, essa fonte não assevera

que esses 15 anos de experiência militar ocorreram, de fato, nessa Ribeira. O que é descrito

com clareza é que João Gonçalves de Mello estava atuando nesse território desde 1741, quando

em mostra recebeu a patente de sargento-mor. Dessa maneira, consideramos complexo afirmar

que existiram ordenanças no território em análise tendo como base apenas essa fonte, que não

evidencia essa informação de forma clara, visto que João Gonçalves de Mello podia ter atuado

em outros territórios coloniais e ter acumulada uma experiência militar significativa antes de

residir na Ribeira do Seridó.

O fato é que nos deparamos com João Gonçalves de Mello solicitando sesmarias na

Ribeira do Seridó no ano de 1742, como demonstra o quadro 8. Nessa ocasião, este foi

identificado como sargento-mor e, com base na carta patente de 1749, ocupava esse posto desde

1741, o que demonstra que nesse contexto já existiam, de fato, companhias de ordenanças na

317 Registro de uma carta patente do posto de Coronel da Ribeira do Ciridó passada a João Glz. de Mello em 23 de

junho de 1749. 318 Idem.

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Ribeira do Seridó, que na ocasião já era uma Povoação e possuía, de certa forma, uma dinâmica

econômica e administrativa mais estável, visto que a Guerra dos Bárbaros já havia se encerrado

na Capitania do Rio Grande e o processo de ocupação colonial estava se efetivando no interior

da Capitania.

Sobre esse aspecto, a edificação de templos cristãos na primeira metade do seiscentos e

o surgimento de povoações em torno desses templos são representativos desse processo de

efetivação da territorialização do interior da Capitania, no que concerne, especificamente, ao

território que viria a ser a Freguesia do Seridó, em 1748, e que teve como marco inicial a

edificação do Arraial do Caicó no Penedo. Dessa forma, na primeira metade do setecentos, no

sertão da Capitania do Rio Grande, próximo à Povoação do Caicó, emergiram as seguintes

capelas: Capela de Nossa dos Aflitos, em 1710, na Ribeira do Piranhas; Capela de Nossa

Senhora Do Ó, em 1735, na Ribeira do Espinharas; Capela de Nossa Senhora da Guia, em 1738,

na Ribeira do Acauã. Essas capelas deram origem aos seguintes núcleos populacionais,

respectivamente: Povoação de Jardim das Piranhas, Povoação da Serra Negra, Povoação do

Acari.319 O mapa abaixo demonstra a localização dessas Povoações, próximas às ribeiras do

rios e templos cristãos.

Mapa 1 – Povoações da Ribeira do Seridó

Fonte: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações indígenas no

sertão da Capitania do Rio Grande. 2007. 309f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, Natal, 2007. p.171.

319 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças no Sertão do

Rio Grande do Norte. (séculos XVIII e XIX). p. 32.

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Retornando à questão das ordenanças, além de considerarmos que a fonte não apresenta

de forma clara que João Gonçalves de Mello atuava na Ribeira do Seridó desde 1726, um

elemento que consideramos pertinente nesse processo é que existiam alguns critérios para a

criação de companhias de ordenanças, conforme o Regimento lusitano que regula a criação e

atuação desse corpo militar no Reino e no Ultramar. Assim, dentre esses critérios, era esperado

que a territorialidade colonial que fosse abrigar esse corpo militar auxiliar possuísse moradores

suficientes que constituir as companhias de ordenanças, como discutimos no primeiro capítulo.

Dessa forma, de acordo com esse regimento, cada companhia deveria ser constituída de 250,

divididos em 10 esquadras. No entanto, nos lugares em que houvesse menos de 250 moradores

era permitido instituir companhias de 200, 150 e até 100 homens.320

Se esse número, contudo, ainda extrapolasse a quantidade de colonos livres, entre 18 e

60 anos de determinada territorialidade colonial, era possível reunir homens de espaços

vizinhos para instituir as companhias de ordenanças.321 Acreditamos que entre os anos de 1710

e 1720 a ocupação da Ribeira do Seridó ainda estava em fase de expansão, o que, certamente,

não possibilitaria reunir homens de territórios vizinhos, visto que é apenas entre os anos de

1730 e 1740 que constatamos a emergência de novos templos cristãos próximos a essa Ribeira

e, consequentemente, novos núcleos populacionais, como demonstrou o mapa 1.

É evidente que seria preciso um estudo de cunho demográfico e um cruzamento

exaustivo de fontes para entender demograficamente como estava organizada a Ribeira do

Seridó nas décadas de 1710 e 1720. Todavia, não possuímos fontes paroquiais para esse recorte

temporal que nos possibilite efetivar essa análise. Dessa forma, tendo como base o surgimento

de fazendas de criar e a edificação de templos cristãos próximos à Ribeira do Seridó,

acreditamos que nas décadas de 1730 e 1740 o processo de ocupação territorial desse espaço

estava ocorrendo de forma mais efetiva, como evidenciou o mapa 1 e que, possivelmente, nesse

contexto, existam homens suficientes para constituir companhias de ordenanças. De toda forma,

é certo que desde 1741 João Gonçalves de Mello atuava nessa Ribeira como sargento-mor das

ordenanças. Ademais, o próprio fato do capitão-mor realizar uma mostra nessa Ribeira já

demonstra a existência de homens aptos a servirem como soldados das ordenanças. Assim, o

que estamos questionando apenas é que é preciso um conjunto de fontes mais amplo para

320 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

Lisboa, 1570. 321 Idem.

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asseverar quando ocorreu, de fato, a emergência das companhias de ordenanças da Ribeira do

Seridó e, infelizmente, no momento, dispomos apenas de cartas patentes e assentos de praça

que remetem à década de 1740 desse território.

Documentos presentes no Arquivo Histórico Ultramarino e que examinaremos de forma

efetiva no próximo capítulo, onde iremos retomar essa discussão, demonstram existirem duas

companhias de cavalaria na Ribeira do Seridó no ano de 1744,322 o que evidencia que, de fato,

nesse contexto, já existia um aparato administrativo nessa Ribeira, tanto civil, através da

Povoação erigida em 1735, quanto militar, por meio de tropas auxiliares. Além disso, foi na

década de 1740, mais especificamente em 1748, que foi erigida a Freguesia da Gloriosa Senhora

Santana do Seridó, que antecedeu a instituição de um limite territorial e burocrático da

administração civil: a Vila Nova do Príncipe, que emergiu, apenas, em 1788,323 quando a

Ribeira já possuía um núcleo populacional e uma dinâmica econômica estável.

Sobre esse último aspecto, especificamente à questão populacional da Ribeira do Seridó,

no ano de 1805, ou seja, cerca de 17 anos após a instituição da Vila Nova do Príncipe, esta

possuía uma população de cerca de 4.317 colonos, identificados pelo capitão-mor desse

território da seguinte forma:

Quadro 9 – População da Vila do Príncipe conforme suas qualidades, 1805

População masculina População feminina

Brancos: 962 Brancas: 935

Pretos: 410 Pretas: 461

Mulatos: 787 Mulatas: 762

Total: 4.317

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José

Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população

do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de ordenanças.

AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623.

Esses dados quantitativos, no entanto, devem ser examinados com cautela, visto que nos

registros paroquiais da Freguesia do Seridó concernentes ao recorte temporal em análise é

possível encontrar mestiços identificados como pardos e cabras e não apenas como mulatos.

Um exemplo dessa assertiva é o caso de Manoel Guedes do Nascimento, pardo, soldado das

ordenanças e residente na Vila do Príncipe, que será examinado no capítulo seguinte.

322 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao rei [D. João V]

enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço dos Auxiliares, 1744. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6,

doc. 288. 323 Sobre a instituição da Freguesia do Seridó e da Vila do Príncipe, ver: MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A

Penúltima Versão do Seridó: uma história do regionalismo seridonese. Natal: Sebo Vermelho, 2005; MACEDO,

Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças no Sertão do Rio Grande do

Norte. (séculos XVIII e XIX).

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O modo como a Ribeira do Seridó emergiu, enquanto um núcleo populacional e

administrativo sob a tutela de Portugal, demonstra que esse território, foi, antes de tudo, produto

de uma afirmação militar, uma vez que foi ocupado pelo colonizador, de fato, e territorializado

após os conflitos com os nativos, que resistiram de diversas formas. Sobre esse último aspecto,

ao longo desse capítulo, demonstramos que a Guerra dos Bárbaros, tendo como base os assentos

de praça examinados, foi uma guerra de índios contra índios. De forma precisa, de índios

aldeados e aliados as tropas coloniais contra os índios dos sertões. Em consonância com isso,

dentre outros elementos, abordamos as deserções ocorridas nesse cenário de guerra e a

naturalidade da gente de guerra que atuou nesse contexto.

Em nossa análise no segundo capítulo, examinamos também como o papel da

administração militar não estava restrito à defesa dos territórios coloniais, visto que os homens

que constituíam essa instituição também atuaram de forma efetiva no processo de ocupação e

territorialização do Ultramar, como foi o caso da Ribeira do Seridó, produto de uma afirmação

militar, ocupada e territorializada, em parte, através de sesmeiros-militares.

Por fim, no capítulo seguinte, buscaremos entender de forma precisa a população

mestiça que ingressou nas tropas coloniais da Capitania do Rio Grande, ou seja, quem eram

esses mestiços, no que concerne às tipologias mestiças utilizadas para denominá-los, quais

postos militares ocupavam e quem eram esses homens, no que se refere às suas genealogias e

posse de cabedal. Para tanto, retornaremos à Ribeira do Seridó e empreenderemos uma análise

de cunho mais qualitativo acerca desses mestiços, que, após a Guerra dos Bárbaros permaneceu

atuando não apenas nas forças auxiliares da Capitania, mas também nas regulares, sendo,

inclusive, quantitativamente superiores aos colonos identificados como brancos.

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4 CARACTERIZAÇÃO SOCIAL DOS MILITARES MESTIÇOS DA CAPITANIA DO

RIO GRANDE, 1726-1820

Neste capítulo, examinaremos, a população mestiça que constituiu o efetivo militar da

Capitania do Rio Grande após a Guerra dos Bárbaros, mais precisamente entre os anos de 1726

e 1820. Nesse sentido, buscaremos entender quem eram esses mestiços no que se refere às

tipologias mestiças (cabra, mulato, trigueiro e pardo) presentes na documentação para

caracterizá-los fenotipicamente e qualitativamente e, em consonância com isso, discutiremos

quais postos militares eram ocupados por esses grupos sociais em comparação, por exemplo,

com os colonos identificados, como brancos, que também eram membros das tropas pagas e/ou

auxiliares do Rio Grande. Em conformidade com essa análise, buscaremos, ainda, entender

quais atividades laborais eram desenvolvidas por esses mestiços e quais relações familiares,

através do sacramento do matrimônio conseguiam estabelecer. Para tanto, examinaremos os

casos de militares/mestiços que eram membros das companhias de ordenanças e que residiam

na Ribeira do Seridó, território já discutido no capítulo anterior e para o qual possuímos

documentação paroquial e judicial que torna possível essa análise.

Antes de empreendermos essa discussão de cunho mais qualitativo acerca dessa

população militar/mestiça, no entanto, consideramos pertinente entender como ficou

organizada militarmente a Capitania posteriormente aos embates ocorridos nos sertões entre

índios, colonos e índios aliados. Dessa maneira, procuraremos, nesse primeiro momento,

verificar quais corpos militares existiam no Rio Grande posteriormente ao processo de

ocupação e territorialização dos sertões e como estava organizado esse efetivo militar no que

concerne à qualidade dos soldados e oficiais que constituíram essa força de guerra do espaço

em estudo na segunda metade do Setecentos e nos anos iniciais do Oitocentos.

4.1 Efetivo militar da Capitania do Rio Grande após a Guerra dos Bárbaros

Posteriormente aos embates envolvendo índios, colonos e índios aliados o processo de

territorialização da Capitania do Rio Grande expandiu os seus limites para os sertões e,

consequentemente, em consonância com esse empreendimento colonial, ocorreu, também, a

expansão das instituições administrativas instauradas no Ultramar que eram responsáveis por

normatizar a vida na colônia, como a instituição militar. Nesse sentido, após a Guerra dos

Bárbaros, mais especificamente na década de 40 do século XVIII, o quadro militar do Rio

Grande, de acordo com uma carta enviada pelo capitão-mor, Francisco Xavier de Miranda

Henrique, ao rei D. João V, era constituído por duas companhias de infantaria pagas, que

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guarneciam na Cidade do Natal e na Fortaleza dos Reis Magos, 324 e por 16 dezesseis

companhias de cavalaria325 que atuavam em toda a Capitania do Rio Grande, sendo divididas

da seguinte forma: 10 presentes na Cidade do Natal,326 duas na Ribeira do Seridó,327 duas na

Ribeira do Assú328 e, por fim, duas na Ribeira do Apodi.329

Essas companhias de cavalaria somavam o total de 855 homens, que atuavam como

gente de guerra. Em consonância com as tropas pagas e com as companhias de cavalaria,

existiam, também, 10 companhias de auxiliares, 330 que somavam o total de 525 praças.

Agrupando o total da gente de guerra que constituía as companhias de cavalaria e com os que

formavam as 10 companhias de milícias, percebemos que oficialmente o Rio Grande possuía

na primeira metade do século XVIII o total de 1.380 homens de guerra. Esse número não incluí

os praças que atuavam nas tropas pagas, que, segundo Hélio Galvão, no ano de 1728 aglutinava

o total de 90 soldados divididos em duas companhias que atuavam na Cidade do Natal e na

Fortaleza dos Reis Magos.331 No entanto, mais do que números, esses dados são indicativos de

que somente após a consolidação do domínio português no Rio Grande, tanto no que concerne

à presença de conflitos externos (domínio holandês) quanto de conflitos internos (Guerra dos

Bárbaros), foi possível vislumbrar uma expansão das forças militares coloniais que, até a década

de 80 do século XVII, eram restritas, praticamente ao litoral e à existência de companhias de

ordenanças, como discutimos nos capítulos anteriores.

324 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p.144. 325 Eram capitães dessas companhias os seguintes colonos: Ângelo Francisco da Rocha, José Monteiro, Manoel

Antônio Pimentel, Francisco da Cunha, João Marinho, Manoel de Silveira e Mello, Francisco de Souza de Gusmão,

Companhia de Bernardo de Faria Freitas, José Pereira, Thomas de Araújo, David Dantas de Faria, Francisco

Barbosa Dantas, Leandro Saraiva de Moura, Manoel Cardoso de Azevedo. CARTA do capitão-mor do Rio Grande

do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao rei [D. João V] enviando mapas do Regimento de Cavalaria

e do Terço dos Auxiliares, 1744. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288. 326 As companhias de cavalaria que atuavam na Cidade do Natal eram constituídas cada uma por 40 soldados.

AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288. 327 Assim como as companhias de cavalaria, que eram responsáveis pela defesa da Cidade do Natal, as Companhias

presentes na Ribeira do Seridó eram constituídas cada uma por 40 soldados. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc.

288. 328 102 soldados constituíam as companhias de cavalaria presentes na Ribeira do Assú, sendo cada uma formada

por 51 homens. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288. 329 As companhias de cavalaria presentes na Ribeira do Apodi eram regidas pelo sargento-mor Clemente Gomes

de Amorim, sendo estas compostas por 134 soldados. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288. 330 Cada companhia de milícia era formada por 43 soldados. Os capitães responsáveis por estes corpos de guerra

foram os seguintes: Bonifácio da Rocha, Antônio de Paiva, Manoel Gomes da Silveira, Gaspar de Paiva, Sebastião

Cardoso, Manoel das Neves Silveira, Manoel de Mello, Sebastião Dantas, Antônio Gomes Torres. AHU-RN,

Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 288. 331 GALVÃO, Hélio. Op cit. p.129.

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Acerca das tropas pagas citadas acima, com base na pesquisa que realizamos nos

assentos de praça, conseguimos reconstituir a composição dessa força militar, que era

responsável pela defesa da Capitania no Setecentos, como evidenciarão os quadros abaixo:332

Quadro 10 – Companhia 1, pertencente ao capitão Matheus Mendes Pereira, 1727-1737

Nome Qualidade

Pedro Galvão Sem identificação

Antônio da Gama Luna Sem identificação

Domiciano da Gama Luna Trigueiro

Francisco Xavier de Lira Trigueira

Mathias Ferreira da Costa Trigueira

Rodrigo Guedes Alcaforado Mousinho Cor trigueira

José de Melo da Costa Cor clarinha e vermelha

Manoel Teixeira, casado Cor trigueira

Gonçalo Freire da Silveira Cor trigueira

Alberto Pimentel Sem identificação

Estevão Correia da Rocha Cor trigueira

Faustino Correa da Costa Cor alva

Estevão Velho Cabral Sem identificação

Vicente José Francisco, casado Cor alvarinho

Agostinho Vicente, solteiro Alvarinho

Inácio Rois Fontes, solteiro Pardo

Manoel Gomes da Silveira, casado Sem identificação

Francisco Pereira do Amaral, solteiro Sem identificação

Antônio Barbosa Ribeiro, solteiro Alvarinho

Antônio da Trindade Antunes Trigueiro

João da Costa Coimbra, solteiro Cor trigueira

Antônio da Costa Gomes, solteiro Cor trigueira

Roque da Costa Gomes Sem identificação

Teodósio da Rocha Sem identificação

José Morais de Castro Sem identificação

Sebastião Batista de Freitas Sem identificação

Manoel de Melo Albuquerque Sem identificação

Total da Gente de Guerra 28 praças e oficiais

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 28 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a 1820 –

Arquivo Histórico do IHGRN.

332 Todavia, é pertinente salientar que o número de soldados e oficiais que constituem as companhias regulares da

Capitania que localizamos nos assentos de praça não dialoga com o número citado pelo historiador Hélio Galvão.

De acordo com Hélio Galvão, em 1728, o Rio Grande possuía cerca de 90 soldados. Contudo, examinando os

assentos de praça só conseguimos localizar 50 soldados em um universo amostral de 70 colonos matriculados no

serviço militar e divididos entre as companhias de Matheus Mendes Pereira e Francisco Ribeiro Garcia. Desses 70

colonos, 17 não tiveram seus postos identificados, 1 foi definido como alferes, 1 como tenente de cavalos e, por

fim, 1 como cabo de esquadra. Certamente, os assentos de praça que compulsamos estão incompletos, visto que a

companhia de Matheus Mendes Pereira está constituída por apenas 28 homens e, em contrapartida, a companhia de Francisco Ribeiro Garcia possuí 42 homens, sendo, portanto, quantitativamente mais próxima do total de praças

que havia sido salientado por Hélio Galvão em seu estudo sobre a Fortaleza do Rio Grande. Além disso, existe

uma quantidade significativa de colonos que não tiveram seus postos identificados e, dessa maneira, não sabemos

se esses colonos são referentes aos postos de soldados ou aos postos de oficiais de baixa patente dessas companhias,

como foi o caso de Antônio da Trindade Antunes, solteiro, trigueiro e alferes da companhia Matheus Mendes

Pereira. Portanto, é preciso verificar esses números com cautela, considerando sempre as lacunas com as quais nos

deparamos na documentação examinada. GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande.

p.129. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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Quadro 11 – Companhia 2, pertencente ao capitão Francisco Ribeira Garcia, 1726-1739

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 42 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a 1820 –

Arquivo Histórico do IHGRN.

Nome Qualidade

Antônio Cardoso Batalha Cor trigueira

Balthazar Pereira Dalto Sem identificação

Valentim Tavares de Melo Alvinho do rosto

Luciano Dornelles Pimentel Cor trigueira

Bento Vieira Cardoso Cor alva

Agostinho Antunes Cor alva

Miguel Ferreira Cor trigueira

Manoel Cabral de Marins Cor trigueira

Cosme Ferreira Cor morena

Manoel Carneiro Maciel Cor e olhos pardos

João Rodrigues de Freitas Trigueira

João da Costa Almeida Trigueira

Miguel da Costa Bandeira Cor Trigueira e Pálida

Vito Antônio de Castro Sem identificação

Manoel Leitão da Silva, casado Cor não mui branca, nem mui negreira

Matheus Tavares Guerreiro Cor branca

Francisco Godinho Mota Cor branca rosado

Nicolau Paes Sarmento Branco

Manoel de Freitas da Costa Cor trigueira

Mathias de Araújo de Andrade Cor branca

Antônio Baptista Espínola Sem identificação

Antônio de Freitas da Costa Homem pardo

Antônio Rodrigues Vidal Cor trigueira

Bernardo de Amorim Cor trigueira

João Bernardo de Figueiredo Vasconcelos Sem identificação

Domingos Fernandes Aires, casado, morador em Natal

(Soldado artilheiro da Fortaleza da Barra de Natal)

Cor branca

Manoel da Cunha Simões Homem branco

Luís Carneiro Falasso, casado Pardo

Cipriano Lopes, solteiro Pardo

Bras Antunes, solteiro Pardo

Gonçalo da Costa Pardo

Cosme Ferreira da Rocha Trigueiro

João da Rocha Pimentel, solteiro Trigueiro

Francisco Barbosa Rego Cor trigueira

Cosme Pinto Pardo

Manoel Luís dos Santos Homem com cor da pele pardo

Manoel Simões da Silva Cabelo crespo por ser homem pardo

Manoel de Freitas da Costa Sem identificação

João Rodrigues da Silva Sem identificação

Aniceto Carneiro Folcaso Sem identificação

Antônio Nunes Tinoco Sem identificação

Manoel da Silva de Azevedo Sem identificação

Total da Gente de Guerra: 42 praças e oficiais

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Como é possível observar nos quadros acima, tanto a companhia de Matheus Mendes Pereira

quanto a companhia de Francisco Ribeiro Garcia 333 possuíam colonos identificados como

produtos das mesclas biológicas em sua constituição. Mais que isso, os colonos mestiços, sem

considerarmos aqueles que não foram identificados, eram quantitativamente superiores ao

número de colonos brancos. No caso da companhia de Matheus Mendes Pereira, existiam 11

colonos identificados como mestiços 334 e 5 colonos classificados como brancos. 335 Já na

companhia de Francisco Ribeiro Garcia, existiam 24 colonos identificados como mestiços336 e

9 colonos qualificados como brancos.337

Acerca dessa presença significativa de mestiços nas tropas regulares do Rio Grande, que

teoricamente só deveriam acolher homens brancos, acreditamos que um caminho explicativo

possível são as dificuldades existentes no alistamento de soldados para as tropas regulares do

Estado do Brasil. Sobre esse aspecto do serviço militar regular da colônia, como já salientamos

no primeiro capítulo, os recrutamentos para as tropas pagas eram problemáticos e, em muitas

ocasiões, ocorriam de modo forçado e violento. Certamente, a precariedade do serviço militar

regular, delineado pelos constantes atrasos do soldo e pela degradação das fortalezas litorâneas,

não tornava atrativo o ingresso nas tropas pagas do Estado do Brasil, 338 o que resultava,

possivelmente, na matrícula de homens mestiços para assegurarem a constituição desse corpo

militar. Evidentemente que, como também elucidamos no referido capítulo, o serviço militar

poderia oferecer a possibilidade de ascensão social, o que pode ter tornado as tropas regulares

333 Essas tropas eram responsáveis pela defesa da Cidade do Natal e da Fortaleza dos Reis Magos. A companhia

que pertencia ao capitão Francisco Ribeira Garcia certamente guarnecia na Fortaleza dos Reis Magos, uma vez

que Domingos Fernandes Aires, membro dessa companhia, foi identificado como soldado artilheiro da Fortaleza

da Barra de Natal, ou seja, a Fortaleza dos Reis Magos. Desse modo, seria a companhia de Matheus Mendes Pereira responsável pela defesa da Cidade do Natal. Contudo, não localizamos esse dado na fonte examinada e, portanto,

essa assertiva trata-se uma hipótese, tendo em vista que a companhia pertencente a Francisco Ribeiro Garcia era,

certamente, responsável pela Fortaleza dos Reis Magos. 334 Estamos aglutinando na categoria mestiço as seguintes tipologias mestiças: trigueiro e pardo. Ambas as

categorias foram citadas na documentação e destacadas nos quadros acima. 335 Estamos considerando como branco as seguintes categorias: cor clarinha e vermelha, cor alva, cor alvarinha e

alvarinhos. 336 Além de trigueiro e pardo, estamos considerando como mestiços 1 colono que foi identificado como sendo de

cor morena e, por fim, 1 colono que foi qualificado como sendo de “cor não mui branca, nem mui negreira”, ou

seja, o seu fenótipo possuía traços das mesclas biológicas ocorridas entre pessoas das quatro partes do mundo e

reunidas na América em função da apropriação e territorialização desse espaço, como preconizou Paiva em seus estudos. Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. PAIVA,

Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos

XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 337 Mais uma vez, estamos considerando como branco os colonos identificados como alvinho do rosto, cor alva e,

por fim, aqueles que foram qualificados, precisamente, como brancos. Salientamos que aglutinamos esses colonos

nas tipologias brancas e mestiças para analisá-los de forma mais precisa em uma perspectiva quantitativa. 338 IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros.

In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial 3, 1720-1821. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2014. p. 492.

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mais atraentes aos mestiços, que buscavam formas de se integrarem a uma sociedade marcada

pelas diferenças de qualidade e condição. Portanto, as dificuldades para recrutar homens

brancos e a esperança de ascensão social através do serviço militar podem ser caminhos

explicativos para o ingresso de mestiços nas tropas regulares. Isso atenderia aos anseios da

Coroa de possuir um corpo militar capaz de defender suas conquistas e, ao mesmo tempo, aos

anseios dessa população, que buscava constantemente mecanismos para se sentir parte desse

universo colonial, fosse através do ingresso na administração colonial, do acúmulo de cabedal

ou, até mesmo, de relações de parentesco consanguíneo e espiritual, tendo os sacramentos do

matrimônio e do batismo como uma possibilidade para obtenção desse parentesco.

Dessa maneira, na documentação estudada, um caso que exemplifica a assertiva acima,

onde o matrimônio339 representa uma possibilidade de ascensão social, é o da escrava Catarina.

Catarina foi qualificada como mulata no ano de 1797. Nessa ocasião, esta escrava, residente na

Ribeira do Seridó, estava sendo inventariada e foi qualificada da seguinte forma: mulata, “de

idade de 18 anos, sem habilidade e moléstia alguma”.340 Catarina pertencia a Ana Francisca,

339 Sobre a temática dos casamentos no cenário colonial, ver a tese de doutoramento da historiadora Sheila Siqueira

de Castro Faria. Esta historiadora, em seu estudo, ao problematizar a vida dos alforriados nas paróquias do Rio de

Janeiro e Minas Gerais no decurso dos séculos XVIII e XIX, analisou o sacramento do matrimônio como um rito

religioso estratégico no contexto estudado, uma vez que, conforme Faria, o casamento entre uma mulher escrava

e um homem branco era capaz de invizibilizar oficialmente a condição e a qualidade daquela escrava. Essa

invizibilização não ficava restrita a nubente em questão, mas era também passada aos filhos que nascessem dessa

união matrimonial ao ponto de esses perderem, inclusive, as marcas da escravidão. Isso aconteceu, por exemplo,

com Catarina e seus filhos, uma vez que, no ano de 1806, na ocasião em que foram inventariados os bens de

Francisco Taveira, não constou no inventário desse falecido nenhuma informação que remetesse à condição de

liberta de sua esposa ou que elucidasse a sua qualidade mestiça. O mesmo ocorreu com os filhos do casal. Nessa

ocasião, a referência feita aos filhos de Francisco Taveira e Catarina foi referente apenas às atividades educativas

que estes estavam aprendendo, como demonstra o trecho a seguir: João Antônio Remígio, tutor dos órfãos seus irmãos, afirmou que o órfão Antônio sabia ler, escrever e a Doutrina Cristã. Afirmou também que o órfão Manoel

também sabia ler, escrever e a Doutrina Cristã. No que concerne ao órfão Pedro está aprendendo a ler e sabe a

Doutrina Cristã. Do mesmo modo, o órfão João estava aprendendo a ler e sabia a Doutrina Cristã. O órfão Joaquim

ainda não sabia ler por ser muito pequeno e está aprendendo a Doutrina Cristã. O órfão Serafim também não sabia

ler, nem escrever por ser pequeno. Quanto às órfãs, conforme João Antônio Remigio, Tereza não sabia ainda coser,

nem fazer renda por ser pequena e por está aprendendo a Doutrina Cristã. A órfão Luíza não sabia fazer renda,

nem coser por ser muito pequena e por está aprendendo a Doutrina Cristã, já a órfã Maria não sabia coisa alguma

por ser de pouca idade”. João Antônio Remígio, era filho de Francisco Taveira com a sua primeira esposa, Ana

Francisca e, nessa ocasião, figurou como tutor de seus irmãos. Por fim, caso não fosse o cruzamento de fonte que

realizamos não saberíamos, por exemplo, que Antônio, o primeiro órfão citado por João Antônio, havia sido liberto

na pia batismal, quando tinha apenas dois meses e meio e, portanto, além de ser mestiço, carregava em si a marca da escravidão, herdada de sua mãe. FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as

pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del Rey (1700-1850). 2004. 278f. Tese (Concurso para

Professor Titular em História do Brasil – Departamento de História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói,

2004. LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da Conceição.

Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba

e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito). Cartas de alforrias, 1792-1814, fl. 64. 340 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Ana Francisca Cunha. Inventariante:

Francisco Taveira da Conceição. Sítio Serra das Queimadas, Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe,

Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1797. (Manuscrito).

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casada com Francisco Taveira da Conceição, que com o falecimento de sua esposa herdou em

sua meação a escrava citada.

Catarina e Francisco Taveira, após o falecimento de sua esposa, tiveram um filho, que

foi alforriado na pia de batismo e qualificado na ocasião como pardo. A justificativa apresentada

para a alforria por Francisco Taveira foi a seguinte: “disse que alforriou o escravo Antônio na

pia batismal pelos bons serviços que a sua mãe lhe havia prestado e por este ser seu filho”.341

Antônio, filho de Catarina e Francisco Taveira, foi alforriado no ano de 1800.342 Dois

anos depois, Francisco Taveira alforriou Catarina, que na ocasião, foi definida como parda.343

Certamente, posteriormente à concessão da alforria da dita escrava, Catarina e Francisco

Taveira se uniram em matrimônio. Infelizmente, não conseguimos localizar nas fontes

paroquiais o ano em que Francisco Taveira se casou com Catarina, mas, no inventário deste

sesmeiro, realizado em 1816,344 localizamos um termo em que este foi identificado como sendo

casado com esta mestiça no ano de 1809. Dessa maneira, o que sabemos ao certo é que

Francisco Taveira, de fato, uniu-se em matrimônio a Catarina.

Como resultado dessa união, o casal citado, além de Antônio, teve mais 10 filhos, como

demonstra o geneagrama a seguir:

341 Cartas de alforrias, 1792-1814, fl. 64. 342 Idem. 343 Cartas de alforrias, 1792-1814, fl. 6v. 344 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da Conceição.

Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba

e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito).

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Geneagrama 1 – Descendência da família Taveira da Conceição

? ?

Pedro

Taveira da

Conceição

Inácia

Fidélis

de Jesus

Ana Joaquina

do Espírito

Santo

Gonçalo

Pereira dos

Santos

Francisco

Taveira da

Conceição

Ana

Francisca

da Cunha

João

Batista da

Conceição

Paula

Martins

de Jesus

Maria

Francisca

Maria de

Jesus

Catarina

Maria de

Jesus

Antônio Pedro Joaquim Francisco

dos

Anjos

JoãoManoel JoséSerafim Luíza MariaTeresaBento

Taveira

Cosma

Maria de

Jesus

Dionísia

Maria da

Conceição

Inácio

Cordeiro

Nunes

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Fonte: elaborado por Maiara Araújo e Helder Macedo no software GenoPro, com base em registros paroquiais e fontes judiciais (séculos XVIII e XIX).

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A mestiça Catarina, quando Francisco Taveira345 faleceu, no ano de 1816,346 figurou

como inventariante dos bens de seu marido e foi definida como Catarina Maria de Jesus, nome

que, certamente, herdou após ser alforriada. Dessa forma, a união de Francisco Taveira com

Catarina Maria de Jesus, mestiça e liberta, demonstra como, apesar das hierarquias existentes

na sociedade colonial, os mestiços fizeram uso de diferentes práticas para se sentirem e fazerem

parte da dinâmica social e econômica da época. Catarina, que em 1797 figurou como escrava,

um bem inventariado, no ano de 1806 figurou como senhora de escrava e herdeira dos bens que

estavam sendo inventariados, ou seja, nem sempre os mecanismos de resistência utilizados por

escravos e mestiços eram de tentativas de rompimento com a ordem social que estava posta.

Por fim, em algumas ocasiões, como no caso citado, esses mestiços/escravos buscavam apenas

se inserirem no modelo de sociedade desigual que já estava estabelecido, o que explica, por

exemplo, a posse de escravos por um indivíduo que carregava a marca da escravidão e,

possivelmente buscava caminhos de se distanciar desse passado.

Retornando à constituição das companhias de Matheus Mendes Pereira e Francisco

Ribeiro Garcia, a presença de mestiços em tropas pagas não foi uma particularidade do Rio

Grande. A Capitania de Pernambuco também possuía mestiços na composição de sua força

militar regular. De acordo com Kalina Silva, a explicação para o ingresso dessa população em

um corpo militar que, teoricamente, deveria acolher apenas homens brancos, reside exatamente

nas dificuldades existentes para o recrutamento de homens brancos para atuarem enquanto

soldados ou oficiais pagos, como citamos acima.

Diferentemente da Capitania do Rio Grande, em Pernambuco os colonos mestiços eram

“embranquecidos” no momento em que se matriculavam no serviço militar, ou seja, passavam

a ser identificados oficialmente como brancos. Entretanto, conforme a historiadora citada, “esse

embranquecimento não apaga a mácula de sangue da mestiçagem, e não eleva socialmente os

homens envolvidos que continuam a ser, na prática, identificados como pardos pela sociedade

345 Francisco Taveira, como demonstra o geneagrama 1, teve uma filha natural com Maria Cosma de Jesus.

Infelizmente, no registro de matrimônio de Dionísia Maria da Conceição, filha de Francisco Taveira com Maria

Cosma, datado de 1799, não consta a idade da mesma, o que nos possibilitaria inferir - tendo como base a idade de João Batista, que na ocasião da morte de sua mãe, Ana Francisca, tinha 22 anos - se esta teria nascido enquanto

Francisco Taveira já era casado com Ana Francisca, visto que a relação do mesmo com Maria Cosma poderia,

também, ser anterior ao seu casamento com Ana Francisca. Todavia, a única informação precisa que a

documentação analisada nos oferece é que Francisco Taveira, ao longo de sua vida, uniu-se amorosamente com

pelo menos três mulheres e que foi patriarca de uma genealogia extensa, constituída por 14 filhos e 1 neto. PSC.

CPSJ. Livro de Matrimônio n° 1, FGSSAS, 1788-1809, fl. 53v. (Manuscrito). 346 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da Conceição.

Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba

e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito).

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açucareira”, 347 ou seja, permanecem vivendo como mestiços, mesmo sendo identificados

oficialmente como brancos.

Nesse sentido, na documentação militar referente à Capitania do Rio Grande, não nos

deparamos com casos de embranquecimento oficial de mestiços para justificarem a presença

dos mesmos nas tropas regulares da Capitania. No entanto, nas fontes paroquiais consultadas,

referentes especificamente à Ribeira do Seridó, constatamos um caso de invisibilização das

mesclas biológicas ocorrida em uma genealogia de indivíduos pardos. Esse processo de

invisibilização da qualidade mestiça ocorreu na família Soares de Oliveira, que tinha como

patrono dessa parentela o mestiço Martinho Soares de Oliveira, filho de Rosa Maria, natural de

Angola, e João Batista de Oliveira, natural do Alentejo.348

Martinho Soares foi casado com Vicência Alves Ferreira e, conforme o cruzamento de

fonte paroquiais e judiciais que realizamos, esse casal teve 12 filhos, 19 netos e 30 bisnetos,

como demonstra o geneagrama abaixo:

347 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar na Conquista do

Sertão de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. p. 176. 348 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Martinho Soares de Oliveira. Inventariante:

Vicência Ferreira. Sítio Barbosa, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do

Norte, 1798. (Manuscrito).

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Geneagrama 2 – Descendência da família Soares de Oliveira

João Batista

(Natural do

Alentejo)

Rosa Maria

(Natural de

Angola)

Martinho

Soares

João

Soares de

Oliveira

Maria

Francisca

Manoel

Vicência

Ferreira

Luzia

dos

Santos

Manoel

Nunes de

Azevedo

Eugênia

Maria do

Nascimento

Arcângela

Maria de

Jesus

Inácia

Maria de

Jesus

Joana

Maria das

Dores

Florência

Maria de

Jesus

Maria

Agostinha

dos Santos

José

Bernardo

dos Santos

Engrácia

Manoel

Inácio

Pessoa

Maria Manoel

Joaquim

Tavares

de Souza

José Florinda

Manoel

Joaquim

Palácio

José Teodora

Inácio

Vieira

Tomaz de

Pontes

da Silva

Martinho

Soares de

Oliveira

José

Soares de

Oliveira

Francisca

Maria de

Carvalho

Maria

Francisca da

Conceição

Anônimo José

Joaquim de

Santa Ana

Alexandrina Ana JoaquimInácia André JoséSeverina

Joana

Maria do

Nascimento

João

Serafim

da Costa

Maria

Rosa do

Nascimento

João da

Rocha

Gama

José Ana Gorgônio José

Ana

Maria

Gabriel

Francisco

da Costa

Cosma

Maria de

Jesus

Manoel

Mendes de

Valadares

Antônia

Maria de

Jesus

Anônimo João Agostinho Serafim

Gomes

de Souza

José Ana Manoel Maria José AntônioJoaquim

Rosa

Maria de

Oliveira

Manoel

Antônio de

Valadares

Antônio

Josefa Maria

do Espírito

Santo

Francisco

Gomes

de Souza

Joaquim

Tavares

de Souza

Inácia

Maria de

Jesus

JoséFlorinda ManoelAna Josefa

Joaquina

Maria

Amador

Luiz

Ferreira

Helena

Soares de

Oliveira

Antônio

Guilherme

de Carvalho

Antônio

Soares de

Oliveira

Francisco

Soares de

Oliveira

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Fonte: Elaborado por Maiara Araújo e Helder Macedo com base nas fontes paroquiais e judiciais do espaço em análise. Diagramação feita com software GenoPro.

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Desses, entre filhos, netos e bisnetos, como demonstra o geneagrama, 36 foram

definidos como pardos, 7 como brancos e 18 não tiveram suas qualidades identificadas. Dessa

maneira, é evidente que os descendentes de Martinho Soares e Vicência Ferreira foram

majoritariamente classificados nos registros paroquiais como produtos das dinâmicas de

mestiçagens biológicas. Todavia, alguns membros dessa família, como demonstraram as fontes

consultadas, “embranqueceram” oficialmente ao longo do tempo, ou seja, tiveram suas

qualidades mestiças invisibilizadas. Sobre esse processo de embranquecimento oficial,

percebemos que ocorreu apenas na segunda e terceira geração, onde 6 bisnetos e 1 uma neta do

casal citado foram qualificados como brancos.349

Nesse sentido, na análise dessa genealogia em um estudo anterior,350 concluímos que

esse processo de embranquecimento pode ter ocorrido pelo desejo que alguns membros dessa

família tinham de se distanciar da condição de mestiço de seus antepassados, visto que ser

branco no cenário colonial, mesmo que apenas oficialmente, facilitava a inserção na dinâmica

social e econômica da época, como demonstrou o caso da Capitania de Pernambuco citado

acima.351

Outro dado importante que podemos observar nos quadros 10 e 11 é concernente à

utilização do conceito cor para qualificar os colonos militares. O termo cor aparece em

diferentes ocasiões na documentação que examinamos para identificar o fenótipo dos colonos

que se matriculavam no serviço militar do Rio Grande. Nessa documentação era enunciada,

349 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Martinho Soares de Oliveira. Inventariante:

Vicência Ferreira. Sítio Barbosa, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1798. (Manuscrito). 350 ARAÚJO, Maiara Silva; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências “mestiças” e administração

colonial nos sertões da Capitania do Rio Grande: o caso da família Soares de Oliveira (séculos XVIII-XIX).

Espacialidades, Natal, v. 10, p. 14-44, jul-dez. 2016. 351 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar na Conquista do Sertão

de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. p. 176. Casos de embranquecimento de mestiços na Capitania de

Pernambuco também foram abordados pela historiadora Janaína Santos Bezerra. Esta autora examinou um caso

interessantíssimo de uma família de pardos, os Gomes da Fonseca, que por possuírem um cabedal significativo

conseguiram embranquecer oficialmente, mesmo carregando em seu fenótipo os vestígios das dinâmicas de

mestiçagens biológicas. De acordo com está autora, “a fraude da tez branca foi uma estratégia corriqueira na

trajetória de vida da família Gomes da Fonseca em Pernambuco. Aparentemente eram pardos, carregavam na pele e nos cabelos todas as ferramentas que denunciavam a sua origem mestiça. Porém, na documentação, em seus

processos de habilitação na Ordem de Cristo, ou até mesmo na ocupação de cargos de prestígio na colônia,

apresentavam-se como brancos de sangue limpo”. O caso dessa família, bem como da família Soares de Oliveira,

residente na Ribeira do Seridó, demonstra como o embranquecimento oficial era uma estratégia eficiente para

obtenção de patentes militares e outros títulos nobiliárquicos. É inegável, também, que a mudança oficial de

qualidade possibilitava que indivíduos mestiços saíssem das margens sociais às quais estavam submetidos e fossem

vistos e tratados na sociedade colonial com menos desdém pela qualidade que possuíam. Acerca desse processo

de embranquecimento na família Gomes da Fonseca ver: SANTOS, Janaína Bezerra. A fraude da tez branca: a

integração de indivíduos e famílias pardas na elite colonial pernambucana (XVIII). p.217-218.

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normalmente, a cor dos olhos, do cabelo e da pele do militar em questão. No entanto, na

Introdução desta dissertação afirmamos que faríamos uso do conceito de qualidade e não do

termo cor para nos referirmos ao modo como os colonos eram definidos na ocasião em que se

matriculavam no serviço militar do espaço em estudo. Nesse sentido, é preciso, antes de mais

nada, asseverar que os conceitos de cor e qualidade, apesar de estarem imbricados, possuem

sentidos distintos. Dessa maneira, de acordo com a historiadora Isnara Pereira Ivo,

Falar em qualidade não é o mesmo que falar em cor. Esta, no mais das vezes,

mesmo não explícita, relaciona-se à ideia daquela. O mais comum tem sido, desde os trabalhos pioneiros, tomar a primeira pela segunda. Cor e qualidade

andam juntas, mas não se confundem, embora existam de forma

correlacionada.352

O conceito de cor, assim como o de qualidade, foi empregado para definir, classificar e

estabelecer hierarquias entre os homens que habitavam o Ultramar. Todavia, apesar dos

mesmos estarem correlacionados, como preconizou Ivo, estes possuem singularidades que os

tornam distintos. A categoria cor, amplamente presente nos assentos de praça, conforme

elucidado por Eduardo França Paiva, foi frequentemente utilizado pelos habitantes da colônia

para definir o fenótipo do outro. De acordo com este historiador, no Estado do Brasil, o termo

cor foi mais frequentemente utilizado para se referir à cor dos africanos, não sendo comum para

se referir a homens brancos e pardos.353 Na verdade, segundo o autor, a qualidade parda sequer

é descrita como cor, como demonstra a citação a seguir:

A ‘qualidade’ pardo não aparece como ‘cor’, isto é, não encontrei menções a

alguém que fosse descrito como de cor parda, mas, diferentemente, para toda

ibero-América, sempre apareceram os escravos pardos, pardos forros ou

simplesmente pardos, o que indicava terem nascido livres.354

Apesar da assertiva de França Paiva apresentada acima, nos assentos de praça que consultamos

localizamos a categoria cor para se referir tanto a militares que eram pardos quanto a militares

que eram brancos. De forma precisa, em um universo amostral de 462 assentos de praça,

localizamos o emprego do termo cor para se referir a 5 colonos brancos e a 23 colonos pardos,

352 IVO, Isnara Pereira. Seria a cor, a qualidade, a condição ou o fenótipo? Uma proposta de revisão dos critérios

de distinção, classificação e hierarquização nas sociedades ibero-americanas. In.: IVO, Isnara Pereira; PAIVA,

Eduardo França. Dinâmicas de mestiçagens no mundo moderno: sociedades, culturas e trabalho. Vitória da

Conquista: Edições Uesb, 2016. p. 21. 353 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 168. 354 Ibid., p.171-172.

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ou seja, apesar dos termos branco, homem branco e pardo serem empregados mais

frequentemente para se referir à cor dos colonos que eram matriculados no serviço militar,

houve, também, o emprego do termo “cor” para se referir a homens brancos e pardos, o que nos

permite discordar de Paiva no que concerne à utilização do termo cor para se referir à qualidade

pardo. Evidentemente que estamos considerando um território e uma tipologia de fonte

específicos, o que não nos permite asseverar que o emprego da categoria “cor” foi utilizada em

todo o Estado do Brasil para identificar homens brancos e pardos. No entanto, na Capitania do

Rio Grande, houve a utilização desse conceito para nomear homens brancos e pardos, embora

não tenha sido essa a forma mais empregada para qualificar esses indivíduos.

O termo cor foi empregado de forma significativa para se referir aos colonos trigueiros

e morenos. Para identificar essas tipologias mestiças, o termo cor foi empregado 136 vezes,

sendo 95 vezes para se referir a indivíduos trigueiros e 41 vezes para definir colonos

identificados como sendo de cor morena. A utilização do termo cor para se referir a colonos

pardos, morenos e trigueiros nos permite asseverar que, na Capitania do Rio Grande, essa

categoria foi empregada de forma significativa para definir e qualificar homens mestiços,

principalmente, aqueles definidos como trigueiros. Todavia, apesar disso, optamos por fazer

uso do conceito de qualidade em nosso estudo para nos referirmos a esses colonos e o principal

elemento que justificou a nossa escolha foi a amplitude do conceito de qualidade.

Qualidade, como aludimos na Introdução, foi um termo empregado no Ultramar para

distinguir e hierarquizar as populações que constituíram a sociedade da época. Esse conceito,

em seu sentido ampliado, designava um conjunto de elementos que os colonos possuíam e que

possibilitavam que os mesmos fossem ou não considerados como “homens bons”. Dentre esses

elementos, o termo qualidade identificava o local de origem, a religião, defeito mecânico e o

fenótipo dos habitantes do Ultramar.355 Dessa maneira, enquanto a categoria cor referia-se

apenas a um elemento do fenótipo desses colonos/militares, o termo qualidade, além de ser,

também, empregado na documentação da época, inclusive no Regimento das Ordenanças de

1570,356 abrangia um conjunto de elementos que possibilitavam uma maior ou menor inserção

na dinâmica social e econômica da época em análise. Além disso, o termo cor está intimamente

relacionado ao conceito de qualidade, pois estas categorias de distinção social estavam

associadas e eram históricas e móveis, podendo ser alteradas conforme fosse conveniente aos

355 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p.17. 356 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570.

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colonos e à própria administração colonial, como demonstrou o caso da Capitania de

Pernambuco, onde colonos mestiços foram embranquecidos oficialmente para ocuparem postos

oficiais das tropas de linha.357

Outro dado que podemos inferir observando a constituição das companhias de Matheus

Mendes Pereira e Francisco Ribeiro Garcia é concernente aos postos que os colonos mestiços

conseguiam ocupar na tropa de linha do Rio Grande. No caso da companhia de Matheus Mendes

Pereira, ela era constituída por 14 soldados, 1 cabo de esquadra, 1 alferes/tenente e 12 colonos

que não tiveram os seus postos identificados. Desses, 5 soldados foram definidos como

trigueiras e o único colono identificado como alferes/tenente era, também, mestiço, no caso,

trigueiro. Este último, nomeado como Antônio da Trindade Antunes, era filho de Francisco

Antunes Meira e tinha 16 anos de idade quando foi matriculado no serviço militar. Antônio da

Trindade foi qualificado na ocasião em se alistou no serviço militar da seguinte forma:

“espigado de corpo e seco, cara comprida, trigueiro, cabelo preto corredio, sobrancelhas

abertas, ainda sem barba, olhos pardos”.358 Ele era natural da Capitania do Rio Grande e ocupou

o posto de alferes/tenente da Fortaleza dos Reis Magos.

Quanto à companhia de Francisco Ribeiro Garcia, essa era constituída por 36 soldados,

1 tenente de cavalos, e 5 colonos que não tiveram seus postos identificados. Desses, 14 soldados

foram identificados como trigueiro, 1 como moreno e 7 como pardos. Além disso, três desses

soldados conseguiram ascender na hierarquia militar, como foi o caso de João Rodrigues de

Freitas e Antônio Baptista Espínola, que passaram ao posto de cabo de esquadra e de Manoel

da Silva de Azevedo, que passou para o posto de sargento supra. Sobre João Rodrigues de

Freitas, especificamente, como é possível observar no Quadro 8, o mesmo foi identificado na

ocasião em que se matriculou no serviço militar como trigueiro.

O militar referido acima era filho de João Rodrigues e Paiva e tinha 18 anos quando foi

matriculado no serviço militar. João Rodrigues de Freitas era natural da Capitania de

Pernambuco e recebeu baixa no ano de 1734 - após servir por cinco anos na companhia de

Francisco Ribeiro Garcia - por ter fugido. 359 Como elucidamos no segundo capítulo,

certamente, um dos elementos que pode justificar a fuga desse militar é a distância de seus

familiares, visto que era natural de Pernambuco e estava servindo no Rio Grande. Os casos de

baixa no serviço militar em decorrência de fugas foram mais recorrentes no contexto da Guerra

357 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar na Conquista do Sertão

de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. p. 176. 358 É importante salientar que, desses 14 soldados, 4 conseguiram ocupar o posto de cabo de esquadra, ou seja,

conseguiram ascender na hierarquia militar do Rio Grande. 359 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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dos Bárbaros e ocorreu, principalmente, entre índios. Posteriormente ao conflito citado, os casos

de baixa por fugas foram mais escassos.

Por fim, um aspecto evidente na administração militar do Rio Grande posteriormente à

Guerra dos Bárbaros foi a forte presença de mestiços na composição das tropas de linha da

Capitania e, além disso, uma expansão significativa das forças militares existentes no Rio

Grande, que no contexto anterior ao conflito citado estava restrito à existência de companhias

de ordenanças que atuavam nas áreas litorâneas do território do Rio Grande, como

problematizamos no capítulo primeiro. Todavia, o quadro militar do Rio Grande, que na década

de 40 do século XVIII era constituído por duas companhias pagas, 360 por 16 dezesseis

companhias de cavalaria e por 10 companhias auxiliares361 sofreu alterações no ano de 1746 no

que concerne especificamente à existência das companhias auxiliares, como passaremos a

discutir no tópico seguinte.

4.2 Quadro organizacional das Tropas Auxiliares no Rio Grande

No ano de 1744, atendendo a uma solicitação real, o capitão-mor do Rio Grande,

Francisco Xavier de Miranda Henriques, enviou para a Coroa mapas do Regimento de Cavalaria

e do Terço dos Auxiliares existentes na Capitania do Rio Grande. Nesse mapa, como já

elucidamos, a Capitania, na primeira metade do século XVIII, possuía 16 dezesseis companhias

de cavalaria e 10 companhias de milícias,362 sendo 10 companhias de cavalaria pertencentes à

Cidade do Natal, 2 à Ribeira do Seridó, 2 à Ribeira do Apodi e 2 à Ribeira do Assú. Essas

companhias de cavalaria existentes nos sertões foram instituídas pelo próprio capitão-mor, que

também foi responsável pela reorganização das milícias e das companhias de cavalaria

existentes na Cidade do Natal.

Dessa maneira, Francisco Xavier de Miranda Henriques, em carta ao rei D. João V, com

a qual ele enviou o mapa das forças auxiliares existentes no Rio Grande, justificou a criação de

companhias de milícias e de cavalaria nos sertões da seguinte forma:

[...] que toda esta capitannia he cercada de mar; e em varias partes, com

dezembardouros largos: como hé na Barra de Cunhaú, Pirangi, Potengi, Pititinga, por cujo motivo na formatura que fis do Regimento da Cavalaria e

nomeação de Auxiliares (...) da providencia depor os corpos dispersos, com

esta distinção, adonde há Cavalaria ouvesse Auxiliares; para que sucedendo alguma invasão estejão tão prontos os de pê como os de cavalo. E como os

certões, são mais afastados da costa do mar e metidos pella terra dentro; donde

360 GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. p.144. 361 Idem. 362 Idem.

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fica a Ribeira do Assu, Apody e Ciridô: em cada ribeira destas criei formei

duas companhias de cavallos, e em todos seus sargentos Mores p as reger

[...].363

Apesar do quadro organizacional das forças auxiliares arquitetado pelo capitão-mor possuir

clareza quanto à sua funcionalidade militar em caso de “invasão”, conforme a transcrição

acima, uma carta de Francisco Xavier de Miranda Henriques enviada ao rei D. João V em

1746364 demonstra que Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao instituir companhias de

cavalaria e companhias de milícias, não atendeu, de fato, à solicitação encaminhada pela Coroa,

que havia requerido apenas uma lista com o nome de todos os moradores da Capitania que

estavam matriculados nas ordenanças, com distinção daqueles que constituíam as milícias.365

Em linhas gerais, o que metrópole desejava saber era como estavam organizadas as forças

auxiliares do Rio Grande no que concerne à existência de companhias de ordenanças e milícias,

ou seja, não havia solicitado ao capitão-mor deste território que instituísse nenhuma força

militar, mas que apenas informasse como elas estavam sistematizadas.

Dessa maneira, em 1746, Francisco Xavier de Miranda Henriques encaminhou uma

carta à Coroa justificando o fato de não ter remetido uma lista com os nomes dos moradores da

Capitania que constituíam as companhias de ordenanças do Rio Grande, com distinção daqueles

que faziam parte das milícias. Nessa carta, o capitão-mor, em sua defesa, fez o seguinte

discurso:

Eu Remety os Mappas como V. Mag. Me ordenou: e assim não pode ser culpa

da obediencia o q hé asinfe da estrela; pois quer por todos os caminhos ofuscar o lustre com q sirvo a V.Mag. dizendo na minha resposta formais palavras (q

fazendosse a conta a todos os moradores que se achavão) aqui fiz resumo de

tudo matriculado na palavra (todos) logo distinguindo: que são na cavalaria oito centos e sincoenta e sinco homens e nos Auxiliares quinhentos e vinte e

sinco; vem a somar tudo junto mil trezentos e oitenta como se via dos Mappas;

porq se mais gente ouvesse alistada fora da ordenança de cavalaria e dos auxiliares nomeados mayo soma e mais Mappas remetera a Vossa Mag.366

363 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao rei [D. João V]

enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço dos Auxiliares, 1744. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6,

doc. 288. 364 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303. 365 Idem. 366 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303.

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Observando as cartas encaminhas à Coroa em 1744 e em 1746, respectivamente, é possível

perceber uma mudança no modo como o capitão-mor do Rio Grande se posicionou com relação

à forma como estavam organizadas as forças auxiliares da Capitania. Dessa forma, em 1744,

Francisco Xavier de Miranda Henriques asseverou que ele havia organizado o modo como

estavam distribuídos os militares da Capitania que faziam parte das forças auxiliares,

elucidando, inclusive, que ele próprio havia instituído tropas de cavalaria nos sertões e

justificando militarmente o porquê da existência de companhias de cavalarias e de milícias. Já

em 1746, como demonstrou a transcrição acima, o capitão-mor afirmou que fez apenas um

resumo de todos os colonos que estavam matriculados na cavalaria e nas milícias, ou seja,

isentou-se de ter instituído companhias de cavalarias nos sertões e de ter reorganizado as tropas

auxiliares da Cidade do Natal.

Em resposta à carta do Capitão-mor, a Coroa solicitou auxílio ao Governador de

Pernambuco, D. Marcos de Noronha. Dessa forma, D. João informou ao Governador de

Pernambuco como havia procedido Francisco Xavier de Miranda Henriques, que contra a sua

ordem havia mandado “assentar praça de soldado auxiliares a todas as ordenanças que não

fossem cavalo” e, dessa forma, confiado a defesa da Capitania apenas às companhias de

cavalarias e milícias. Sendo assim, pedia que o Governador de Pernambuco ordenasse “ao

Provedor da fazenda da Capitania do Rio Grande” que “mandasse dar bacha a todos os oficias

e soldados Auxiliares da mesma Capitania”, “por se lhe assentar praça contra a vontade de S.V.

M.”.367 Após essas baixas, o capitão-mor do Rio Grande deveria “formar uma Companhia de

oitenta ate cem soldados [...] procurando q sejão dos mais ricos, moços, robustos [...].”368

A Coroa era contrária a existência de apenas companhias de cavalarias e milícias, visto

que, na concepção do Reino, nas ocasiões em que as milícias precisassem guerrear em outros

territórios não ficaria nenhuma força militar de infantaria no Rio Grande, uma vez que apenas

a cavalaria estaria presente para atender aos “encargos da República”.369 A justificativa da

metrópole para esta mudança no quadro organizacional das forças auxiliares da Capitania não

residia, contudo, apenas no caráter militar dessa instituição colonial, mas também no social,

visto que Portugal estava preocupado com a multiplicação de militares que atuavam de forma

privilegiada no Ultramar, na cavalaria e nas milícias. Dessa forma, segundo a ordem régia dada

367 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303. 368 Idem. 369 Idem.

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ao Governador de Pernambuco e repassada ao capitão-mor do Rio Grande pelo mesmo, era

importante que não se “multipliquem os privilegiados de sorte q não haja quem sirva na

República; e apenas a quarta parte das ordenanças se podem privilegiar”, ou seja, era preciso

que o capitão-mor conciliasse uma minoria de colonos que poderiam atuar de forma

privilegiada, mas sem que houvesse, evidentemente, uma multiplicação desmedida de colonos

militarmente privilegiados que modificassem a estrutura social da colônia, onde a desigualdade

entre homens era parte mantenedora da ordem social que estava posta.

É importante observar essa preocupação da Coroa com a “multiplicação de privilégios”

entre os membros das forças auxiliares porque isso remete ao papel que as instituições coloniais

possuíam no Estado do Brasil, onde serviam para atender tanto aos interesses da Coroa quanto

aos interesses da elite local que havia se instituído. Nesse sentido, segundo a historiadora

Christiane Figueiredo Pagano de Mello, “não podemos considerar os Corpos militares como

simples correias de transmissão dos ditames centrais e nem tampouco como forças autônomas

e autossuficientes. Os Corpos militares eram um lugar de negociação dos interesses de ambas

as partes”.370

Nesse sentido, a preocupação da Coroa com a multiplicação dos “privilegiados”,

certamente, reside exatamente em seu desejo de manter sob seu controle essa elite existente no

Estado do Brasil e que ocupava postos importantes na hierarquia militar da colônia. Além disso,

o fato da Coroa recorrer a Pernambuco para resolver a situação militar do Rio Grande,

provavelmente, se deve ao estabelecimento dessa relação administrativa negociada,371visto que,

nesse contexto, o Rio Grande já era subordinado administrativamente a Pernambuco e, portanto,

cabia também a este governo a resolução das “irregularidades” administrativas existentes nessa

Capitania.

Essa relação negociada entre a Coroa e o Ultramar, conforme Mello, passou por

mudanças ao longo da segunda metade do século XVIII. De acordo com essa historiadora, após

a Guerra de Restauração foi implementado um conjunto de medidas em Portugal que visavam

fortalecer o poder monárquico tanto em Portugal quanto no Ultramar. Dessa forma, no governo

de D. João V foi efetuado um conjunto de mudanças na legislação militar que objetivavam

reduzir o poder das Câmaras Municipais na colônia e fortalecer o poder militar, o que demonstra

370 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colonial: Corpos de Auxiliares e de

Ordenanças na segunda metade do Século XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. p. 13-14. 371 Acerca dessa relação negociada entre a Coroa e o Ultramar ver os estudos de Hespanha, A. Manuel, “A

Constituição do Império Português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, Fernanda; GOUVÊA, Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial

Portuguesa (séculos XVI-XVIII).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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uma clara preocupação da Coroa com a defesa dos territórios ultramarinos e com o controle das

elites locais que ocupavam postos de governança nas Câmaras Municipais.372

Nesse sentido, a preocupação da Coroa com o modo como estava organizado o quadro

militar das forças auxiliares na Capitania do Rio Grande, bem como com a multiplicação de

postos de cavalaria, compreendidos como “postos privilegiados” insere-se em um quadro mais

amplo de reformas administrativas que foram implementadas tanto no Reino quanto em sua

colônia na América e que objetivam uma maior centralização das instituições civis e militares.

Sendo assim, uma das medidas tomadas pela Coroa para reduzir o poder das Câmaras

Municipais no Ultramar foi a Lei de 1749, que já havia sido antecedida, por exemplo, pelo

Alvará de 1709. Essa Lei, assim como o Alvará de 1709, alteravam o Regimento das

Ordenanças de 1570, que citamos no capítulo primeiro e que era responsável por normatizar o

funcionamento dessa força auxiliar no Reino e na Colônia.

Nessa Perspectiva, o Alvará de 1709, alterou o modo como ocorriam as eleições para a

ocupação dos postos de capitães-mores das ordenanças, sargentos-mores e capitães de

companhias e demais oficiais das ordenanças. Dessa forma, anteriormente ao Alvará de 1709,

segundo o Regimento de 1570, era uma atribuição das Câmaras Municipais as eleições para

escolha dos colonos que deveriam ocupar os postos de comando das ordenanças, como

demonstra a citação abaixo:

Nas Cidades, Vilas e Concelhos onde forem presentes os Senhores dos

mesmos Lugares, ou Alcaides-Mores, eles por este Regimento, sem mais outra Provisão minha, servirão de Capitães-Mores da gente dos tais lugares, não

provendo Eu outra pessoa que haja de servir os ditos cargos. E a eleição dos

Capitães das Companhias, Alferes, Sargentos e mais Oficiais delas, se fará em

Câmara pelos Oficiais dela e pessoas que costumam andar na Governança dos tais lugares, sendo a isso presentes os ditos Capitães-Mores. E nas ditas

Câmaras será dado juramento dos Santos Evangelhos aos Sargentos-Mores e

aos Capitães das Companhias, Alferes, Sargentos e mais Oficiais delas que sirvam os ditos cargos bem e como cumpre a meu serviço, de que se farão

assentos nos livros da Câmara, assinados pelos ditos Oficiais.373

A Coroa, preocupada com as irregularidades praticadas pelos governos municipais, considerou

importante alterar o modo como estavam ocorrendo as eleições para a escolha dos oficiais das

companhias de ordenanças. Entretanto, no Alvará de 1709 Portugal não tinha por finalidade

372 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colonial: Corpos de Auxiliares e de

Ordenanças na segunda metade do Século XVIII. p. 50. 373 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V, Lisboa, 1570. P. 183.

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“dissipar das Camaras a jurisdiçaõ que tinhaõ em se fazerem nellas as taes eleições”, mas apenas

reduzir o poder que esta instituição possuía na escolha dos ocupantes dos postos das ordenanças,

visto que considerava preocupante o modo como estavam ocorrendo as ditas eleições no

Ultramar, como demonstra um trecho do Alvará, transcrito abaixo:

achando-se a maior parte dos Concelhos divididos em parcialidades com grande escandalo da Justiça e perturbação do bom governo, desejando Eu

evitar este damno, e que em meus vassalos haja toda a uniaõ, e que sejaõ

governados por pessoas dignas de ocupar os postos militares e naõ por aquellas que com maior poder, e sequito, sem merecimento, ou capacidade os

ursupaõ para suas vinganças: Hei por bem extinguir as ditas eleições dos

postos das Milicias [...].374

O modo como a Coroa procedeu, não retirando da Câmara a incumbência de organizar as

eleições para a ocupação dos postos de ordenanças, demonstra uma tentativa de centralização

do poder monárquico que não tentou reduziu por completo o poder atribuído às elites locais,

mas apenas manter esse poder sob vigilância e controle. Dessa forma, com o Alvará de 1709,

as eleições para os postos de capitães-mores e demais oficiais das ordenanças deveria ocorrer

da seguinte forma:

Quero, e mando que nas Cidades, Villas, e Concelhos destes meus Reinos, em

que estiverem vagos, ou vagarem os postos de Capitaes móres, Sargentos

móres, e Capitães das Companhias da Ordenança delas, se guarde a forma

seguinte: Estando vago, ou vagando o posto de Capitaõ mór de qualquer Cidade, Villa, ou Conselho, em que não assistaõ os Senhores delles, ou os

Alcaides móres, faraõ os Officiaes da Camera dele aviso ao Corregedor, ou

Provedor da Comarca, qual se achar mais visinho, o qual será obrigado a ir à dita Camera, e com os Officiaes dela faraõ entre si com toda attençaõ, e zelo,

escolha de três pessoas da melhor nobreza, chistandade, e desinteresse, do

limite do mesmo Conselho, Villa, ou Cidade, e com individuação das circunstancias, e acceitaçaõ, que concorrem em cada huma das ditas pessoas,

faraõ huma informação ao General, ou Cabo que governa as Armas da

Provincia, a qual assignaraõ o Corregedor, ou Provedor que assistir, e os

Officiaes da Camera, e o General, ou Cabo tomando as informações necessárias, me proporá pelo meu Concelho de Guerra as pessoas, que julgar

mais convenientes para ocupar o dito posto, vindo porém incorporada na

proposta, que me fizer, a informação, que os Officiaes da Camera com o Corregedor, ou Provedor he houverem feito. E para os Provimentos dos postos

de Sargentos móres, e Capitães das Companhias, se guardará a mesma fórma;

com a diferença, que a conferencia, que a Camara há de fazer para Capitaõ

mor com o Corregedor, ou Provedor da Comarca, como fica dito, será para estes postos feita pelos Officiaes da Camera com o Alcaide mór, Donatario,

ou Capitaõ mór, e na falta destes com o Sargento mór da Comarca, naõ se

374 Lei em que se declara a forma, em como daqui por diante se haõ de fazer as Eleições para Capitães móres, e

dos mais officiaes da Ordenánça, 18 de outubro de 1709. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1709. p.202-203.

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fazendo nunca a escolha, e informação de pessoas de fora do destricto das

mesmas Cidades, Villas ou Conselhos em que vagar qualquer dos ditos [...].375

Esse processo de centralização da administração ultramarina ocorreu ao longo de todo o século

XVIII e, conforme Mello, vivenciou o seu apogeu no reinado de D. José I, contexto em que foi

implementado um conjunto de medidas que tinham como finalidade a reorganização das

Câmaras Municipais na colônia. 376 Ademais, as mudanças em questão engendraram uma

política de valorização das forças militares auxiliares, manifesta, por exemplo, no poder

atribuído aos capitães-mores com a Lei de 1749, a qual possibilitou que estes militares

passassem a ocupar seus postos de forma vitalícia e com poder para escolher os seus sargentos-

mores e capitães de companhia sem nenhuma interferência dos governos municipais.377

Nesse sentido, um documento datado de 1750, na Capitania do Rio Grande, demonstra

essa autonomia dada aos capitães-mores do Estado do Brasil no que concerne à possibilidade

de escolha dos oficiais que deveriam constituir as companhias de ordenanças do Ultramar. Esse

documento se refere a um requerimento de João Baptista Pereira, que em 1750 solicitou ao rei

de Portugal, D. José I, a confirmação de sua carta patente para o posto de capitão de uma

companhia de infantaria das ordenanças de pé pertencente à Cidade do Natal, a qual havia sido

dada pelo capitão-mor do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques.378 Dessa forma,

é perceptível que a distribuição de patentes militares na colônia, a partir de 1749, ficou

condicionada a uma escolha efetivada pelo capitão-mor e dependente de autorização real, sem

nenhuma interferência dos governos municipais. Na carta patente concedida, os capitães-mores

deveriam demonstrar que os colonos escolhidos para ocupar os postos oficiais das ordenanças

gozavam de “nobreza, merecimento e experiência da disciplina militar”,379 ou seja, a qualidade

do militar em questão juntamente com a sua experiência militar nesse contexto de tentativa de

profissionalização e fortalecimento das forças auxiliares deveriam ser os critérios considerados

pelos capitães-mores na ocasião da escolha dos oficiais das ordenanças.

Certamente, a companhia de ordenança de pé da Cidade do Natal, citada em 1750 na

ocasião em que João Baptista Pereira solicitou confirmação da carta patente recebida, havia

375 Lei em que se declara a forma, em como daqui por diante se haõ de fazer as Eleições para Capitães móres, e dos mais officiaes da Ordenánça, 18 de outubro de 1709. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1709. p.202-203. 376 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colonial: Corpos de Auxiliares e de

Ordenanças na segunda metade do Século XVIII. p. 56. 377 Ibid., p.75. 378 REQUERIMENTO de João Baptista Pereira ao rei [D. José] pedindo confirmação da carta patente do posto de

capitão de infantaria das Ordenanças de Pé do Regimento da cidade do Natal, passada pelo capitão-mor Francisco

Xavier de Miranda Henriques. Anexo: carta patente, 1750. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 12. 379 Idem.

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sido instituída recentemente, visto que, de acordo com Francisco Xavier de Miranda Henriques,

até o ano de 1746, existiam na Capitania do Rio Grande apenas companhias de cavalaria e de

milícias. Provavelmente, como examinamos acima, essa companhia de infantaria foi instituída

em resposta à ordem régia de 1746, que solicitou a destituição das companhias de milícia e a

criação de companhias de ordenanças de pé.380

Além da patente concedida a João Baptista Pereira, o capitão-mor do Rio Grande, em

1751, concedeu mais três patentes a oficiais de ordenanças, o que significa afirmar que o mesmo

instituiu, de fato, outras companhias de ordenanças de pé na Capitania, como havia sido

solicitado pela Coroa. Dessa maneira, em 1751, Francisco Xavier de Miranda Henriques proveu

a Manuel Coelho Serrão no posto de capitão de infantaria das ordenanças da Ribeira do

Potengi.381 No mesmo ano, Gaspar de Paiva Baracho, pediu confirmação da patente de capitão

de infantaria das ordenanças da Ribeira de Goianinha382 e, por fim, Antônio de Paiva da Rocha

solicitou confirmação real da patente de capitão de infantaria das ordenanças da Ribeira de

Mipibu, concedida também por Francisco Xavier de Miranda Henriques.383

Conforme foi elucidado no capítulo primeiro, as Ribeiras do Potengi, Mipibu e

Goianinha possuíam companhias de ordenanças desde o século XVII. 384 Dessa maneira,

Francisco Xavier de Miranda Henriques provavelmente substituiu “todas as ordenanças que

não fossem cavalo” por “soldado auxiliares”, como informou o rei D. João ao Governador de

Pernambuco em 1746 ao solicitar que o mesmo ordenasse que o Provedor do Rio Grande

destituísse essas companhias de auxiliares e, após dar baixa, fizesse com que o capitão-mor

formasse outras companhias de ordenanças que não fossem a cavalaria, mas sim de pé.385

380 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V] sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303. 381 CARTA PATENTE do [capitão-mor do Rio Grande do Norte] Francisco Xavier de Miranda Henriques,

provendo Manuel Coelho Serrão no posto de capitão de infantaria das Ordenanças do Regimento da Ribeira do

Potengi de que é Coronel Teodósio Ferreira de Amorim, 1751. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 4. 382 REQUERIMENTO de Gaspar de Paiva Baracho ao rei [D. José] pedindo confirmação de carta patente do posto

de capitão de infantaria das Ordenanças da Ribeira da Goianinha do regimento de que é coronel Teodósio Ferreira

de Amorim, passada pelo capitão-mor Francisco Xavier de Miranda Henriques. Anexo: carta patente; carta do

capitão-mor Pedro de Albuquerque e Melo; provisão (cópia), 1751. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 10. 383 REQUERIMENTO do sargento-mor Antônio de Paiva da Rocha ao rei [D. José] pedindo confirmação da carta patente do posto de capitão de infantaria das Ordenanças da Ribeira de Mopebu de que é coronel Teodósio de

Ferreira de Amorim, passada pelo capitão-mor Francisco Xavier de Miranda Henriques. Anexo: carta patente,

carta do capitão-mor e provisões (2, cópias), 1751. AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 358. 384 Patentes e Provisões. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v.

XII,1668-1677. 385 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303.

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162

Entretanto, até o momento, não encontramos documentos que aludam à destituição

dessas companhias auxiliares e demonstrem como esse processo ocorreu. Informações precisas

acerca do quadro organizacional das forças auxiliares do Rio Grande foram localizadas na

documentação consultada apenas para fins do século XVIII e para os primeiros anos do século

XIX.

Dessa forma, em fins do século XVIII, mais precisamente no ano de 1795, deparamo-

nos com um Ofício do sargento-mor do Rio Grande, Caetano da Silva Sanches, enviado para o

secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, acerca do estado

econômico, social e militar da Capitania no contexto em que passou a ocupar o posto de

sargento-mor. Nesse sentido, de acordo com esta fonte, em 1795 existiam no Rio Grande os

seguintes corpos militares.386

Quadro 12 – Corpos militares existentes na Capitania do Rio Grande, 1795

Regimento da

Cavalaria do

Natal do Coronel

Francisco da

Costa Vasconcelos

Regimento da

Cavalaria da

Divisão do Sul do

Coronel André

de Albuquerque

Maranhão

Terço Auxiliar da

Cidade do Natal

do Mestre de

Campo Francisco

Machado de

Oliveira

Regimento de

Cavalaria da Vila

da Princesa

Coronel Manoel

José de Faria

Companhia de

Infantaria

Paga da

Cidade do

Natal do

Capitão José

Barbosa

Gouvêa

Oficiais de

Patentes: Coronel (1)

Tenente-Coronel

(1)

Capitães (6)

Tenentes (9)

Alferes (9)

Oficiais de

Patentes:

Coronel (1)

Tenente-Coronel

(1)

Sargento-Major

(1)

Capitães (7)

Tenentes (6)

Alferes (10)

Oficiais Patentes: Mestre de Campo

(1)

Capitães (9)

Alferes (10)

Oficiais de

Patentes:

Coronel (1)

Tenente-Coronel (1)

Sargento-Major (1)

Capitães (4)

Tenentes (8)

Alferes (12)

Oficiais de

Patentes:

Capitão (1)

Tenente (1)

Alferes (1)

Sargento (1)

Oficiais Inferiores: Furriéis (9)

Cabo-de-esquadra (28)

Oficiais

Inferiores:

Furriéis (10)

Oficiais Inferiores

Sargentos (20)

Cabos (37)

Oficiais Inferiores:

Furriéis (11)

Cabo-de-esquadra (48)

Oficiais

Inferiores:

Furriel (1) Cabos (3)

386 Para fins do século XVIII, além dos corpos militares, possuímos informações acerca do armamento existente

na Fortaleza dos Reis Magos. Nesse contexto, existia na Fortaleza, dentre outros armamentos, 88 espingardas, 88

baionetas e 2 caixas de guerra. Segundo Caetano da Silva Sanches, Sargento Major e Governador do Rio Grande,

este armamento que existia na Fortaleza era “inutil, e incapas de serviço por estar todo quebrado”. OFÍCIO do sargento-mor e governador interino do Rio Grande do Norte Caetano da Silva Sanches, ao secretário de estado da

Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro, sobre o estado da Capitania à data da sua posse; epidemia de

bexigas; escassez de carne, farinha e peixe; falta de militares e armamento; dando conta das providências tomadas,

nomeadamente a arrematação do contrato das carnes e queixando-se da falta de jurisdição e autoridade para prover

oficiais de justiça e fazenda e passar patentes e cartas de sesmaria. Anexo: atestação dos oficiais da Câmara de

Natal, mapa do rendimento dos contratos dos dízimos, mapa dos corpos auxiliares e companhias de infantaria,

mapa do armamento da Fortaleza dos Reis Magos e provisão (cópia), 1806. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc.

483.

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163

Regimento da

Cavalaria do

Natal do Coronel

Francisco da

Costa Vasconcelos

Regimento da

Cavalaria da

Divisão do Sul do

Coronel André

de Albuquerque

Maranhão

Terço Auxiliar da

Cidade do Natal

do Mestre de

Campo Francisco

Machado de

Oliveira

Regimento de

Cavalaria da Vila

da Princesa

Coronel Manoel

José de Faria

Companhia de

Infantaria

Paga da

Cidade do

Natal do

Capitão José

Barbosa

Gouvêa

Cabo-de-esquadra

(39)

Oficiais sem

patentes: Trombetas (1)

Tambores (10)

Ajudante (1)

Furriel mor (1)

Soldados (386)

Oficiais sem

patentes: Tambores (2)

Ajudante (1)

Furriel mor (1)

Soldados (345)

Oficiais sem

patentes: Tambores (9)

Sargento-mor (1)

Ajudante (1)

Furriel-mor (1)

Capitão de

Companhia (1)

Soldados (372)

Oficiais sem

patentes: Tambores (10)

Ajudante (1)

Furriel mor (1)

Soldados (372)

Oficiais sem

patentes: Tambores (2)

Aspençadas (5)

Soldados (72)

Total da Gente de

Guerra: 462

Total da Gente de

Guerra: 424

Total da Gente de

Guerra: 442

Total da Gente de

Guerra: 470

Total da Gente

de Guerra: 87

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em OFÍCIO do sargento-mor e governador interino do Rio

Grande do Norte, Caetano da Silva Sanches, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e

Castro. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 483.

Observando o quadro anterior, é possível perceber que o sargento-mor não citou a existência

de companhias de ordenanças de infantaria, mas apenas de cavalaria, de auxiliares e uma tropa

paga, atuante na Cidade do Natal. Nesse sentido, acreditamos que essa omissão pode ter

ocorrido por não ser o intento do sargento-mor oferecer à Coroa um mapa específico de todas

as forças militares existentes no Rio Grande. Ademais, questionamo-nos se as companhias de

ordenanças de pé não seriam algo que já estaria, de certa forma, subtendido, visto que todos os

moradores de uma localidade colonial deveriam defender militarmente o território a que

pertenciam, sendo divididos conforme suas qualidades e a posse de cavalos e armamentos. Por

fim, outro elemento que pode ter justificado essa ausência é o fato de ser uma atribuição do

capitão-mor a contagem dos moradores aptos a servirem nas companhias de ordenanças, bem

como a construção dos mapas acerca do quadro organizacional das capitanias em que atuam.

Dessa forma, o sargento-mor citado ofereceu apenas um quadro geral acerca do efetivo militar

do Rio Grande que foi enviado em consonância com as dificuldades localizadas no âmbito

econômico e social da Capitania.

Outro dado importante que podemos perceber observando o quadro acima é que, apesar

das determinações reais que solicitavam a destituição das companhias de milícia à

administração militar do Rio Grande no ano de 1746,387 em 1795 encontramos um número

387 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

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164

semelhante de colonos que constituíam essa força militar. Além disso, as companhias de

cavalaria tiveram um aumento significativo no número de colonos que formavam esse corpo

militar. Dessa maneira, é possível que as determinações da Coroa não tenham sido cumpridas

de forma efetiva.

Nessa perspectiva, se em 1746 existiam na Capitania 855 homens pertencentes à

cavalaria 388 e 525 às milícias, 389 que somavam o total de 1.380 homens de guerra, em 1795

existiam 1.356 colonos apenas na cavalaria e 442 nas companhias de milícias, que somavam o

total de 1.798, ou seja, houve um aumento significativo na quantidade de praças e oficiais que

atuavam nas companhias auxiliares da Capitania. Esse aumento ocorreu, de forma efetiva,

apenas nas companhias de cavalaria, visto que nas companhias de milícia houve uma redução

de 83 militares. Sendo assim, é possível que a determinação de D. João V, solicitando que não

houvesse a distribuição de forma desmedida de postos que implicavam em privilégios nas

ordenanças, não tenha sido cumprida de forma efetiva, o que demonstra que, apesar das

tentativas de centralização da administração ultramarina ocorrida ao longo do século XVIII, a

relação corporativa existente entre Portugal e o Estado do Brasil, onde os interesses das elites

locais também eram considerados, permaneceu. Todavia, houve um controle maior da Coroa

sob os seus representantes na colônia nesse contexto, aspecto materializado, por exemplo, pelas

medidas implementadas no processo de provimento de cargos militares das ordenanças com a

Lei de 1749, que passaram a ser efetivadas por uma relação direta entre a administração militar

e a Coroa, sem a interferência dos governos municipais, como costumava a ocorrer de acordo

com o Regimento Geral das Ordenanças, de 1570.390

O fato é que, considerando o quadro militar da Capitania em 1744 e comparando-o ao

efetivo de 1795, é possível perceber que ao longo do século XVIII as forças militares

auxiliares391 do Rio Grande sofreram alterações em sua constituição, seja através da instituição

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc.

303. 388 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao rei [D. João V]

enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço dos Auxiliares, 1744. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6,

doc. 288. 389 Idem. 390 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Op cit. p.75. 391 É importante destacar que em 1766 a legislação militar do Estado do Brasil, no que concerne especificamente

à organização das forças auxiliares, passou por uma mudança significativa. Em 22 de março desse ano, a Carta

Régia do rei Dom José I enviada aos capitães-generais do Estado do Brasil, segundo o historiador Francis Cotta,

pode ser considerado um marco significativo no processo de institucionalização das forças auxiliares de negros e

mestiços, visto que, de acordo com esse documento, o Reino permitia que fosse alistado no serviço militar auxiliar

todos os moradores das jurisdições coloniais, “sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos, ingênuos

e libertos”, ou seja, sem distinções de qualidade e condição. Desse modo, de acordo com o autor citado, na segunda

metade do setecentos, esse documento passou a ser referendado pelos capitães-generais para justificarem a criação

de corpos militares de negros e mestiços, permitindo, dessa maneira, a inserção de homens de qualidade mestiça e

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165

de companhias de infantaria ou por meio do ingresso de novos colonos nas companhias de

ordenanças de cavalo. Entretanto, um elemento comum ao longo desse contexto foi a

insuficiência de companhias de ordenanças de pé.

Dessa maneira, se em 1746 D. João reclamava da inexistência de companhias de

ordenanças de pé,392 em 1806 o capitão-mor do Rio Grande, José Francisco de Paula Cavalcante

de Albuquerque, em carta enviada ao príncipe regente, D. João, criticava o modo como estavam

distribuídas as companhias de ordenanças de pé, visto que ainda existiam territórios na

Capitania que eram desprovidos da presença dessa força militar.393

De acordo com José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, o problema do

quadro organizacional das forças auxiliares do Rio Grande estava no modo como as companhias

de ordenanças estavam distribuídas, visto que, como demonstra a transcrição abaixo, existiam

territórios que ainda não possuíam nenhuma companhia de ordenança, enquanto outros eram

providos de até três companhias:

A Capitania Mor da Cidade de Natal, que tem então anexas incompetentemente duas Vilas, tem duas Companhias de Ordenanças no seu

Termo, A Vila de São José, uma das anexas, tem três Companhias, e a de

Extremoz, que é a segunda, não tem alguma Companhia, cuja irregularidade,

é causa de não irem classificadas nas suas respectivas Capitanias Mores.394

Dessa maneira, na concepção de José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque,

existia uma necessidade real de se reorganizar as forças militares auxiliares da Capitania. Para

tanto, conforme este capitão-mor, era preciso instituir novas companhias de ordenanças nos

territórios que estavam desprotegidos dessa força militar e subdividir as companhias já

negra no serviço militar auxiliar do Estado do Brasil de forma institucionalizada. Portanto, essa Carta Régia é de

extrema importância para compreensão da existência de milícias institucionalizadas de negros e pardos na colônia.

Por fim, esse documento, além de formalizar o ingresso de colonos mestiços e negros no serviço militar do contexto

colonial, atendia aos anseios da Coroa de reforçar os efetivos militares existentes no Estado do Brasil em

decorrência dos conflitos com os espanhóis ao sul desse território colonial. Sobre a Carta Régia de 1766 consultar

os estudos do historiador Francis Cotta. COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América

Portuguesa. p. 65-67. 392 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei [D. João V]

sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos moradores e mapa das ordenanças.

Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, 1746. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 303. 393 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao

príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos

que necessitam de novas companhias de ordenanças. Anexo: 2ª via; provisão (cópia); “mapa da população da

Capitania do Rio Grande do Norte, com declaração dos seus empregos, militares e civis, e capitães-mor e

ordenanças das respectivas vilas e freguesias, tanto brancos como índios, até 31 de Dezembro de 1805” e “relação

dos distritos, que necessitam novas companhias de ordenanças na Capitania do Rio Grande do Norte, com

declaração das vilas a que pertencem”. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623. 394 Idem.

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166

existentes para que, dessa forma, todos os territórios do Rio Grande pudessem gozar de proteção

militar, tanto das companhias de ordenanças de pé quanto das companhias de cavalaria. Sendo

assim, para este militar, o quadro organizacional das companhias de ordenanças do Rio Grande

deveria passar pelas seguintes alterações:

Necessidade de criarem-se oito companhias de Ordenanças de pé no Termo da vila de Portalegre (onde não há alguma); Sete no termo da vila de Extremoz

(onde também não se há); As dos demais termos devem serem subdivididas: ‘q’

se aumente huma na Villa do Principe; três na Villa da Princesa; três em Villa Flor; duas em Villa de Ares; quatro nesta Cidade; e três na Villa de Sao Jose,

cujas as indagações pessoalmente fis, na occazião em q girei touda a

capitania.395

Portanto, a necessidade de se criarem novas companhias de ordenanças e de se reorganizar as

companhias já existentes era algo que estava posto desde o século XVIII, o que demonstra como

a emergência de instituições coloniais e a organização das mesmas ocorria de forma processual.

Na Capitania do Rio Grande, apenas posteriormente à Guerra dos Bárbaros conseguimos

constatar um avanço no processo de criação e expansão das forças auxiliares, que, ao longo do

século XVIII e nos anos iniciais do século XIX, passaram por diferentes mudanças em sua

constituição. Nesse sentido, o quadro organizacional das ordenanças, no início do século XIX,

era constituído pela existência de 31 companhias, divididas entre a Cidade do Natal e as Vilas

de São José, Extremoz, Ares, Flor, Príncipe, Portalegre, Princesa e São José, como demonstra

o quadro abaixo:

Quadro 13 – Companhias de ordenanças existentes na Capitania do Rio Grande, 1806

Cidades e Vilas Corpos de Ordenanças existentes

Cidade do Natal 2 Companhias de Ordenanças

Vila de São José 3 Companhias de Ordenanças

Extremoz Não possuí Companhias de Ordenanças

Vila de Arez 4 Companhias de Ordenanças

Vila Flor 3 Companhias de Ordenanças

Vila do Príncipe 3 Companhias de Ordenança de pé e 8 de

Ordenança de Montaria de Cavalo

Vila de Portalegre Não possui Companhia de Ordenança de Pé e

possui 8 companhias de cavalaria

395 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao

príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos

que necessitam de novas companhias de ordenanças. Anexo: 2ª via; provisão (cópia); “mapa da população da

Capitania do Rio Grande do Norte, com declaração dos seus empregos, militares e civis, e capitães-mor e

ordenanças das respectivas vilas e freguesias, tanto brancos como índios, até 31 de Dezembro de 1805” e “relação

dos distritos, que necessitam novas companhias de ordenanças na Capitania do Rio Grande do Norte, com

declaração das vilas a que pertencem”. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623.

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Cidades e Vilas Corpos de Ordenanças existentes

Vila da Princesa 3 Companhias de Ordenanças

São José 5 Companhias de Ordenanças

Total: 31 Companhias de Ordenanças

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na descrição do capitão-mor do Rio Grande, José Francisco de

Paula Cavalcante de Albuquerque, 1806. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623.

Entretanto, de acordo com José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, esse

quadro militar não era o ideal para a manutenção da defesa da Capitania, visto que existiam

espaços desprovidos da existência de companhias de ordenanças de pé, como salientamos

acima. Desse modo, conforme este capitão-mor, era preciso instituir 31 novas companhias de

ordenanças no Rio Grande, priorizando, evidentemente, os territórios que não possuíam

nenhuma força de ordenança de pé, como era o caso de Extremoz e a Vila de Portalegre. No

quadro abaixo elucidamos quais territórios precisavam de novas companhias de ordenanças e

como estas deviam distribuídas:

Quadro 14 – Territórios que necessitam de companhias de ordenanças na Capitania do Rio Grande, 1806

Cidades e Vilas Corpos de Ordenanças existentes

Cidade do Natal 4 Companhias de Ordenanças

Vila de São José 3 Companhias de Ordenanças

Extremoz 7 Companhias de Ordenanças de Pé

Vila de Arez 2 Companhias de Ordenanças

Vila Flor 3 Companhias de Ordenanças

Vila do Príncipe 1 Companhias de Ordenança

Vila de Portalegre 8 Companhias de Ordenança de Pé

Vila da Princesa 3 Companhias de Ordenanças

São José 3 Companhias de Ordenanças

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base na descrição do Capitão-mor do Rio Grande, José Francisco de

Paula Cavalcante de Albuquerque, 1806.

AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623.

O que não fica claro na disposição militar arquitetada pelo capitão-mor é se todas as companhias

que deveriam ser instituídas eram de ordenanças de pé, visto que apenas na Vila de Portalegre

e de Extremoz ele especificou que tipo de companhia deveria ser criada. Outro dado que não

fica evidente é se as companhias já existentes eram todas de ordenança de pé. Assim, o que esse

documento demonstra de forma efetiva é a necessidade de se reorganizar o quadro de forças

auxiliares, mais especificamente o de ordenanças. Para tanto, o capitão-mor enviou, inclusive,

um mapa da população existente em cada vila e cidade da Capitania. Esse mapa também

continha as qualidades e ofícios exercidos pelos moradores dessas localidades, o que demonstra

que o capitão-mor conhecia o modo como estava organizado socialmente, militarmente e

economicamente o Rio Grande.

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É interessante destacar que as vilas de São José, Portalegre, Extremoz, Arez e Vila Flor

correspondiam na ocasião em análise a vilas indígenas que foram instituídas na Capitania do

Rio Grande a partir do ano de 1760. Elas atendiam às determinações presentes no Diretório

Pombalino, que passou a regular na segunda metade do setecentos o modo de viver das

populações indígenas existentes no Estado do Brasil.396

Como salientamos no capítulo anterior, apesar de não termos nos deparado com assentos

de praça de índios após a Guerra dos Bárbaros na documentação que tivemos acesso, essa

população, na prática, permaneceu fazendo parte das forças auxiliares existentes no espaço em

estudo. Dessa maneira, o que diferencia a população indígena militar atuante no contexto da

Guerra dos Bárbaros da população indígena existente na segunda metade do setecentos é o fato

de termos localizado matrículas e dispensas de índios entre os anos de 1698 a 1725 em uma

força militar paga – Terço dos Paulistas. Todavia, é importante reafirmar que os índios que

atuaram no terço citado e receberam soldo não obtiveram o mesmo tratamento que os demais

militares que constituíram essa força de guerra, visto que, mesmo os índios (33, 82%) sendo

quantitativamente superiores ao número de colonos mestiços (16, 67%) e brancos (7,49%), eles

recebiam pelos seus serviços apenas meio soldo e na prática não conseguiram ocupar

efetivamente postos oficiais, como já elucidamos, também, no capítulo anterior.397

Nessa perspectiva, é importante salientar que, mesmo quando a legislação instituída para

o Ultramar assegurava o ingresso de índios nas instituições civis e militares da colônia, isso não

significava que essa população conseguisse se inserir, de fato, na dinâmica administrativa da

colônia. Um documento que evidencia essa dificuldade encontrada pelas populações indígenas

de se inserirem nas instituições administrativas do Rio Grande é uma carta enviada pelo capitão-

mor dessa Capitania, José Francisco de Paula Cavalcanti Albuquerque, à Coroa. Nesse

documento, datado de 1806, José Francisco de Paula Cavalcanti Albuquerque afirmou que

mesmo que o Alvará de 7 de junho de 1755 tenha assegurado a presença de índios nas Câmaras

Municipais era interessante que essa determinação real não fosse cumprida plenamente em

decorrência da falta de educação e da má fé que essas populações possuíam:

Tendo huma das Ordens de V.A.R., quando tracta dos Indios das Capitanias do

Brasil no Alvará de Sete de Junho de mil setecentos e concoenta, e conco, q’ elles

396 Segundo Fátima Lopes, apesar de ter sido oficialmente extinto no final do século XVIII, o Diretório Pombalino

continuou vigorando na Capitania de Pernambuco e suas anexas até as primeiras décadas do século XIX. Portanto,

é com base na análise dessa historiadora que em sua tese de doutorado examinou o processo de institucionalização

das vilas de índios no Rio Grande que asseveramos que as vilas de São José, Portalegre, Extremoz, Arez e Vila

Flor correspondiam, em 1805, a vilas indígenas. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de

índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. p.397. 397 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1698 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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sejaõ contemplados nas Camaras em Vereadores, e em Juizes afim de p’ esse meio

se (...), tenho observado, q’ não só se não vira o fructo desejado p’ esse meio, mas

encontraraõ-se infinitas irregularidades, e indecencias a aqueles empregos, tanto

pello atrazamento em q’ estao os Indios ditos p’ falta de educaçaõ como p^ lhes

ser proprio o deboxe e a má fe, p^ tanto julgo me na necessidade de reprezentar a

V. A. R., q^a benefico dos povos, e decoro a justica, haja de dedeterminar aos

Corregedores desta Comarca naõ admittaõ p.ª o lugar de Juiz a Indio algum das

Villas deste Termo, podendo, sem ser contemplado hum dos das sobreditas p.{

veriador, havendo com este mesmo (...) escolha.398

Somado a isso, a historiadora Fátima Lopes, ao examinar as disposições presentes no

Diretório Pombalino e sua aplicabilidade na Capitania do Rio Grande, afirmou que a indicação

e a nomeação de indígenas para a ocupação dos postos oficiais das companhias de ordenanças

nem sempre recaía sobre aqueles que eram designados como os “Principais tradicionais”, como

preconizava o Diretório. Em muitas ocasiões, a escolha dos índios para ocuparem os postos

oficiais das ordenanças, como o de capitão-mor, recaía sobre aqueles que se mostrassem mais

abertos a concordarem com as determinações e interesses do governo colonial. Dessa forma, na

concepção da autora, as disposições presentes no Diretório Pombalino e o modo como eram

aplicados na prática funcionavam como mecanismos de controle do modo de viver desses índios

vilados em prol dos interesses coloniais.399

Ademais, o Diretório buscava inserir os índios que ingressassem nos postos de comando

das ordenanças em uma política de diferenciação social, onde aqueles que ocupassem postos

que implicassem na posse de patentes obtivessem um tratamento diferenciado, sendo, dessa

forma, enobrecidos pelo caráter do posto militar ocupado. Esse enobrecimento não era

monetário, visto que as ordenanças não constituíam um corpo regular, mas sim social, o que,

para a autora citada, era uma forma de inserir o índio na dinâmica social da colônia, onde os

homens eram naturalmente tratados de forma individual e desigual, em consonância com a

posse de cabedal, com o posto que ocupava e com a qualidade que possuía. Portanto, tratava-

se de uma política que intentava romper com a ideia de coletividade existente entre os índios,

o que nem sempre acontecia, uma vez que, em algumas ocasiões, “os índios, através de seus

representantes – Oficiais das Ordenanças e das Câmaras – conseguiam que suas queixas fossem

ouvidas e atendidas”, 400 como demonstra o caso em que os índios da Vila de São José

398 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao

príncipe regente [D. João] sobre as ordens para que os índios sejam contemplados nas comarcas com cargos de

vereadores e de juízes. Anexo: 2ª via, 1806. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 30. 399 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório

Pombalino no século XVIII. p.278. 400 Ibid., p.462.

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170

conseguiram que as suas queixas acerca do comportamento do Diretor dessa vila fossem

ouvidas e esse fosse destituído do cargo que ocupava.401

Infelizmente, José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque não informou quantas

companhias de índios existiam nas vilas de São José, Portalegre, Extremoz, Arez e Vila Flor.

Portanto, não podemos inferir se as novas companhias de ordenanças que, segundo esse capitão-

mor, precisavam ser instituídas se referiam a companhias de índios ou a companhias de colonos

mestiços e brancos. O único dado informado por José Francisco de Paula é referente à

população indígena residente nessas vilas, bem como o nome dos seus respectivos capitães-

mores. No entanto, apesar das lacunas presentes nessa fonte, fica claro que o processo de

organização das forças auxiliares no Rio Grande se estendeu até as primeiras décadas do século

XIX e, somado a isso, os problemas que foram enfrentados pelas forças regulares existentes na

Cidade do Natal no século XVII persistiram, também, na primeira metade do século XVIII,402

o que demonstra como o processo de emergência, institucionalização e consolidação das

instituições administrativas existentes no Ultramar ocorria de forma lenta, descontínua e em

consonância com a dinâmica social e histórica de capitania existente no Estado do Brasil.

Dessa forma, no Rio Grande, a expansão das instituições administrativas esteve

associada à própria territorialização dessa Capitania e, nesse sentido, entendemos que a

presença batava no Rio Grande, bem como a Guerra dos Bárbaros,403 foram eventos históricos

que retardaram não só a expansão da territorialização desse espaço, mas também o processo de

sistematização das instituições da administração portuguesa nesse território colonial, visto que,

apenas posteriormente a esses conflitos bélicos foi possível perceber uma expansão das forças

401 Idem. 402 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao

príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos

que necessitam de novas companhias de ordenanças. Anexo: 2ª via; provisão (cópia); “mapa da população da

Capitania do Rio Grande do Norte, com declaração dos seus empregos, militares e civis, e capitães-mores e

ordenanças das respectivas vilas e freguesias, tanto brancos como índios, até 31 de Dezembro de 1805” e “relação

dos distritos, que necessitam novas companhias de ordenanças na Capitania do Rio Grande do Norte, com

declaração das vilas a que pertencem”, 1806. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 623. 403 Com relação à Guerra do Bárbaros é preciso fazer uma ressalva. Apesar dos conflitos que se desenrolaram em

fins do século XVII e nas primeiras décadas do século XVIII terem retardado o processo de expansão da pecuária

para os sertões da Capitania, consideramos que no sentido militar houve uma efervescência que transformou todo habitante da Capitania em condições de pegar em armas em um homem de guerra, independentemente de sua

qualidade e condição. Além disso, o conceito cunhado por Francis Cotta de sistema militar corporativo se efetivou

nesse cenário, onde tivemos o encontro de tropas pagas, ordenanças e milícias atuando de forma conjunta contra

os índios dos sertões. Entretanto, essas tropas atuaram de forma distinta ao longo dos quase quarentas anos de

conflitos envolvendo tropas coloniais e nativos, visto que em um primeiro momento tivemos, principalmente, a

presença de companhias de ordenanças, da tropa regular e auxiliar vinda de Pernambuco e, também, da Paraíba.

Em um segundo momento, mais precisamente com a chegada dos Paulistas, constatamos nos assentos de praça

catalogados a forte presença dessa tropa paga que, segundo Júlio Cézar Vieira, foi responsável pelas primeiras

vitórias das tropas coloniais. ALENCAR, Júlio César Vieira de. Op cit. p.71. COTTA, Francis. Op cit. p.35

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171

militares auxiliares, especificamente as ordenanças, como estamos demonstrando ao longo

desse texto.

Por fim, dando continuidade ao nosso estudo, passaremos a discutir no tópico seguinte

o perfil social dos colonos que ingressaram nas companhias de ordenanças da Capitania do Rio

Grande no intento de examinar quem eram esses militares e de que forma os mestiços eram

inseridos nessa força auxiliar do espaço em análise.

4.3 “Antônio Francisco da Costa, solteiro, cabelo preto, olhos castanhos, criador de gado”:

análise do perfil social dos soldados das ordenanças

Nos últimos anos, o interesse pela história militar no Brasil vem crescendo de forma

significativa. Esse interesse crescente possibilita, inclusive, que alguns pesquisadores cheguem

a falar em uma “nova história militar” que, segundo os historiadores Luiz Guilherme Scaldaferri

Moreira e Marcello José Gomes Loureiro, contrapõe-se a um modelo de história militar

considerada “tradicional”. Essa história tida, como tradicional, “cuja

narrativa, sobremaneira memorialista, estava pautada exclusivamente na descrição densa de

batalhas, sem a busca de uma problematização analítica ou reflexão central” não tinha como

finalidade a compreensão dos sujeitos sociais que constituíam as instituições militares

existentes no Estado do Brasil e, em decorrência disso, naturalizavam o comportamento desses

homens e dos corpos militares de que faziam parte.404

Entretanto, não é possível examinar os fenômenos bélicos sem considerar os sujeitos

históricos que estiveram à frente desses processos e foram responsáveis por suas tessituras.405

Dessa forma, partindo desse pressuposto, analisaremos o perfil social dos colonos que aturaram

nos corpos militares existentes no Rio Grande ao longo do recorte temporal estudado. Nesse

sentido, nesse tópico, de forma específica, estamos preocupados com a análise quantitativa e

qualitativa do perfil social dos soldados das companhias de ordenanças existentes na Capitania

na segunda metade do século XVIII. Para tanto, examinaremos principalmente a qualidade

desses militares e as suas atividades laborais, que eram desempenhadas nos territórios coloniais

em que residiam, visto que as ordenanças, diferentemente das tropas de linha, não eram tidas

como uma força militar regular e seus soldados não recebiam, portanto, auxílio financeiro por

suas atuações bélicas. Estes, como sublinhamos no primeiro capítulo, eram convocados

404 MOREIRA, Luiz Gulherme Scaldaferri; LOUREIRO, Marcelo José Gomes. A nova história militar e a América

portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países

Baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. p. 16. 405 Idem.

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militarmente apenas em situações emergenciais e como uma força auxiliar às tropas de linha.

Dessa forma, em situações de paz, esses militares viviam do emprego de sua força de trabalho,

que era exercida em consonância com a dinâmica econômica e social de cada capitania do

Estado do Brasil.

Nesse sentido, apesar da documentação investigada apresentar dados referentes à

matrícula de soldados de diferentes territórios coloniais existentes na Capitania do Rio Grande,

como São José, Ceará-Mirim e, dentre outros, a Cidade do Natal, informações quantitativas

precisas só foram localizadas para as companhias de ordenanças existentes na Ribeira do Seridó

e de Assú. Dessa maneira, nossa análise do perfil social dos soldados atuantes na Capitania foi

realizada com base apenas nas matrículas desses militares que residiram nas Ribeiras do Seridó

e Assú, com ênfase naqueles que moravam na Ribeira do Seridó.

Com relação à Ribeira do Assú, os dados quantitativos acerca da qualidade dos militares

que constituíram as companhias de ordenanças desse território são referentes às mostras

realizadas entre os anos de 1789 a 1799, período para o qual localizamos informações acerca

dos homens aptos a constituírem essa força militar existente na Capitania do Rio Grande.

Como demonstra o gráfico abaixo, as companhias de ordenanças presentes na Ribeira

do Assú eram constituídas, majoritariamente, por colonos identificados como brancos (35,

23%) e como pardos (42, 62%):

Gráfico 7 – Perfil social dos militares da Ribeira do Assú, 1789 a 1799

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 298 Assentos de praça e baixas.

A existência de homens livres e de diferentes qualidades já era esperada para compor as fileiras

dos corpos de ordenanças, tendo em vista que, diferentemente das tropas de linha, esse corpo

Branco

35, 23%

Pardo

42, 62%Cor escura

1,01%

Cabra

0,67%

Gentio de Angola

0,34%

Trigueira

1,01%

Mameluco

0,34%

Cor corada

0,34%

Cor negra

0,34%

Sem

Identificação

18, 12%

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173

militar deveria acolher todos os homens em idade produtiva e que não fizessem parte das tropas

pagas ou das milícias para defenderem os territórios coloniais em que residiam. Dessa maneira,

já esperávamos localizar colonos mestiços nas ordenanças da Ribeira do Assú. Outro dado já

esperado e aludido no capítulo anterior foi, praticamente, a ausência de militares identificados

como pretos e/ou negros. No entanto, conforme documento datado de 1806, em um universo

amostral de 2.725 colonos do sexo masculino residentes na Ribeira do Assú, 1.209 foram

definidos como mulatos, 848 como brancos e 668 como pretos, ou seja, a população preta e do

sexo masculino do Assú era referente a 25% dos moradores desse território.406 Todavia, não

foram alistados nas companhias de ordenanças nas mostras realizadas no espaço em análise.

Nessa perspectiva, poderíamos considerar que esses homens não foram arrolados para

ingressarem no serviço militar auxiliar em decorrência de serem escravos. Entretanto, o capitão-

mor do Rio Grande, José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao elaborar esse mapa

da população do Assú, bem como dos empregos e ocupações existentes nesse território, não

citou, diferentemente do que fez para as demais vilas da Capitania, o número de escravos

residentes nessa Ribeira. Essa ausência nos permite, portanto, conjecturar a hipótese de que

esses homens, pelo menos em parte, podiam ser livres ou libertos na ocasião em que foram

arrolados enquanto moradores do Assú. A ausência de fontes paroquiais ou estudos

demográficos sobre o Assú, no entanto, não nos permite asseverar que a população de pretos

desse território colonial era constituída apenas por homens livres e libertos.

Com base na documentação militar consultada, o que é evidente é que na Capitania do

Rio Grande, não apenas na Ribeira do Assú não ocorreu de forma efetiva a inserção de

indivíduos definidos como sendo de qualidade preta e/ou negra nas forças auxiliares existentes

nesse território. Nem mesmo em um contexto de guerra, a exemplo da Guerra dos Bárbaros,

percebemos um ingresso significativo de homens classificados como pretos e/ou negros, uma

vez que foram referentes a apenas 3, 86% dos militares que atuaram no conflito citado. Na

mesma ocasião, em contrapartida, constatamos um ingresso significativo de índios (33, 82%)

nas tropas coloniais, o que nos permitiu perceber que a Guerra dos Bárbaros, na prática, foi uma

guerra de índios aliados contra os índios dos sertões que resistiram a colonização. Como

406 OFÍCIO do sargento-mor e governador interino do Rio Grande do Norte Caetano da Silva Sanches, ao secretário

de estado da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro, sobre o estado da Capitania à data da sua posse;

epidemia de bexigas; escassez de carne, farinha e peixe; falta de militares e armamento; dando conta das

providências tomadas, nomeadamente a arrematação do contrato das carnes e queixando-se da falta de jurisdição

e autoridade para prover oficiais de justiça e fazenda e passar patentes e cartas de sesmaria. Anexo: atestação dos

oficiais da Câmara de Natal, mapa do rendimento dos contratos dos dízimos, mapa dos corpos auxiliares e

companhias de infantaria, mapa do armamento da Fortaleza dos Reis Magos e provisão (cópia), 1806. AHU-RN,

Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 483.

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afirmamos no segundo capítulo, os homens identificados como sendo de qualidade preta, negra

e gentio de angola ocuparam principalmente, nas forças militares do espaço em estudo, o posto

de tambor.

Apesar do posto de tambor não ser um dos principais na hierarquia militar lusitana e,

consequentemente, do Estado do Brasil, o militar que ocupava este ofício cumpria um papel

pertinente no funcionamento das forças de guerra de que fazia parte. No tambor, por meio de

uma sequência de toques, o militar em questão determinava o ritmo da marcha dos soldados,

sendo, inclusive, responsável por transmitir as ordens dos capitães quanto ao modo como as

tropas deveriam proceder em uma investida contra as tropas adversárias.407 Sobre esse aspecto,

de acordo com o historiador Luís Filipe Guerreiro da Costa e Souza, “os sinais sonoros

desempenhavam um papel crucial na guerra. De uma forma assumida, consistiram num veículo

de moralização dos soldados [...]”.408 Portanto, mesmo que na Capitania do Rio Grande o posto

de tambor fosse ocupado, principalmente, por colonos identificados como sendo de qualidade

preta, negra, Gentio de Angola e de condição escrava, isso não significa que esse posto não

fosse importante e não cumprisse um papel pertinente no funcionamento das forças auxiliares

e regulares existentes no Estado do Brasil.

Outro dado interessante que constatamos na análise do perfil social dos militares da

Ribeira do Assú é concernente ao modo como alguns desses colonos foram definidos. Acerca

disso, constatamos que, em diferentes ocasiões, o colono que era alistado no serviço militar era

definido de duas formas: com base em sua cor e em sua qualidade. Para sermos mais claros,

eles eram classificados da seguinte forma: João José Bezerra, “branco, estatura baixa, cor alva,

olhos vivos, beiços grossos, cabelo corredio”,409 ou seja, era considerada, além da qualidade, a

cor desse colono. Nessa perspectiva, o modo como esses colonos eram definidos só reforça a

discussão que realizamos nas primeiras páginas desse capítulo, que o conceito de qualidade era

distinto do conceito de cor, visto que, enquanto um fazia referência apenas ao fenótipo do

colono o outro estava associado a um conjunto de elementos que envolvia a posse de cabedal

e, dentre outros aspectos, as relações de parentesco que mantinha.

Dessa maneira, foi possível perceber nos assentos de praça diferentes formas que foram

empregadas pela administração militar para se referir ao fenótipo dos militares residentes no

Assú, como demonstram os termos, utilizados para classificar, especificamente, os colonos

407 SOUZA, Luís Filipe Guerreiro da Costa e Souza. Escrita e Prática de Guerra em Portugal 1573-1612. Tese.

(Doutorado em História) – Universidade de Lisboa. Lisboa. ULisboa, 2013. p.213. 408 Ibid., p.219. 409 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1789 a 1799 – Arquivo Histórico do IHGRN.

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pardos: “pardo cor escura”, “pardo acaboclado”, “pardo cor alva” e, dentre outros, “pardo cor

bem escura”.410 Esses termos evidenciam a complexidade que era definir o outro na sociedade

colonial, tendo como base apenas o seu fenótipo. Além disso, essas definições podiam variar

de acordo com o olhar daquele que definia e daquele que era definido, conforme a posse de

cabedal e as relações de parentesco, o que tornava a qualidade algo móvel, como já aludimos

nesse estudo.

É importante destacar também que os 298 militares examinados quantitativamente no

Gráfico 5 e descritos conforme as suas qualidades não eram apenas soldados. Dentre esses 298

militares, constatamos também a presença de 20 cabos de esquadra, 5 alferes, 1 tambor, 1

capitão de companhia e, por fim, 2 furriéis. No caso específico do capitão, dos alferes e dos

cabos de esquadra, eles certamente ingressaram no serviço militar como soldados, e

conseguiram ascender na hierarquia militar das ordenanças. Esse dado é pertinente por

demonstrar que, apesar das ordenanças não implicarem em ganhos monetários, elas podiam

representar a possibilidade de ganhos sociais, como, por exemplo, a possibilidade de ingressar

em um posto de menor importância na hierarquia militar e, ao longo do tempo, conseguir

ascender para um ofício importante e que implicasse, inclusive, no recebimento de patentes.

Sobre esse aspecto, no Estado do Brasil, segundo Ana Paula Pereira Costa, os critérios

para alcançar os postos mais altos das ordenanças divergiam dos que eram utilizados em

Portugal. De acordo com esta historiadora, enquanto em Portugal o critério determinante para

ocupar os postos de comando das ordenanças era o nascimento nobre, no Ultramar o principal

elemento considerado era a prestação de serviços à Coroa. Nesse sentido, “os serviços de guerra

e defesa da terra incluíam-se entre os mais enobrecedores e importantes para a concessão de

mercês régias”.411 Desse modo, um caso que exemplifica essa questão no Rio Grande é o de

Bonifácio da Rocha Vieira. Este, em 1741, foi indicado pelo Governador de Pernambuco,

Henrique Luís Pereira Freire, para ocupar o posto de capitão de companhia do terço auxiliar

que seria instituído na Capitania. Para tanto, Henrique Luís Pereira Freire considerou os

seguintes elementos:

Bonifcaçio da Rocha Vieyra filho do capitaõ de Infantaria paga Teodozio da

Rocha e neto de Antonio vas Gondim Capitam mor que foi daquela capitania q sérvio nove anos de soldado pago andando nas bandeiras da guerra q se deu

410 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1789 a 1799 – Arquivo Histórico do IHGRN. 411 COSTA, Ana Paula pereira. Corpos de Ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735-

1777). p.81.

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ao Tapuya, depois paçou a capitaõ da ordenança aonde se acha atualmente

servindo.412

O principal elemento considerado pelo Governador de Pernambuco naquela época foram

exatamente os serviços prestados à Coroa pelos parentes de Bonifácio da Rocha Vieira. Dentre

esses serviços, destacamos os feitos de Antônio Vaz Gondim, que atuou nas tropas coloniais

contra os índios dos sertões e, dessa maneira, auxiliou a Coroa no processo de ocupação e

territorialização dos sertões, contribuindo com isso para construção de sua carreira militar e a

dos seus descendentes, como demonstra o caso de seu neto citado acima.

Acerca da qualidade dos colonos que foram elevados aos postos de cabo de esquadra,

alferes e capitão de companhia, é pertinente elucidar que se tratavam de homens brancos.

Assim, apesar dos mestiços serem quantitativamente superiores aos militares brancos, como

demonstra o gráfico 7, eles não estiveram entre os colonos que conseguiram ascender no serviço

militar das ordenanças, o que demonstra que o ingresso significativo dessa população nas

fileiras das ordenanças da Ribeira do Assú não resultou na ocupação de ofícios importantes na

hierarquia militar dessa força auxiliar. No entanto, seria preciso uma análise quantitativa e

qualitativa de cartas patentes para entender, de fato, o perfil social dos ocupantes de postos de

comando das ordenanças na Capitania do Rio Grande, discussão essa que, apesar de importante,

ultrapassa os limites de nosso estudo. Certamente, em estudos posteriores, retomaremos essa

problemática, o que nos possibilitará entender com mais clareza quais ofícios eram

desempenhados na prática pelas populações mestiças nas forças auxiliares do espaço em

análise.

A Ribeira do Seridó, assim como a Ribeira do Assú, possuía companhias de ordenanças

constituídas majoritariamente por colonos identificados como mestiços, especificamente

pardos, como demonstra o gráfico abaixo:

412 CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre a indicação de

pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão das nove companhias do Rio

Grande do Norte, 1741. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 10.

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Gráfico 8 – Perfil social dos militares da Ribeira do Seridó, 1797 a 1806

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em 94 Assentos de praça e baixas.

Esses colonos que foram qualificados como pardos nos assentos de praça, da mesma forma

como ocorreu no Assú, ocuparam apenas o posto de soldado na Ribeira do Seridó. Desse modo,

em um universo amostral de 94 militares, 26 foram definidos como pardos (27,66%), 23 como

brancos (24,47%), 1 como português (1, 06%) e 44 não tiveram suas qualidades identificadas

(46, 81%). Desses, 2 ocuparam o posto de furriel e não tiveram suas qualidades expressas, 5

foram definidos como cabos de esquadra, sendo desses, 2 brancos, 1 português e 2 sem

qualidades identificadas e, por fim, 2 possuíam a patente de capitão e foram definidos como

brancos. Os demais, especificamente 85 militares, certamente, atuaram como soldados. Nesse

sentido, dentre os colonos que tiveram seus postos e qualidades declaradas, foi possível

perceber que nenhum mestiço conseguiu ocupar os postos citados acima na Ribeira do Seridó.

Nessa perspectiva, ao reconstruirmos alguns aspectos da trajetória de vida de Manoel

Guedes com base nos registros de paróquia, sendo ele um dos soldados pardos que era residente

na Ribeira do Seridó, percebemos que os colonos, quando iam receber os sacramentos da fé

cristã (batismo, matrimônio e a unção dos enfermos, ou mesmo serem sepultados), tinham

listadas, em conjunto com o seu nome, as patentes dos postos militares que ocupavam ou

haviam ocupado em algum momento de suas vidas. Dessa maneira, como essa documentação

já estava transcrita e sistematizada em bancos de dados, 413 diferentemente das cartas

413 Essa documentação foi digitalizada e transcrita nos seguintes projetos: O cotidiano do Príncipe: uma vila do

Seridó no século XIX (2000-2001); O cotidiano do Príncipe: uma vila seridoense no século XIX - 2ª Parte (2001-

2002); Contando o trabalho e os dias: Demografia Histórica do Seridó (Colônia e Império) (2001-2002); Contando

o trabalho e os dias: Demografia Histórica do Seridó (Colônia e Império) (2002-2003). Estes projetos foram

Branco

24,47%

Pardo

27, 66%

Sem

Identificação

46, 81%

Português

1, 06%

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patentes,414 resolvemos verificar, de forma quantitativa, a qualidade dos homens que ocuparam

os principais postos na hierarquia militar das ordenanças: capitão-mor, sargento-mor e capitão

de companhia.

Tendo como base os registros de paróquia, foi possível perceber que o perfil social do

oficialato das ordenanças da Ribeira do Seridó era distinto do perfil social dos soldados que

constituíam esse corpo militar. Nesse sentido, constatamos que os colonos que tiveram suas

qualidades expressas e ocuparam os postos de capitães-mores, sargentos-mores e capitães de

companhia, como demonstra o quadro abaixo, foram definidos, majoritariamente, como sendo

homens brancos:

Quadro 15 – Qualidade dos oficiais das ordenanças da Ribeira do Seridó, 1778 a 1820

Cargo militar Qualidade dos ocupantes Total

Capitão-mor 5 brancos

1 português

1 pai de brancos415

3 sem identificação

10

Sargento-mor 6 brancos

1 pais de branco

1 pai de pardos

4 sem identificação

12

Capitão de companhia 21 brancos 1 português

1 índio

8 pais de brancos

1 pai de pardos

21 sem identificação

51

Coronel de Cavalaria das

Ordenanças

2 brancos

4 sem identificação

6

coordenando pelo Prof. Muirakytan Kennedy de Macêdo. Além destes, o projeto de pesquisa Populações mestiças

no Seridó: demografia e relações familiares (séculos XVIII-XIX), do qual a autora deste texto fez parte como

bolsista de Iniciação Científica, bem como os projetos Crioulos, mamelucos, cabras e mulatos na Freguesia da

Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (séculos XVIII-XIX) e História das mestiçagens nos sertões do Rio Grande

do Norte por meio de um léxico das “qualidades” (séculos XVIII-XIX), foram responsáveis por transcrever e

organizar em bancos de dados fontes paroquiais e judiciais. Os três últimos projetos citados ainda estão em curso

e são coordenados pelo Prof. Helder Alexandre Medeiros de Macedo. 414 No entanto, salientamos a importância da análise das cartas patentes para entender o perfil do oficialato das

companhias de ordenanças, visto que essa documentação, além de trazer o nome e a qualidade do militar em questão, informa toda a sua trajetória militar e os motivos que o permitiram ocupar um posto de comando nas

ordenanças. Entretanto, esse exercício, apesar de pertinente, seria inviável nesse momento para nós, uma vez que

ainda teríamos que transcrever essa documentação ultrapassando, desse modo, o limite temporal que possuímos

para efetivar essa pesquisa. Além disso, para esse estudo já transcrevemos um número significativo de fontes,

como, por exemplo, os assentos de praça, que nos possibilitaram entender o perfil social dos homens que ocupavam

os postos de soldado na Capitania do Rio Grande tanto das tropas regulares quanto das ordenanças e perceber as

alterações que esse perfil sofreu ao longo do recorte temporal. 415 Estamos considerando como pai de brancos e/ou pai de pardos os colonos que, na documentação paroquial, não

tiveram suas qualidades identificadas pelos sacerdotes, mas, sim, a de seus filhos.

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Cargo militar Qualidade dos ocupantes Total

Tenente de Cavalaria das

Ordenanças

1 Mestiço416

3 brancos

2 sem identificação

6

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo a com base nos registros de paróquia da Freguesia do Seridó

e na carta patente de Vitoriano Carneiro da Silva.

Como demonstra o quadro acima, em um universo amostral de 85 militares, 37 foram definidos

como brancos, 10 como sendo pais de colonos brancos e apenas 3 colonos foram identificados

como possuindo parentelas constituídas através das dinâmicas de mestiçagens. Nessa

perspectiva, é importante destacar que esses dados quantitativos dialogam com o que foi

determinado pelo Regimento Geral das Ordenanças, no ano de 1570. Segundo esse documento,

como já aludimos no primeiro capítulo, as companhias de ordenanças deveriam acolher a todos

os homens em idade produtiva - com exceção dos fidalgos e religiosos que residissem em uma

cidade, vila ou conselho - para atuarem militarmente na defesa dos territórios em que viviam417.

Esse caráter “acolhedor” das ordenanças, sem distinções de qualidade, de certa forma, foi

reforçado pela Carta Régia de 1766, onde o Reino mandou alistar todos os homens de uma

jurisdição colonial, sem exceção de suas qualidades, como demonstra a citação abaixo:

[...] sou servido mandar alistar todos os moradores das terras de vossa

jurisdição que se acharem no estado de poderem servir nas tropas auxiliares,

sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos, ingênuos e libertos e a proporção dos que tiver uma das referidas nações formeis os terços de

auxiliares e ordenanças, assim de Cavalaria como de Infantaria que vos

parecem mais próprios para a defesa de cada uma das Comarcas desta Capitania [...]418.

416 O colono identificado como mestiço refere-se a Vitoriano Carneiro da Silva. Ele era filho do português Antônio

Carneiro da Silva e da mestiça Domingas Mendes da Cruz, filha do sargento-mor Nicolau Mendes da Cruz,

qualificado nas fontes como crioulo, e de Maria da Silva. Além de Vitoriano Carneiro. Localizamos outros

membros dessa genealogia nos assentos de praça. No caso, localizamos o alistamento de Narciso Carneiro da Silva

e Antônio Carneiro da Silva, pardos, irmão de Vitoriano Carneiro. E, por fim, localizamos os assentos de Manoel

da Cruz e Joaquim Ignácio da Cunha, pardos, netos de Antônio Carneiro. É interessante observar que tanto Antônio

Carneiro quanto Joaquim Ignácio em auto de mostra passaram para a ordenança de pé pela pobreza na qual se

encontravam, o que reforça a ideia de que mesmo dentro dos corpos militares, inclusive nas ordenanças, existiam

distinções entre os colonos que faziam parte da cavalaria e da infantaria, o que denota que as distinções existentes na sociedade colonial estavam presentes também em suas instituições. Por fim, acerca da genealogia dos Carneiro

da Silva ver os estudos do historiador Helder Macedo. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras

Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças no Sertão do Rio Grande do Norte. (séculos XVIII e XIX). p. 197. 417 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570. 418 Carta do Rei Dom José I ao Capitão-General da Capitania de Pernambuco, Conde de Vila Flor e Copeiro-Mor,

Antônio de Souza Manoel de Menezes. In.: COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América

Portuguesa. p. 66.

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Contudo, apesar de acolher a todos os homens, independentemente de suas qualidades, os

postos militares oficiais das ordenanças que implicavam no recebimento de patentes deveriam

ser exercidos, preferencialmente, pelos “principais da terra” que tivessem “partes e qualidades

para os ditos cargos”, como era o caso do ofício de capitão, principalmente quando se tratasse

do ofício de capitão-mor.419

Nesse contexto, ser considerado como um “principal” e portador de “qualidades” para

tais postos remetia a alguns elementos, como a posse de cabedal, os serviços militares prestados

à Coroa e a qualidade social do colono que almejasse, por exemplo, ocupar postos oficiais nas

ordenanças, que deveria ser, preferencialmente, definida como portuguesa, branca ou

descendente de português. Esses dados dialogam também com as informações apresentadas

pela historiadora Ana Paula Costa, que em sua dissertação de mestrado demonstrou como as

chefias militares das ordenanças na Comarca de Vila Rica eram ocupadas por homens oriundos

principalmente do Reino, detentores de cabedal e ocupantes de cargos políticos em outras

instâncias administrativas, como as Câmaras Municipais.420

Sobre esse último aspecto, alguns colonos que localizamos ocupando os postos de

capitães-mores e sargentos-mores também estiveram presentes na Câmara Municipal da Ribeira

do Seridó, instituída no ano de 1788. O quadro abaixo lista o nome da patente que esses militares

possuíam, suas qualidades e os cargos políticos que foram ocupados por eles:

Quadro 16 – Cargos políticos ocupados pelos oficiais das ordenanças da Ribeira do Seridó

Cargo militar Qualidade dos ocupantes Cargo político

Capitão-mor 1 Português

2 Brancos

Juiz Ordinário e\ou de Órfãos

Sargento-mor 4 Brancos Juiz Ordinário e\ou de Órfãos

Capitão de companhia 4 Brancos

1 pai de pardo

Juiz Ordinário e\ou de Órfãos

Fonte: elaborado por Maiara Araújo com base nos registros de paróquia e de justiça,

1788 a 1820

Segundo a historiadora Maria Fernando Bicalho, as Câmaras Municipais, pelo menos

nos dois primeiros séculos de conquista e territorialização, foram órgãos fundamentais da

administração colonial, atuando no gerenciamento do comércio e na manutenção das forças

militares e das fortificações litorâneas existentes no Ultramar.421 Acerca do papel dos governos

419 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570. 420 COSTA, Ana Paula pereira. Corpos de Ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735-

1777). p.56. 421 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro.

Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, 1998. p.254.

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municipais no financiamento das forças regulares da colônia, de acordo com a autora citada, no

século XVII, diante das dificuldades enfrentadas pela Coroa após a Guerra de Restauração e a

expulsão dos holandeses das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, coube aos próprios

colonos e às Câmaras Municipais o ônus de arcarem com os custos da defesa, recaindo sobre

estas “a obrigatoriedade do fardamento, sustento e pagamento dos soldos das tropas e

guarnições, a construção e o reparo das fortalezas”.422

Além desse caráter administrativo, os governos municipais funcionavam como

mecanismos de manutenção das desigualdades existentes na sociedade colonial, tendo em vista

que apenas alguns homens eram tidos como aptos a ingressarem nessa instituição. Sobre este

aspecto, “a eleição do corpo governativo da maioria das municipalidades coloniais, como no

caso da América, respeitavam dentro do possível o postulado vigente no Reino de que os cargos

concelhios deveriam ser preenchidos pela ‘nobreza da terra’”.423 No entanto, no Ultramar, o

sentido do que seria a “nobreza da terra” não seguiu necessariamente, de acordo com Bicalho,

a concepção estamental existente no Antigo Regime. Desse modo, um indivíduo, mesmo que

fosse de nascimento humilde e mestiço, diferenciando-se, portanto, da nobreza de nascimento,

podia enobrecer em decorrência dos serviços prestados, inclusive militares, à Coroa e ingressar

nos governos municipais.424

No entanto, outros elementos, além dos serviços prestados à Coroa, certamente

possibilitavam o ingresso de colonos que não eram tidos como “homens bons” nos governos

municipais. Para a Capitania do Rio Grande, deparamo-nos com uma carta de 1732 do capitão-

mor João de Barros Braga ao rei D. João V informando não ser mais necessário o ingresso de

mulatos e mamelucos nos cargos públicos da Cidade do Natal, visto que já existiam homens

brancos suficientes para ingressarem no governo municipal desse território. De acordo com este

documento, como demonstra a transcrição abaixo, além da existência de homens brancos aptos

para ingressarem no governo municipal, o que também justificava a carta enviada pelo capitão-

mor à Coroa era a questão da “inferioridade” dos mestiços e, portanto, a “incapacidade” desses

para ocuparem postos governativos,425 evidenciando, assim, que o ingresso dessa população

422 Idem. 423 Segundo Bicalho, ser tido como a nobreza da terra, em uma perspectiva estamental, implicava em não ser cristão-novo, em não desempenhar ofícios mecânicos e em não possuir sangre infecto (judeus, mouros, índios,

negros, mulatos e outras). De acordo com esta autora, essa política discriminatória vigorou, quase inabalável, até

a instituição das medidas reformistas do Marques de Pombal. Ibid., p.261. 424 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In.: BICALHO, Maria

Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a

dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 203. 425 Em fins do seiscentos, os vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro também recorreram à Coroa para

impedirem que “pessoas ‘de infecta nação’, e outras ‘de baixa limpeza’” ingressassem no governo municipal desta

Capitania. (BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo do Rio de

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nas instituições coloniais não eliminava o caráter discriminatório existente nesses espaços

administrativos:

Os primeyros anos da povoação desta Capp. E muytos que de poys disso se

ceguiraõ por haver poucos homens brancos, se occuparaõ nos logares da

Republica, e ocupsçôes da Real Fazenda, alguns homens mullattos, e mamelucos; E como a continuação do tempo a tem propagado de muitos, e

suficientes homens brancos me paresse, deve cessar o antigo costume, porque

assim paresse ser (...), para que naõ sejaõ mays ditos mullattos, e mamallucos introduzidos nas referidas ocupaçôys, por ter a experiência mostrado, serem

estes menos capazes tanto pella inferioridade das pessoas, como ser nelles

mays natural as perturbações, e desinquiettassôes p. a Rêpublica, como nesta Capp. Sucede.426

Por outro lado, os oficiais das ordenanças da Ribeira do Seridó que ocupavam cargos

políticos nos governos municipais, como demonstra o quadro 16, aparentemente, não romperam

com a lógica estamental que estava posta no Reino e que também foi empregada no Ultramar,

visto que, à exceção de dois colonos que possuíam parentelas mestiças, os demais foram

qualificados como brancos, especificamente 10 colonos, e 2 como portugueses. Infelizmente,

não possuímos documentação que nos permita elaborar o perfil dos colonos que ocuparam os

cargos políticos da Ribeira do Seridó. Desse modo, o fato de termos localizado apenas 11

colonos que eram militares e que ocupavam em específico o cargo de Juiz Ordinário e/ou de

Órfãos ocorreu devido termos realizado um cruzamento com os inventários post-mortem, fonte

de caráter judicial, que apresenta os nomes dos Juízes e escrivães responsáveis pelo arrolamento

dos bens dos colonos falecidos que possuíam filhos órfãos menores de idade. Assim,

certamente, os oficiais das ordenanças podem ter ocupado outros cargos políticos na Ribeira do

Seridó, mas não possuímos fontes que nos possibilitem atestar esse dado.

O ingresso de colonos nos governos municipais e a presença dos mesmos nas forças

militares do Estado do Brasil, em específico as ordenanças, não foi uma particularidade da

Ribeira do Seridó. Estudos recentes, como o de Ana Paula Costa427, aludido acima, bem como

Janeiro. p. 213-214.). Esse caso, assim como o da Capitania do Rio Grande, materializa dois elementos: o acesso

de não brancos ao governo municipal das capitanias do Estado do Brasil e as interdições existentes àqueles que fossem tidos como não aptos a exercerem cargos municipais. Ademais, o ingresso de não brancos em instituições

coloniais não eliminava as diferenças de qualidade e condição existentes no Ultramar, o que poderia implicar na

não permanência de colonos mestiços, por exemplo, em cargos civis ou ofícios militares importantes na hierarquia

administrativa presente na sociedade em análise. 426 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], João de Barros Braga, ao rei [D. João V] informando que

era costume local permitir a ocupação de cargos públicos por mulatos e mamelucos por falta de homens brancos,

e pedindo que não se permitisse mais este costume, 1732. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, doc. 18. 427 COSTA, Ana Paula pereira. Corpos de Ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735-

1777). p. 56.

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o do historiador Adriano Comissoli 428 e, dentre outros, o do também historiador Kleyson

Barbosa429 demonstram que, de fato, existia uma associação entre os ocupantes de cargos

municipais e a posse de patentes das ordenanças. Essa relação, evidentemente, contribuía para

constituição de um grupo de poder local que ocupava um espaço de destaque tanto na

administração militar quanto na administração civil, visto que os homens que eram tidos como

aptos para ingressarem nessas instituições eram aqueles que possuíam cabedal e pertenciam às

principais famílias, sendo, em alguns casos, descendentes de famílias oriundas do Reino que

estiveram à frente do processo de territorialização empreendido pela Coroa. Um exemplo, para

a Ribeira do Seridó, seria o caso de Manoel Gonçalves de Melo.

Manoel Gonçalves de Melo, capitão-mor da Ribeira do Seridó, era natural de Portugal.

Este, além de estar inserido na dinâmica institucional do Seridó, sendo responsável pelo

arrolamento de colonos para as companhias de ordenanças, possuía um cabedal significativo,

expresso na posse de gado cavalar (possuía 3 cavalos, avaliados em: 48$000), escravos (possuía

12 escravos, avaliados em: 1.365.000) e terras (possuía 6 bens de raiz, avaliados em:

3.450.000).430 Desse modo, Manoel Gonçalves, com base em sua qualidade, condição, cabedal

e patente era alguém que na época seria tido como um “homem bom”, apto a ingressar,

inclusive, no governo municipal da localidade onde vivia, como, de fato, ocorreu, visto que em

1791 figurou como Juiz Ordinário no inventário post-mortem de João Álvares de Oliveira.431

Retornando aos trabalhos citados acima, gostaríamos de destacar o de Kleyson Barbosa.

Este autor, por meio de sua dissertação de mestrado, demonstrou como os oficiais camarários

da Cidade do Natal, entre os anos de 1720 a 1750, quase em sua totalidade, eram ocupantes de

postos de comando das companhias de ordenanças, como o posto de capitão-mor, sargento-

mor, e, dentre outros, capitão de companhia. Segundo esse historiador existia, inclusive, uma

relação entre a ascensão em postos militares e a ascensão existente nos cargos municipais,

ocorrendo ambas de modo conjunto, o que demonstra não apenas a constituição de um grupo

428 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). 2006. 192 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói,

2006. p. 75-78. 429 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida nobreza: governança

local na capitania do rio grande (1720-1759). 2017. 323 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação

em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017. 430 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. p. 217. 431 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Álvares de Oliveira. Inventariante:

Antônia Correia de Barros. Fazenda do Olho D’Água, Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe,

Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1791. (Manuscrito).

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de poder a nível local, mas, também, as possibilidades de ascensão social e de prestígio que

essas instituições coloniais ofereciam àqueles que conseguiam fazer parte delas.432

Desse modo, de acordo com o autor citado, em um universo amostral de 150 camarários

(juízes ordinários, procuradores e vereadores), 131 possuíam patentes militares das

ordenanças.433 Em consonância com isso, quanto mais alta fosse a patente do colono em questão

mais chances ele tinha de ascender na administração civil e ocupar, por exemplo, o cargo de

Juiz de Órfãos, o que demonstra o caráter hierárquico das instituições coloniais. Um dado que

nos interessa no estudo de Barbosa é aquele referente à qualidade desses oficiais militares e

civis para, desse modo, compararmos com os oficiais da Ribeira do Seridó, espaço para o qual

localizamos 73 oficiais das ordenanças e 11 camarários que também possuíam patentes dessa

força militar, como demonstra os quadros 15 e 16, examinados anteriormente.

O autor considerou os oficiais camarários da Cidade do Natal como “homens bons”

devido não apenas ao ingresso no governo municipal, mas também ao fato deles ocuparem

postos importantes na hierarquia militar das ordenanças, possuírem terras e estarem vinculados

às principais famílias da localidade estudada. No entanto, seria importante o desenvolvimento

de um estudo que considerasse esse aspecto do perfil desses camarários, visto que, como

problematizou Bicalho, apesar da preocupação com a qualidade dos ocupantes de postos

governativos ter sido comum nas Câmaras Municipais do Ultramar, existiam elementos, como

a prestação de serviços ao Reino, que possibilitavam o ingresso de homens que, a princípio, não

eram tidos como aptos a ingressarem nos governos locais, seja nas ordenanças ou nas

câmaras.434

A carta do capitão-mor do Rio Grande enviada à Coroa no ano de 1732 e transcrita nesse

capítulo demonstra, também, essa possibilidade de ingresso de colonos que não eram tidos

como “homens bons” nos governos municipais. Portanto, essa é uma questão pertinente a ser

discutida inclusive para podermos problematizar não apenas o caráter hierárquico e

discriminatório das instituições coloniais, mas também as negociações existentes nesse cenário

histórico, que abarcava os interesses da Coroa, de uma elite local e dos homens que serviam a

essa elite e desejavam, também, ascender socialmente.435

432 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida nobreza: governança

local na capitania do rio grande (1720-1759). p.61-62. 433 Ibid., p.58 434 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In.: BICALHO, Maria

Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a

dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 203. 435 FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de

conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro,

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Por fim, acerca dos colonos que foram identificados nos Quadros 15 e 16 como

possuindo genealogias mestiças, examinaremos a partir de agora, em específico, o caso de

Manoel de Souza Forte, capitão de companhia de ordenanças da Ribeira do Seridó e Juiz de

Órfãos desse território. Em seguida, examinaremos a trajetória de vida de Manoel Guedes do

Nascimento, que, apesar de não pertencer à chefia das ordenanças e de não estar presente no

governo municipal, era soldado das ordenanças da Ribeira do Seridó e possuía também certo

cabedal, o que demonstra diferentes possibilidades de inserção de mestiços na dinâmica social

e econômica da época.

4.4. Manoel de Souza Forte: capitão, juiz de órfãos, pai de pardos e sesmeiro da Ribeira

do Seridó

Manoel de Souza faleceu aos 43 anos de idade, em 1793.436 Em vida, residiu na Ribeira

do Seridó, onde contraiu núpcias com Petronila Fernandes Jorge, mulher branca, segundo seu

registro de óbito, datado de 1811.437 Esse casal, como demonstra o geneagrama abaixo, teve

seis filhos e sete netos:

1700-1760). In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Orgs.). Na trama das redes: política e

negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 436 PARÓQUIA DE SANT’ANA DE CAICÓ (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Óbitos nº 1.

Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1811, fl. 37. (Manuscrito). 437 PSC. CPSJ. Livro de Óbitos nº 1. FGSSAS, 1788-1811, fl. 143v. (Manuscrito).

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Geneagrama 3 – Descendência da família Souza Forte

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Fonte: Elaborado por Maiara Araújo e Helder Macedo no software GenoPro, com base em registros paroquiais (século XVIII).

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Ao observar os dados acima é possível perceber que os filhos e netos de Manoel de

Souza e Petronila Fernandes foram qualificados tanto como pardos quanto como brancos. De

forma específica, quantitativamente, 3 filhos do casal foram definidos como pardos, 1 como

branco e 2 não tiveram suas qualidades identificadas. Quanto aos netos, 2 foram classificados

como pardos, 4 como brancos e, por fim, 1 não teve sua qualidade identificada. Nesse sentido,

esses dados evidenciam, dentre outros elementos, a existência de dinâmicas de mestiçagens na

genealogia dos Souza Forte, que, conforme já conceituamos, refere-se ao intercurso biológico

entre pessoas de diferentes qualidades e condições ocorridas no contexto da Colônia.438 Dessa

forma, consideramos que essa parentela foi delineada por dinâmicas de mestiçagens, expressas,

por exemplo, nas diferentes qualidades dos filhos e netos de Manoel de Souza bem como nas

relações familiares que esses estabeleceram ao contraírem núpcias com pessoas de qualidade

branca e/ou parda.

Dessa maneira, partindo das informações presentes nas fontes paroquiais, onde

conseguimos inferir a qualidade de Petronila Fernandes,439 supomos que a ascendência mestiça

dessa família, certamente, ocorreu em decorrência do fato de Manoel de Souza ser mestiço.

Assim, acreditamos que a qualidade de Petronila Fernandes explicaria a presença de pessoas

brancas entre seus filhos, aspecto que se estendeu aos seus netos. Quanto a Manoel de Souza e

ao fato do mesmo ser provavelmente um mestiço, infelizmente, em todos os registros de

paróquia a que tivemos acesso (casamentos de seus filhos, registro de óbito de sua esposa e

como testemunha de casamentos ocorridos na Freguesia do Seridó), ele teve apenas a sua

patente de capitão e tenente-coronel expressa e em nenhuma ocasião a sua qualidade foi citada.

Dessa forma, inferimos que ele era mestiço por sabermos a qualidade de sua esposa e de seus

filhos. Contudo, até o momento, não temos como precisar isso nas fontes. O que temos como

certo é que a genealogia Souza Forte foi constituída através do intercurso biológico entre

pessoas de diferentes qualidades e que, possivelmente, Manoel de Souza seria o ascendente

mestiço dessa parentela.

Nessa perspectiva, outro aspecto que nos faz supor que a genealogia Souza Forte é

constituída por dinâmicas de mestiçagens é o caso de Januário de Souza Forte, filho de Manoel

de Souza e Petronila Fernandes. Januário de Souza, ao contrair núpcias com Joana Ferreira das

438 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre

os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). p. 20. 439 PSC. CPSJ. Livro de Óbitos nº 1. FGSSAS, 1788-1811, fl. 143v. (Manuscrito).

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Neves em 1817, foi definido como sendo parente de sangue da mesma.440 Infelizmente, não

conseguimos precisar o grau de parentesco entre os dois com base nos registros paroquiais

consultados. Ainda assim, conseguimos reconstruir a genealogia de Joana Ferreira, o que

evidenciou que a mesma era pertencente a uma família de pardos, residentes também na Ribeira

do Seridó e sobre a qual falaremos posteriormente. Portanto, dentre os elementos que marcaram

as vivências de Manoel de Souza, salientamos inicialmente, a presença de dinâmicas de

mestiçagens em sua genealogia, expressa na forma como seus filhos e netos foram qualificados

bem como nas relações matrimoniais que esses constituíram.

Contudo, a trajetória de vida desse provável mestiço, pai e avô de pardos, foi delineada,

também, pelo seu ingresso nas instituições administrativas da colônia, aspecto expresso em suas

patentes militares e no seu posto de juiz de órfãos, reforçando, desse modo, a relação existente

entre os ocupantes de cargos no governo municipal e nas forças militares na sociedade em

análise, como discutimos a pouco.

Desse modo, Manoel de Souza ocupou o cargo de Juiz de Órfãos entre os anos de 1790

e 1791. Conseguimos, de forma específica, precisar a presença de Manoel de Souza como juiz

de órfãos nos inventários post-mortem de Euzébio da Costa Torres441 e de José Álvares de

Freitas.442 O cargo de juiz de órfãos pertencia ao âmbito judicial dos governos municipais e o

ocupante deste posto tinha as seguintes atribuições:

Cuidar dos órfãos, de seus bens e rendas. [...] Elaborar, com o escrivão dos

órfãos, um livro onde constarão o nome de cada órfão, filiação, idade, local de moradia [...], bem como o inventário de seus bens móveis e de raiz e o

estado em que se encontram. [...] Inventariar os bens dos defuntos que

deixarem filhos menores de 25 anos. [...] Mandar ensinar e a ler aos órfãos,

que tiverem qualidade para isso, até a idade de 12 anos. [...].443

Um dos requisitos para o desempenho do cargo de juiz de órfãos era a idade mínima de

30 anos.444 A esse critério Manoel de Souza atendia, tendo em vista que na época em que atuou

como juiz de órfãos, de acordo com os inventários citados, ele tinha cerca de 40 anos idade.

Todavia, um requisito que possivelmente o mesmo não atendia estava associado a sua

440 PSC. CPSJ. Livro de Matrimônios nº 2. FGSSAS, 1809-1821, fl. 104v. (Manuscrito). 441 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Euzébio da Costa Torres. Inventariante.

Maria Mendes Ferreira. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e Comarca da Paraíba do Norte, 1790.

(Manuscrito). 442 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de José Álvares de Freitas. Inventariante: Ana

Theresa Cavalcanti. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e Comarca da Paraíba do Norte, 1791.

(Manuscrito). 443 SALGADO, Graça. Op cit. p. 262-63. 444 Idem.

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qualidade. Conforme já elucidamos nesse texto, a genealogia dos Souza Forte foi delineada por

dinâmicas de mestiçagens e, provavelmente, Manoel de Souza era mestiço. Mesmo sem

precisarmos a sua qualidade, temos dados que evidenciam que o mesmo era pai e avô de pardos,

ou seja, possuía vínculos sanguíneos com pessoas mestiças. Sobre esse aspecto, de acordo com

Stuart Schwartz, Portugal costumava reservar “o ingresso nas ordens militares, a concessão de

fidalguia e a maior parte dos cargos no governo para cristãos-velhos, não maculados com a raça

de judeu, mouro ou mulato. Esses mesmos preconceitos vigiam no Brasil [...]”.445 Portanto, a

princípio, a presença de dinâmicas de mestiçagens na genealogia de Manoel de Souza seria um

fator que impossibilitaria o seu ingresso na administração colonial da Ribeira do Seridó

Todavia, assim como a qualidade não era um fator engessado no cenário colonial, a

proibição do ingresso de pessoas mestiças em instâncias administrativas da colônia também não

foi algo imutável. Esse, na verdade, foi um processo complexo e que ocorreu em consonância

com a configuração histórica de cada capitania. Dessa forma, para a Capitania de Pernambuco,

segundo Luiz Geraldo Silva, a emergência e institucionalização de milícias de negros e mestiços

estiveram associadas à participação dessas populações na luta contra os holandeses.446 Já para

a Capitania do Rio Grande, deparamo-nos, como citamos acima, com a existência de mulatos e

mamelucos no governo municipal devido à ausência de um número de homens brancos

suficiente para ocupar esse espaço administrativo.447

Dessa forma, é evidente que, dependendo da configuração histórica de cada capitania,

foi admitida a inserção de mestiços em instâncias administrativas da colônia, o que não significa

afirmar que esse foi um processo harmônico e aceito de forma homogênea pelas autoridades

coloniais, como materializa a carta de João de Barros enviada ao rei de Portugal. Outro exemplo

dessa assertiva seria, também, o embranquecimento oficial de indivíduos mestiços para que eles

tivessem acesso às tropas regulares da instância militar da administração colonial, conforme já

discutimos.448 Portanto, apesar das restrições existentes a pessoas de qualidade mestiça, essa

população conseguiu ocupar cargos administrativos no Ultramar bem como, por meio dessa

atividade, alcançar certa mobilidade social.449

445 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus

desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.103. 446 SILVA, Luiz Geraldo. Gênese das milícias de pardos e pretos na América Portuguesa: Pernambuco e Minas

Gerais, séculos XVII e XVIII. Revista de História, São Paulo, v, n. 169. p. 111-144, jul\dez. 2013. 447 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], João de Barros Braga, ao rei [D. João V] informando que

era costume local permitir a ocupação de cargos públicos por mulatos e mamelucos por falta de homens brancos,

e pedindo que não se permitisse mais este costume, 1732. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, doc. 18. 448 SILVA, Kalina Vanderlei. Op cit. 449COTTA, Francis. Op cit. p. 65.

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Manoel de Souza, além de pai de pardos, juiz de órfãos e capitão, foi sesmeiro na

Ribeira do Seridó. Ele obteve, por meio do instituto de sesmarias no dia 20 de dezembro de

1791, um sítio de terras denominado Forquilha.450 O que chamou a nossa atenção foi que, apesar

desse sesmeiro ter solicitado apenas um sítio de terras, a análise do seu inventário post-mortem,

feita no ano de 1793, nos possibilitou-nos perceber que, na verdade, Manoel de Souza era

proprietário de oito sítios de terras. Essas terras foram identificadas na ocasião do arrolamento

de seus bens como tendo sido obtidas por meio da compra, do instituto de sesmarias e através

de herança. De forma mais precisa: 5 sítios de terras foram comprados, 1 foi obtido por meio

de sesmarias, 1pertencia à mãe de Petronila Fernandes e foi legado ao casal após a morte da

mesma e, por fim, 1 não teve a sua origem identificada. Apenas 6 desses pedaços de terras

tiveram seus nomes evidenciados: Forquilha451, Barra452, Malhada453, Patos,454 Pedra Branca455

e Forte,456 localizados no atual estado do Rio Grande do Norte.

Essas terras foram qualificadas no inventário de Manoel de Souza como sendo

utilizadas para criação de gados e plantação de lavouras. Essas atividades, conforme análise de

Muirakytan Macêdo,457 constituíram a dinâmica econômica da Ribeira do Seridó, que era

voltada para a pecuária e para agricultura de subsistência. Dessa forma, Manoel de Souza, além

de ter se inserido na administração judicial e militar do espaço em estudo, foi também

fazendeiro da Ribeira do Seridó.

Este provável mestiço foi proprietário de uma quantidade significativa de terras, que

orçava monetariamente o valor de 2:166$000 réis. Conforme Macêdo, o patrimônio de 69,6%

dos moradores da Ribeira do Seridó listado em inventários não ultrapassava o valor de

1:000$000, ou seja, apenas em terras o cabedal desse provável mestiço era superior ao da

maioria dos habitantes do espaço citado. De forma mais precisa, o cabedal de Manoel de Souza

no ano de sua morte, 1793, orçava o valor 2: 306$120 réis, equivalente a cerca de 30 escravos

450 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. p.93. 451 Esta terra foi obtida por meio de requerimento à Coroa, de acordo com o inventário post-mortem de Manoel de

Souza. 452 Este sítio de terras pertencia a mãe de Petronila Fernandes e foi legado ao casal após o falecimento da mesma. 453 Esta terra foi obtida por meio da compra a Manoel de Souza Rodrigues e avaliada em 800$000 réis. 454 Segundo Medeiros Filho, no contexto da colônia, existiam dois sítios de terras denominados Patos. Desses, um

estava localizado na Ribeira das Espinharas e refere-se à atual cidade de Patos e, o segundo, estava localizado na Ribeira do Seridó e corresponde, atualmente, ao norte da cidade de São Fernando. Dessa forma, não temos como

inferir o posicionamento correto das terras de Manoel de Souza, visto que seu inventário post-mortem não

especificou a qual Ribeira pertencia o seu sítio de terras. MEDEIROS, FILHO, Olavo de. Op cit. p.129. Este sítio

de terra foi obtido também através da compra feita ao Padre Francisco de Figueiredo e avaliado em 800$000. 455 Esta terra foi comprada pela família Souza Forte ao Capitão José Ferreira Barreto e foi avaliada em 100$000. 456 Não possuímos informação acerca de como foi obtido este bem de raiz, uma vez que no inventário de Manoel

de Souza não são identificados os nomes de todos os sítios de terras e as formas como estes foram obtidos. 457 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio familiar e cotidiano nos sertões do Seridó

(século XVIII). Tese (Doutorado em Ciências Sociais). UFRN, 2007.

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no valor de 100$000. Em linhas gerais, nesse contexto, o seu inventário era constituído pelos

seguintes bens:

Quadro 17 – Descrição dos bens de Manoel de Souza

Títulos Bens Valor

Dinheiro - Nada

Prata Dois pares de Esporas

Seis colheres lisas.

11$300

Latão Uma espingarda. 4$000

Bens Móveis Um capão

Três mesas

Duas cadeiras

Três canastras

Um baú

Duas selas

35$020

Escravos Duas Escravas (Inácia e Maria) e dois Escravos (Inácio458)

330$000

Gados - -

Terras Oito sítios de Terras: Barra, Malhada, Patos,

Pedra Branca, Forquilha e Forte.

2:166$000

Soma total dos bens 2:546$320

Dívidas - 240$200

Líquido 2:306$120

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base no inventário post-mortem de Manoel de Souza, 1793.

Os bens listados no inventário de Manoel de Souza evidenciam que o mesmo, além de terras

possuía escravos. Nesse sentido, acreditamos que esses escravos eram utilizados por esse

provável mestiço como mão de obra na prática da pecuária e da agricultura de subsistência,

atividades que foram identificadas em seu inventário como sendo desenvolvidas nas terras que

possuía. Como é possível inferir pelo quadro acima, dentre os bens de Manoel de Souza não

foram listados gados no ano de 1793. No entanto, sabemos que o mesmo, em algum momento

da vida, teve gado vacum, visto que no Título das Dívidas de seu inventário consta a venda de

sete novilhos. Somado a isso, três dos bens de raiz pertencentes ao mesmo foram definidos

como sendo terras de criar gados. Assim, acreditamos que uma provável explicação para a

ausência de gado no ano de sua morte foram os efeitos da Grande Seca ocorrida no espaço em

análise entre os anos de 1791 a 1793459.

Essa seca deve ter ocasionado a morte e/ou a venda das cabeças de gado que a família

possuía. Além disso, como já constatamos em outros inventários de mestiços que investigamos,

é perceptível a diminuição ou a ausência de gados nesse contexto de estiagem e nos anos

seguintes à mesma. Um exemplo dessa assertiva são os inventários de Gonçalo Pereira das

458 Infelizmente não conseguimos identificar o nome do segundo escravo de Manoel de Souza. 459 GUERRA, Phelipe; GUERRA, Theophilo. Seccas contra a secca. 4. ed. Mossoró: Fundação Vingt-Um

Rosado\Fundação Guimarães Duque, 2001.

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Neves460 e Antônio Carneiro da Silva,461 ambos pardos. Nessa perspectiva, é possível que a

venda dos sete novilhos que consta no inventário de Manoel de Souza, bem como de quatro

escravos, tenha ocorrido exatamente em decorrência dessa estiagem que afetava o Seridó nos

anos que antecederam a sua morte.

Acerca do cabedal da família Souza Forte, consideramos pertinente salientar que, apesar

de vasto no sentido monetário, dialoga com o patrimônio da maioria dos habitantes do espaço

em estudo no que concerne aos bens listados. Nesse sentido, de acordo com Macêdo, terras,

escravos e gados eram os principais bens dos habitantes do Seridó no contexto da colônia,462

elementos esses presentes no inventário de Manoel de Souza.

Para concluir, retomamos o problema da ausência da qualidade de Manoel de Souza nas

fontes consultadas. Sobre esse aspecto, acreditamos que a omissão da qualidade ou mesmo o

embranquecimento oficial podem ter sido algumas das estratégias utilizadas pelos mestiços para

conseguirem se distanciar das mestiçagens e dos impedimentos que esta poderia acarretar na

ocupação de um cargo público, por exemplo. Um caso que bem demonstra isso foi narrado por

Henry Koster e discutido em nossa Introdução.463 O embranquecimento oficial pareceu ser

uma explicação evidente para o serviçal de Henry Koster quando foi questionado por este

viajante acerca da qualidade de um determinado capitão-mor. A resposta oferecida em forma

de questionamento por este serviçal é a materialização das desigualdades existentes no seio da

sociedade colonial, bem como das estratégias elaboradas e utilizadas pelos habitantes dessa

época para burlarem o que estava posto oficialmente na legislação colonial e, dessa forma,

alcançarem certa mobilidade social.

Certamente, estando ciente dos impedimentos e dos incômodos que a qualidade mestiça

poderia lhe oferecer, Manoel de Souza buscou formas de omiti-la oficialmente. Provavelmente,

o casamento com uma mulher de qualidade branca e o acúmulo de cabedal contribuíram para

que essa omissão fosse possível e para que, desse modo, conseguisse ingressar na administração

militar e jurídica da Ribeira do Seridó.

460 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Gonçalo Pereira das Neves. Inventariante:

Joaquim José de Santa Ana. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e Comarca da Paraíba do Norte,

1793. (Manuscrito). 461 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Antônio Carneiro da Silva. Inventariante:

Domingas Mendes da Cruz. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e Comarca da Paraíba do Norte,

1795. (Manuscrito). 462 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio familiar e cotidiano nos sertões do Seridó

(século XVIII). p. 87. 463 KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliana Eletrônica, 1942. p. 480.

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4.5. Manoel Guedes do Nascimento, pardo, soldado das ordenanças da Ribeira do Seridó

Às 11 horas da manhã do dia 04 de junho de 1789, na Igreja Matriz de Nossa Senhora

de Santana, localizada na Ribeira do Seridó, Manoel Guedes do Nascimento, pardo, natural da

Capitania da Paraíba, uniu-se em matrimônio a Mariana Ferreira das Neves.464 Manoel Guedes

era filho legítimo de Manoel Guedes dos Santos e Anastácia Maria,465 sobre os quais não

obtivemos nenhuma informação nas fontes consultadas.

Diferentemente do que ocorreu com Manoel Guedes, conseguimos reconstruir a

genealogia de sua esposa. Mariana Ferreira era filha de João Antônio Ferreira das Neves,

homem branco, conforme seu alistamento nas ordenanças da Ribeira do Seridó,466 e Luzia

Fernandes das Neves. Não localizamos nas fontes a qualidade de Luzia Fernandes, mas

acreditamos que esta, provavelmente, era mestiça, visto que seus filhos e netos que tiveram suas

qualidades evidenciadas, como veremos, foram definidos nas fontes paroquiais como pardos.

No entanto, não desconsideramos a possibilidade de João Antônio ser mestiço também, visto

que a qualidade era algo móvel no contexto colonial e localizamos apenas em uma ocasião a

sua qualificação enquanto homem branco. Em meio à ausência de outros registros que

evidenciem a sua qualidade, o consideraremos como branco tendo como base o seu alistamento

no serviço militar obrigatório da Ribeira do Seridó.

Nessa perspectiva, o que temos como certo, do mesmo modo como ocorreu com a

família Souza Forte, é que a genealogia dos Fernandes das Neves foi constituída por meio de

dinâmicas de mestiçagens, aspecto expresso na forma como os filhos e netos de João Antônio

foram definidos oficialmente nos registros de paróquia.

A união entre João Antônio e Luzia Fernandes resultou no nascimento de 7 filhos467 e

18 netos, como demonstra o geneagrama 4:

464 PSC. CPSJ. Livro de Matrimônios nº 1. FGSSAS, 1809-1821, fl. 6. (Manuscrito). 465 Idem. 466 Assentos de praça e Baixa entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 467 Dentre os filhos do casal citado, destacamos o caso de Joana Ferreira. Ela foi casada com Januário de Souza

Forte, membro da genealogia Souza Forte, analisada nesse estudo. É pertinente destacar que a família Fernandes

das Neves possuía laços com a família Souza Forte, visto que ambas estavam unidas pelo sacramento do

matrimônio realizado entre os filhos dos patriarcas dessas genealogias. Além disso, eram famílias que possuíam

algumas semelhanças, como, por exemplo, o fato de serem pardas e de possuírem cabedal, como discutiremos

posteriormente. Por fim, outro dado importante é concernente à qualificação de Januário de Souza. Este, quando se casou com Joana Fernandes, em 1817, foi definido como pardo e como parente de sangue de sua esposa.

Entretanto, passados 16 anos de seu matrimônio, por ocasião de sua morte, foi registrado como branco. Sobre essa

mudança de qualidade, como já pontuamos em diferentes ocasiões desse texto, a qualidade era algo móvel e podia

ser alterada ao longo da vida de um colono em decorrência do acúmulo de cabedal e de relações matrimoniais.

Assim, não nos causa espanto que isso tenha ocorrido com Januário de Souza. Ademais, um elemento que não

podemos desconsiderar nesse processo de mudança de qualidade é a própria subjetividade daquele que produziu

esse documento, bem como a distância temporal entre os dois registros de paróquia, o que pode ter provocado essa

mudança no modo como Januário de Souza foi qualificado. PSC. CPSJ. Livro de Matrimônio n° 2, FGSSAS,

1809-1821, fl. 104v. (Manuscrito). PSC. CPSJ. Livro de Óbito n° 2, FGSSAS, 1812-1838, fl. 123v. (Manuscrito).

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Geneagrama 4 – Descendência da família Fernandes das Neves

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo no software GenoPro, com base em registros paroquiais e judiciais.

João Antônio

Ferreira das

Neves

Luzia

Fernandes

das Neves

Manoel

Antônio da

Assunção

Joana

Ferreira

das Neves

Mariana

Ferreira

das Neves

Maurícia

Ferreira

das Neves

José de

Souza das

Neves

Joaquim

de Souza

Franco

Joana

de

Souza

Caetana

Maria

da Silva

Manoel

Guedes do

Nascimento

Antônio Mônica

Manoel

de Souza

Franco

Manoel SeverinoTereza Maria Salestiana Ângela

Januário

de Souza

Forte

João

Guedes do

Nascimento

Inácia

Sebastiana

da Graça

Francisca

Guedes

dos Santos

Eugênio

Gomes de

Oliveira

Ana

Guedes

José

Moreira

da Costa

Joaquim José de

Souza

França

Joana

Lins de

Vasconcelos

Maria da

Penha de

Souza

Joaquim

José da

Silva

Francisca

de

Souza

Manoel

da Silva

Ramos

Joana

Francisca

de Souza

Joaquim

Félix do

Nascimento

Narciza

Ferreira

das Neves

Manoel

de Souza

Franco

Antônia

de

Souza

Manoel

Fernandes

Ribeiro

Mariana

Pereira

de Souza

Francisco

Pereira

de Souza

Maria

da

Silva

Lourenço ?

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Além dos filhos legítimos do casal Fernandes das Neves, no geneagrama acima,

consideramos Lourenço, criança branca, falecida aos 4 meses de idade, que foi exposta na casa

dos Fernandes das Neves como filho de Luzia Fernandes e João Antônio.468 Sobre esse aspecto

da sociedade colonial, de acordo com o historiador Thiago do Nascimento Torres de Paula,

quando uma criança era exposta no contexto colonial e era acolhida por um casal, esta passava

a ser parte constituinte dessa família. Esse parentesco era constituído através das relações de

apadrinhamento, onde a criança exposta tinha nos casais que “a adotava” a figura dos seus pais.

Isso acontecia, conforme o autor citado, devido à importância do exercício da caridade em um

espaço religioso como o das Freguesias. Para Torres de Paula, o ato de acolher uma criança no

cenário colonial estava associado a um ganho simbólico em uma economia moral do dom, visto

que o retorno para esse ato “só viria após a morte, pois ser padrinho de um exposto ou mesmo

de um filho de alguém, talvez contribuísse para que a alma do colono não permanecesse muito

tempo no purgatório”.469

Em consonância com isso, o fato de uma criança ser exposta na casa de um habitante da

Colônia demonstra, dentre outros elementos, que a família escolhida por seus pais para recebê-

la possuía certo cabedal, o que possibilitava que esta fosse criada sem muitas dificuldades na

família que a acolhesse. Em decorrência disso, mesmo que uma criança fosse deixada por sua

mãe e/ou seu pai na casa de alguém, isso não significava que não houvesse uma preocupação

de seus pais com a sobrevivência tanto física quanto espiritual dela. Portanto, uma criança

exposta não se tratava de uma criança abandanoda de forma aleatória, mas sim de alguém que

foi exposta na casa de alguém que pudesse garantir a sua existência em uma sociedade delineada

pelas diferenças de qualidade e condições.470 Desse modo, Lourenço figura como o único filho

do casal que foi definido como branco, visto que os seus filhos legítimos, aqueles que tiveram

suas qualidades identificadas, foram definidos como pardos e casaram-se com pessoas de

qualidade parda.

Acerca do cabedal da família Fernandes das Neves, as informações que conseguimos

obter são oriundas dos inventários post-mortem de João Antônio e Luzia Fernandes. Desse

modo, apesar de não termos localizado os registros de óbito desse casal, conforme seu

468 Livro de Óbito n° 1, FGSSAS, 1788-1811, fl. 91v. (Manuscrito). 469 PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. Teias de caridade e o lugar social dos expostos na Freguesia de

Nossa Senhora da Apresentação, Capitania do Rio Grande do Norte, século XVIII. 2009.197p. Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 138. 470 PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. COLONOS E EXPOSTOS: uma rede solidariedade na Capitania

do Rio Grande do Norte setecentista. Mneme – Revista de Humanidades, Caicó, RN, v.9, n. 24, p. 1-12, set/out.,

2003. p. 04.

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inventários, João Antônio faleceu em 1809471 e Luzia Fernandes em 1838.472 Quando João

Antônio faleceu, figurou como sua inventariante Joana Ferreira das Neves, sua filha. Nessa

ocasião, a soma total dos bens de João Antônio foi de 702$440 réis. A soma do patrimônio

desse colono era próximo monetariamente do valor do cabedal das demais famílias residentes

no Seridó, uma vez que, conforme já assinalamos, de acordo com Macêdo, o cabedal de 69,6%

dos moradores do Seridó não ultrapassava o valor de 1:000$000, sendo que metade dessa

porcentagem estava abaixo de 500$000.473 Portanto, apesar da soma total dos bens de João

Antônio não ser tão expressiva quanto o cabedal da família Souza Forte, que apenas em terras

orçava a quantia de 2:166$000 réis,474 constituía um patrimônio significativo, que se coadunava

com os bens dos demais inventariados do período em análise.

Ademais, o inventário de João Antônio está incompleto e, portanto, não sabemos se este

valor se refere à quantia líquida de seu inventário, ou seja, ao valor total que seria repartido

entre os seus filhos órfãos e a sua esposa após o pagamento de suas possíveis dívidas. Em

consonância com isso, alguns bens desse inventariado, como demonstra o Quadro 18, estavam

ilegíveis e, portanto, não foram aglutinados ao valor total de seu patrimônio. Assim, os 702$440

réis, equivalente à soma total dos bens de João Antônio, referem-se a uma quantia que deve ser

vista de forma cautelosa devido à essas lacunas na fonte examinada.

Os bens que foram arrolados e avaliados no inventário desse colono foram

sistematizados no quadro abaixo:

Quadro 18 – Descrição dos bens de João Antônio Ferreira das Neves

Títulos Bens Valor

Dinheiro - -

Ouro Um par de botões 10$000

Prata475 Duas fivelas; quatro pares de fivelas; um

garfo; uma caixa; oito colheres

6$850

471 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Antônio Ferreira das Neves.

Inventariante: Joana Ferreira das Neves. Sítio das Almas, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1809. (Manuscrito). 472 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante: Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito). 473 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio familiar e cotidiano nos sertões do

Seridó (século XVIII). p. 87. 474 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Manoel de Souza Forte. Inventariante:

Petronila Fernandes Jorge. Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1793.

(Manuscrito). 475 Um dos pares de fivelas e o garfo estavam com os seus valores ilegíveis, o que reforça a necessidade de

observamos com cautela a soma total dos bens de João Antônio.

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Títulos Bens Valor

Cobre Um tacho 5$020

Ferro Cinco enxadas novas; quatro enxadas

velhas; cinco foices novas; uma foice velha

e quebrada; seis machados novos; um

machado grande e novo; ilegível; ilegível;

um ferro de cavar grande; um ferro

pequeno; quatro marcas de ferrar gado, em

bom uso; uma cangalha grande; ilegível;

um facão grande; uma faca de ferreiro; uma

faca pequena nova; um cadeado; um

cadeado grande

25$970

Bens móveis Três selas bastardas novas; um arção de

sela bastarda; um arção ginete; uma

cangalha; lote meio de sola curtida; oito

carros de (ilegível) curtidas; uma mesa

grande com gavetas; uma rede nova de fios

travessas bordados; uma rede velha de fio

travessa; ilegível; ilegível; doze malas

pequenas; uma mala de madeira; uma mala

grande; seis garrafões; seis garrafões de

vinho do porto; uma seda nova; uma seda já

velha; uma casaca; uma dita de pano fino;

duas véstias; uma véstia e calção; um calção de algodão; dois calções compridos

de algodão novos; duas camisas; uma

camisa; duas ceroulas de pano de linho; um

par de lençol de fustão, em bom uso; um

par de meias, em bom uso; um timão de

chita novo azul; um par de bruacas novas

grandes

166$200

Escravos476 Um escravo mulato, de nome José, de idade

de 27 anos; uma escrava cabra, de nome

Maria477, de idade de 53, doente; uma

445$000

476 Além dos escravos citados no inventário de João Antônio, localizamos nos assentos de paróquia, especificamente no livro de óbito, o registro de outras pessoas que eram escravizadas. No caso, estamos nos

referindo à escrava Cipriana e ao escravo Antônio. Cipriana, que não teve sua qualidade identificada, era filha

natural de Teotônia, escrava de Manuel Guedes da Conceição, residente no sítio das Almas. Esta escrava faleceu

aos 4 anos de idade, em 1793, e foi identificada como pertencente a João Antônio. Livro de Óbito n° 1, FGSSAS,

1788-1811, fl. 33v. (Manuscrito). Quanto ao escravo Antônio, foi identificado como preto do Gentio de Angola e

faleceu aos 30 anos de idade, em 1799 e foi identificado, também, como pertencente a João Antônio. Livro de

Óbito n° 1, FGSSAS, 1788-1811, fl. 60-61v. (Manuscrito). 477 A escrava Maria, após a morte de João Antônio, passou a pertencer a Luzia Fernandes. Esta, no entanto,

alforriou Maria no mesmo ano da morte de seu marido, precisamente no dia 21 de maio de 1809. A justificativa

para essa alforria, de acordo com Luzia Fernandes, foram os bons serviços que Maria havia lhe prestado, bem

como por sua boa companhia. Maria era a escrava mais velha da família Fernandes das Neves e, além disso, estava enferma. Esta, quando foi arrolada enquanto um bem, foi avaliada em 80$000. No entanto, a sua alforria custou

120$000, valor pago por Luzia Fernandes da sua terça. Desse modo, essa alforria, certamente, referia-se a um ato

de caridade prestado por uma cristã a uma escrava que já havia alcançando a sua velhice e estava enferma, visto

que Maria, estando idosa e doente, provavelmente não teria mais como obter a sua alforria de outro modo que não

fosse a “caridade” daqueles que a “possuíam”. Todavia, nos questionamos sobre quais caminhos Maria teria

seguido após a sua alforria, uma vez que gozando da idade que possuía e de alguma enfermidade, que não

identificada nas fontes examinadas, seria bastante difícil para esta mestiça recomeçar a sua vida como liberta em

uma sociedade tão marcada pela desigualdade de qualidade e condição. Infelizmente, não localizamos nas fontes

quais caminhos foram trilhados por Maria enquanto liberta. No entanto, não julgamos impossível que esta tenha

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Títulos Bens Valor

escrava cabra, de nome Jerônima, de idade

de 30 anos; uma escrava cabrinha, de nome

(ilegível), de idade de 8 anos; uma escrava

cabrinha, de nome Ana478, de idade de 12

anos; uma escrava cabrinha, de nome

Vicência, de idade de 5 meses; um escravo

de nome Lourenço, de idade de 10 anos

Gado Doze cavalos, um poldro (ilegível); três

(ilegível); três poldrina fêmeas; sete

cavalos capados

43$400

Soma total dos bens 702$440

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base no inventário post-mortem

de João Antônio Ferreira das Neves, 1809.

Comparando os bens inventariados por João Antônio ao patrimônio da família Souza Forte,

examinado anteriormente, é possível constatar que, apesar de João Antônio ter tido mais bens

arrolados que Manoel de Souza, estes n ão resultaram em uma soma superior ao monte maior

deste último. A explicação, como já assinalamos, para um cabedal tão expressivo quanto o de

Manoel de Souza é a quantidade de bens de raízes que este possuía. Isso acontecia porque na

dinâmica econômica da Ribeira do Seridó, os bens que eram mais valorizados monetariamente

e socialmente eram terras, escravos e gados e, apesar de Manoel de Souza não possuir gados na

ocasião de sua morte e de possuir menos escravos que João Antônio, ele era portador de uma

quantidade de terras significativa, que somavam 2:166$000, de uma quantia de 2:306$120.

Portanto, na dinâmica socioeconômica da Ribeira do Seridó o que assegurava um cabedal

expressivo monetariamente era a posse de uma quantidade significativa de terras, escravos e

gados, aspecto que é evidente quando observamos os valores atribuídos às terras possuídas por

Manoel de Souza e aos escravos que haviam pertencido a João Antônio, que, no caso deste

último, somam a quantia de 445$000 de um total de 702$440 réis.

É importante destacar que, na Ribeira do Seridó, a média de escravos por famílias era

inferior a 5, visto que na principal atividade desenvolvida nesse território colonial, a pecuária,

não era preciso um número expressivo de escravos para efetivar os cuidados com o rebanho,

permanecido na companhia de Luzia Fernandes, como agradecimento pela liberdade alcançada e pela própria

dificuldade em encontrar outras formas de sobrevivência na condição física e social na qual se encontrava.

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Antônio Ferreira das Neves. Inventariante:

Joana Ferreira das Neves. Sítio das Almas, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1809. (Manuscrito). Cartas de alforrias, 1792-1814, fl.86. 478 Ana era filha da escrava Jerônima. Esta, assim como a sua mãe, foi definida como cabra no inventário de João

Antônio. No entanto, Ana teve sua qualidade modificada quando foi alforriada em 1811. Nessa ocasião, Ana foi

definida como mulatinha, pertencente a Joana Ferreira das Neves, filha de João Antônio e que havia figurado como

inventariante de seu pai em 1809. A alforria desta mestiça foi concedida, segundo Joana Ferreira, “pelo amor que

lhe tinha e pelo amor a Deus”. Além disso, Ana deveria permanecer lhe acompanhado. Acreditamos que o mesmo

deve ter ocorrido com a escrava Maria ao ser alforriada. Por fim, a mudança de qualidade desta liberta é mais um

exemplo do quanto a qualidade era algo móvel na sociedade colonial, podendo ser alterada de acordo com a

condição e o cabedal do indivíduo em questão. Cartas de alforrias, 1792-1814, fl.102.

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200

diferentemente, por exemplo, do que ocorria nas zonas açucareiras, onde era necessário uma

quantidade significativa de escravos para manter um engenho funcionando.479 Nesse sentido,

João Antônio, na ocasião de sua morte, possuía 7 escravos, uma quantidade que consideramos

significativa e que ultrapassa a média de alguns de seus contemporâneos. É importante destacar

também que 1 desses escravos se tratava de uma criança de apenas 5 meses de idade e que outro

estava enfermo e com a idade de 53 anos. Assim, efetivamente, João Antônio possuía, de certa

forma, apenas 4 escravos em idade produtiva e que podiam auxiliá-lo, de fato, em suas

atividades laborais. Portanto, apesar de se tratar de um número significativo, quando visto de

forma qualitativa os escravos que pertenciam a João Antônio e que podiam lhe ser úteis nas

suas atividades diárias referiam-se a um quantitativo semelhante aos dos demais colonos

residentes no Seridó, o que demonstra, desse modo, a importância de uma análise metodológica

quantitativa ser efetivada em conjunto com uma análise histórica qualitativa também.

Quanto às atividades desempenhadas por João Antônio para garantir a sua sobrevivência

e lhe assegurar algum cabedal, o historiador Muirakytan Macêdo, ao examinar o cabedal das

famílias residentes no Seridó no contexto da colônia, salientou que João Antônio,

possivelmente, era um negociante devido à quantidade de gado cavalar, malas, bruacas e

cangalhas que possuía, informação com a qual concordamos.480 No entanto, acreditamos que

João Antônio, em decorrência da presença significativa de enxadas, foices e machados

desenvolvia também atividades associadas ao cultivo da terra. Essas atividades, certamente,

eram desenvolvidas por seus escravos, visto que o trabalho manual nesse contexto era tido como

um “defeito mecânico”. Desse modo, João Antônio podia trabalhar como negociante e seus

escravos como agricultores. A ausência de bens de raiz foi algo que chamou nossa atenção

nesse inventário, algo que é justificado, certamente, pelo fato dessa fonte estar incompleta, pois

sabemos que a família possuía um sítio de terras chamado Salgadinho481 e que residiu no sítio

das Almas. 482 Provavelmente, ela possuía dois bens de raiz onde eram desenvolvidas as

atividades de cultivo com a terra.

479 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do Seridó.

(Séc. XVIII). p. 213. 480 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op cit. p. 175. 481 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante:

Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito). 482 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Antônio Ferreira das Neves.

Inventariante: Joana Ferreira das Neves. Sítio das Almas, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1809. (Manuscrito).

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201

João Antônio, assim como seu genro Manoel Guedes, fazia parte das ordenanças da

Ribeira do Seridó.483 Provavelmente, foi alistado como soldado e permaneceu ocupando este

posto militar até a sua morte, uma vez que não localizamos em nenhuma outra fonte alguma

referência à atribuição de patentes a este colono ou a alguma promoção ocorrida nesse corpo

militar. O mesmo ocorreu com Manoel Guedes, que localizamos tendo o seu nome listado para

compor as fileiras das ordenanças sob a obrigação de ir guerrear, em caso de algum conflito

emergencial, no lugar onde tropa regular necessitasse de auxílio militar. Desse modo, conforme

seu alistamento no serviço não regular da colônia, datado de 1797, Manoel Guedes era um

homem pardo, de idade de 35 anos e casado.484 Este havia se unido matrimonialmente a

Mariana Ferreira, em 1789, na Matriz de Santana.485

Manoel Guedes e Mariana Ferreira tiveram seis filhos, como demonstrou o geneagrama

da família Fernandes das Neves. Conforme podemos visualizar a seguir, construímos um

geneagrama específico para a família Guedes do Nascimento, onde consideramos, além dos

filhos e genros de Manoel Guedes, os seus netos:

483 Assentos de praça e Baixa entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN 484 Assentos de praça e Baixa entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN 485 PSC. CPSJ. Livro de Matrimônios nº 1. FGSSAS, 1788-1809, fl. 6. (Manuscrito).

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Geneagrama 5 – Descendência da família Guedes do Nascimento

Manoel

Guedes

dos Santos

Anástacia

Maira

Manoel

Guedes do

Nascimento

João Antônio

Ferreira das

Neves

Luzia

Fernandes

das Neves

Mariana

Ferreira

das Neves

Francisca

Guedes

dos Santos

Eugênio

Gomes de

Oliveira

Amaro Antônio Rosa Mônica

Ana

Guedes

José

Moreira

da Costa

Joaquim Manoel Anônimo Manoel

Maria Mônica Antônio Joaquim

João

Guedes do

Nascimento

Inácia

Sebastiana

da Graça

Ignácio Maria

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203

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo no software GenoPro, com base em registros paroquiais e judiciais.

Legenda

Branco

Mulher sem identif icação

Parda

Pardo

Homem sem identif icação

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204

Como é possível visualizar no geneagrama 5, os filhos de Manoel Guedes foram

definidos como pardos. Estes, além de serem qualificados como pardos, também, contraíram

núpcias com pessoas pardas. Como exemplo, citamos o caso de Francisca Guedes.

Francisca Guedes, parda, filha de Manoel Guedes e Mariana Ferreira, casou em 1815

com Eugênio Gomes de Oliveira, igualmente pardo.486 Este casal teve 4 filhos que, assim como

seus pais, foram qualificados como pardos. Foram eles: Amaro, nascido e batizado em 1816,487

Antônio, nascido em 1819 e batizado no mesmo ano488, Mônica, nascida e levada à pia batismal

em 1820489 e, por fim, Rosa, nascida e batizada em 1822490, quando o seu irmão Amaro já tinha

6 anos de idade e Antônio já estava com três anos. Infelizmente, não localizamos nenhuma

informação acerca do patrimônio dos filhos de Manoel Guedes e Mariana Ferreira. 491 As

informações sobre os bens de Manoel Guedes também são escassas.

Não localizamos nenhum registro de inventário para este mestiço, o que nos

impossibilita de compreender com clareza o cabedal da família Guedes do Nascimento do

mesmo modo como fizemos para as famílias Souza Forte e Fernandes das Neves, às quais

Manoel Guedes estava associado pelos laços de matrimônios ocorridos entre essas. No entanto,

um requerimento presente no inventário de Luzia Fernandes, sua sogra, possibilita-nos ter

conhecimento dos bens que esse mestiço adquiriu ao casar-se com Mariana Ferreira.

Desse modo, ao unir-se com a parda Mariana Ferreira, Manoel Guedes recebeu em dote

os seguintes bens:

Quadro 19 – Bens que Manoel Guedes recebeu em dote, 1789

Bens Valor

Uma escrava mulata, de nome Theotônia, de

idade de vinte e tantos anos

100$00

Um escravo, filho da cativa Theotônia, de idade

de dez anos

30$000;

Seis vacas paridas 18$000

486 PSC. CPSJ. Livro de Matrimônios nº 2. FGSSAS, 1809-1821, fl. 68v-69. (Manuscrito). 487 PSC. CPSJ. Livro Batizados nº 2. FGSSAS, 1818-1822, fl. 94v. (Manuscrito).

Livro 2 de Batizado, p. 94v. 488 PSC. CPSJ. Livro Batizados nº 2. FGSSAS, 1818-1822, fl. 42v. (Manuscrito). 489 PSC. CPSJ. Livro Batizados nº 2. FGSSAS, 1818-1822, fl. 114v. (Manuscrito). 490 PSC. CPSJ. Livro Batizados nº 2. FGSSAS, 1818-1822, fl. 245v. (Manuscrito). 491 Os únicos registros documentais que temos acerca dos descendentes de Manoel Guedes e Mariana Ferreira são

semelhantes aos dados que citamos sobre Francisca Guedes, ou seja, apenas registros dos casamentos, nascimentos

e óbitos dos seus filhos e netos. Dessa maneira, optamos por citar apenas o caso de Francisca Guedes evitando,

dessa maneira, que nosso texto fique repetitivo para o leitor.

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205

Bens Valor

Duas garrotas, 2$000

Duas poldras 6$400

Um tacho de cobre 4$800

Dez oitavas de ouro lavrado 14$000

Soma Total: 175$200

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base no inventário post-mortem

de Luzia Fernandes das Neves.

Entretanto, esse requerimento presente492 no inventário de Luzia Fernandes, além de ser

um indicativo da união de Manoel Guedes com uma parda oriunda de uma família que possuía

certo cabedal, 493 demonstra também que, aparentemente, Manoel Guedes recebeu apenas

metade de seu dote. Isso porque, nesse documento, este mestiço afirmou, ao apresentar os bens

que recebeu em dote, que “supondo” “ter de repor ao Monte” de sua sogra “requeria se fisesse

quinhão a terça da defunta para na forma da Lei ser preenxido do que o Monte lhe devia em

dote [...]”,494 que, nesse caso, correspondia ao valor de 87$600, ou seja, metade do valor

recebido em dote quando casou com Mariana Ferreira.

Contudo, em nenhuma ocasião Manoel Guedes devolveu495 algum bem ao monte de sua

sogra, como demonstra a fonte examinada, o que pode ser um indicativo de que este pardo,

492 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante:

Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito). 493 Apesar do dote ser uma prática comum na sociedade colonial, não consistia em uma obrigatoriedade, uma vez

que só era efetivado por aquelas famílias que tinham patrimônio e que podiam dotar as suas filhas. Portanto, a

presença dessa prática nessa família de pardos é mais um indicativo da posse de cabedal entre os Fernandes das

Neves. MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do

Seridó. (Séc. XVIII). p.218 494LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante:

Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito). 495 O dote, de acordo com a legislação vigente no período colonial, era uma doação feita por uma família às suas

filhas por ocasião de seus casamentos e funcionavam como uma antecipação de suas heranças. Desse modo, a

herdeira dotada, quando da morte de um de seus pais, poderia optar por devolver ao monte de sua família os bens

recebidos esse dote. Esse processo, na documentação da época, era denominado de colação. De acordo com o

historiador Rosenilson da Silva Santos, por meio da colação, a filha dotada poderia receber a diferença de sua

herança, caso o seu dote houvesse sido menor que a herança a que teria direito na ocasião de morte de seus pais.

Todavia, ao recorrer à colação, caso o seu dote fosse maior que a herança de seus irmãos, teria que devolver a estes

a diferença monetária existente. Acerca disso, é importante destacar que a colação não era uma prática obrigatória

e a herdeira dotada poderia optar por não fazer parte da partilha dos bens de seus pais. Desse modo, caso não

recorresse à colação, a herdeira dotada teria a possibilidade de permanecer com todos os bens recebidos por ocasião

de seu casamento. Nesse sentido, a possibilidade de devolver os bens recebidos em dote ao patrimônio de sua família poderia ser utilizada de forma estratégica pelas herdeiras dotadas. Assim, consideramos pertinente salientar

que o caso de Mariana Ferreira, que se uniu a Manoel Guedes, como estamos discutindo em nosso texto, não se

tratava desse processo de colação, uma vez que Mariana Ferreira não devolveu ao monte de sua família os bens

recebidos em dote. O que houve, na verdade, de acordo com a fonte examinada, foi um receio de Manoel Guedes

de ser “obrigado” a devolver ao monte de sua sogra os bens que havia herdado em dote. Certamente, esse receio

foi oriundo do fato do cabedal de Luzia Fernandes, na ocasião de sua morte, ser suficiente praticamente apenas

para pagar as despesas de seu funeral e as dívidas contraídas anteriormente a sua morte. Nesse sentido, diante

dessa situação financeira da família Fernandes das Neves, provavelmente Manoel Guedes cogitou a possibilidade

de ser “convidado” a devolver os bens recebidos em dote ao casar com Mariana Ferreira para, desse modo, as

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provavelmente, compreendeu a ocasião do falecimento de Luzia Fernandes como uma

oportunidade para reaver parte do que lhe havia sido prometido em dote ao casar-se com

Mariana Ferreira. Além disso, com os 87$600 réis que lhe eram devidos pelo casal falecido,

Manoel Guedes conseguiria obter na Ribeira do Seridó cerca de sessenta cabeças de gado

vacum ou até mesmo um escravo, como demonstra o inventário de Martinho dos Santos

Marinho datado de 1776, que teve arroladas sessenta cabeças de gado vacum no valor de

84$000 e uma escrava, de idade de 20 anos, inventariada por 80$000496. Isso significava dizer

que, o débito que a família Fernandes das Neves possuía com Manoel Guedes não se tratava de

um valor irrisório.

Entretanto, é importante destacar que o cabedal da família Fernandes das Neves era mais

expressivo monetariamente no ano de 1809, ocasião do falecimento de João Antônio e de

inventariação de seus bens. Dessa maneira, ao passo que em 1809 o patrimônio dessa família

somava a quantia de 702$440 réis,497 no ano de 1838, a soma dos bens de Luzia Fernandes

equivalia a apenas 231$50 réis,498 ou seja, menos da metade do que havia sido inventariado há

37 anos, o que, provavelmente, deve ter feito com que Manoel Guedes ficasse receoso com a

dívidas da família serem quitadas. Contudo, a colação não era um processo judicialmente obrigatório, como

salientamos acima. Além disso, não constatamos no inventário de Luzia Fernandes a devolução dos bens que

Mariana Ferreira recebeu em dote, mas apenas o pagamento de parte dos bens que ainda haviam lhe sido

prometidos em dote. Assim, o caso em análise demonstra que o requerimento feito por Manoel Guedes solicitando

o pagamento da metade dos bens que lhe era devido em dote pela família Fernandes das Neves foi algo vantajoso

para esse mestiço, uma vez que, além de não ter devolvido os bens ao monte de sua sogra, como temia, recebeu o

pagamento de metade do dote que lhe era devido. Nessa perspectiva, podemos inclusive nos questionar se esse

requerimento feito por Manoel Guedes não foi pensado de forma estratégica para que pudesse ter acesso à

totalidade dos bens que deveria ter recebido quando se casou com Mariana Ferreira, visto que, diante de um cabedal

inexpressivo como foi o de Luzia Fernandes em 1838, não seria vantajoso monetariamente para Mariana Ferreira realizar a colação. Portanto, a possibilidade de a herdeira escolher se desejava ou não realizar a colação demonstra

como os colonos podiam fazer uso da legislação vigente no Estado do Brasil em benefício próprio, possibilidade

essa que, certamente, permitiu que Manoel Guedes não devolvesse ao monte de sua sogra os bens recebidos em

dote e, assim, não tivesse parte de seu patrimônio partilhado entre os irmãos de sua esposa na ocasião de morte da

matriarca da família Fernandes das Neves. SANTOS, Rosenilson da Silva. Quem casa quer dote: de como se

dotavam as mulheres no sertão da Capitania do Rio Grande (1759-1795). In.: MACEDO, Helder Alexandre

Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva (orgs). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na

América Portuguesa. João Pessoa: ideia; Natal: EDUFRN, 20013.p. 215. LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários

post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante: Manoel Guedes do Nascimento. Sítio

Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1838.

(Manuscrito). 496 Esses dados foram retirados do inventário post-mortem de Martinho dos Santos Marinho, falecido em 1776. 497 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Antônio Ferreira das Neves.

Inventariante: Joana Ferreira das Neves. Sítio das Almas, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1809. (Manuscrito). 498Nessa ocasião, foram inventariados os seguintes bens: Uma mesa velha e em bom uso, um banco, também em

bom uso, um banco menor e mais velho, uma caixa velha com fechaduras boas e, por fim, um sítio de terras

localizado na Ribeira do Seridó, no Salgadinho. LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário

de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante: Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila

Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito).

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207

possibilidade de devolver algum bem ao monte de sua sogra e de não ser ressarcido daquilo que

lhe era devido.

Quanto ao fato do valor do patrimônio da família Fernandes das Neves ter sido tão

inexpressivo em 1838, certamente pode ser justificado pelo fato dos bens dessa família já terem

sido inventariados em 1809 e partilhados entre os herdeiros dessa parentela. Desse modo, a

partilha efetivada em 1838 era referente apenas a uma parte do cabedal dessa família que havia

sido destinado a Luzia Fernandes no ano da morte de seu esposo, João Antônio, em 1809.

Assim, seria do valor desse cabedal que deveria ser retirado o que era devido ao mestiço Manoel

Guedes, que no contexto de morte de sua sogra figurou como seu inventariante.

Desse modo, em meio à obrigatoriedade de ter que quitar esta dívida, os herdeiros de

Luzia Fernandes concordaram que o sítio de terras Salgadinho, presente entre os bens

inventariados, deveria ser destinado para o pagamento das dívidas da família, dentre essas,

aquela com Manoel Guedes. Da mesma forma, os bens móveis inventariados deveriam ser

utilizados para o pagamento com as despesas com o funeral de Luzia Fernandes, o que

demonstra como, de fato, o cabedal da falecida, na ocasião de sua morte, era inexpressivo

quando comparado com os bens da família antes da partilha efetivada em 1809.499

Manoel Guedes, além de soldado das ordenanças da Ribeira do Seridó, exercia o ofício

de carpina500, que correspondia, na prática, a um ofício mecânico,501 o que demonstra que os

mestiços examinados nesse estudo, especificamente Manoel de Souza e Manoel Guedes,

ocupavam posições distintas não apenas no corpo militar do qual faziam parte, mas também na

sociedade colonial onde viviam.

Ademais, além de Manoel Guedes, conseguimos localizar as atividades laborais que

eram desempenhadas por outros pardos e que residiam na Ribeira do Seridó, como demonstra

o gráfico abaixo:

499 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves. Inventariante:

Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito). 500 Acreditamos que carpina pode estar associado ao ofício de carpinteiro e, em decorrência disso, acreditamos que

se tratasse de um ofício mecânico. 501 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Manoel Gonçalves de Melo. Inventariante

Manoel Gonçalves de Melo. Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1819. (Manuscrito).

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Gráfico 9 – Ofícios desempenhados por pardos na Ribeira do Seridó, séculos XVIII a XIX

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em inventários post-mortem (séculos XVIII e XIX)

Apesar de termos localizado apenas as atividades laborais que eram exercidas por 38 colonos

pardos, quantitativo diminuto se compararmos com a população mestiça existente na Ribeira

do Seridó no início do século XIX 502 , consideramos esse dado pertinente por ser um

demonstrativo dos ofícios que eram desempenhados por essa população para sobreviver no

contexto colonial em que estava inserida. Desse modo, observando o gráfico, acima é

perceptível que as principais atividades desempenhadas por pardos eram os ofícios manuais, ou

seja, atividades que não eram valorizadas na sociedade da época, uma vez que eram tidas como

“defeito mecânico”. Dentre essas, a atividade que mais esteve presente na documentação foi o

ofício “viver de suas agências”.

Viver de suas agências, segundo Bluteau, teria o seguinte significado: “Suâ agendo

industruâ, ou suâ in negotiis gerendis industriâ se sustentare. Vivo da minha agencia. Ex: me

negottis, que procuro, meam sustento [...]”.503 Ou seja, viver de suas agências possuí um sentido

amplo, remete a alguém que exercia, provavelmente, um ofício livre e com o qual se sustentava.

Portanto, não é possível afirmarmos que ofício em específico seria esse. Contudo, entendemos

502 Como aludimos no quadro 6, presente no capítulo anterior, a população masculina mestiça residente na Ribeira

do Seridó, em 1805, correspondia a cerca de 787 indivíduos, ou seja, quantitativo bastante expressivo quando

comparado com o valor presente no gráfico 9. Consideramos esse dado pertinente para entender quais atividades

eram desempenhadas por mestiços no espaço em estudo. Contudo, não é possível considerar o gráfico acima como

algo que pode ser atribuído a toda a população mestiça existente na Ribeira do Seridó, mas apenas como um

demonstrativo das diferentes atividades laborais que eram desempenhadas por essa população livre do Seridó. 503 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:

Collegio da Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. p.165-166

1

1

3

9

6

1

2

2

1

4

4

1

1

3

Carpina

Pintor

Vaqueiro

Vive de suas agências

Vive de suas criações

Escrivão de alcaide

Sapateiro

Seleiro

Vive de sua Arte de Música

Alfaiate

Vive de suas lavouras

Vive de seus negócios

Alcaide

Vive de seu trabalho

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209

que se tratava de um ofício onde o colono atuava de forma autônoma em busca de seu sustento,

certamente trabalhando naquilo que estivesse disponível e que pudesse garantir a sua

sobrevivência e de seus familiares.

Dentre os ofícios presentes no gráfico 9, consideramos pertinentes os cargos de alcaide

e escrivão de alcaide. Esses cargos pertenciam à administração civil da sociedade colonial.

Segundo Graça Salgado, o alcaide, em específico, consistia em um cargo em que o colono era

escolhido pelo governo municipal através de uma lista tríplice e, para tanto, necessitava ser um

“homem bom” e casado.504 Nesse sentido, como já discutimos em outras ocasiões, ser “homem

bom” na sociedade colonial remetia a alguém que fosse de qualidade branca e, dentre outros

elementos, sem defeito mecânico. Contudo, Antônio José Vitoriano, o colono que ocupou o

posto de alcaide na Ribeira do Seridó, era pardo e antes de atuar como parte da administração

civil havia exercido o ofício de sapateiro, ou seja, possuía defeito mecânico.505

Da mesma forma, o ocupante do cargo de escrivão de alcaide, Martinho Soares de

Oliveira, foi definido como pardo, ou seja, nem sempre o que estava posto na legislação colonial

era de fato cumprindo. As justificativas dessas burlas eram distintas, mudavam de acordo com

a dinâmica econômica e social de cada capitania do Estado do Brasil. Na Capitania do Rio

Grande, por exemplo, foi a falta de colonos brancos que possibilitou o ingresso de mulatos no

governo municipal. Na Ribeira do Seridó, percebemos que foram poucos os mestiços que

ingressaram na administração civil. Dentre os que ingressaram, havia entre eles alguns

elementos em comum: eram pardos, portadores de terras, de escravos e ocupavam postos de

menor importância na hierarquia dos cargos municipais, à exceção de Manoel de Souza, que

exerceu o posto de juiz de órfãos. Desse modo, acreditamos que esses elementos comuns, como

a posse de cabedal e o fato de serem majoritariamente pardos possibilitou que alguns mestiços

se inserissem na administração colonial do espaço em estudo, como demonstra o quadro abaixo:

504 SALGADO, Graça, coord. Fiscais e meirinhos - a administração no Brasil colonial. p.137. 505 Antônio José Vitoriano foi definido como pardo em 1814, nessa ocasião figurou como testemunha de uma

justificação de dívida no inventário de Manoel Diniz Barreto. Nesse documento, Antônio José foi descrito como

tendo 46 anos de idade, residente na Vila do Príncipe e como ocupante do ofício de sapateiro. Já no inventário de Margarida Cardoso, efetivado em 1826, este mestiço, ao testemunhar outra dívida, foi definido como mulato,

residente da Vila do Príncipe e como ocupante do posto de alcaide. Esses dados demonstram mais uma vez o

quanto a qualidade era algo móvel na sociedade colonial e, em consonância disso, a possibilidade de mestiços

ingressarem em instituições administrativas do ultramar, seja no âmbito civil e/ou militar. LABORDOC. FCC.

1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Manoel Diniz Barreto. Inventariante: Francisco Dantas de Farias.

Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1814. (Manuscrito). LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários

post-mortem. Inventário de Margarida Cardoso. Inventariante: Joana Barreto. Sítio Barra de Baixo, Ribeira das

Piranhas, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1826.

(Manuscrito).

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Quadro 19 – Mestiços506 que fizeram parte da administração civil

da Ribeira do Seridó

Nome Qualidade Cargo e/ou patente Posse de terras507 Inventário

Manoel de Souza

Forte (2º), casado

com Petronila

Fernandes Jorge

Provável Mestiço Juiz de Órfãos Sim Sim

Serafim Francisco

de Melo casado

com Maria Rosa

Teixeira

Pardo Porteiro Sim -

Antônio Lopes

Cardoso, casado

com Maria Martins de Oliveira

Pardo Alcaide - -

Antônio José

Vitoriano, casado

com Maria da

Costa

Pardo Alcaide - -

Manoel de Jesus,

casado com Josefa

Maria dos Santos

Pardo Alcaide

- Sim

Manuel Antunes

do Ó, casado com

Úrsula Antunes

Pardo Alcaide - -

Martinho Soares

de Oliveira

Pardo Escrivão de Alcaide Sim -

Fonte: Elaborado por Maiara Araújo com base em judiciais (Comarca de Caicó e Acari)

e paroquiais (Freguesia do Seridó).

Nesse sentido, acreditamos que esses dados demonstram que, apesar das hierarquias presentes

na sociedade colonial estabelecidas com base na qualidade e condição dos colonos, alguns

mestiços conseguiram ingressar no governo municipal dos espaços onde residiam. Esse

processo não ocorria de forma homogênea, linear e nem incluía toda a população, mas apenas

uma parte dela, aquela constituída, principalmente, por pardos e, preferencialmente, por aqueles

que possuíam certo cabedal. Ademais, é importante destacar que, com exceção de Manoel de

Souza, os demais mestiços citados e examinados não tiveram um cabedal tão expressivo e nem

ocuparam cargos na administração civil (juiz de órfãos) e militar (capitão de companhia) muito

importantes na hierarquia administrativa da época. Portanto, até o momento, existe um padrão

entre os mestiços que conseguiram ingressar em instituições administrativas da Ribeira do

Seridó, pois esses eram pardos ou possuíam relações biológicas com pardos, alguns possuíam

terras, gados e escravos e ocupavam cargos não tão importantes, como o posto de alcaide na

administração civil.

506 Seria possível tecer uma análise sobre aspectos da trajetória de vida desses mestiços. Contudo, consideramos

que isso extrapolaria os limites que estabelecemos para este capítulo. 507 Estamos considerando como posse de terras tanto aquelas que foram obtidas por meio de solicitações à Coroa,

ou seja, as sesmarias, quanto as que foram obtidas através de compra ou herança familiar.

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211

Por fim, ao longo desse capítulo, o macro (Capitania do Rio Grande) e o micro (Ribeira

do Seridó) espaços se encontraram no intento de entender como estava sistematizada a

administração militar no Rio Grande após a Guerra dos Bárbaros e qual o lugar que o colono

mestiço ocupou nessa instituição, tanto nas forças regulares quanto nas ordenanças. Nesse

sentido, salientamos a importância desse intercurso de escalas espaciais para a compreensão

quantitativa e qualitativa do fenômeno histórico bem como do cruzamento de diferentes fontes

históricas que possibilitem, por exemplo, a reconstrução de aspectos de trajetórias de vidas dos

habitantes da sociedade colonial, visto que as lacunas, quando se trata desse contexto histórico,

são muitas, mas podem ser amenizadas quando diferentes tipologias de fontes são examinada.

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212

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordamos, neste trabalho, uma problemática pouco estudada na historiografia

produzida sobre o contexto colonial do Rio Grande do Norte: a temática das mestiçagens

associada à administração militar. Apesar das dinâmicas de mestiçagens e da instituição militar

da administração colonial terem sido pouco investigadas pela historiografia potiguar, um

conjunto de estudos que abordam os processos de ocupação e territorialização da Capitania do

Rio Grande bem como o surgimento e organização de algumas instituições administrativas

desse território como a fazendária e a civil foi produzido nos últimos anos no Mestrado em

História e Espaços da UFRN.508 Consideramos esse dado bastante pertinente, visto que ele

materializa a existência de um interesse pelo estudo de temáticas associadas ao período colonial

do estado do Rio Grande, o que possibilitou que o nosso estudo fosse produzido em contato

com essas pesquisas recentes e que se somasse às mesmas no intento de compreender a

sociedade existente na Capitania do Rio Grande no contexto em análise.

Nesse sentindo, partindo de um diálogo com as fontes examinadas, com essa

historiografia produzida mais recentemente na academia, bem como com outras pesquisas

realizadas acerca do contexto colonial do Rio Grande, constatamos em nossa investigação que

o processo de institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande ocorreu

de modo processual, em consonância com a ocupação e territorialização empreendidas pelos

representantes da Coroa nesse espaço. Em conjunto com isso, percebemos também que, assim

como ocorria em outras capitanias do Estado do Brasil, as tropas regulares existentes no Rio

Grande e atuantes na Cidade do Natal e na Fortaleza dos Reis Magos foram submetidas a um

conjunto de elementos – o estado precário da Fortaleza, a falta de munição, armamentos e

suprimentos – que tornavam precária a atuação dessas forças militares e que resultavam em

constantes fugas dos soldados que vinham de Pernambuco para guarnecerem nesse espaço na

segunda metade do seiscentos.

Nosso estudo constatou, ainda, que o contexto da Guerra dos Bárbaros reuniu homens

de diferentes qualidades e naturalidades nas forças regulares e auxiliares atuantes nesse conflito

bélico. Entretanto, a presença de índios, mestiços e brancos atuando de forma conjunta no Terço

dos Paulistas, por exemplo, não resultou na eliminação das desigualdades existentes na

sociedade colonial em análise. Na verdade, essas desigualdades se tornaram ainda mais

palpáveis quando percebemos, por exemplo, que os índios, diferentemente dos colonos brancos

508 Esses trabalhos foram registrados nos Apêndices A e B.

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e mestiços, recebiam pelos serviços militares prestados apenas meio soldo. Além disso, os

índios ocuparam majoritariamente o posto de soldado, mesmo estes sendo quantitativamente

superiores aos demais militares atuantes nesse contexto, o que demonstra que o ingresso de

nativos nas forças militares do Rio Grande, especificamente na Guerra dos Bárbaros, não

ocorreu com o interesse de integração desta população às forças militares existentes no que

concerne à existência de um tratamento igualitário. Os índios, aparentemente, foram utilizados

apenas como homens de guerra em uma situação emergencial e, posteriormente, foram reunidos

em aldeamentos e requisitados, inclusive, como cativos pelos morados do Rio Grande.509

Ainda acerca da presença indígena na Guerra dos Bárbaros, constamos que esses eram

referentes a 33,82%, enquanto que os colonos mestiços, brancos e pretos representavam

16,67%, 7,49%, 3,86% respectivamente. Esse dado é interessante porque, na prática, demonstra

que essa guerra foi um conflito bélico de índios contra índios, ou, em outros termos, de índios

aliados as tropas coloniais contra os índios dos sertões que resistiram ao processo de ocupação

e de territorialização de suas terras.

Quanto aos mestiços, um dado interessante que constatamos foi a forte presença de

pardos e trigueiros nas forças regulares do Rio Grande na primeira metade do setecentos. Na

companhia de Francisco Ribeiro Garcia, por exemplo, existiam 24 colonos identificados como

mestiços e 9 colonos qualificados como brancos. Essa companhia certamente atuava na

Fortaleza dos Reis Magos, visto que, dentre os militares que a constituíam, um foi identificado

como soldado artilheiro da Fortaleza da Barra de Natal, ou seja, da Fortaleza dos Reis Magos510.

Acerca da presença de mestiços nas forças regulares da colônia, como salientamos, mesmo essa

não sendo uma prática permitida pela legislação colonial, não foi uma particularidade da

Capitania do Rio Grande. Em Pernambuco, por exemplo, a historiadora Kalina Silva constatou

que a presença de colonos não brancos nas forças regulares estava associada às dificuldades

para o recrutamento de homens brancos para atuarem nessa força militar. No entanto,

diferentemente da Capitania do Rio Grande, em Pernambuco os colonos mestiços eram

embranquecidos no momento em que se matriculavam no serviço militar, ou seja, passavam a

serem identificados oficialmente como brancos.511

509 CARTA dos oficias da Câmara de Natal ao rei [D. João V] sobre vários processos referentes aos índios cativos

que eram dados como forros, ficando os seus senhores legais obrigados a grandes gastos para reavê-los. Anexo:

informação do governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire de Andrade, 1741. Papéis avulsos, Cx. 4,

doc. 57. 510 Assentos de praça e Baixas entre os anos de 1726 a 1820 – Arquivo Histórico do IHGRN. 511 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar na Conquista do Sertão

de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. p. 176.

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Na documentação militar referente à Capitania do Rio Grande, até o momento, não nos

deparamos com casos de embranquecimento oficial de mestiços para justificarem a presença

dos mesmos nas tropas regulares da Capitania. Entretanto, nas fontes paroquiais consultadas

referentes especificamente à Ribeira do Seridó, constatamos um caso de invisibilização das

mesclas biológicas ocorridas em uma genealogia de indivíduos pardos. Esse processo de

invisibilização da qualidade mestiça ocorreu especificamente na família Soares de Oliveira, que

tinha como patrono o mestiço Martinho Soares de Oliveira, filho de Rosa Maria, natural de

Angola, e João Batista de Oliveira, natural do Alentejo.512

Com relação à presença de mestiços nas forças militares da Ribeira do Seridó,

constatamos que o perfil social dos soldados das companhias das ordenanças desse território

era distinto do perfil social dos colonos que ocupavam postos oficiais nas ordenanças. Desse

modo, tendo como base o perfil social dos oficiais das ordenanças, em um universo amostral

de 85 militares, 37 foram definidos como brancos, 10 como sendo pais de colonos brancos e

apenas 3 colonos foram identificados como possuindo genealogias constituídas através das

dinâmicas de mestiçagens, ou seja, apenas três colonos brancos possuíam patentes militares,

quantitativo bastante diminuto quando comparado aos 37 colonos que eram brancos e aos 10

que eram pais de branco. Contudo, esse é um dado que dialoga com o que foi posto no

Regimento das Ordenanças em 1570 acerca da preferência de homens de “qualidade” para

ocuparem os postos oficiais desse corpo militar, aspecto que não se estendia ao posto de

soldado, que deveria ser ocupado por todos os homens em idade produtiva de um determinado

território colonial.513

O fato de termos localizado, além desses 3 mestiços, 6 homens pardos ocupando cargos

pertencentes ao governo municipal - como o posto de alcaide e escrivão de alcaide, conforme

foi aludido no quadro 18 do terceiro capítulo – permite-nos afirmar que, mesmo os colonos

brancos ocupando majoritariamente os cargos civis e militares mais importantes na hierarquia

administrativa dessas instituições na Ribeira do Seridó, alguns colonos mestiços conseguiram

fazer parte da administração civil e militar do espaço em análise. Esses mestiços, nas fontes

examinadas, à exceção de Manoel de Souza Forte, foram definidos como pardos, possuíam

certo cabedal expresso na posse de escravos, gados e terras e ocuparam postos menos

512 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Martinho Soares de Oliveira. Inventariante:

Vicência Ferreira. Sítio Barbosa, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do

Norte, 1798. (Manuscrito). 513 Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo, e de pé; e da

ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, Tomo V. Lisboa, 1570.

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importantes na hierarquia dos cargos civis e militares da Ribeira do Seridó, como o cargo de

alcaide, no caso da administração civil. Portanto, acreditamos que o fato desses homens serem

pardos e possuírem certo cabedal possibilitava esse ingresso nas instituições existentes na

Ribeira do Seridó. Todavia, isso não era o comum e existiam muitos mestiços que eram

definidos como pardos e que desempenhavam ofícios mecânicos e ocupavam apenas o posto

de soldado das ordenanças.

Dessa maneira, é preciso que esteja claro que estamos nos referindo a alguns casos

singulares de mestiços, como Manoel de Souza Forte, que romperam com a lógica social

desigual da época e conseguiram ascender socialmente e ingressar em instituições da

administração colonial. No caso de Manoel de Souza, como aludimos, este provável mestiço,

além de um cabedal expressivo, ocupou o cargo de juiz de órfãos da Ribeira do Seridó na

segunda metade do setecentos, atuou também como capitão de companhia das ordenanças e

tenente-coronel da cavalaria das ordenanças desse território514. O caso singular desse provável

mestiço, pai de pardos e sesmeiro é bem distinto do caso de Manoel Guedes. Este último, apesar

de ter se unido em matrimônio com uma mulher parda pertencente a uma família que também

possuía cabedal, ocupou apenas o posto de soldado das ordenanças e exercia um ofício

mecânico515. Contudo, também possuía cabedal expresso na posse de escravos e gados, o que

demonstra a heterogeneidade no modo de viver desses mestiços. Essa situação também

demonstra que nem sempre a posse de cabedal resultava na ocupação de um posto militar

importante, visto que nem Manoel Guedes nem o seu sogro, João Antônio, possuíam patentes

militares e em vida foram arrolados apenas como soldados das ordenanças.

É importante destacar que as estratégias utilizadas por esses mestiços para ascender

socialmente foram muitas. Um exemplo disso é o caso da ex-escrava Catarina Maria de Jesus,

definida inicialmente como mulata e que passou de cativa a dona de escravos ao casar-se com

Francisco Taveira da Conceição. Após isso, a sua qualidade também foi alterada, certamente

na tentativa de se distanciar do universo da escravidão e ela passou, dessa forma, a ser definida

como parda, mãe de pardos e que possuía também cabedal expresso na posse de terras e

escravos.516

Outro dado presente em nosso estudo é referente à relação existente entre a

administração militar e a produção de territórios coloniais. Acerca disso, demonstramos que os

514 PSC. CPSJ. Livro de Óbitos nº 1. FGSSAS, 1788-1811, fl. 143v. (Manuscrito) 515 PSC. CPSJ. Livro de Matrimônios nº 1. FGSSAS, 1809-1821, fl. 6. (Manuscrito). 516 LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da Conceição.

Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba

e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito). Cartas de alforrias, 1792-1814, fl. 64.

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oficiais militares não possuíam um papel restrito aos combates bélicos. Os militares, nesse caso

o oficialato das ordenanças, também participou ativamente do processo de territorialização dos

espaços coloniais que antes haviam sido palcos dos embates com nativos, como demonstra o

caso da Ribeira do Seridó. Desse modo, examinando os requerimentos de sesmarias efetivados

após a Guerra dos Bárbaros para esta Ribeira, constatamos um número significativo de

sesmeiros que possuíam patentes militares e alguns deles haviam guerreado contra os nativos

nesse conflito bélico. Nesse sentido, esse dado é pertinente por demonstrar, de certa forma, a

imbricação dos interesses existentes na sociedade colonial, uma vez que, enquanto a metrópole

desejava expandir o seu projeto colonial e obter lucros com este, os colonos que habitavam o

Norte do Estado do Brasil e que lutaram na guerra citada desejavam obter terras e mercês, que

seriam convertidos em cabedal monetário e social.

Por fim, esperamos que nossa pesquisa tenha preenchido algumas das lacunas referentes

ao estudo da problemática das mestiçagens associada à administração militar na Capitania do

Rio Grande. Esperamos também que este trabalho desperte o interesse de outros pesquisadores

para o estudo das temáticas citadas e que em diálogo com estes possamos compreender ainda

mais como se relacionavam os mestiços com as instituições administrativas existentes no

período colonial e quais estratégias utilizavam para lidarem com as interdições que eram postas

oficialmente nesse contexto àqueles que eram produtos das mesclas biológicas e, em alguns

casos, possuíam também defeito mecânico.

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FONTES

1 MANUSCRITAS

1.1 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

AHU – Lisboa, Portugal

Documentos manuscritos microfilmados, digitalizados e integrando CD-ROM do Projeto

Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco

CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [Dom Afonso VI] sobre o estado de ruína da

Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições, 1665. Papéis avulsos, Cx.

1, doc. 5.

CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Valentim Tavares Cabral, ao rei [D. Afonso

VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e

munições. AHU-RIO GRANDE DO NORTE. 1665. Cx. 1; doc. 5.

CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao príncipe regente D. Pedro, sobre a carta do capitão-

mor da Paraíba, Alexandre de Sousa e Azevedo, acerca da ruína da fortaleza do Cabedelo, 1680.

AHU, Papéis Avulsos, Cx. 2, doc. 109.

CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], João de Barros Braga, ao rei [D. João V]

informando que era costume local permitir a ocupação de cargos públicos por mulatos e

mamelucos por falta de homens brancos, e pedindo que não se permitisse mais este costume,

1732. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 3, doc. 18.

CARTA do Governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, ao rei [D. João V] sobre

a indicação de pessoas para os postos de mestre-de-campo do Terço de Auxiliares e de capitão

das nove companhias do Rio Grande do Norte. Anexo: documentos de serviço das pessoas

indicadas para os postos e carta do governado de Pernambuco, 1741. AHU, Papéis Avulsos,

Cx. 5, doc. 10.

CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte Francisco Xavier de Miranda Henriques ao

rei [D. João V] enviando mapas do Regimento de Cavalaria e do Terço dos Auxiliares, 1744.

Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 288.

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CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao

rei [D. João V] sobre o motivo por que não cumprira a ordem para enviar a lista do número dos

moradores e mapa das ordenanças. Anexo: carta do governador de Pernambuco, D. Marcos de

Noronha, 1746. Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 303.

REQUERIMENTO de João Baptista Pereira ao rei [D. José] pedindo confirmação da carta

patente do posto de capitão de infantaria das Ordenanças de Pé do Regimento da cidade do

Natal, passada pelo capitão-mor Francisco Xavier de Miranda Henriques. Anexo: carta patente,

1750. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 5, doc. 12.

CARTA PATENTE do [capitão-mor do Rio Grande do Norte] Francisco Xavier de Miranda

Henriques, provendo Manuel Coelho Serrão no posto de capitão de infantaria das Ordenanças

do Regimento da Ribeira do Potengi de que é Coronel Teodósio Ferreira de Amorim, 1751.

AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 4.

REQUERIMENTO de Gaspar de Paiva Baracho ao rei [D. José] pedindo confirmação de carta

patente do posto de capitão de infantaria das Ordenanças da Ribeira da Goianinha do regimento

de que é coronel Teodósio Ferreira de Amorim, passada pelo capitão-mor Francisco Xavier de

Miranda Henriques. Anexo: carta patente; carta do capitão-mor Pedro de Albuquerque e Melo;

provisão (cópia), 1751. AHU-RN, Papéis avulsos, Cx. 6, doc. 10.

REQUERIMENTO do sargento-mor Antônio de Paiva da Rocha ao rei [D. José] pedindo

confirmação da carta patente do posto de capitão de infantaria das Ordenanças da Ribeira de

Mopebu de que é coronel Teodósio de Ferreira de Amorim, passada pelo capitão-mor Francisco

Xavier de Miranda Henriques. Anexo: carta patente, carta do capitão-mor e provisões (2,

cópias), 1751. AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 6, doc. 358.

OFÍCIO do sargento-mor e governador interino do Rio Grande do Norte Caetano da Silva

Sanches, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro, sobre o

estado da capitania à data da sua posse; epidemia de bexigas; escassez de carne, farinha e peixe;

falta de militares e armamento; dando conta das providências tomadas, nomeadamente a

arrematação do contrato das carnes e queixando-se da falta de jurisdição e autoridade para

prover oficiais de justiça e fazenda e passar patentes e cartas de sesmaria. Anexo: atestação dos

oficiais da Câmara de Natal, mapa do rendimento dos contratos dos dízimos, mapa dos corpos

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auxiliares e companhias de infantaria, mapa do armamento da Fortaleza dos Reis Magos e

provisão, 1795. Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 483.

CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de

Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população do Rio Grande

do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de ordenanças.

Anexo: 2ª via; provisão (cópia); “mapa da população da Capitania do Rio Grande do Norte,

com declaração dos seus empregos, militares e civis, e capitães-mor e ordenanças das

respectivas vilas e freguesias, tanto brancos como índios, até 31 de Dezembro de 1805”. e

“relação dos distritos, que necessitam novas companhias de ordenanças na Capitania do Rio

Grande do Norte, com declaração das vilas a que pertencem”, 1805. Papéis avulsos, Cx. 9, doc.

623.

CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de

Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] sobre as ordens para que os índios sejam

contemplados nas comarcas com cargos de vereadores e de juízes. Anexo: 2ª via, 1806. AHU-

RN, Papéis avulsos, Cx. 9, doc. 30.

1.2 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE –

IHGRN, Natal-RN

Caixa Militares – mostra e pagamento das tropas (sem data)

Caixa Registros de patente e militar (sem data)

Caixa Provisões Reais – Registro de Patentes (1738 a 1816)

Caixa Registro de Patentes (sem data)

Caixa Registro de Patente (1742)

Caixa Registro de Patentes (1819)

Caixa Baixa (1698-1699-1716-1749-1750-1755-1760-1762-1763-1764-1765-1766-1767-

1768-1775-1780-1781-1782-1785-1786-1789-1790)

Caixa Assentamento de Praça (1698 a 1806)

Caixa Assentamento de Praça (1786 a 1826)

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1.3 LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA

LABORDOC – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ensino Superior do Seridó, Campus de Caicó

Caicó-RN

1.3.1 Livros de registros paroquiais, Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

(1788-1857)

Livro de Batismos nº 1, 1803-1846.

Livro de Casamentos nº 1, 1788-1809.

Livro de Casamentos nº 2, 1809-1849.

Livro de Óbitos nº 1, 1788-1811.

Livro de Óbitos nº 2, 1812-1838.

1.3.2 Fundo da Comarca de Caicó, 1º Cartório Judiciário

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem – 1737-1830.

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Euzébio da Costa Torres.

Inventariante. Maria Mendes Ferreira. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e

Comarca da Paraíba do Norte, 1790. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Álvares de Oliveira.

Inventariante: Antônia Correia de Barros. Fazenda do Olho D’Água, Ribeira do Seridó, Termo

da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1791.

(Manuscrito)

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de José Álvares de Freitas.

Inventariante: Ana Theresa Cavalcanti. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e

Comarca da Paraíba do Norte, 1791. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Gonçalo Pereira das Neves.

Inventariante: Joaquim José de Santa Ana. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e

Comarca da Paraíba do Norte, 1793. (Manuscrito).

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LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Manoel de Souza Forte.

Inventariante: Petronila Fernandes Jorge. Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e

Capitania da Paraíba do Norte, 1793. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Antônio Carneiro da Silva.

Inventariante: Domingas Mendes da Cruz. Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande e

Comarca da Paraíba do Norte, 1795.

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Ana Francisca Cunha.

Inventariante: Francisco Taveira da Conceição. Sítio Serra das Queimadas, Ribeira do Seridó,

Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1797.

(Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Martinho Soares de Oliveira.

Inventariante: Vicência Ferreira. Sítio Barbosa, Termo da Vila Nova do Príncipe, Comarca da

Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1798. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de João Antônio Ferreira das

Neves. Inventariante: Joana Ferreira das Neves. Sítio das Almas, Termo da Vila Nova do

Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1809. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Francisco Taveira da

Conceição. Inventariante: Catarina Maria de Jesus. Ribeira do Seridó, Termo da Vila Nova do

Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1816. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Manoel Gonçalves de Melo.

Inventariante Manoel Gonçalves de Melo. Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte,

1819. (Manuscrito).

LABORDOC. FCC. 1°CJ. Inventários post-mortem. Inventário de Luzia Fernandes das Neves.

Inventariante: Manoel Guedes do Nascimento. Sítio Salgadinho, Termo da Vila Nova do

Príncipe, Comarca da Paraíba e Capitania da Paraíba do Norte, 1838. (Manuscrito).

Cartas de alforrias – 1792-1814.

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1.4 FONTES IMPRESSAS

Regimento dos Capitaes mores, e mais Capitaes, e Oficiais das Companhias da gente de cavalo,

e de pé; e da ordem que terão em se exercitarem, 10 de dezembro de 1570. Systema, ou

Collecção dos Regimentos Reaes, compilado por José Roberto de Campos Coelho e Sousa,

Tomo V. Lisboa, 1570.

Provisão sobre as ordenanças agora novamente feita com algumas declarações que não estavam

nos Regimentos, 15 de maio de 1574. Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes,

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232

APÊNDICE A – DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA

No que concerne às pesquisas que buscaram examinar o processo de territorialização de

espaços pertencentes à Capitania do Rio Grande, citamos as dissertações de mestrado de

Patrícia de Oliveira Dias e Tyego Franklin da Silva. No estudo desta última, intitulado Onde

fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da Ribeira do Apodi-Mossoró

(1676-1725), a autora problematizou o processo de territorialização da Capitania do Rio Grande

após a invasão holandesa, discutindo, dessa forma, como os conquistadores foram desbravando

o interior da Capitania, em busca de terras para a criação de gado, seguindo o curso dos rios.

Neste texto, Patrícia Dias deu ênfase à formação territorial das ribeiras do Apodi e Mossoró,

percebendo as estratégias de manutenção da posse dessas terras e as atividades econômicas

desenvolvidas nas mesmas517. Já Tyego Silva, discutiu a territorialização da Ribeira do Assú,

entre 1680 a 1729, percebendo os conflitos que estiveram presentes nesse processo de ocupação

e construção de território no Assú colonial518.

Com relação à institucionalização e funcionamento de instâncias da administração

colonial instauradas no Rio Grande, citamos o trabalho da historiadora Lívia Brenda da Silva

Barbosa, que examinou a fundação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande e a

organização de seu quadro de funcionários, entre os anos de 1606 a 1723. Em seu estudo, a

autora constatou que, na primeira metade do século XVII, a maior parte das despesas da

Capitania era destinado à folha militar. A principal explicação para isso era que o Rio Grande

estava inserido na política de expansão da fronteira colonizadora do Estado do Brasil em direção

ao Norte e, nesse caso, a Fortaleza dos Reis Magos, de acordo com a autora, funcionava como

um suporte militar, fornecendo homens e mantimentos para as expedições e saídas da Paraíba

e Pernambuco519.

Para a Capitania do Rio Grande foram realizados, ainda, estudos sobre a Câmara de

Natal. Sobre essa temática, citamos o estudo de Kleyson Bruno Chaves Barbosa que, em síntese,

517 DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira

do Apodi-Mossoró. 2015, 187 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do rio Grande do

Norte, Natal. 518 SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização do

Assú colonial (1680-1720). 2015. 175 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do rio Grande

do Norte, Natal- RN). 519 BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Das ribeiras o tesouro, da receita o sustento: a administração da

Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1606-1723). 2017, 227 f. Dissertação (Mestrado em História) -

Universidade Federal do rio Grande do Norte, Natal- RN. p.78-79.

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233

discutiu, dentre outros elementos, o perfil dos homens ocupantes de cargos camarários na

Cidade do Natal, entre 1720 a 1759520.

Por fim, citamos também os estudos de Abimael Esdras Carvalho de Moura Lira e de

Helder Macedo. Em linhas gerais, Lira, teve como principal preocupação o ofício de escrivão

da Câmara de Natal, entre 1613 a 1759. Helder Macedo, também se preocupou com exame de

uma instituição colonial de cunho civil, no caso, este historiador se voltou para a análise do

processo de institucionalização do Senado da Câmara da Vila Nova do Príncipe, sertões da

Capitania do Rio Grande, entre 1788 a 1822. Macedo521, em detrimento de Lira522, neste estudo

de forma específica, esteve mais preocupado com análise dessa instituição colonial e não com

o quadro civil-administrativo que o constituía, ou seja, com os homens que atuavam como juízes

ordinários, de órfãos e, dentre outros, com os escrivães.

520 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida nobreza: Governança

local na Capitania do Rio Grande (1720-1759). 2017, 323 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade

Federal do rio Grande do Norte, Natal- RN. 521 MACEDO, Helder Alexandre de. O Senado da Câmara da Vila Nova do Príncipe (1788-1822). In.: ANDRADE,

Juciene Batista Felix; BUENO, Almir de Carvalho; MACÊDO, Muirakytan K. de Macêdo. Et al. (Orgs.). História

& Memória da Câmara Municipal de Caicó. Natal; Caicó: EDUFRN; SESC/ RN, 2016. 522 LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. “Um Império de Papel”: Um histórico do ofício de escrivão da

Câmara do Natal (1613-1759) 2018, 400 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do rio

Grande do Norte, Natal- RN.

Page 234: TROPAS PAGAS E ORDENANÇAS: PERFIL SOCIAL DOS …...importante da minha vida, o nascimento da minha Alice, o que significa afirmar que cada página desse texto foi construída com

234

APÊNDICE B – DIOGO DE CAMPOS MORENO, SARGENTO-MOR QUE ESTEVE

À SERVIÇO DA COROA NO ESTADO DO BRASIL

Diogo de Campos Moreno foi nomeado Sargento-mor do Estado do Brasil em 1602.

Este militar foi responsável pela escrita de dois relatórios encomendados por Filipe II, que

tratam de aspectos econômicos e administrativos do Estado do Brasil, principalmente no que se

refere ao aspecto militar da burocracia colonial presente nesse território. O primeiro relatório

foi intitulado Relação das praças e fortes e coisas de importância que Sua Magestade tem na

Costa do Brasil e data de 1609. Este é constituído por informações concernentes às capitanias

do Rio Grande, Paraíba, Pernambuco e, dentre outras, Bahia. Já o Livro que dá razão do Estado

do Brasil foi escrito entre 1611 e 1612 e apresenta informações detalhadas acerca da dinâmica

econômica e administrativa das capitanias do Rio Grande, Paraíba, Pernambuco, Itamaracá,

Bahia, Porto Seguro, Sergipe e Ilhéus. Segundo Maria Berthilde Moura Filha, na ordem real

dada para construção desse livro foi posto que o mesmo deveria destacar o funcionamento das

capitanias que pertenciam a donatários e as que eram capitanias reais, o que leva a crer que à

Coroa desejava perceber os benefícios e os problemas do sistema de capitanias hereditárias,

bem como ter conhecimento do Estado do Brasil para, dessa forma, melhor administrá-lo no

contexto de união das Coroas portuguesa e espanhola523.

Diogo de Campos Moreno esteve no Estado do Brasil em diferentes ocasiões, desde

1602. Conforme a Base de Dados BRASILHIS, o itinerário de Campos Moreno no Estado do

Brasil e na Europa foi o seguinte:

1602 – Lisboa, Salvador;

1603 a 1604 – Salvador, Paraíba, Itamaracá, Olinda, Rio Grande;

1605 – Salvador, Lisboa, Valladoid;

1608 – Salvador, Paraíba, Recife, Cidade do Natal;

1610 – Salvador, Porto Seguro;

1611 – Salvador, Cidade do Natal;

1612 a 1613 – Salvador, Lisboa, Madri;

1614 – Lisboa, Recife; 1614 – Recife, Cidade do Natal, capitania do Ceará, Guaxenduba; 1615

– Maranhão, Lisboa, Madri, Recife; 1615 – Recife, Maranhão, Recife.

523 MOURA FILHA, Maria Berthilde. O livro que dá “Razão do Estado do Brasil” e o povoamento do território

brasileiro nos séculos XVI E XVII. Revista da Faculdade de Letras, Porto, v. 2, p. 591-613, 2003.

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Certamente, o conhecimento que Campos Moreno possuía do território do Estado do

Brasil fez com o que este fosse escolhido pela Coroa para relatar o funcionamento de sua

possessão no continente americano. Por fim, após tantas idas e vindas pelo Estado do Brasil e

de ter participado da conquista do Maranhão ao lado de Jerônimo de Albuquerque Maranhão,

Campos Moreno faleceu em 1617524.

524 Sobre esse militar e seus itinerários ver: Base de Dados BRASILHIS: Redes políticas, comerciantes e militares

no Brasil durante a monarquia espanhola e suas consequências (1580-1680). Disponível em:

<<http://brasilhis.usal.es/?q=ptbr/node/32>>. Acesso em: 03 nov 2018. Sobre a obra o Livro que dá razão ao

Estado do Brasil consultar: MOURA FILHA, Maria Berthilde. O livro que dá “Razão do Estado do Brasil” e o

povoamento do território brasileiro nos séculos XVI E XVII. Revista da Faculdade de Letras, Porto, v. 2, p. 591-

613, 2003.

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APÊNDICE C – TRANSCRIÇÕES DOS ASSENTOS DE PRAÇA DOS ÍNDIOS

GASPAR DA SILVA, MANOEL COELHO E MANOEL DE ABREU

Assento 1

O Capitão Gaspar da Silva, índio forro, assistente na aldeia do Guajurú, termo desta Capitania

do Rio Grande, assenta praça de soldado nesta companhia desde 26 de novembro de 1698 anos

e vence mil oitocentos e sessenta réis de soldo por mês na forma do assento do Conselho da

fazenda lançado no Livro 2º da [?]. E não vencerá mais coisa alguma.

Assento 2

O Capitão Manoel Coelho, tapuia forro da nação dos cararis, Jurisdição da Capitania da Paraíba,

assenta praça de soldado nesta companhia desde 22 de outubro de 1699 anos e vence mil

oitocentos e sessenta e seis réis de soldo por mês na forma do assento do Conselho da fazenda

lançado no livro 2º da [?]. E não vencerá mais coisa alguma.

Assento 3

O Capitão-mor [Manoel?] de Abreu, tapuia forro da nação pajacu da missão do Reverendo

Padre Phelipe Bouriel assenta praça nesta companhia de soldado desde o primeiro de novembro

de 1704 e vence mil e oitocentos e sessenta e seis réis de soldo por mês na forma do assento do

Conselho da Fazenda lançado no livro 2º da [?]. E não vencerá mais coisa alguma.