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Mesa temtica 3. Dilogos Sur-sur: pedagogas descolonizadoras
Ttulo: LONGE DO DESTRATO, PRXIMO DO CUIDADO: CONEXES SUL-
SUL NA SADE1.
Autores: Maria Aparecida dos Santos2; Mrcia Moraes3 e Ariom Pimenta Francisco4.
Introduo
[...] Com Avencas na caatinga Alecrins no carnaval
Licores na moringa Um vinho tropical
E a linda mulata Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata Arrebato um beijo
[...] Guitarras e sanfonas Jasmins, coqueiro, fontes
Sardinhas, mandioca Num suave azulejo
E o Rio Amazonas Que corre Trs-os-Montes
E numa Pororoca Desagua no Tejo
Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um Imprio Colonial.
(Fado Tropical; autoria de Chico Buarque de Holanda, 1973)
A complexa polissemia desta cano de Chico Buarque (1973), segundo Florent (2007),
se mostra no ttulo em que acontece o entrelaamento do fado das guitarras com a
modinha das sanfonas.
Por outro lado, atravs de sua etimologia, a palavra fado aponta tambm para o fatum, no
caso, o destino do Brasil como nao, condenada pelo refro proftico a permanecer para
sempre um imenso Portugal, ou mais precisamente, um imprio colonial5.
1 Autorizamos a publicao deste texto para ser publicado em qualquer dos formatos que o Comit
Acadmico defina.
2 Maria Aparecida dos Santos doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niteri-RJ-Brasil e seus estudos focam os usos e influncias das Prticas
Integrativas e Complementares-PICs na rea da sade pblica brasileira; pesquisadora assistente da
Fiocruz e membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Entre_redes. 3 Mrcia Moraes professora associada do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niteri-RJ-Brasil, coordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPq Entre_redes e
orientadora de Maria Aparecida dos Santos. Financiamento de pesquisa: Cnpq e Faperj.
4 Ariom Pimenta Francisco graduando da Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Niteri-RJ-Brasil, estagirio do Departamento de Assistncia da Sade do Estudante-DASE /PROAES e membro do
Grupo de Pesquisa do CNPq Vida de Estudante.
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Para tanto, Chico mostra em alegoria simblica a imagem buclica das avencas
recobrindo a dureza seca da caatinga e o cheiro doce dos alecrins camuflando o cheiro
acre do suor dos escravos na lida dos canaviais e nas danas carnavalescas.
A linda mulata usada sexualmente esbranquiada pelas rendas do Alentejo e roubada
por beijos sem consentimento.
Por sua vez, os azulejos brancos e azuis, alegorias da cultura portuguesa, na msica de
Chico retratam paisagens combinadas de comidas lusitanas e elementos dos trpicos em
que, surpreendentemente, compem sardinhas com mandiocas. Portanto, sinais
lusitanos encobrem na colnia insalubre aquilo que no se pretende ver.
Por conseguinte, o colonizador pressupe a necessidade da domesticao do outro
colonizado para satisfazer seus olhos e sintetiza seu querer em uma pororoca desaguando
no Tejo. Ai esta terra vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal - e
nos detalhes impe o corpo do colonizador a esta terra ainda sem corpo, para em
algum dia ter um nome dizvel: Brasil.
Por fim, o Rio Amazonas se consome dominado nas suas curvas, onde a populao
ribeirinha ignorada na sua sabedoria local, exotizada nas suas maneiras de viver e de
cuidar da sade. A colnia capturada pelo eurocentrismo aculturalizante, violento e
devastador. Como esclarece Marilena Chau (2000), somos um pas historicamente
articulado ao sistema colonial do capitalismo mercantil como colnia de explorao, em
uma constante dependncia consentida da elite. Nossa identidade surge lacunar e feita
de privaes, definida como subdesenvolvida. Aqui fica claro o porqu sobre para ns
cabe, passivamente consentido, a exaltao das belezas da natureza do Brasil, do paraso
tropical, j que este seu produto e seu lugar no sistema colonialista.
A Europa colonialista, segundo o filsofo e historiador argentino naturalizado mexicano
Enrique Dussel (1993), quando se confronta com o seu Outro procura control-lo,
venc-lo, violent-lo. Quando pde se definir como um descobridor, conquistador,
5 Para saber mais sobre a anlise das estrofes desta msica consulte o artigo Um Suave Azulejo: O Retrato Ambivalente da Nao de autoria da Mestra de conferncias da Universidade de Paris 8
Adriana Coelho Florent (2007). Fonte:
http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/complemento/ADR
IANA_FLORENT.pdf Consultado em: 03/10/2014.
http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/complemento/ADRIANA_FLORENT.pdfhttp://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/complemento/ADRIANA_FLORENT.pdf
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colonizador, esse Outro, para o europeu, no foi descoberto como Outro, mas foi
en-coberto como diferente, oponente ao que fora considerado hegemnico.
Feita a histria europia desta maneira, constituiu-se ela mesma o centro e firmou-se a
periferia (o Outro) do pensamento. Para Dussel (1993), foi desta maneira que se
estabeleceu a mundialidade como centro da Europa; e, em contrapartida constituiu a
Amrica Latina, frica e sia como periferia. Firmou-se o cnone colonialista de
imposio da razo eurocntrica sobre as outras culturas, assinalada pela estratgia da
desconsiderao do grau de desenvolvimento de culturas totalmente particulares, de
cosmovises prprias, como as provenientes do Peru, Mxico, Brasil dentre outras, na
inteno de determinar tais racionalidades como primitivas.
discusso poltica que separa centro e periferia, Donna Haraway (1995) acrescenta a
questo epistemolgica a ela interligada. pois, a um modelo de cincia colonialista que
a autora lana a provocadora pergunta: : Com o sangue de quem foram feito os meus (e
os teus) olhos?. Esta pergunta lana mo da idia da (ir)responsabilidade em escrever
sobre as coisas que se tornam realidades e marcam a vida das pessoas. H um modo de
conhecer, eurocentrico e colonizador, que encobre de onde fala e com que interesses fala,
imprimindo por esta via, verdades sobre o colonizado. Para esta autora, no existe
inocncia. O sujeito da ao, em qualquer perspectiva dada, deve ser responsvel por este
movimento, por sua escolha de viso, mesmo que dominada pela hegemonia instaurada.
A viso sempre uma questo do poder de ver - e talvez da violncia implcita em nossas
prticas colonialistas de visualizao. Dominadores so seres auto-idnticos e no-
marcados pelo outro e infelizmente possvel que os subjugados desejem e at disputem
essa posio de sujeito (Haraway 1995, p.27).
Mediante tal justificativa - da salvao pela razo sobre a ignorncia -, se evidencia a
utilizao do colonizador, dono da razo embasado pela filosofia, de um tipo de domnio
sangrento e o encobrimento dos saberes de outros povos. Na viso do colonizador, o
mundo deve ser objetivado como coisa, no como agente (Haraway, 1995) e como tal
pode-se isolar para conhecer e mesmo utilizar at seu esgotamento.
Para escapar desse modo de olhar olho de deus , Santos (2006) indica que a partir do
olhar das margens ou das periferias, por onde as estruturas de poder e de saber so mais
visveis (Santos, 2006, p.36). Para este autor, a emancipao social exige uma ateno
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ao tica e poltica, que d igual peso ideia de indispensabilidade e ideia de
inadequao, ou seja, de incompletude, portanto, exigente de co-dependncia. De todo o
modo, ao subverter os essencialismos, a hibridez pode alterar as relaes de poder entre
os sentidos dominantes e os sentidos dominados (ibidem, p.220).
Enrique Dussel (1993), por sua vez, prope uma Filosofia da Libertao e afirma a razo
como faculdade capaz de estabelecer um dilogo, um discurso intersubjetivo com a razo
do Outro, como razo alternativa propondo um novo momento: a Transmodernidade.
De maneira prxima, Haraway (1995) prope que explicaes de um mundo "real" no
dependam da lgica da "descoberta", mas de uma relao social de "conversa" carregada
de poder. O mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um senhor.
E assim, uma diversidade epistemolgica no mundo (Santos, Menezes e Arriscado,
2004), bem como um espao hbrido que crie aberturas para desestabilizar as
representaes hegemnicas (Santos, 2006), desloca o antagonismo de tal modo que
deixa de sustentar as polarizaes puras que o constituram.
Acrescentamos a esses pensadores nossa sugesto de escrita tica e poltica, em que para
construir este caminho propomos tecer histrias e verses mais femininas.
Tecendo histrias femininas
Participamos do Grupo de Pesquisa do CNPq Entre_redes, linha de pesquisa
PesquisarCOM6. Nele, nos envolvemos com leituras de autoras inspiradas na Teoria
Ator Rede TAR (Latour 2012, 2014), tais como Vinciane Despret (2004; 2011), Isabelle
Stengers (1998, 2011), Donna Haraway (1995; 2000), Annemarie Mol (1999; 2008),
Mrcia Moraes (2000; 2004) - algumas feministas outras nem tanto - e tambm parceiros
como John Law (2003; 2004) e sua escrita barroca; bem como Boaventura Sousa Santos
(2002; 2004; 2006) que prope novos caminhos da razo.
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O Grupo PesquisarCOM coordenado pela professora Mrcia Moraes e parte integrante da ps-graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense-UFF. Dele fazem parte mestrandos,
doutorandos e ps-doutorandos. E eu os nomeio: Cristiaine Bremenkamp, Marlia Gurgel, Luiza Teles,
Josselem Conti, Luciana Franco, Carolina Manso, Raquel Siqueira, Cristiane Moreira, Joo da Mata, Talita
Tibola, Maria Rita Campello Rodrigues, Gustavo Ferraz, Maria de Ftima Queiroz, Eleonora Prestrelo,
Marlia Silveira, Elis Teles, Alessandra Rotemberg, Nira Kauffman, Gabrielle Chaves, Camila Alves,
Alexandra Justino , Maria Aparecida dos Santos, Cristiane Knijnik.
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Em nosso grupo de pesquisa temos afirmado o feminino na cincia. Seguindo as pistas
abertas pelos autores que mencionamos, afirmamos um modo de conhecer que se faz na
contramo daquele que Haraway (1995) identifica como eurocntrico ou como o
conhecimento no marcado do homem branco, europeu, civilizado. A aposta que fazemos
por um conhecer situado e que opera pelo lao, pelo vnculo, mais do que pelo corte e
pela separao. Uma importante consequncia desse modo de propor o conhecer como
um fazerCOM e no SOBRE o outro est na proposio de uma escrita que opere,
tambm ela, pelo lao. Uma escrita que no oculte suas marcas, que faa vibrar em suas
linhas seus posicionamentos, suas formas de composio com o outro, suas impurezas e
gagueiras. Nesse sentido, entendemos que nossos relatos de pesquisa povoam o mundo,
eles so performativos porque fazem existir realidades. Narrar histrias, povoar o mundo
com histrias locais e situadas uma das formas pelas quais resistimos ao poder de
dominao da epistemologia desencarnada e deslocalizada de que nos fala Haraway
(1995).
Este modo de manejar a escrita acadmica se faz, pois, na contramo do olhar de deus,
aquele que Haraway (1995) tantas vezes identificou como o olhar no marcado: olhar de
ningum sobre qualquer um. O fazerCOM, ao contrrio, opera no sentido da localizao
do conhecimento, entendendo que dizer localizao do conhecimento afirmar que
jamais se est sozinho no campo de pesquisa. Localizao tem o sentido de afirmar a
conexo com o outro, sejam eles humanos ou no humanos, afirmar que para conhecer
preciso compartilhar o po (Haraway, 2008). Afirmar este modo de conhecer tem sido
por ns tematizado como um fazer feminino na cincia. Feminino porque segue na esteira
de caminhos abertos por feministas que antes de ns, clamaram pelas marcas, no
permitiram que elas fossem apagadas por uma cientificismo opressor. E ns recebemos,
acolhemos e levamos adiante este clamor quando afirmamos que escreverCOM aceitar
o desafio de fiar com os outros um dedinho de prosa (Knijnik, 2009). O feminino na
cincia se faz com a alegoria do lao, do vnculo. Mais do que marcar a separao entre
sujeito e objeto, o que est em cena o vnculo, a conexo, o afetar e ser afetado no
encontro com a alteridade. Neste percurso de partilha do po com o outro o que se tem
, no um processo de fazer/conhecer sobre o outro, mas antes aquilo que Haraway
(1995, 2008) chama de tornar-se com, isto , devir com o outro, transformar-se no e pelo
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encontro. A escrita, local e situada, se tece a partir deste lugar, desta posio. Que este
feminino na cincia no se confunda com o ser mulher, com uma natureza dada de
antemo, mas antes com um manejo, com um modo de operar que, tambm no se pode
esquecer, foi levando adiante por mulheres fazendo cincia (Haraway, 1995). Neste
tornar-se com o outro as histrias importam. Muitas histrias importam.
por esta via que nos interessa narrar histrias de enlaces e conexes no
necessariamente apaziguados - entre as terapias naturais, orientais e brasileiras com as
prticas da biomedicina na composio do sistema de sade brasileiro. Que conexes so
estas? Como elas compem o sistema de sade no Brasil? Nesses enlaces quem cala e
quem fala? Com o sangue de quem eles so tecidos?
Tomando ch com Valria
Em Niteri-RJ-Brasil, 2013, Valria7, recm chegada de Manaus-AM se aconchega a
mesa de ch, onde pes e bolos so oferecidos pela prima Maria8. As duas primas
possuem fortes correntes de afinidades adquiridas com a vida. Suas mes, Clia e Ana,
oriundas de Belm do Par sempre foram cuidadoras uma da outra. Em certo momento da
vida, Clia, que vivia em So Paulo, aps uma forte crise existencial maltratada pela
perda do marido, desencadeou esquizofrenia paranide Sua irm, Ana, vivendo em
Niteri, decidiu pela no internao de Clia e resolveu acolhe-la em sua casa. Clia foi
morar com Ana, levando seus trs filhos, duas meninas gmeas e um menino para o
apartamento de dois quartos onde Ana j vivia com seus trs filhos, dois meninos e uma
menina.
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Valria Vasiliaukas tcnica de enfermagem orientada pela biomedicina mas que, neste momento, convive com as prticas integrativas e complementares (PICs) acupuntura, fitoterapia, shiatsu,
moxabusto, etc.) orientadas por outras cosmovises medicina chinesa, medicina ayurvdica e medicina
natural brasileira - , no servio de sade do estudante da Universidade Federal Fluminense, denominado
Vida de Estudante. Esta atuao a faz conviver com questes angustiantes entre o Norte e o Sul que nela
habitam.
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Maria uma das autoras deste artigo. Formada em Psicologia, faz do seu percurso acadmico (especializao, mestrado e doutorado) a busca por entender como as prticas integrativas e
complementares (PICs) se tornaram interessantes para a cincia ao ponto de serem institucionalizadas pelo
Sistema nico de Sade-SUS e quais os efeitos disto sobre as subjetivaes produzidas nos profissionais de
sade, no pblico usurio e no ensino em sade.
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O ncleo familiar passou de quatro para oito pessoas: seis jovens adolescentes e duas
mulheres de meia idade , sendo que uma delas passava por doena mental. Ana atuava
como tcnica de enfermagem e se desdobrava trabalhando em dois e as vezes em trs
plantes para dar conta de apoiar financeiramente a sua famlia aumentada. Em
momentos especiais trazia para casa bolo de laranja que era consumido na maior
voracidade. Sua preocupao era visvel : Comam devagar, mastiguem, lavem as mos,
silncio eu preciso dormir . De manh muito cedo quando se levantava para a primeira
jornada de trabalho encontrava a porta do nico banheiro fechada e mais uma vez
educava: por favor, Kike abra a porta. Kike era seu filho mais velho, portador de
deficincia auditiva que pela manh ocupava o banheiro com o aparelho auditivo
desligado.
Em meio a esta loucura geral familiar Clia ficou boa (controlada com as medicaes) e
todos entenderam que o acolhimento cuidadoso e amoroso da irm fez toda a diferena
para ela e para todos os jovens. Esses, passaram pela adolescncia juntos e embolados,
curtiram, aprontaram, disputaram por comida, tudo com muita alegria. desta
cumplicidade que vem o forte lao de amizade destas duas primas, Valria uma das
gmeas da Clia e Maria, filha da Ana.
Essa histria possui algumas conexes interessantes para este trabalho, pois, iniciamos a
narrativa com mulheres que estavam sem os companheiros, que sustentavam a casa, que
criavam filhos, que cuidavam e eram cuidadas, como tantas outras mulheres do Brasil e
das fronteiras do sul. Trs delas tinham algo em comum: eram envolvidas com a rea da
sade. Ana foi tcnica de enfermagem, Valria tcnica de enfermagem e Maria
terapeuta natural h mais de trinta anos, alm de formada em Psicologia e pesquisadora
assistente da Fiocruz. Nesta trade feminina j se percebe a existncia de burburinhos
entre o Norte hegemnico na rea da sade e o Sul de saberes mais encobertos, composto
de cosmovises particulares.
Ana trabalhou no Hospital da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desde a dcada
de 1970 at a dcada de 1990. Teve sua formao na Escola Ana Neri de enfermagem em
Curitiba-PR, conhecida escola clssica, exigente, orientada pela biomedicina. Viveu a
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Reforma Sanitria9, a Reforma Psiquitrica10 e por ocasio do seu conflito pessoal entre
internar sua irm ou trat-la em casa, seus conhecimentos sobre a Reforma Psiquitrica,
mesmo que em dvida sobre sua eficcia, fez com que sua deciso tenha sido por um
acolhimento que poderia ser mais cuidadoso, ou seja, o tratamento psiquitrico com o
paciente junto famlia.
Maria, sua filha, estudou inmeras terapias naturais, de origem oriental e brasileira
seguindo uma linha de cuidado mais alternativo medicalizao qumica e
procedimentos de alta tecnologia. Estudou acupuntura e massagens orientais e ocidentais,
mas, tambm cursou tcnico de fisiatria orientado pela biomedicina; e isso proporcionou,
em certo momento, estagiar no servio de fisiatria e reabilitao no mesmo hospital onde
sua me trabalhava ao final da dcada de 1980. Isso provocava nela angstias entre os
saberes da biomedicina e os saberes de outras cosmovises. Maria aps este perodo,
entrou para a faculdade de Reabilitao pelos modelos hegemnicos, para abandon-la
dois anos depois, decidindo por qual caminho seguir: outras cosmovises de sade e
cuidado. S mais velha e experiente entrou novamente para a academia, desta vez
podendo versar sobre as terapias integrativas e complementares.
Valria tcnica de enfermagem formada pela mesma escola de enfermagem onde Ana
fez sua formao. Na vida adulta Valria saiu de Niteri e foi viver em Curitiba-PR. L,
trabalhou no Hospital de Clnicas Emlio Ribas por quinze anos e exerceu as prticas da
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A Reforma Sanitria brasileira nasceu na luta contra a ditadura, com o tema Sade e Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em experincias regionais de
organizao de servios. Esse movimento social consolidou-se na 8 Conferncia Nacional de Sade, em
1986, na qual, pela primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os seguimentos da sociedade
civil discutiram um novo modelo de sade para o Brasil. O resultado foi garantir na Constituio, por meio
de emenda popular, que a sade um direito do cidado e um dever do Estado." Sergio Arouca, 1998.
Fonte: http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista05.html Consultado em 10/10/2014.
10 A partir da segunda metade do sculo XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crtica e transformao do saber sobre os tratamentos nas
instituies psiquitricas. Esse movimento tem repercusso em todo o mundo e muito particularmente no
Brasil. A luta manicomial marcada pelos direitos humanos e do resgate da cidadania das pessoas portadoras
de transtornos mentais levaram a Reforma Psiquiatra, contempornea da Reforma Sanitria no Brasil.
Consultar o documento A Reforma Psiquitrica brasileira e o tema A Reforma Psiquitrica brasileira e a
poltica de Sade Mental no site: http://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html Consultado em 10/10/2014.
http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista05.htmlhttp://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html
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funo orientada pela biomedicina. Aps este tempo se mudou para Manaus-AM e dois
anos aps esta experincia voltou a Niteri e foi alocada no servio de sade do estudante
universitrio denominado Vida de Estudante e passou a conviver com outras
cosmovises que no a biomedicina.
No entanto, em 2011, Valria se mudou para Manaus-AM e l teve contato com outra
cultura, voltada para a alimentao de frutas ricas como o aa, comidas fortes como o
tacac, o uso do leo de copaba como antiinflamatrio e curativo e os cuidados das
parteiras ribeirinhas do Rio Amazonas. Lembrava-se das histrias da sua me e da sua tia,
que eram da regio Norte do Brasil e haviam nascido amparadas pelas mos da parteira,
sua bisav materna e Ana, quando criana, se curado de infeco grave com leo de
copaba prescrito por sua av, aps ser desenganada pela medicina hegemnica.
Valria via nas mulheres que passavam por ela na rua, o corpo mais atarracado, as pernas
um tanto arqueadas, o pescoo curto que acostumava ver nas mulheres da famlia e , mais
que isso, via o sorriso acolhedor, o cuidado fraterno elevado pela relao do jeito de
chamar mirm. Mana, mirm, assim se tratam os nortistas e assim se trataram Ana e
Clia por toda vida11.
Conexes sul-sul12
Em 2013, Valria voltou a viver Niteri. Ao trabalhar junto ao Vida de Estudante na
Universidade Federal Fluminense, se deparou com ideias como gesto democrtica,
cuidado cotidiano, desmedicalizao da vida e vivenciou coisas bem diferentes daquelas
em que fez sua formao. Passou ento a fazer parte do grupo de acolhimento estudantil
auxiliando as aplicaes de aurculoterapia nos estudantes e as explicaes do servio,
que inclua no cuidado tcnicas como Tai-Chi-Chuan, atendimento de auriculoterapia e
moxa complementando e integrando as demandas psicolgicas e de modos de viver.
Conexes sul-UFF: Projeto Vida de Estudante
11 Clia faleceu em Maro de 2009 e sua irm Ana, a mirm, exatamente um ms depois. 12 Mesmo tendo conscincia que as conexes sul-sul ainda so cercadas por capturas do colonialismo, aqui neste artigo queremos falar da possibilidade de fazer pensar bons encontros atravs de
fatos e acontecimentos vividos, hoje, na sade brasileira.
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O Projeto Vida de Estudante13
, criado na Universidade Federal Fluminense,
atravs do Programa de Apoio ao Estudante-PROAES, na medida em que se volta
para o cotidiano estudantil, com olhar constitudo transdisciplinarmente, se
prope a trazer experincias de cuidados em sade mais plurais. No
acompanhamento e uso de diferentes materiais (moxa, sementes de mostarda,
leos essenciais, etc.) e diferentes procedimentos teraputicos (shiatsu, tui-na,
reflexoterapia, aurculoterapia, tai-chi-chuan, reiki, etc.) vem produzindo
momentos diferentes no campus, bem como reflexes sobre modos de sade e de
cuidado em sade. http://www.proaes.uff.br/projeto-vida-de-estudante-0
Consultado em 26/10/2014.
Passou a estudar o assunto da entrada das terapias naturais, integrativas e
complementares (Luz, 1997), no Servio nico de Sade-SUS14.
Conexes sul-SUS: As prticas integrativas e complementares
O Sistema nico de Sade - SUS do Brasil, nos ltimos oito anos, vem
institucionalizando atravs da Portaria n971/2006, do Ministrio da Sade, a
participao das Prticas Integrativas e Complementares-PICs. So prticas
oriundas da Medicina Chinesa, da Medicina Indiana Ayiurvdica, de cosmoviso
e racionalidade diferenciadas da biomedicina hegemnica; e, mais recentemente,
a incorporao de terapias naturais da cultura brasileira cabocla, caiara,
indgena, africana com atuantes benzedeiras, erveiros e parteiras. Fonte:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpic.pdf Consultado em: 15/10/2014.
Valria vivencia hoje informaes sobre a entrada nos servios pblicos de sade
brasileiro de parteiras e benzederiras. Percebe o interesse de coordenadores e professores
de medicina e enfermagem da UFF, que buscam o Vida de Estudante pensando em
parcerias para estgios de seus alunos do curso de medicina, atentos para esta demanda
social de sade. visvel que o ensino em sade caminha para algumas mudanas,
colocando de frente para pensar a biomedicina hegemnica e aqueles saberes colonizados
e encobertos pelo centro do mundo, denominado eurocentrismo.
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Equipe Vida de Estudante: Ndia Filomena Ribeiro (direo e coordenao); Maria Aparecida dos Santos; Ariom Pimenta Francisco, Valria Vasiliauskas; Lvia Neves Ribeiro; Fbio Arajo Dias;
Marivaldo Paes e Nathlia Lacerda.
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O Sistema nico de Sade (SUS) um dos maiores sistemas pblicos de sade do mundo. Ele
abrange desde o simples atendimento ambulatorial at o transplante de rgos, garantindo acesso integral,
universal e gratuito para toda a populao do pas. Amparado por um conceito ampliado de sade, o SUS
foi criado, em 1988 pela Constituio Federal Brasileira. Para entender o Sistema nico de Sade brasileiro
SUS ver Paim (2009).
http://www.proaes.uff.br/projeto-vida-de-estudante-0http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpic.pdf
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Conexes sul-SUS: As parteiras
Parteiras tradicionais integram o SUS e melhoram atendimento a mulheres e
recm-nascidos . Mulheres que aprenderam a realizar o parto no dia a dia ou com
outras parteiras so respeitadas onde residem e apontadas como referncia para a
sade de mulheres e crianas da sua comunidade. [...] Atravs do projeto, as
parteiras vm participando de encontros de saberes e trocas de experincias, onde
recebem informaes sobre como melhorar a assistncia mulher e ao recm-
nascido, e so beneficiadas com equipamentos mdicos e de apoio como balana
peditrica, estetoscpio, toalha, capa de chuva, fraldas, entre outros.[...] Fonte:
Jornal Conexo Tocantis, Sade 12/12/2013,
http://conexaoto.com.br/2013/12/12/parteiras-tradicionais-integram-o-sus-e-
melhoram-atendimento-a-mulheres-e-recem-nascidos. Consultado em
14/09/2014,
Valria e Maria, - assim como Ana viveu a dvida entre aceitar uma coisa ou outra -,
convivem com saberes do Norte e do Sul dentro de si. Muitas vezes se angustiam com
isto. s vezes conversam sobre isto. Porm, se sentem privilegiadas por estarem na
posio de fronteira (Santos, 2006; 2003), onde parece que algo vai mudar, mas, ainda
no mudou. Onde as notcias brotam como flores de um terreno prprio que conversa
com outras espcies diferentes sem querer sobrepuj-las.
Conexes sul-SUS: As benzedeiras
No Paran: benzedeiras so reconhecidas como profissionais da sade.
A proposta, que de 2010, tambm permite que estas pessoas colham plantas
medicinais nativas no municpio livremente para o exerccio do ofcio. A lei
concretizou uma parceria entre a tradio e as polticas pblicas voltadas para a
sude. O municpio de Rebouas reconhece os saberes e os conhecimentos
localizados realizados por detentores de ofcios tradicionais , como instrumento
importante para a sade pblica do municpio, diz o Artigo 3 da lei.[...] Para
poder exercer o oficio livremente, a benzedeira deve ir Secretaria Municipal de
Sade e solicitar a Carta de Auto-Definio, na qual deve descrever de que forma
trabalha. Depois, o rgo emite o Certificado de Detentor de Oficio Tradicional
de Sade Popular e uma carteirinha.[...]
Fonte: http://susbrasil.net/2012/05/23/benzedeiras-sao-consideradas-
profissionais-da-saude-no-parana/ . Consultado em 14/10/2014.
E mediante tantas notcias, as primas amigas, em uma mesa de ch, pes e bolos, podem
contar histrias e repensar seus passos.
Consideraes Finais
http://conexaoto.com.br/2013/12/12/parteiras-tradicionais-integram-o-sus-e-melhoram-atendimento-a-mulheres-e-recem-nascidoshttp://conexaoto.com.br/2013/12/12/parteiras-tradicionais-integram-o-sus-e-melhoram-atendimento-a-mulheres-e-recem-nascidoshttp://conexaoto.com.br/editoria/saudehttp://conexaoto.com.br/2013/12/12http://conexaoto.com.br/2013/12/12http://conexaoto.com.br/2013/12/12http://susbrasil.net/2012/05/23/benzedeiras-sao-consideradas-profissionais-da-saude-no-parana/http://susbrasil.net/2012/05/23/benzedeiras-sao-consideradas-profissionais-da-saude-no-parana/http://susbrasil.net/2012/05/23/benzedeiras-sao-consideradas-profissionais-da-saude-no-parana/
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Contando esta histria, nos damos conta de que a rede de sade brasileira , neste
momento, tecida com inmeras linhas e cosmovises numa tenso polissmica que
poder trazer bons encontros para fazer pensar sade, cuidado e educao em sade.
Poder fazer pensar sobre o encobrimento do colonizador sobre o colonizado, suas
profundas marcas deixadas em ns, incluindo nelas o destrato dos nossos saberes
oriundos das margens ribeirinhas e das pororocas. Assim como Valria e Maria percebem
o Norte e o Sul convivendo e brigando dentro delas causando uma angstia que faz
pensar e pesquisar, acreditamos que o mesmo acontea com outros profissionais da
sade, usurios destes novos servios e com estudantes da rea de sade.
Neste artigo fizemos uma ponte entre o Grupo de Pesquisa Entre_redes, linha de
pesquisa PesquisarCOM com sua escrita feminina, local, valorizando povoar o mundo
com novas verses e assim fazer poltica; com o Grupo de Pesquisa Vida de Estudante
que implanta nos cuidados em sade para alunos da Universidade Federal Fluminense
novos modos de viver sade, mais perto do cuidado cotidiano, mais perto da pluralidade
das prticas, to caro s pessoas.
Nesta aproximao e dilogo notamos que os autores que trouxemos para nos
acompanhar neste artigo so unnimes em reivindicar que precisamos de uma rede de
conexes para nossa maneira de viver e pesquisar, que inclua a capacidade parcial de
traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas em termos
de poder. Precisamos de conhecimentos aplicveis, sobre as coisas, que no sejam
redutveis a lances de poder e a jogos de retrica de alto coturno, agonsticos, ou
arrogncia cientificista, positivista (Santos. 2006). Precisamos fortalecer a escrita do
feminino e resgatar nosso jeito de contar nossas histrias.
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