Tudo é Figura Ou Faz Figura
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TUDO FIGURA OU FAZ FIGURA1
Elida Tessler
O sol nasceu
A lua nasceu
O dia nasceu
O sol nasceu
tudo mentira
tudo figura
Quem nasceu fui eu
Quem nasceu foi voc
E a gente no sabe bem quando
E nem bem porqu.2
Pricles Cavalcanti
Muitos so os momentos na histria da arte em que a multiplicidade de manifestaes exige certo
afastamento crtico, pois corre-se o risco de estabelecer apressadamente algumas camisas-de-fora conceituais.
Hoje vivemos uma situao que requer cautela e discernimento para escapar tirania das etiquetas coladas ao lado
de obras ou movimentos, indicando os neos e os ismos desnecessrios ao nosso pensamento. Ora, esse
movimento de vai-e-vem da histria, de abandonos e retomadas de certas prticas, de nascimento e morte da
pintura, tantas vezes declarada por alguns especialistas da esttica, o que chama ateno. Arte sempre
linguagem, e a criao de imagens toma para si algumas especificidades que merecem ser consideradas,
independente de tcnicas ou categorias artsticas.
A arte contempornea vem trazendo elementos que tensionam o estatuto da imagem enquanto necessidade
discursiva ou narrativa. Muitas vezes, apropriando-se de aspectos da realidade cotidiana, o artista produz obras que
perturbam o olhar e propem uma nova concepo esttica de insero do sujeito em seu contexto social. Assim, na
interface com a arte, tm-se a possibilidade de figurar novas paisagens, ressignificando um percurso particular,
onde a liberdade de expresso torna-se ingrediente indispensvel para o exerccio experimental da criao. A
memria, a repetio, a busca de uma origem, a questo da identidade, por exemplo, encontram-se como pontos
referenciais de muitas das manifestaes artsticas atuais.
Um problema surge, porm, quando deseja-se estabelecer uma evoluo de movimentos artsticos,
iludindo-se com a possibilidade de manuteno de uma linha de tempo baseada na superao de determinadas
resolues formais. o caso por exemplo de, na atualidade, querer-se buscar algumas razes para indicar o retorno
da pintura figurativa, e discutir as questes dela advindas. Pode-se falar de um retorno do figurativo?
Num primeiro momento, entendo que esta questo encontra-se um pouco deslocada, j que a histria da
arte deste ltimo sculo vem nos indicando insistentemente a diluio de certas polaridades, entre elas a do
figurativo e do abstrato. A questo pode ser ampliada, por exemplo, quando os conceitos figuraes e
abstraes so colocados sob forma plural, pois no podemos nos congelar nos absolutismos de certas noes
classificatrias, nem apagar esforos de atos artsticos com um nico jato terico, com a pretenso de absorver a
1 Este texto uma verso ampliada de minha participao no colquio O retorno do figurativo?, promoo do Instituto
Goethe de Porto Alegre, associado ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul (PUCRS) e Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dentro das
programaes em torno da III Bienal do Mercosul, outubro de 2001. desta provocao que nascem as inquietaes aqui
apresentadas. 2 Cavalcanti, Pricles. (1991) Quem nasceu? (fragmentos). In: Cavalcanti, Pricles. Canes.
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histria e apaziguar nossas inquietaes. Num segundo momento, no entanto, visualizo uma configurao
esquemtica de vetores em desordem, direcionando suas setas, ora para um lado, ora para outro, buscando um ponto
de partida para que, justamente, o retorno possa ser pontuado. A partir de onde podemos perceber o retorno do
figurativo?
A letra da msica, colocada em epgrafe, incluiu-se imediatamente em meu desenho imaginrio. tudo
mentira, tudo figura. Se o sol nasceu, foi porque nasci primeiro, e tenho olhos para v-lo. A questo do olhar
impe-se, mesmo para que possamos ser olhados, e aquecidos, por aquilo que est diante de ns. H movimentos
circulares. H repeties. H bifurcaes. H uma construo de pensamento que exige liberdade de trnsito para as
zonas onde o vazio se torna figura. H tambm insistncias: em quatro versos, o sol nasceu duas vezes. Na lgica
da cano, no seria ali o lugar da noite? Certamente a noite nasceu na entrelinha, na face escondida da dobra do
poema, no sutil desaparecimento da figura.
Estamos sempre diante de figuras. Tudo faz figura na medida em que os atos se tornam formas.3 E esta a
atividade do artista. A sua busca consiste em criao de linguagem especfica para configurar uma ausncia, pois as
presenas j esto suficientemente expostas e aparentemente estabelecidas.
Georges Didi-Huberman, em suas reflexes acerca do ver e as modalidades do visvel prope que ver
sentir que algo nos escapa. Trs, no incio de O que vemos, o que nos olha (1992), uma passagem de James Joyce,
cuja concluso : fecha os olhos e v.4 Proposio esta que Didi-Huberman, em exerccio pleno de criao
terica, convoca-nos a uma revirada como uma luva, sem trair a proposta joyceana: abramos os olhos para
experimentar o que no vemos. E o que que est em questo? Trata-se de um paradoxo, do qual faz parte a iluso
de que a imagem nos trs o objeto, enquanto que ela s est ali para dizer de seu desaparecimento. Creio que esta
proposio vlida para toda espcie de configurao artstica, no somente para pintura ou escultura, ou para os
volumes minimalistas dos quais este autor se ocupa em analisar. Seja o objeto representado ou presentificado, o que
vemos sempre mais do que vemos. H sempre um ponto cego em nosso olhar, que traduz o espao da perda, o
vazio que se instala entre o que vemos e o que nos olha, assinalando o que, no mundo, tem a ver conosco. Didi-
Huberman aponta ainda duas instigantes interrogaes: como mostrar o vazio? E como fazer desse ato uma forma
uma forma que nos olha?
Figura
Tomemos figura como imagem e representao. Chegaremos figurao, onde o consenso nos conduzir a
ver o que o traado anuncia: algo que ocupa o lugar de uma lembrana, de uma suposio, de uma fantasia, mas
sempre atravs de formas que reconhecemos em nossa realidade. Seria esta a nica forma de representar o mundo?
O conceito de figura tem muitas variantes, muitos significados que mudam de sentido, conforme o contexto
em que esto inseridos. Para ns, interessaria saber o que figura na arte contempornea. E, pergunto, no seria
este tambm o momento de pensarmos a presena do objeto do cotidiano, como as apropriaes e colagens,
vinculando a arte realidade no para traduz-la, mas como instrumento malevel de conhecimento e de
interveno no real, que sobretudo relao?5 Seguiremos aqui alguns pontos, partindo de um roteiro de Erich
Auerbach6 para que possamos nos aproximar de nossas questes.
Primeiro, figura indica a representao concreta de algo que vai se realizar no futuro. Figura algo real e
histrico que anuncia outra coisa que tambm histrica e real. Aqui, novamente visualizamos o desenho de
vetores. Seguimos para frente e para trs do ponto onde nosso olhar aterriza. As formas se realizam enquanto
imagem e na imagem, enquanto imagem que olha com olhos vazios em direo ao espectador que olha o quadro.
Segundo, a figura estabelece vnculos com a verdade (veritas) da qual seria uma mmese ou imitao, como
tambm com a histria ou com a literatura.7 Porm, algumas vozes provenientes da literatura reagem dizendo: No
h literatura. Quando se escreve s importa saber em que real se entra, e se h tcnica adequada para abrir caminho 3 Quando os atos se tornam formas: ttulo de uma histrica exposio realizada na Sua, em 1969, com curadoria de Harald
Szeemann. 4 Didi-Huberman, Georges. (1992) O que vemos, o que nos olha. So Paulo, Ed. 34, 1998, p. 29.
5 Peccinni, Daisy. Figuraes Anos 60. So Paulo, Coleo Ita Cultural/EDUSP, 1999, p. 13-14.
6 Auerbach, Erich. (1994) Figura. So Paulo, tica, 1997, p.7
7 Ibid., p.8-9.
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a outros.8 Em que real se entra? O real um adensamento de camadas com informaes sensoriais e racionais,
cujos poros nos permitem o acesso a novos horizontes do conhecimento, sendo que raramente podemos realizar este
percurso de modo linear, pois este exige demasiado esforo, no sentido de abandono de nossas referncias
habituais.
Curativo do vazio
Toda obra de arte um curativo do vazio, escreveu Ren Passeron. No o vazio enquanto espao entre as
coisas, pois este no ferida, mas como ausncia mesmo daquilo que o quadro oferece como simulacro. As
imagens foram a princpio feitas para evocar as aparncias de algo ausente. Diz Passeron ainda: todo curativo
esconde ao mesmo tempo que trata, e substitui sua aparncia perceptvel a no aparncia do ferimento, desde ento
aberta ao imaginrio.9 A pintura remete, ento, para outra coisa que ela mesma, como a relao do curativo e a
ferida. Pensaremos a pintura no mais como uma janela aberta para o mundo (real), mas uma janela com persianas
fechadas abrindo espao para o imaginrio, para imagens que no imitam mas evocam a realidade. Por esta razo,
no nos importaremos tanto com a perfeio da imagem e suas qualidades de mmese, pois sabemos que tudo
ausncia, e este o carter da criao que faz sentido.
Poderamos mesmo dizer, seguindo Passeron, que um pintor lcido sabe que toda pintura transparente,
que a superfcie de sua tela sempre aparece por detrs da materialidade da tinta ou de outros materiais ali
depositados, dado o carter indicativo de que o tema em questo no o que ali est representado. No interior de
toda pintura, h um nada de pintura. ali que podem nascer as respostas para as questes abertas anteriormente.
Como mostrar o vazio? Ali se configura a forma que nos olha.
Creio que colagem um bom exemplo de deslocamento ou descolamento, em inevitvel anagrama de
realidades transpostas do cotidiano para o universo da arte. Passeron insiste no carter do hospitalar, da enfermaria,
do curativo, comentando a prtica de Max Ernst e de tantos outros artistas que praticaram a colagem e a frotagem,
como aqueles que elevaram o ato de escolha como forma de arte, a partir do recolhimento, nas lixeiras de hospitais
iconolgicos,10
de fragmentos salvos por eles de uma cremao anunciada. Podemos dizer que esta uma espcie
de curativo do vazio por uma citao multiplicada de cheios, j que cada fragmento no nos deixa esquecer sua
memria anterior. O objeto casualmente encontrado e absorvido pela obra (lobjet trouv) e o sentido de
apropriao j esto aqui presentes. interessante lembrar que os surrealistas definiam imagem por encontro
fortuito, e a noo de acaso tambm a se insere.
Recentemente, visitei uma exposio intitulada Entre a arte e o sonho, do artista pernambucano Paulo
Bruscky que desde os anos 1970 tem atuado como artista de vanguarda, utilizando-se dos mais variados meios e
materiais para a criao. Tem realizado projetos de performances, instalaes, vdeos e linguagens multimdias.
Suas experincias com arte-postal, com eletrografia e fax so apontadas como pioneiras dentro das discusses
acerca da utilizao de novos meios na arte brasileira. Bruscky ficou vinte e quatro anos sem expor em circuitos
comerciais ou institucionais. Por outro lado, durante todo esse tempo, sua atuao voltou-se insero da arte no
social. Ele um dos artistas que muito bem demonstra que todo ato artstico provm de um momento de escolha, e
esta um ato que demanda uma forma de apresentao. Para isto h mtodos, h tcnicas, h teorias especficas e
sobretudo mltiplos procedimentos. Se acompanharmos a produo do artista, podemos perceber o quanto uma
produo particular, singular, expande-se quando tornada pblica absorvendo olhares e gestos incorporando a
experincia do outro.
So dois os trabalhos de Bruscky a partir dos quais desejo trazer alguns elementos para esta reflexo em
torno da figura. Um deles um vdeo, onde vemos duas paisagens superpostas, a nos perguntar sobre nossas formas
de percepo e absoro das qualidades estticas de nosso cotidiano. A cena a de uma imagem refletida por um
espelho retrovisor diante de outras imagens vistas atravs do para-brisa de um carro. Imagem sobre imagem. O que
vemos a mesma paisagem, de vegetao que beira uma estrada. Na tela, o antes e o depois de um trajeto,
apresentados simultaneamente. Defino esta cena como uma paisagem suprematista. O Quadrado branco sobre
8 Llansol, Maria Gabriela. (1985) Um falco no punho. Lisboa, Relgio dgua, 1998, p. 55.
9 Passeron, Ren. (2000) Por uma poianlise. In: Sousa, Edson; Tessler, Elida; Slavutzky, Abro (orgs.). A inveno da vida:
arte e psicanlise. Porto Alegre, Artes e Ofcios, 2001, p. 11. 10
Passeron, Ren. Pour une philosophie de la cration. Paris, Klincksieck, 1989, p. 130.
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fundo branco (1918), do artista russo Casimir Malvitch, aqui se faz presente. O que figura poderia muito bem
ser considerado abstrao, dependendo de nosso ponto de vista. Neste caso, como em muitos outros da arte
contempornea, o que temos diante de ns o estranhamento face a algo que nos muito familiar.
Voltamos aqui aos dois pontos levantados por Auerbach, relacionando-os ao vdeo de Bruscky. Primeiro,
figura indica a representao concreta de algo que vai se realizar no futuro. Pensaremos nesta estrada que est
diante de ns. E, segundo ponto, figura algo real e histrico que anuncia outra coisa que tambm histrica e real.
Aqui est a imagem da estrada que j passou e, no entanto, ainda est diante de ns, no espelho retrovisor.
Entre a arte e o sonho foi o ttulo dado pelo curador da exposio a partir de um trabalho especfico de
Bruscky, que certamente vai nos interessar aqui, intitulado Entre o santo e o sonho (2001).11
Nos conta o artista
que este trabalho nasceu de um acaso. Em um momento de limpeza de seu atelier, o artista tratava de rasgar
algumas fotografias. Diz ele ter sempre muito cuidado em no colocar no lixo a imagem fotogrfica de pessoas, por
desconhecer o destino que a fotografia poderia vir a ganhar. Lembramos aqui das lixeiras icnicas de Ren
Passeron. Ao olhar, em um relance, os restos de seus picotes, viu com surpresa a configurao estranha do
fragmento da testa colado ao pedao do queixo um rosto sem olhos, nariz, boca, orelhas sem os rgos do
sentido. Estranha figura! Mas qual seria o sentido deste rosto quase mancha? A partir desta primeira imagem,
Bruscky criou uma srie de fotografias de grandes dimenses, nos oferecendo uma representao especular
disforme de nossos anjos, de nossos monstros ou de alguns sonhos que nos habitam.
Abstraes
Para o senso comum, o abstrato a recusa da figurao, do objeto identificvel ou, como se dizia na idade
clssica, da imitao. Mikel Dufrenne12
comenta que esta afirmao diz pouco e muito. Muito porque registra, ao
menos, a grande diferena entre um Rafael e um Mondrian, a grande distncia entre um Vermeer e um Delaunay.
Diz pouco, porque ela puramente negativa, ou diferencial pois no oferece a razo da diferena que ela
assinala: por que um Mondrian diferente de um Rafael?
Lembro de ter lido um depoimento de Mondrian onde ele dizia que um homem sozinho, diante do oceano,
tem dificuldade de olhar a linha do horizonte enquanto linha somente. Em instantes, preenche o vazio da paisagem
com imagens do pensamento. Segundo ele, bastaria criar outra linha (a vertical entre a lua e o horizonte, por
exemplo), para comear sua pintura.13
A abstrao no consiste somente em se colocar distncia da imagem concreta mas, ao extrair do concreto
alguma coisa que verdade o conceito ou a idia , ela designa um certo procedimento que visa um objeto
positivo. A dimenso positiva seria a de colocar questes: o que produz a abstrao? A pintura propunha um objeto
pictrico que s existia por ele mesmo, sendo sua prpria figura. Sua forma no mais aquela de um contedo
estrangeiro, e nem possui um contedo interior. Alguns pontos interessantes surgem daqui:
Em primeiro lugar, a pintura conquista sua autonomia e o pintor alcana sua liberdade, porm com alta
carga de responsabilidade, que cresce na medida em que toma conscincia das exigncias prprias da pintura. A
experincia do monocromtico poderia ser citada aqui pela simples razo de que um azul, que s pretende ser
formalmente um plano de cor, pode vir tambm a ser um fragmento de cu, por exemplo, dependendo do
testemunho do autor ou, na maioria dos casos, da subjetividade do espectador. Por outro lado, o artista chama este
espectador a assumir sua parte de responsabilidade que nem sempre bem aceita, pois mais difcil perceber e
julgar uma obra nela mesma considerando todos os seus aspectos formais do que apreciar a exatido da
representao ou de discorrer sobre o assunto representado.
11
A exposio Entre a arte e o sonho realizou-se no Observatrio Cultural Malakoff (Recife, Pernambuco), entre setembro e
novembro de 2001. O trabalho Entre o santo e o sonho foi realizado em 2001, especialmente para a I Bienal do Cariri,
Cear. 12
Dufrenne, Mukel. (1989) Abstrait (Art). In: *********** Encyclopaedia Universalis. Paris, ************, 1989.pp.60-68 13
Millet, Catherine. Yves Klein. Paris, Art Press Flammarion, 1983, p. 48.
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Janelas
Falamos anteriormente em janelas. Desde a renascena, um quadro se abre como uma janela, oferecendo
uma viso perspectiva do mundo. Neste caso, sempre se abre um espao para o espectador, pois afinal, os nossos
olhos no so geralmente chamados de janelas para a alma?
Quero evocar ainda dois artistas que podem contribuir com nossa reflexo: Marcel Duchamp e Casimir
Malvitch. Curiosamente, em meio a sua vasta produo, Duchamp oferece-nos janelas atravs das quais nada
podemos ver. Nosso olhar encontra barreiras. No ser exatamente nelas, nas transparncias interrompidas, que o
nosso olho vai mais alm da questo da figura representada ou da abstrao como um ponto cego de onde surgem
as imagens? Tenhamos em mente, por exemplo, as janelas de La bagarre dAusterlitz, de 1921, e de Fresh
Widow, de 1920. A primeira uma janela em miniatura, instalada em fragmento de parede em tijolos vermelhos,
com estrutura total nas dimenses de 62,8 x 28,7 x 6,3 cm. Os vidros de cristal esto pintados com tinta branca
onde, ironicamente esto desenhados, em cada um dos vidros inferiores, o smbolo do infinito na vertical. Este
trabalho considerado como uma verso diferenciada da segunda janela, cuja traduo do ttulo nos oferece
algumas pistas. Fresh Widow (A viva alegre) alude, ento, ao brincar com a sonoridade das palavras, a french
window, expresso francesa que designa um modelo de janela bastante conhecido, constituido de duas folhas. Ora,
os postigos de portas ou janelas geralmente nos permitem olhar sem abr-los, dada a transparncia do vidro. Aqui,
seus vidros no so vidros e, sim, couro preto encerado. Neste trabalho, nada podemos ver seno a prpria janela.
Ela figura ou faz figura. Nela, nada est estabelecido, somente ausncias. H quem considere estes trabalhos um
jogo entre o visto e o no visto, fazendo aluso fenda feminina obstruda, j que Fresh Widow o primeiro
trabalho de Duchamp assinado pelo seu alter ego feminino, Rose Slavy.
Nos escritos de Marcel Duchamp, encontramos a proposio de uma frmula onde a responsabilidade do
pblico apontada de forma contundente. Eis aqui seu enunciado, a partir do qual ele mesmo criou um esquema
elucidativo: o coeficiente artstico como uma relao aritmtica entre o que parece inexpresso embora
intencionado, e o que expresso no intencionalmente.14
Que coeficiente artstico seria este? Qual a parte da arte
que se torna visvel e qual a outra poro que resguarda-se em misterioso jogo de subjetividade entre artista e
espectador? Da inteno realizao, h todo um processo de trabalho, onde o artista atravessa uma srie de
reaes totalmente subjetivas, das quais, diria Duchamp, ele no teria conscincia, pelo menos no plano esttico.
Pensamento e gesto interligados, a criao passa a ser o resultado de um lance que conta com o acaso, embora
muitas vezes o projeto do trabalho no aponte espao para tal. Assim, acentua-se a diferena entre a inteno e a
realizao do trabalho. possvel lembrar aqui das proposies de Umberto Eco, em relao a uma obra aberta,
onde somente o olhar ou o gesto do espectador concluiriam a proposio do artista, conferindo pluralidade ao
projeto inicial. Segundo Duchamp, neste caso, o artista no pode ter conscincia da diversidade de olhares, e
consequentemente das falhas que a sua inteno vem a sofrer. Seguindo este raciocnio, na cadeia de reaes que
acompanham o ato criador faltaria um elo, e esta falha o que Duchamp vem a denominar coeficiente artstico
pessoal contido na obra de arte. Esta falha representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua
inteno apontando a diferena entre o que quis realizar e o que na verdade realizou.
De Malvitch, quero trazer outra janela: uma janela atravs da qual ns descobrimos a vida segundo suas
prprias palavras. Foi em dezembro de 1915 que Malvitch apresentou, entre outros trinta e oito quadros, o
quadrado negro sobre fundo branco, chamando-lhes por construes suprematistas. Com estas obras queria
apontar a supremacia das formas em relao ao contedo narrativo de figuras representadas. E assim ele comenta:
Eu tambm fui preenchido de uma certa timidez e eu hesitei at o ponto mximo de
angstia, quando tratou-se de se afastar do mundo da representao, no qual eu vivi e criei meu
trabalho. Mas o sentimento de satisfao que eu experimentei com a liberao do objeto me
transportou sempre mais longe at o ponto onde nada mais era autntico seno a prpria
sensibilidade. Assim, a sensibilidade torna-se a substncia mesma de minha vida. O quadrado que
eu expus no era um quadrado vazio, mas a sensibilidade da ausncia do objeto (do objeto
representado, da imagem figurativa). (...) Eu compreendi a mentira da representao.15
14
Duchamp, Marcel. (1957) O ato criador. In: Battcock, Gregory. (1973) A nova arte. So Paulo, Perspectiva, 1975. 15
Daval, Jean-Luc. Lhistoire de la peinture abstraite. Paris, Fernand Hazan, 1988, p. 17.
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O quadro Quadrado negro sobre fundo branco (1915) foi considerado o ponto zero da pintura, smbolo de
um ponto de um no retorno, segundo as palavras do prprio artista. O quadrado negro a afirmao de uma
superfcie plana puramente pictrica, uma superfcie plana colorida, uma forma mnima e a mais simples
manifestao da cor pura. (...) Cada forma suprematista um mundo.16
Este realmente um trabalho emblemtico
da histria da arte. Toda a questo do olhar ali est presente, principalmente por apresentar-se como um olho,
pupila e crnea, um plano inclinado, no alto do espao expositivo, no vrtice entre as paredes e o teto, conforme o
desejo do artista, para que o espectador sinta-se olhado enquanto v.
Malvitch torna-se referncia para muitos artistas contemporneos, entre eles, o fotgrafo esloveno Evgen
Bavcar, cuja produo retira toda a nossa certeza, no que tange a questo da representao do real. Para ele, todo
real anterior imagem, e as nossas concepes sobre a reproduo do visvel, sobre o figurativo e o abstrato caem
por terra. Sendo cego, ele nos oferece cada imagem como um mundo construdo mentalmente, e faz da sua vida
uma concepo suprematista. Acerca de suas relaes com a produo do artista russo, ele comenta: Eu gosto
muito de Malvitch porque ele deu a pintura a possibilidade de um nobre esquecimento, abrindo a via que leva para
trs do espelho cego do quadrado negro. Assim, ele abriu o espao utpico das imagens possveis para todos
aqueles que, mesmo cegos, aceitam sair do mundo das evidncias.17
Ou ainda: Este quadro o encontro do olhar
suposto. Todo pintor digno deste nome, um dia ou outro, encontra em sua vida este ponto fundamental das trevas,
isto , l onde h um apagamento das realidades, uma espcie de, como diria Nietzsche, esquecimento esttico. Um
esquecimento esttico que passa pelas trevas, e que necessrio para encontrar a face do outro.18
Deixemo-nos agora impregnar por estas circunvolues da histria da arte, do nascimento, das origens, ou
das verdades e mentiras da imagem, acompanhados por uma proposio do artista Luiz Alphonsus, cujo ttulo nos
interessa de maneira particular. Trata-se de A histria da arte, de 1995.19
Este trabalho rene uma pintura e uma
maquete. O quadro o de uma janela aberta onde, na superfcie pictrica, podemos ler um texto escrito com
purpurina, palavras como constelaes em cu noturno. Da escrita, destaco as palavras: iluso, mentira, realidade,
espao, lugar, comeo e fim. Desta forma, repetindo o movimento de vai-e-vem indicado no incio deste percurso,
estarei concluindo o que me propus a indicar como reflexo. Eis o que encontramos na tela:
Cada corredor possui diversas portas
Cada porta da para um quarto
Cada quarto se comunica com outro
Cada outro ele mesmo sem fim
Cada fim recria seu prprio comeo
Cada comeo traz em si a esperana
Cada esperana em si a iluso
Cada iluso a prxima mentira
Cada mentira cria uma realidade
Cada realidade some como poeira
Cada poeira um gro
Cada gro soprado pelo vento
Cada vento vem de um lugar
Cada lugar ocupa um espao
Cada espao a sua prpria ocupao
Cada ocupao delimita um tempo
Cada tempo provoca uma espera
Cada espera procura uma soluo
16
Nakov, Andrei. Lavant-garde russe. Paris, Fernand Hazan, 1984, p. 16. 17
Depoimento autora, em agosto de 2001, em Porto Alegre, por ocasio da abertura de sua exposio A noite, minha
cmplice (2001), no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. 18
Bavcar, Evgen. (2001) Uma cmera obscura atrs de outra cmera obscura. Entrevista com Evgen Bavcar por Elida Tessler e
Muriel Caron. In: Sousa, Edson; Tessler, Elida; Slavutzky, Abro (orgs.). (2001) op. cit., p. 35. 19
Alphonsus, Luiz (Belo Horizonte, 1948). A janela da histria da arte (1995). Purpurina e acrlica sobre tela. Coleo
Gilberto Chateaubriand, apresentada na exposio Palavraimagem, organizada pelo curador do Museu de Arte Moderna
(MAM) do Rio de Janeiro, Fernando Cocchiaralle, 2001.
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Cada soluo no nada em si mesma
Cada corredor possui diversas portas
Cada forma suprematista um mundo assim como cada janela da histria da arte. Resultado de um
movimento circular, elptico, com seus pontos de rupturas e de resgates, so construdas janelas por onde queremos
ver o sol, a lua, o dia nascer, para ento saber que tudo mentira, tudo figura.