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ISSN: 1519-8782 II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA Rio de Janeiro, 29 de agosto a 02 de setembro de 2016 CADERNOS DO CNLF, VOL. XX, 06 ESTILÍSTICA E LÍNGUA LITERÁRIA RIO DE JANEIRO, 2016

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  • ISSN: 1519-8782

    II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

    Rio de Janeiro, 29 de agosto a 02 de setembro de 2016

    CADERNOS DO CNLF, VOL. XX, N 06

    ESTILSTICA E LNGUA LITERRIA

    RIO DE JANEIRO, 2016

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    2 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

    RIO DE JANEIRO RJ

    REITOR

    Arlindo Viana

    DIRETOR ACADMICO

    Eduardo Maluf

    PR-REITORA DE GRADUAO

    Katia Cristina Montenegro Passos

    PR-REITORA DE PS-GRADUAO,

    PESQUISA E EXTENSO

    Maria Beatriz Balena Duarte

    DIRETOR DO CAMPUS TIJUCA

    Jos Luiz Meletti de Oliveira

    COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS

    Flvia Maria Farias da Cunha

    COORDENADORA LOCAL DO XX CNLF

    Graziela Borguignon Mota

    http://lattes.cnpq.br/4506620822077997
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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 3

    Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos Boulevard 28 de Setembro, 397/603 Vila Isabel 20.551-185 Rio de Janeiro RJ

    [email protected] (21) 2569-0276 http://www.filologia.org.br

    DIRETOR-PRESIDENTE

    Jos Pereira da Silva

    VICE-DIRETOR

    Jos Mario Botelho

    PRIMEIRA SECRETRIA

    Regina Cli Alves da Silva

    SEGUNDA SECRETRIA

    Eliana da Cunha Lopes

    DIRETOR DE PUBLICAES

    Anne Caroline de Morais Santos

    VICE-DIRETOR DE PUBLICAES

    Naira de Almeida Velozo.

    DIRETORA CULTURAL

    Adriano de Souza Dias

    VICE-DIRETOR CULTURAL

    Agatha Nascimento dos Santos Dias

    DIRETOR DE RELAES PBLICAS

    Jos Enildo Elias Bezerra

    VICE-DIRETOR DE RELAES PBLICAS

    Dayhane Alves Escobar Ribeiro Paes

    DIRETORA FINANCEIRA

    Marilene Meira da Costa

    VICE-DIRETORA FINANCEIRA

    Maria Lcia Mexias-Simon

    mailto:[email protected]://www.filologia.org.br/
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    4 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA de 29 de agosto a 02 de setembro de 2016

    COORDENAO GERAL

    Jos Pereira da Silva

    Jos Mario Botelho

    Adriano de Souza Dias

    Agatha Nascimento dos Santos Dias

    COMISSO ORGANIZADORA E EXECUTIVA

    Anne Caroline de Morais Santos

    Eliana da Cunha Lopes

    Regina Cli Alves da Silva

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    Marilene Meira da Costa

    Naira de Almeida Velozo

    COORDENAO DA COMISSO DE APOIO

    Anne Caroline de Morais Santos

    Eliana da Cunha Lopes

    COMISSO DE APOIO ESTRATGICO

    Marilene Meira da Costa

    Jos Mario Botelho

    COORDENAO LOCAL

    Anne Caroline de Morais Santos

    SECRETARIA GERAL

    Silvia Avelar Silva

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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 5

    APRESENTAO

    O Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos apre-

    sentou-lhe, na primeira edio deste nmero 06 do volume XX dos Ca-

    dernos do CNLF, com os trabalhos relativos a estilstica e lngua literria

    apresentados no II Congresso Internacional de Lingustica e Filologia e

    XX Congresso Nacional de Lingustica e Filologia do dia 29 de agosto

    ao dia 02 de setembro deste ano de 2016, realizado no Campus Tijuca da Universidade Veiga de Almeida, os quatro primeiros trabalhos completos

    entregues pelos autores de acordo com as normas do Congresso, totali-

    zando 63 pginas. Agora, nesta segunda edio, acrescenta os artigos se-

    guintes, a partir da pgina 64, conforme consta no sumrio disponibiliza-

    do no final deste nmero.

    Na histria das locaes deste Congresso, vale lembrar que ele

    nasceu em 1997, na Faculdade de Formao de Professores da Universi-

    dade do Estado do Rio de Janeiro (So Gonalo RJ). Sua segunda edi-

    o ocorreu na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (Rio de Janeiro RJ) e, depois disso, quinze edies consecuti-

    vas foram realizadas no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro RJ). Por causa disso, muitos participan-

    tes frequentes deste Congresso j o consideravam um evento da UERJ,

    supondo que o CiFEFiL fosse um rgo ou setor daquela instituio.

    Somente a partir de 2014 que ele se realiza fora do mbito das

    instituies pblicas de ensino superior do Rio de Janeiro, com a adeso

    da Universidade Estcio de S, que gentilmente nos acolheu desde o in-

    cio daquele ano, quando ali realizamos o VI Simpsio Nacional de Estu-

    dos Filolgicos e Lingusticos, pelo que agradecemos penhoradamente.

    Tambm em 2014 recomeamos nossas atividades acadmicas na

    Veiga de Almeida, com a IX Jornada Nacional de Lingustica e Filologia

    da Lngua Portuguesa, visto que foi aqui que comearam os primeiros

    eventos organizados pelo CiFEFiL, quando seu fundador, Emanuel Ma-cedo Tavares era professor de Filologia Romnica nesta instituio.

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    6 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Esperamos retribuir agora, com um evento de alto nvel, neste II

    CILF / XX CNLF, a boa acolhida que tivemos da Universidade Veiga de

    Almeida, neste retorno a nossas origens, depois de dezoito anos.

    Dando continuidade ao trabalho dos anos anteriores, foram edita-dos, simultaneamente, o livro de Minicursos e o livro de Resumos em

    trs suportes, para conforto dos congressistas: em suporte virtual, na p-

    gina do Congresso (http://www.filologia.org.br/xx_cnlf); em suporte di-

    gital, no Almanaque CiFEFiL 2016 (DVD) e, no caso dos Resumos, Pro-

    gramao, Minicursos e Ensaios Dispersos de Paulo de Tarso Galem-

    beck, tambm em suporte impresso.

    Os congressistas inscritos nos minicursos recebem um exemplar

    impresso do livro de Minicursos, sendo possvel tambm adquirir a ver-

    so digital, desde que pague pela segunda, que est no Almanaque Ci-

    FEFiL 2016.

    O Almanaque CiFEFiL 2016 j traz publicados, alm dos referi-dos livros de Minicursos, Resumos, Programao e Ensaios Dispersos

    de Paulo de Tarso Galembeck, mais de textos completos deste XX CON-

    GRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA, para que os congressis-

    tas interessados possam levar consigo a edio de seu texto, no preci-

    sando esperar at o final ano, alm de toda a produo do CiFEFiL nos

    anos anteriores.

    Haver uma segunda edio das edies eletrnicas, que dever

    sair a partir de dezembro, em que sero includos todos os trabalhos rela-

    tivos aos temas desse nmero.

    Agradecemos aos congressistas participantes e esperamos que esta

    publicao seja til a todos os interessados nos temas que ela inclui para

    o progresso das cincias lingusticas, filolgicas e literrias.

    Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2016.

    http://www.filologia.org.br/xx_cnlf
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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 7

    SUMRIO

    0. Apresentao .......................................................................... 7 Jos Pereira da Silva

    1. Berkeley em Bellagio: da autobiografia fico ....................... 9 Sarita Erthal

    2. Entre a escrita ntima e as narrativas de fico do eu em Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert .......................................... 20 Manuela Chagas Manhes

    3. Eu biogrfico ou eu ficcional? A inconstncia entre o real e a fico nas redes sociais ...................................................... 35

    Patrcia Peres Ferreira Nicolini, Clesiane Bindaco Benevenuti e

    Analice de Oliveira Martins

    4. Portugus do semirido: construes de tpico ou figuras de sintaxe? .................................................................................... 43

    Jacson Baldono Silva, Cleber Arago Arajo e Lucia Maria de Je-

    sus Parcer

    5. Olavo Bilac e J. Carlos: poema e ilustrao luz do Art Nouve-au ............................................................................................. 64 Joo Cludio Martins Araujo Barros e Armando Ferreira Gens Fi-

    lho

    6. Na cadncia da voz, na dana circular: a performance do grupo Balano da Roseira .................................................................. 76

    Marline Arajo Santos

    7. A linguagem incriada das Ribeirinhas do Norte: um dilogo en-tre Guimares Rosa e Eliane Brum ........................................ 95

    Antero da Silva Bragana Gomes

    8. Construes metadiscursivas constituintes do processo de refe-renciao em narrativas afiliadas ao lendrio amaznico .... 108

    Heliud Luis Maia Moura

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    8 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    9. Saber pensar, retoricamente falando .................................... 125 Afrnio da Silva Garcia

    10. Romances invisveis ............................................................... 133 Thiago Martins Prado

    11. Um passeio pelas ruas, cidades e vidas em Suleiman Cassamo . 142 Fabiana de Paula Lessa Oliveira e Fabiana Rodrigues de Souza

    Pedro

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 9

    BERKELEY EM BELLAGIO: DA AUTOBIOGRAFIA FICO

    Sarita Erthal (UENF)

    [email protected]

    Para qualquer leitor, um texto de aparncia autobio-

    grfica que no assumido por ningum se asseme-

    lha, como duas gotas, a uma fico.

    (Philippe Lejeune)

    RESUMO

    Este ensaio aborda a relao entre autobiografia e fico no romance Berkeley em

    Bellagio (2002), de Joo Gilberto Noll. O livro considerado um divisor de guas na

    fico de Noll por narrar a possibilidade de escolhas, antes inexistentes em sua litera-

    tura, alm de conter fortes elementos de suas reminiscncias. Por tambm conter tra-

    os da realidade do autor, algumas passagens de Lorde (2004) contribuiro para esta

    anlise. Esses dados sero investigados com base em O Pacto Autobiogrfico (2008), de

    Philippe Lejeune, a fim de elucidar a trade entre o real, o fictcio e o imaginrio, pro-

    posta por Wolfgang Iser (1996), e reforar o que o prprio Noll (2014) diz: O que fa-

    o no autobiogrfico.

    Palavras-chave: Autobiografia. Fico. Joo Gilberto Noll

    1. O leitor e a busca pela verdade

    No h dvidas de que Berkeley em Bellagio se trata de uma obra

    de fico. Contudo, nos tempos atuais, como se a experincia vivida s

    fizesse sentido se relatada e compartilhada, narrativas que trazem alguma

    semelhana entre autor e personagem tendem a criar um elo a mais na

    corrente que prende o texto ao leitor, em especial, quando este tem algum

    conhecimento sobre os bastidores da vida do artista. O leitor, ento, tor-

    na-se um co farejador ou um co de caa em busca de nuances que

    o levem a identificar no narrado alguns dados da realidade, numa intensa valorizao da verdade, como se esta fosse fundamental para a leitura.

    No caso de Joo Gilberto Noll, o carter autobiogrfico aparece

    pela primeira vez em sua obra em Berkeley em Bellagio e, mais tarde, em

    Lorde (2004). As reminiscncias que fizeram parte daquela narrativa so

    provenientes da experincia do autor em cursos de literatura brasileira

    contempornea que ele ministrara em Berkeley entre 1996 e 1998. Mais

    tarde, em Bellagio, ao norte da Itlia, ele termina o livro que tinha sido

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    10 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    iniciado naquela viagem, entretanto, no havia sido planejado que essas

    duas experincias fizessem parte de um mesmo volume, como confirma

    o prprio escritor:

    No imaginei, porque esse romance j estava em andamento, no imagi-

    nei que Bellagio fosse entrar pelo meu romance adentro. No pouco comum

    nas coisas que fabrico, porque estou muito aberto ao momento, s coisas que

    esto acontecendo1.

    Em Lorde, o protagonista vai a Londres a convite de uma univer-

    sidade inglesa. Ele, assim como em Berkeley..., um escritor e fora con-

    vidado por causa dos seus sete livros escritos:

    Ficaria sentado num banco do aeroporto de Heathrow, pensando que ele

    talvez ainda pudesse passar minha procura; eu o conhecia pessoalmente de

    apenas uma vez no Rio, quando pediu que por favor mandasse meus livros pa-

    ra seu endereo em Londres, porque no encontrara nas livrarias por onde ti-

    nha andado tarde e no dia seguinte retornaria para a Inglaterra. (NOLL,

    2004, p. 11)

    Philippe Lejeune (2008) pe em pauta as condies que levariam uma obra a ser caracterizada como autobiografia, assim como aborda ou-

    tras categorias pertencentes a esse gnero. Suas consideraes abrem ca-

    minho, visto que dialogam com diversos gneros textuais, para investiga-

    es sobre inmeras nuances acerca do texto literrio, sobretudo no que

    tange presena do eu em seu corpo.

    Se, na primeira verso de O Pacto Autobiogrfico2 o autor define

    autobiografia como narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa re-

    al faz de sua prpria existncia quando focaliza sua histria individual,

    em particular a histria de sua personalidade, Lejeune (2008, p. 14) abre

    um grande leque de possibilidades para que textos diversos sejam classi-

    ficados como autobiogrficos. Nessa vertente, textos em prosa ou narra-

    tivas que tratem da histria de uma personalidade ou de uma vida indivi-dual, em que haja identidade entre autor e narrador, narrador e persona-

    gem principal, contados em perspectiva retrospectiva so enquadrados

    como autobiogrficos.

    Algumas informaes encontradas em Berkeley em Bellagio cau-

    sam, em determinados leitores, a sensao de estar diante de, pelo menos,

    1 Disponvel em: .

    2 O pacto autobiogrfico foi escrito em 1971. Cerca de 30 anos depois, porm, o autor rev os

    diversos conceitos estabelecidos naquela poca e os refaz, atualizando-os criticamente.

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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 11

    parte da histria real do autor. Apesar de Italo Moriconi informar, na ore-

    lha do volume, que todos os elementos do alter ego vm tona, o livro

    catalogado como romance brasileiro, como um aviso de que se est di-

    ante de uma obra de fico.

    Ainda em se tratando dos elementos pr-textuais, Noll dedica o

    romance, dentre diversas pessoas, cidade de Porto Alegre, sua terra

    natal, tambm reforada pela epgrafe de Fabrcio Carpinejar, A morada

    em que nasci me habita. Na obra de Noll, a inadequao entre o sujeito

    e o mundo uma constante. Uma histria, pelo menos pela coincidn-

    cia entre terra natal, dedicatria e epgrafe, que poderia se encaminhar

    para os enredos de um ator real, porm, toma outro rumo. Noll atesta

    que, em Berkeley em Bellagio,

    o personagem se supera de alguma forma no momento em que acolhe a meni-

    na como filha. [...] Ele supera este exlio e por isso dedico o livro cidade de

    Porto Alegre, uma coisa de reconciliao mesmo. [...] tudo conflito e que se

    tem de se adequar a este conflito. Tem que se comear a fazer de conta.

    (NOLL, 2002a)

    Se fico, do latim, fictione, declinao de fictio, de fingire, fingir,

    modelar, inventar, no fazer de conta que as narrativas em questo se

    encontram. possvel que, para aumentar o distanciamento entre criador

    e criatura, Joo Gilberto Noll tenha lanado mo, pela primeira vez, de

    um narrador em terceira pessoa. Berkeley... traz uma alternncia de vo-

    zes, entre primeira e terceira pessoas, at ento indita nos textos do au-

    tor. Lejeune (2008, p. 16) diz que a identidade narrador-personagem

    principal, suposta pela autobiografia, na maior parte das vezes marcada

    pelo emprego da primeira pessoa. Mas com um pronome de terceira

    pessoa que Noll abre o romance:

    Ele no falava ingls. Quando deu seu primeiro passeio pelo campus de

    Berkeley, viu no estar motivado. Saberia voltar atrs? No se arrependeria ao

    ter de mendigar de novo em seu pas de origem? Fingir que no pedia pedindo

    refeies, ou a casa de veraneio de um amigo em pleno inverno para escrever

    um novo livro [...]. (NOLL, 2003, p. 9)

    Pelo incio da narrativa, o leitor conhecedor de algumas falas do

    autor tem, sim, motivos para ir em frente, em sua caada, em busca de

    mais informaes que lhe comprovem que se est diante de um romance

    autobiogrfico, ainda que a primeira palavra seja ele. A terceira pessoa,

    ento, cria certo distanciamento, mas no o suficiente para o leitor que

    sabe que Noll escreve livros em casas de veraneio, como ele mesmo

    afirma em um de seus depoimentos disponveis em sua pgina na inter-

    net:

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    12 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    O fato de ter vivido num hotel e de escrever mo, tudo isso que poderia

    primeira vista parecer glamour, no o , de fato, mas sim dados de uma con-

    dio que vinha de uma opo insana que fiz h uns quinze, vinte anos pela li-

    teratura - no sentido de ser um escritor full-time, o que me fez viver algum

    tempo sob tetos alheios, escrever meus livros na casa de veraneio de um ir-

    mo em pleno inverno, para poder manter um espao s meu para criar.

    (NOLL, 2002 Grifo nosso)

    Philippe Lejeune (2008, p. 16) explica, sobre a oscilao de vo-

    zes, que se h identidade entre autor = narrador e autor = personagem,

    donde se deduz que narrador = personagem, mesmo se o narrador per-

    manecer implcito, o texto em terceira pessoa equivale a uma biografia,

    escrita pelo interessado.

    O protagonista um escritor. Sua viagem se inicia em Berkeley,

    onde passara um perodo como escritor-residente para que ministrasse cursos como professor convidado sobre Clarice, Graciliano, Raduan,

    Caio, Mirisola e alguns outros, mais alguns cursos sobre MPB, (...)

    (NOLL, 2003, p. 14). No decorrer da escrita, h uma variao de vozes,

    fazendo com que o narrador-protagonista seja flexionado:

    Quando ele chegou aos Estados Unidos, tinha menos de cem dlares. A

    chefe do Departamento de Espanhol e Portugus em Berkeley o esperava no

    aeroporto de San Francisco toda de preto, loira, sorrindo meio culpada por

    tantas atribulaes que o consulado americano em So Paulo tinha me causado

    por no ser um cara de altas formaes acadmicas, por estar desempregado,

    sem endereo fixo, penso eu, por tudo isso relutaram duas, trs vezes meu

    passaporte voltara a Porto Alegre sem o visto temendo com certeza que eu

    quisesse imigrar como tantos patrcios. (NOLL, 2003, p. 16 Grifos nossos)

    Mesmo diante da fico, interessante observar que a teoria escri-

    ta por Philippe Lejeune sobre a autobiografia tem um ponto de encontro

    com o romance de Noll com relao variao entre primeira e terceira

    pessoas. Diz o terico:

    Existem autobiografias nas quais parte do texto designa o personagem

    principal atravs da terceira pessoa, ao passo que, no resto do texto, o narrador e o personagem principal se confundem na primeira pessoa: o caso de Le

    tratre [O traidor], no qual os jogos de voz de Andr Gorz traduzem sua incer-

    teza quanto identidade. (LEJEUNE, 2008, p. 17)

    De fato, a identidade incerta um tema bastante caro fico de

    Noll, mas as reminiscncias do autor no so a voz que narra. Autor e

    personagem se desvinculam a partir do momento em que tais recordaes

    so ficcionalizadas. Apesar de narrar em terceira pessoa, falando de uma

    viagem que realmente aconteceu, tomando distncia dos fatos, o prota-

    gonista o mesmo que narra em primeira pessoa. A oscilao de vozes

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 13

    no afasta o narrador-protagonista do foco central da escrita de Joo Gil-

    berto, pois sua preocupao com a linguagem transcende o enredo da

    trama e est intrinsecamente relacionada a esta personagem. a lingua-

    gem que provoca a flexo do narrador e que abre os caminhos pelos quais o ser andarilho passar. Explica Noll3:

    No que eu faa um ludismo com a linguagem, no fao jogos, no nada

    vanguardeiro, mas a linguagem me emancipa, no sentido de que ela vai dando

    braadas, vai tateando, me ajuda a tatear, at que eu me esquea de mim mes-

    mo e vai em direo a essa possibilidade do movimento ficcional. (NOLL,

    2002 Grifo nosso)

    Em Berkeley em Bellagio, h vrios outros momentos que refor-

    am a conexo entre autor e personagem, como, por exemplo, quando o

    protagonista se questiona sobre sua ida, no passado, ao Sanatrio para le-

    var choques (NOLL, 2003, p. 23), visto que, na adolescncia, Noll fora

    internado em uma clnica psiquitrica e submetido terapia de choques

    insulnicos4. Um dado bastante emblemtico para Lejeune (2008, p. 22-15) a presena do nome do autor na narrativa: ele se aproximou um

    pouco e repetiu: Joao, Joao, treinando um til com o dedo pelo ar, a repetir

    Joao, Joao. (NOLL, 2003, p. 49)

    Se o autor aquele que escreve e publica e est no texto e no

    extratexto, h de se observar um possvel vnculo entre a pessoa real/

    produtora de um discurso e o relato em que esse nome est inserido.

    Desse modo, seria muito simples, de acordo com o terico definir no s

    a autobiografia, mas tambm outros gneros da literatura ntima. Contu-

    do, vale ressaltar que a identidade entre autor e personagem deve ser as-

    sumida para que, de fato, uma obra seja autobiogrfica. Esse elemento

    mais relevante do que possveis semelhanas entre aqueles dois. (LE-

    JEUNE, 2008, p. 25)

    Quando o autor no assume, ento, tal identidade, o que j fora

    mais do que confirmado pelo prprio Noll, pode-se estar no campo do

    romance autobiogrfico. Nesse caso, as semelhanas entre o narrado e o

    vivido so mais relevantes do que a chancela do autor quanto confirma-

    o entre sua identidade e a do narrador. Diz Joo Gilberto Noll (2013)

    em uma de suas entrevistas:

    Gostaria de deixar para o leitor esse homem sem nome, ou s vezes com o

    meu nome, Joo, que tambm uma brincadeira pessoal: No estou fazendo

    3 Disponvel em: .

    4 Disponvel em: .

    http://www.joaogilbertonoll.com.br/depoimentos.htmlhttp://www.joaogilbertonoll.com.br/l3.htm
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    14 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    um personagem, esse sou eu. Mas claro que uma brincadeira, porque ali

    uma construo, no biogrfico. Se eu fosse escrever a minha biografia nes-

    ses livros, no estaria vivo, porque muita intensidade, muito estar exposto.

    Sua fala reafirma que, apesar de algumas semelhanas entre a vida

    real e a fictcia, no se pode falar em autobiografia, o que vai ao encontro

    das concepes de Philippe Lejeune (2008). Em se tratando de sua abor-

    dagem sobre o romance autobiogrfico, contudo, algumas consideraes precisam ser feitas. Segundo Lejeune,

    o romance autobiogrfico engloba tanto narrativas em primeira pessoa (identi-

    dade do narrador e do personagem) quanto narrativas impessoais (persona-

    gens designados em terceira pessoa); ele se define por seu contedo. dife-

    rena da autobiografia, ele comporta graus. A semelhana suposta pelo lei-

    tor pode variar de um vago ar de famlia entre o personagem e o autor at

    uma quase transparncia que leva a dizer que aquele o autor cuspido e es-

    carrado. (LEJEUNE, 2008, p. 25)

    Por essas caractersticas, Berkeley em Bellagio se adequaria

    classificao romance autobiogrfico, no fosse pelo fato de o autor utili-zar suas reminiscncias apenas como ponto de partida para que sua narra-

    tiva se estabelea conforme o projeto esttico-literrio do autor.

    Pela estrutura textual, no h diferena entre autobiografia e ro-

    mance. nessa perspectiva que Lejeune (2008, p. 26) prope o pacto

    autobiogrfico. Este a afirmao, no texto, dessa identidade, reme-

    tendo, em ltima instncia, ao nome do autor, escrito na capa do livro.

    Ainda assim, ressalvas devem ser feitas antes de se classificar

    qualquer obra que contenha semelhanas entre autor e narrador como au-

    tobiografia ou outros gneros pertencentes literatura ntima. A figura do

    leitor essencial nesse processo. ele quem realiza o contrato, quem se-

    la o pacto autobiogrfico. Com relao aos textos de Joo Gilberto Noll,

    por exemplo, se a identidade no for firmada (caso da fico), o leitor procurar estabelecer semelhanas, apesar do que diz o autor (LE-

    JEUNE, 2008, p. 26). nesse sentido que o leitor tende a agir como um

    co de caa, em busca das rupturas do contrato.

    Como Joo Gilberto Noll no apresenta Berkeley em Bellagio e

    Lorde como romances autobiogrficos, factvel que o autor adentre pe-

    lo campo da inveno, transgredindo inmeras situaes que se asseme-

    lhem sua realidade. Nesses livros, tampouco existe, na capa, o atestado

    de ficcionalidade, cuja palavra romance chancelaria o fato de que a nar-

    rativa se trata da vida real romanceada, ou seja, editada.

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 15

    Philippe Lejeune (2008, p. 28) organiza um quadro com possveis

    combinaes relacionadas ao pacto e ao nome do personagem. Seguindo

    suas orientaes, Berkeley em Bellagio, por conter nome do personagem

    = nome do autor e pacto = 0, tratar-se-ia de uma autobiografia, ainda que o nome Joo aparea pela primeira vez na pgina 49, como no exem-

    plo5 ressaltado pelo terico. Este contundente quanto sua classifica-

    o. Faz uma restrio, apenas, com relao a alguns casos limites, pos-

    sivelmente os que estariam nas casas cegas do seu quadro, as quais no

    conseguiu elucidar:

    Chamarei, pois, de autobiografias os textos que se encaixam nos casos

    2c, 3a, 3b. Quanto aos outros, lemos como romances os textos que entram nos

    casos 1a, 1b, 2a e, segundo nosso humor, a categoria 2b (mas reconhecendo

    que fomos ns que escolhemos).

    Pelo quadro de Lejeune, Berkeley em Bellagio se encaixaria em

    3a, portanto, autobiografia. Se Joo Gilberto Noll nunca tivesse feito de-

    claraes a respeito de sua vida, muitas verdades a serem buscadas em

    seus romances seriam desconhecidas, e o leitor se valeria da fico, como

    se mais nada exterior a ela fosse necessrio.

    Tanto em Berkeley em Bellagio quanto em Lorde, os dois livros

    com traos anamnsicos, a desmemria, caracterstica ao conjunto da

    obra de Noll, se sobrepe memria medida que a linguagem se de-

    senvolve, constituindo o contedo do romance. Autor e linguagem inte-

    ragem, at que esta se desenvolva independentemente das reminiscncias daquele.

    2. A ficcionalizao do real

    Nesses romances, se as reminiscncias do ao texto um aspecto

    autobiogrfico, pelo ato de fingir que ele se integra fico e se des-

    vincula da realidade:

    Na converso da vida real repetida em signo doutra coisa, a transgresso

    de limites manifesta-se como uma forma de irrealizao; na converso do

    imaginrio que perde seu carter difuso em favor de uma determinao, suce-

    de uma realizao do imaginrio. (ISER, 1996, p. 15)

    Pelo nosso saber tcito, temos o olhar opositivo entre realidade

    e fico. Por ele, identificamos a fico por no reconhecer nela atributos

    5 Lejeune exemplifica com Les Motes, de Jean-Paul Sartre, narrativa em que o nome do personagem

    aparece, inicialmente, na pgina 48.

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    16 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    que definem a realidade (ISER, 1996, p. 14). Como essa relao dupla

    gera problemas sobre existncias que no possuem o carter de realidade,

    Wolfgang Iser (1996) prope uma relao ternria para elucidar o fictcio

    do texto ficcional. Ele substitui a relao entre fico e realidade pela tr-ade do real, fictcio e imaginrio, pois:

    H no texto ficcional muita realidade que no s deve ser identificvel

    como realidade social, mas que tambm pode ser de ordem sentimental e

    emocional. Estas realidades, por certo, diversas no so fices, nem tampou-

    co se transformam em tais pelo fato de estarem na apresentao de textos fic-

    cionais. (ISER, 1996, p. 14)

    A duplicidade do texto apontada por Wolfgang Iser (1996, p. 303)

    ocasionada pelo como se. Neste territrio, o significante se duplica e

    no mais significa o que designado. O imaginrio se desenvolve em

    uma relao ambgua com o designar para abrir espao para algo ainda

    inexistente. Este movimento o que Wolfgang Iser (1996) chama de jo-

    go do texto, em que o significante se desdobra em outros significantes:

    (...) o significante coincide com aquilo que produz, e (...), enquanto produto de

    seu movimento de disperso das implicaes, permanece diferenciado do sig-

    nificante. Pois o movimento de disperso das implicaes liberadas d lugar

    variabilidade potencial do territrio de ideias, cujos contornos no so fixos,

    mas permanentemente adquiridos no jogo, por nuanas cambiantes. (ISER,

    1996, p. 305)

    Wolfgang Iser (1996, p. 312) afirma que no h progresso em arte

    e literatura, mas pelo jogo de imitao e simbolizao a possibilidade de

    exceder os limites uma verdade. A oscilao decorrente de simbolizar

    ou imitar para tornar imaginvel o que no pode ser objetivado gera uma

    duplicao visvel: ela distingue a imitao da simbolizao, do mesmo

    modo que faz oscilar uma na outra, e permanece como vestgio mesmo

    quando a imitao e a simbolizao so jogadas nas suas respectivas mu-

    danas de funo. (ISER, 1996, p. 313)

    Desse modo, a inesgotabilidade da obra literria atestada. Pe-

    los movimentos oscilatrios, o imaginrio povoado pelos significantes

    divididos que no se enquadram na realidade, tampouco no fictcio.

    Mesmo inesgotvel, o carter intencional da linguagem no permite que esse jogo seja infinito. A linguagem impe uma limitao, o prprio tex-

    to limitado. o jogo do texto, ao qual Wolfgang Iser (1996) se refere,

    que no tem limites.

    Wolfgang Iser (1996) atribui ao como se o jogo do qual partici-

    pam texto e leitor. Os espaos vazios do texto estimulam o imaginrio do

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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 17

    receptor para a criao de novos significantes. Na escritura de Noll, o

    como se aparece demasiadas vezes e, em muitas delas o significante aca-

    ba sendo esvaziado por comparaes hipotticas em relao a seus

    prprios atos (OTSUKA, 2001, p. 112). Partindo das reminiscncias do autor (Noll), o como se tem outra conotao:

    Eu continuaria a andar pelo corredor com aquelas sombras expectantes

    atrs da corda na minha lateral esses que costumam esperar os viajantes co-

    mo se no tivessem mais nada a fazer alm de aguardar sedentariamente aque-

    les que no param de se movimentar, partir e chegar. (NOLL, 2004, p. 9)

    Nesse momento, a aparente apatia dos que aguardam um des-

    conforto para o protagonista. Por enquanto, ele se preocupa com os com-

    promissos afinal, fora a Londres para cumprir uma misso.

    E enquanto se sente pertencido a uma sociedade globalizada

    tanto que viajara por causa dos livros escritos com a qual se relaciona,

    por ter uma profisso, que depende de leitores, das vendas do material

    que produz, independentemente do valor artstico ao qual sua literatura

    est submetida, esse indivduo est agregado ao mundo real, mesmo

    que numa realidade ficcionalizada; tanto que ele conversa com seus bo-

    tes enquanto arrastava as malas em direo a alguma sada onde ele [o

    ingls] pudesse estar (...). (NOLL, 2004, p. 11)

    3. Consideraes finais

    Se a linguagem possibilita transgresses, e pela prpria confirma-o do autor com relao ao que faz, no que tange ao fazer autobiogrfi-

    co, no h como classificar Berkeley em Bellagio sob qualquer gnero da

    literatura ntima. A narrativa tampouco se adequa ao romance autobio-

    grfico. Ainda bem que Lejeune (2008) retoma, anos depois, o exerccio

    crtico que realizara sobre a autobiografia na primeira publicao de seu

    livro. As amarras que ele definiu inicialmente, no do conta do poder

    transgressor do artista que escreve, como se pde comprovar por estas

    poucas linhas.

    O narrador de Berkeley em Bellagio se situa, portanto, na autodie-

    gese. Por meio da linguagem, Joo Gilberto Noll subverte o real e distan-

    cia o leitor daquilo que seria a prpria vida de quem escreve para apro-xim-lo dos valores que imprime em sua literatura. Nesse contexto, cabe

    muito bem o poema de Carlito Azevedo:

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    18 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Desconfiar do estalo

    antes de utiliz-lo

    mas sendo impossvel

    de todo aboli-lo

    desconfiar do estalo

    dar ao estalo estilo.

    (AZEVEDO, 1991)

    Se as reminiscncias que provocaram no autor o estalo para a es-

    crita do livro se fazem presentes, pelo estilo que Noll as ficcionaliza e

    desfaz qualquer rtulo autobiogrfico.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AZEVEDO, Carlito. Da inspirao. In: ___. Collapsus linguae. Rio de

    Janeiro: Lynx, 1991.

    ISER, Wolfgang. O fictcio e o imaginrio. Trad.: Johannes Kretschmer.

    Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

    LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiogrfico: de Rousseau a Internet.

    Belo Horizonte: UFMG, 2008.

    NOLL, Joo Gilberto. O avesso do conhecimento. [Depoimento]. Cor-

    reio Brasiliense, 10 nov. 2002. Disponvel em:

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    ______. A literatura vive um renascimento. Entrevista concedida Clu-

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    reira na quarta entrevista da srie "Obra Completa". Entrevista concedida

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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 19

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    20 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    ENTRE A ESCRITA NTIMA

    E AS NARRATIVAS DE FICO DO EU

    EM COMER, REZAR, AMAR, DE ELIZABETH GILBERT

    Manuela Chagas Manhes (UENF/UNESA) [email protected]

    RESUMO

    Este presente trabalho pretende trabalhar a importncia das variveis scio cul-

    turais e dos universos simblicos como pressupostos fundamentais para a formao do

    objeto artstico: a linguagem artstica narrativa ficcional e escrita ntima. Tendo como

    objeto de analise o livro Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert pretendemos en-

    tender como a narrativa ficcional pode ser autntica ainda que a narrativa seja consti-

    tuda por personagens inventados tambm estaro imersos no cotidiano e parte da

    experincia vivenciada e contada pela protagonista e narradora que a autora. Tal fa-

    to tambm possibilita neste livro uma espcie de autobiografia que se faz a partir da

    escrita ntima, j que temos a observao de si mesma (autora) diante da criao e dos

    fatos do dia-a-dia vivenciados e lucubrados pela mesma. Tal livro, tambm, foi explo-

    rado pela indstria cinematogrfica favorecendo uma maior acessibilidade do pblico,

    transcendendo o cerco das palavras escritas e entrando no mundo dos personas tea-

    trais e de outros tipos de linguagens artsticas que compem a produo da stima ar-

    te. O fato que todas as linguagens artsticas so formas de criao, expresso, comu-

    nicao dentro da realidade social. Isso significa dizer que estas so construdas por

    universos simblicos e por contexto scio cultural histrico e traduzidas pelos atores

    sociais (autores) em suas diferentes representaes e significaes costuradas na sua

    narrativa. Ou seja, a existncia e a formao de diversos universos simblicos respal-

    dam o estudo da linguagem artstica em sua realidade social, j que toda arte condi-

    cionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonncia com as ideias e

    aspiraes, as necessidades e esperanas de uma situao histrica particular, assim

    como a maneira que se compem as relaes sociais em distintos ciclos que suscitam a

    emoo e refletem a subjetividade humana alm de um complexo de fatores scio cul-

    turais que so, na verdade, base para a produo da narrativa ficcional, autobiblio-

    grfica e a escrita ntima. Para entendermos tal relao utilizaremos como fundamen-

    tao terica autores como Gilberto Velho, Antonio Candido, Bonet, Ernest Fischer,

    Lejeune, Siblia e Portella, entre outros.

    Palavras-chave: Universo simblico. Narrativa ficcional.

    Escrita ntima. Linguagem artstica. Relaes sociais.

    1. Introduo

    A arte o meio indispensvel para a unio do indivduo com o to-

    do; reflete a infinita capacidade humana de associao, para a circulao

    de experincias, sentimentalidades e ideias. Gilberto Velho (1979) afirma

    que o desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele

    mailto:[email protected]
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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 21

    mais do que um indivduo. Sente que s pode atingir a plenitude, se ele

    se apoderar das experincias alheias que potencialmente lhe concernem

    que poderia ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu

    inclui tudo aquilo de que a humanidade como um todo capaz.

    Entretanto, a tenso e a contradio dialtica so inerentes arte;

    a arte no s precisa derivar de uma intensa experincia da realidade co-

    mo precisa ser construda, precisa tomar forma de objetivao. O livre

    resultado do trabalho artstico resulta da reflexo. Em outras palavras:

    para confeccionar uma obra artstica, necessrio dominar, controlar e

    transformar a experincia em memria em expresso, ou seja, dar forma

    ao material apreendido, e, durante toda a elaborao dessa obra de arte

    (seja de qualquer natureza artstica) operar a emoo e a razo simultane-

    amente sobre o trabalho artstico. A emoo para o artista no tudo,

    pois ele precisa trat-la, transmiti-la, precisa conhecer as regras, tcnicas,

    recursos, formas e convenes com que a natureza esta provocadora pode ser dominada e sujeitada concentrao da arte. A paixo que con-

    some o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista no possudo pela

    besta-fera, mas doma-a.

    Neste aspecto Fischer (1976, p. 16) nos diz que: (...) arte neces-

    sria para que o homem se torne capaz de conhecer, de mudar o mundo.

    Mas a arte tambm necessria em virtude da 'magia' que lhe ineren-

    te. Ou seja, o fato da obra de artstica no ter como fim a produo de

    objetos teis no deve levar concluso de que lhe faltem finalidades.

    H quem afirme que a finalidade da arte a arte em si mesma. A arte, se-

    gundo Leon Tolstoy (In VELHO, 1979, p. 65) uma linguagem, ou seja,

    uma forma de comunicao humana e, como tal, tem propsito e finali-

    dade. O artista que cria uma obra artstica quer com ela dizer algo soci-edade em que vivemos, entre outros fins, o de produzir no homem e na

    sociedade emoes estticas. Salomon Reinach (apud VELHO, 1979, p.

    67) diz sobre a linguagem artstica: (...) um produto da atividade huma-

    na, cujo fim no a satisfao imediata, mas despertar em todos um sen-

    timento, uma emoo viva: a admirao, o prazer, a curiosidade, a alegria

    (...).

    Em resumo: a emoo esttica que as obras de arte nos causam o

    resultado de um complexo de fatores entre os quais se alinham, como

    fundamentais, a influncia da sociedade, a historicidade da linguagem ar-

    tstica, um elemento pessoal irredutvel e o gnio do artista criador.

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    22 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Portanto ao tratar de uma linguagem artstica especfica conside-

    ramos a relevncia destes elementos na constituio do objeto artstico e

    as formas de sua comunicao que permeiam a vida social. Quando pen-

    samos no objeto artstico para entendermos o mesmo torna-se de suma importncia compreender as diferentes variveis que interferiram e inter-

    ferem no processo de criao. Nesse caso especfico, ao escolhermos a

    linguagem artstica narrativa ficcional e em paradoxo autobiogrfico do

    livro Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert, estamos atentando para

    o que interfere na produo da narrativa de um autor que perpassa por

    uma experimentao real da autora e que est inserido em todo um con-

    texto scio cultural e, simultaneamente, traz caractersticas multifacet-

    rias dos personagens ficcionais que correspondem as constituies da

    protagonista. Obviamente que existem questes que sero objetivas e ou-

    tras subjetivas, mas o que buscamos, neste sentido, trazer a luz da com-

    preenso so as possibilidades de construo da escrita de um autor que traz em si a sua singularidade, identidade e reflete uma serie de interfe-

    rncias scio culturais observadas e ou vivenciadas pela autora alm de

    entender como determinados conceitos como as fices do eu, a escrita

    intima e autobiogrfica podem estar truncadas dentro de um mesmo obje-

    to artstico.

    2. As variveis socioculturais na estrutura da linguagem artstica li-terria

    Partindo do pressuposto de que o indivduo, para manter-se no or-

    ganismo social, necessita de um instrumento-base, que a linguagem,

    faz-se necessria a apreenso de sistemas de sinais, possibilitando a sua

    atuao, em outras palavras: a sua interao social. O sujeito em seus distintos grupos atravs de universos simblicos, valores sociais, morais,

    culturais, estticos e polticos compartilha seus pensamentos, emoes

    e dogmas com os outros, permitindo que ele se mantenha coeso ao orga-

    nismo social e que produza uma realidade de acordo com tais universos

    simblicos e com o conhecimento compartilhado num processo contnuo

    de construo e ressignificao.

    Isso se deve ao fato de que a aquisio de conhecimento na vida

    diria de cada membro da sociedade estrutura-se em termos de conveni-

    ncias. Os seus interesses e os grupos em que o agente social interage

    permitem um cruzamento entre as diversas convenincias o que, con-

  • II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 23

    sequentemente, favorece a diversificao de significados e uma plurali-

    dade de conhecimentos e prxis sociais.

    Por conseguinte, Manhes (2005) afirma que a interao social

    no repleta apenas de objetivaes, pois o indivduo est constantemen-te envolvido por objetos que pr-determinam as intenes subjetivas de

    seus semelhantes. A objetivao de suma importncia, pois ela remete

    significao produo humana de sinais, por sua vez, agrupam-se em

    um certo nmero de sistemas. Assim, h sistemas de sinais gesticulat-

    rios, musicais, classes sociais, regies geogrficas, grupos socioculturais,

    profisses, movimentos corporais, entre outros. Os sistemas de sinais so

    objetivaes no sentido de serem acessveis, alm da expresso de inten-

    es subjetivas. De todos estes sistemas, o mais eficiente so os cdigos

    lingusticos: a vida cotidiana , sobretudo, a vida com linguagem verbal,

    e por meio dela que se pode compreender, de modo mais amplo, a rea-

    lidade social e cultural em que se vive.

    Em outras palavras, conhece-se o exterior atravs de um fator psi-

    colgico, atravs das percepes, que em conceituao literria chama-

    do de imagens. Por conseguinte, so classificadas em auditivas, visuais,

    olfativas, gustativas e tcteis, segundo o sentido utilizado. O mundo exte-

    rior se apresenta ento fragmentado em mirades de imagens que desfi-

    lam insones, incansveis pelo campo da conscincia. Essa captao

    comum a todos os seres humanos. (BONET, 1970, p. 46)

    Neste aspecto, concordamos com Bonet (op. cit.), ao afirmar que

    na criao da linguagem literria, a partir dos processos perceptivo, te-

    mos o acesso s fontes vivas e fontes documentais, diretas e indiretas.

    Deste modo, tais fontes ento, so capturveis e sero base para o traba-

    lho artesanal da narrativa. Em outras palavras, as fontes vivas seriam o mundo exterior e o mundo interior (criador). A estas fontes chega-se por

    observao direta, e o que se extrai delas experincia pessoal, ou seja,

    limitada a experincia do indivduo. J observao indireta, por sua vez,

    est relacionada apreenso da realidade com os sentidos alheios, em

    senti-la com a sensibilidade alheia, em apropriar-se da experincia dos

    demais arquivada em foras dispersas. A fonte indireta desrealiza a arte,

    pois o que o artista expe no uma realidade feita sua por captura dire-

    ta, mas uma realidade interpretada por outros, tomada como emprstimo.

    fato, ento, que para se entender a realidade traduzida na lin-

    guagem artstica literria da vida diria dos indivduos necessrio levar

    em considerao as diversas atribuies de significados e interpretaes.

  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    24 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    A investigao dos fundamentos do conhecimento da vida cotidiana rea-

    lizada por meio da linguagem constri as objetivaes dos processos de

    significaes e o mundo intersubjetivo individual e coletivo. O que en-

    contramos em Comer, Rezar, Amar a realidade que sempre apresen-tada como uma dialtica que tem como caracterstica principal a objetivi-

    dade e a subjetividade que os smbolos e a prpria linguagem tm dentro

    do sistema estrutural social composto por variveis scio culturais e re-

    flexes da autora.

    Seu objetivo era visitar trs lugares onde pudesse examinar um aspecto da

    sua natureza. Em Roma estudou a arte do prazer, aprendeu italiano e engordou

    11 quilos mais felizes de sua vida. Na ndia se dedicou a arte da devoo e,

    com ajuda de um guru local e de um caubi texano surpreendentemente sbio,

    ela embarcou em quatro meses de contnua explorao espiritual. Em Bali, es-

    tudou a arte do equilbrio entre o prazer mundano e a transcendncia divina.

    (ABREU, In GILBERT, 2008)

    Em Comer, Rezar, Amar, isso se deve realidade que oferece

    mltiplos e complexos universos simblicos assim como diferentes for-

    mas de representar o mundo e a apresenta atravs de diferentes modos de

    narrativas e personificaes de uma mesma protagonista, que tem seus

    desdobramentos na narrativa memorialstica, que ao longo do relato de

    sua viagem camalenica e se utiliza de novos sistemas simblicos: as

    variveis scio culturais observadas, vivenciadas, apreendidas, ou seja, as

    fontes para realizar a confeco de sua linguagem literria. Da mesma

    forma se deve ao olhar da autora sobre si mesma e sobre as relaes e in-

    trospeces neste emaranhado universo de fontes que so expressas na

    criao de sua liturgia ntima e ficcional autntica.

    O que escrevo em meu dirio esta noite que estou fraca e com muito

    medo. Explico que a depresso e a solido apareceram, e que estou com medo

    de elas nunca mais irem embora (...) estou com pnico de nunca mais conse-

    gui dar jeito na minha vida. Como resposta, de algum lugar dentro de mim,

    surge na presena agora familiar, que me oferece todas as certezas que eu

    sempre quis que outra pessoa me desse quando eu estava com problemas. O

    que me vejo escrevendo para mim mesma no papel o seguinte: Estou aqui.

    Eu amo voc. No me importo se voc estiver de passas a noite inteira acor-

    dada chorando, eu fico com voc (...) nunca se esquea de que, um dia, em um

    instante de espontaneidade, voc reconhece a si mesma como uma amiga.

    (GILBERT, 2008, p. 62-63)

    De uma forma ou de outra o autor faz uso de um acervo informa-

    tivo e fontes para lapidar sua obra favorecendo a tipos de construes e

    formaes identitrias, as quais ambas devero integrar-se a realidade, ao

    gnero e transcendero, consequentemente, a narrativa ficcional e auto-

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    biogrfica presente na linguagem artstica literria para realizar o proces-

    so expressional e comunicativo com seus pares: os leitores (ou pblico).

    3. A relao comunicativa autor e leitor: a linguagem artstica liter-ria como veculo de comunicao e expresso humana

    Segundo Manhes (2005) a arte em si da vazo as relaes soci-

    ais, sublimao coletiva, isto , entende-se como unificao e exaltao

    da conscincia e das emotividades sociais, que se produzem em determi-

    nadas circunstncias da vida de um grupo, dos povos. Os objetos artsti-

    cos tambm conseguem refletir sentimentos, ideias, maneiras, costumes,

    atitudes, enfim, a cultura especfica de um grupo humano no qual cada

    um de seus integrantes se identifica e se ama ou se questiona. Nesse as-

    pecto, seja qual for o gnero, o objeto artstico, a arte torna-se de suma

    importncia por representar personagens ficcionais que ganharo sentido

    dentro destas realidades scio culturais vivenciadas pelos membros do grupo fomentando entre eles suas conscincias, sentimentos, reflexes,

    introspeces, costumes etc.

    Isso pode ser demonstrado pelo fato do ser humano ser socivel,

    vive circunscrito numa sociedade e convive com os seus semelhantes

    atravs das interaes socioculturais. Ento, para o artista, ao criar algo,

    o que interessa que esses objetos (obras de arte) toquem no fundo da

    alma das pessoas. Ou seja, a linguagem artstica d vazo ao imagin-

    rio, em que temos as fices que podem tornar reais os desejos, anseios e

    sonhos podendo ter reflexo na conduta social. Isto significa dizer que es-

    tas podem ser traduzveis na realidade social pelo leitor.

    Portanto, perceptvel a influncia da arte nas sociedades huma-

    nas. Isso se deve utilizao dos sistemas de smbolos, em especial a linguagem verbal, que interliga um enorme universo simblico, funcio-

    nando como instrumento base da comunicao entre os atores sociais em

    suas relaes e manifestaes no organismo social nas diferentes realida-

    des. Podemos, ento, concordar com Carneiro Leo (apud PORTELLA,

    1976, p. 35) quando ele afirma que a linguagem o mais concentrado

    modo de se ser da realidade. Na linguagem o real se mostra em si mesmo

    com plenitude de liberdade.

    A linguagem participa, desse modo, de todo o processo de cria-

    o, est diretamente relacionada interao social sendo utilizada pelo

    autor para manifestar-se em sociedade (comunicao), construindo todo

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    26 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    o edifcio das diversas reas da cultura (criao); demonstrando, portan-

    to, o hibridismo cultural, a diversidade da linguagem esttico-artstica, na

    formao de representaes sociais em suas narrativas ficcionais, em su-

    as escritas ntimas e em seus complexos sistemas de comunicao huma-na nas distintas pocas histricas.

    Ento partindo destas constataes podemos pensar como narrati-

    va de Comer, Rezar, Amar favoreceu dentro de seu universo uma comu-

    nicao efetiva entre o autor e o leitor (receptor). Nesse aspecto concor-

    damos com Antonio Candido (2002, p. 73-74) ao afirmar que o escritor,

    dentro de uma sociedade especfica no s um sujeito social capaz de

    exprimir em sua originalidade que traz suas especificidades e identidade,

    mas tambm, algum que desempenha papis sociais, ocupa diferentes

    posies na sociedade e em seus grupos. A matria e a forma de sua obra

    dependem de uma srie de circunstncias, como por exemplo, a tenso

    entre as veleidades profundas e a consonncia do meio, a caracterizao da relao dialgica maior ou menor entre autor e pblico.

    Por isso, entre outros fatores, consideramos a literatura enquanto

    linguagem artstica um sistema vivo de obras nas quais h uma serie de

    vivncias experimentaes. A obra no um objeto fixo, passivo, homo-

    gneo. A obra artstica literria atua, decifrada, interpretada, sentida,

    dialogada. Todas estas articulaes favorecem para que haja a integrao

    entre autor e leitor. Favorece a comunicao realizada por este objeto ar-

    tstico, j que este mediador entre autor e pblico, autor e obra, tendo

    sua revelao e autenticidade atestada pelo pblico.

    (...) o vcio a marca de toda histria de amor baseada na obsesso. Tudo co-

    mea quando o objeto de sua adorao lhe d uma dose generosa, alucinante

    de algo que voc nunca ousou admitir que queria um explosivo coquetel

    emocional, talvez, feito de amor estrondoso e louca excitao. Logo voc co-

    mea a precisar dessa ateno intensa com a obsesso faminta de qualquer vi-

    ciado. (GILBERT, 2008, 28)

    Em Comer, Rezar, Amar, podemos inferir o conceito autobiogra-

    fia exatamente por causa dessa comunicao direta que existe com o lei-

    tor. Ou seja, a autora a narradora e a protagonista. A narradora, ao lon-go do livro, relata as frustraes, as inseguranas e as descobertas de si

    para o leitor. Sendo a protagonista compartilha suas sensaes e percep-

    es de si mesma, do outro, do mundo. Ao favorecer tal veia comunicati-

    va efetuado o pacto de leitura como Paula Siblia (2008), em seu li-

    vro O show do eu, muito bem nos coloca ao falar da teoria do crtico lite-

    rrio Philippe Lejeune. perceptvel que, nessa obra literria, temos as

    identidades da autora, da narradora e da protagonista da histria numa

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    mesma dimenso que ao longo da narrativa faz a interlocuo com o ou-

    tro: o leitor.

    Quando se est perdido nessa selva, algumas vezes preciso algum tempo

    para voc se dar conta de que est perdido. Durante muito tempo, voc pode

    se convencer de que s afastou alguns metros do caminho, de que a qualquer

    momento ir conseguir voltar para a trilha marcada. Ento a noite cai, e torna

    a cair, e voc continua sem a menor ideia de onde est, e hora de reconhecer

    que se afastou tanto do caminho que sequer sabe mais em que direo o sol

    nasce. (GILBERT, 2008, p. 57)

    neste contexto que Lejeune (2008) complementa a afirmao de

    Antonio Candido sobre a relao que existe entre autor, obra e leitor. Le-

    jeune (2008) afirma que o que faz a obra funcionar (pensemos aqui no

    funcionamento para manter-se como forma expressiva de comunicao)

    maneira que a mesma lida. Logo temos nesta relao entre autora e lei-tor algo mais intrnseco, pois as possiblidades de funcionamento de um

    texto dependem do leitor. Ento a comunicao, que a obra favorece ou

    pode favorecer, uma relao que depende da leitura e da maneira que

    esta ser direcionada, pensada pelo leitor.

    Diante destas concepes pensamos neste objeto artstico como

    forma de expresso humana que transita nas subjetividades humanas e

    compem a comunicao entre os atores sociais por meio da linguagem

    artstica literria de Comer, Rezar, Amar. Ao tratarmos das subjetivida-

    des caracterizamos, no s, as identidades que podemos encontrar pre-

    sentes na composio do protagonista, mas tambm, na forma que o dis-

    curso realizado nesta narrativa artesanal desenvolvido pela autora e ser

    compreendida, lida e consequentemente vivenciada pelos leitores. A obra torna-se o vaso comunicante para que d vazo s emoes, pensamen-

    tos, sensaes, aspiraes, angstias da protagonista vivenciada sobre di-

    ferentes ordens pelos receptores: leitores que atestam sua existncia e as-

    sim a sua autenticidade.

    4. Entre a autobiografia, narrativa ficcional e a escrita ntima: Co-mer, Rezar, Amar, por Elizabeth Gilbert

    Nestas memrias de viagem cativantes e fascinantes

    a jornalistas Liz Gilbert passeia durante um ano na

    Itlia, na ndia e na Indonsia. Marie Claire (EUA)

    (...) como se fosse o dirio de sua amiga mais per-

    ceptiva e engraada (...) (GLAMOUR, in GILBERT,

    2008)

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    28 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Por que escolher este livro? Na verdade, no foi fcil. Nunca f-

    cil definir um objeto de estudo. Pensei em vrios objetos artsticos, mas

    algo me incomodava. Meu questionamento passava pelo fato da narrativa

    ficcional e autobiogrfica. Queria entend-las. Queria saber at onde po-demos defini-las como tais e caso houvesse tais definies, saberamos

    tambm o que uma escrita intima a priori. Uma escrita que traz as me-

    mrias de algum que narra a sua prpria histria. De um ator social que

    se define como parte integrante da narrativa que constri a comunicao

    com o mundo, e a como ser autobiogrfico e ficcional? Comecei a colo-

    car em xeque-mate a minha prpria formar de ler. De definir o autor. E

    uma frase ao longo do curso norteou a forma de compreender a narrativa:

    a voz que fala na autobiografia. a voz absoluta ou ser que o autor per-

    formatiza para seu pblico criando as fices de si mesmo em sua obra?

    Se assim o , as fices so capazes de revelar a realidade? a dinmica

    da linguagem que se instala atravs da ao comunicativa. Buscando compreender esta dinmica pensei em Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth

    Gilbert.

    Para realizar esta analise fator primordial definirmos o que a

    autobiografia. Neste contexto concordamos com Lejeune (2008) ao afir-

    mar que o primeiro passo para esta definio conceitual a da voz da

    narrativa, no nosso caso, em primeira pessoa do singular que traz na au-

    toria a identidade: narrador e personagem. Por isso, segundo Lejeune

    (2008), o pacto autobiogrfico tem a afirmao identitria desta comu-

    nho entre autor- narrador e personagem ao longo do texto e quem o de-

    fine e legitima o leitor.

    (...) e pensei: At o dia em que eu conseguir sentir o mesmo xtase em relao

    a ter um filho que senti em relao a ir para Nova Zelndia atrs de uma lula

    gigante, no posso ter um filho. Eu no quero mais estar cansada (...) eu ha-

    via participado ativamente de cada instante da criao daquela vida ento,

    por que sentia que nada daquilo combinava comigo? Por que me sentia to so-

    terrada pelo dever, cansada de ser o arrimo do casal, a dona de casa, a coorde-

    nadora de eventos sociais, a que leva o cachorro para passear, a esposa e a fu-

    tura me, e em alguns poucos instantes roubados a escritora. (GILBERT,

    2008, p. 19-20)

    neste sentido que Comer Rezar Amar um livro construdo a partir da experimentao de uma jornalista que sai em busca de suas res-

    postas durante um ano numa viagem por trs grandes pases: Itlia, ndia

    e Indonsia. Entramos na fronteira entre a realidade e o ficcional. Logo

    no inicio o fator dos contextos scio culturais tornam se elementos defi-

    nidores para tal vivncia segundo a autora. Culturas, tradies, costumes,

    crenas. A edificao do torna-se humano sobre diferentes prismas e que

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    so fundamentos universais para o sentido amplo de humanidade. Co-

    nhecer, reconhecer, perceber, sentir e construir uma narrativa de sua ex-

    perimentao de maneira objetiva entrelaada as questes subjetivas que

    fazem escolher as palavras, as expresses, as definies de quem estar sendo desnudada ao longo da escrita, ao longo do processo de criao ar-

    tstico e o que nos leva ao questionamento: qual ser a fico deste eu

    que nos fala. Uma escrita sobre si. Sobre seus achados e perdidos. Move-

    dia por ser traidora de si mesma e inteira por ser imperfeita na realidade,

    e por isso autntica.

    Venho de uma longa linhagem de pessoas supercumpridoras de seu dever.

    A famlia da minha me era de imigrantes suecos que, nas fotografias, apare-

    cem com cara de quem, se um dia tivesse visto algo de prazeroso na vida, teria

    piscado em cima com suas botas de solas de pregos (...). (GILBERT, 2008, p.

    69)

    (...) quando percebi que a nica pergunta importante era: Como que eu

    defino o prazer?, e que eu estava de fato em um pas onde as pessoas me per-

    mitiam explorar essa pergunta livremente, tudo mudou. Tudo se tornou... deli-

    cioso. Tudo que precisava fazer era me perguntar todos os dias, pela primeira

    vez na vida: O que voc gostaria de fazer hoje, Liz? O que te d prazer neste

    momento? (GILBERT, 2008, p. 71)

    Entre as vozes da narradora, encontramos a protagonista nela

    mesma, com suas relaes, distores, necessidades e buscas, desafios e dificuldades. Elas se confundem com a autora quando pensamos que a

    viagem aconteceu. H um relato. H uma forma de se perceber e ver os

    fatos cotidianos de cada cultura circunscritos nas relaes travadas ao

    longo da viagem. H todo um arqutipo formador nesta narrativa deter-

    minada pela prpria constituio socializante da autora. H uma voz que

    se identifica com o pblico e precisa fazer seu processo de catarse para o

    outro efetivando a comunicao diretiva com o leitor. Ainda que a pr-

    pria catarse no seja vivida, ela escrita. De acordo Siblia (2008, p. 33)

    (...) eis o segredo revelado do relato autobiogrfico: preciso escrever

    para ser, alm de ser para escrever. A escrita intima da autora, narradora

    e protagonista, que ns leitores acreditamos ser um s, e por isso autenti-

    ca se como autobiogrfica.

    Desse modo concordamos com Siblia (2008, p. 30-31), ao dizer

    que:

    se o leitor acredita que o autor, narrador e personagem principal de um relato

    so a mesma pessoa, ento se trata de uma obra autobibliogrfica (...) alm

    disso no deixa de ser uma fico; pois, apesar de sua contundente autoevi-

    dncia, sempre frgil o estatuto do eu. Embora se apresente como o mais in-

    substituvel dos seres e a mais real, em aparncia, das realidades, o eu de cada

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    30 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    um de ns uma entidade complexa e vacilante. Uma unidade ilusria cons-

    truda na linguagem, a partir do fluxo catico e mltiplo dcada experincia

    individual.

    Ento, quando tratamos de analisar o livro Comer, Rezar, Amar,

    encontramos este fluxo de fices do eu. Temos um conjunto de relatos

    de si mesma que revela na protagonista a voz da narradora e as experi-

    mentaes da autora. Dentro desta multiplicidade de personagens que podem ser construdos a partir dos papis sociais e das questes psicol-

    gicas encontramos as fices do eu. A constituio de seu universo sim-

    blico e a sua socializao vem antes da sua viagem obviamente assim

    como o acmulo de conhecimento, as diferentes identidades que tomam

    forma no dia a dia do sujeito social. Uma contnua descoberta no proces-

    so de formao, nas suas relaes, na sua cultura e na sua historicidade

    sero norteadores para sua experimentao nesta viagem e expressas na

    sua narrativa organizada na primeira pessoa do singular.

    Ento, agora, eu descobri. E no quero dizer que o que senti naquela tarde

    de quinta feira na ndia foi indescritvel, embora tenha sido. Mesmo assim,

    vou tentar explicar. Para dizer de uma forma simples, fui sugada pelo buraco

    negro do absoluto e, nesse turbilho, subitamente entendi por completo o fun-

    cionamento do universo. (GILBERT, 2008, p. 207)

    Durante estes ltimos anos passei muito tempo perguntando-me o que de-

    vo ser. Esposa? Amante? Celibatria? Italiana? Glutona? Viajante? Artista?

    Iogue? Mas no sou nenhuma dessas coisas, pelo menos no completamente.

    E tambm no sou a maluca da Tia Liz. Sou apenas uma arisca antevasin

    nem isso nem aquilo uma aprendiz da fronteira em eterna mutao prxima

    floresta maravilhosa e assustadora do novo. (GILBERT, 2008, p. 213).

    Como foi mencionado, so as variveis socioculturais que edifi-

    cam nossos universos simblicos e nossa linguagem que privada por

    ser nossa e se torna pblica quando temos a obra, o objeto artstico.

    nesta formao que encontramos em Comer, Rezar, Amar as diferentes

    denotaes e conotaes oferecidas pela autora para falar de suas possibi-

    lidades de vivncia e questionamento que sero dentro da dinmica da

    linguagem: a expresso e comunicao vivenciada pelo leitor. So os

    seus eus desvelados no momento em que a linguagem traz a relao dia-

    lgica entre autora e leitor. A subjetividade, neste contexto, est imersa

    no processo de criao da escrita de si, mas tambm estar no processo interpretativo, demandando, quem sabe, novos questionamentos com in-

    terlocuo.

    (...) comecei a meditar e esperei que me dissessem o que fazer. No sei quan-

    tos minuto ou quantas horas passei antes de eu saber o que fazer. Percebi que

    vinha pensando naquilo tudo de forma demasiado literal. Eu estava querendo

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 31

    falar com meu ex-marido? Ento fale com ele (...). Muito tempo depois, abri

    os olhos e soube que havia terminado. No apenas o meu casamento e no

    apenas o meu divorcio, mas toda aquela tristeza inacabada e oca ... tudo estava

    terminado. Eu podia sentir que estava livre. (GILBERT, 2008, p. 194-195)

    Por isso Siblia (2008) deixa muito claro que todos estes fatores

    interferem e determinam a escrita de si. Ainda que seja autobiogrfica

    uma narrativa ficcional por ser costurada com sua forma e frma imagi-

    nativa, criativa e constitui um caminho para a compreenso do sujeito na

    linguagem e a estruturao da prpria experincia, observao vivncia

    como um relato: a escrita intima seja ela escrita, audiovisual ou multim-

    dia. Em nosso caso especfico em Comer, Rezar, Amar temos a obra lite-

    rria, mas tambm temos o filme, ambos realizando esse dueto entre au-tora e leitor (espectador). O que encontramos nestas formas de linguagem

    artsticas ao longo do processo de criao narrativo o truncamento da

    escrita ntima (que acaba relatando alguns fatos acontecidos, sentimentos,

    emoes vivenciadas, frustraes e expectativas etc.) e da narrativa ficci-

    onal (personas do eu) que traz para o pblico o sentido de intimidade,

    subjetividade, alteridade e ganha uma representao vital para a obra: a

    autenticidade que, por sua vez, s pode ser fornecida pelo leitor j que

    para existir a comunicao, seja ela qual for, necessrio que exista o

    outro, por isso a obra o vaso comunicante que permite a interlocuo, a

    relao dialgica entre a autora e o leitor.

    Nunca tive menos planos na vida do que quando cheguei em Bali. Em to-

    da minha histria de viagens despreocupadas, essa foi a vez em que aterrissei

    mais despreocupada em um lugar. No sei onde vou morar, no sei o que vou

    fazer, no sei qual taxa de cmbio, no sei como pegar um txi no aeroporto.

    Ningum est me esperando chegar. (GILBERT, 2008, p. 223)

    Tal fato pode ser compreendido como consequncia da existncia

    das trs categorias fundamentais (representao, apresentao e realiza-

    o) da escrita ntima. Desta forma, esta narrativa, alm de representar

    uma realidade, um personagem, um contexto, apresenta e realiza atravs

    do trplice: autor-narrador-protagonista o pacto autobiogrfico:

    Mas se o eu um narrador que se narra e (tambm) um outro, o que se-

    ria a vida de cada um? Assim como seu protagonista, essa vida possui um ca-

    rter eminentemente narrativo. Pois a experincia vital de cada sujeito um

    relato que s pode ser pensado e estruturado como tal se for dissecado na lin-

    guagem. Mas, assim, como ocorre com seu personagem principal, esse relato

    no representa simplesmente a histria que se tem vivido: ela o apresenta. E,

    de alguma maneira, tambm a realiza, concede-lhe consistncia e sentido, de-

    lineia seus contornos e a constitui. (SIBLIA, 2008, p. 32)

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    32 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Podemos entender a partir da conceituao de Lejeune (2008.) e

    Siblia (2008) que uma obra autobibliogrfica, numa perspectiva mais

    geral no que se refere escrita ntima, traz este enlaamento entre autor,

    narrador e personagem (protagonista do enredo). Esta condio de iden-tidade traz um estabelecimento de vozes ao longo da narrativa e ir cons-

    tituir uma narrativa retrospectiva do que vivido, experimentado, obser-

    vado; temos a sua histria individual que perpassa num perodo e num

    lugar e comunga de aspectos socioculturais que sero elos formadores

    evocativos da realidade social vivenciada e deflagrada na construo da

    sua escrita ntima assim como das fices do eu.

    noite subo bem no alto da colina com minha bicicleta e atravesso os

    hectares de arrozais cultivados em terraos em nvel ao norte de Ubud, onde as

    vistas so esplndidas e verdejantes. Posso ver as nuvens cor-de-rosa refleti-

    das nas guas paradas dos arrozais, como se houvesse dois cus um l de

    cima para os deuses, e outro aqui embaixo, na gua lamacenta, s para ns

    mortais. (GILBERT, 2008, p. 242)

    Por isso que, ao analisar Comer, Rezar, Amar, podemos identifi-

    car tais conceitos. No para que haja classificao ou vises reducionis-

    tas do que a obra literria em si mesma, mas sim, para que possamos

    demonstrar que a narrativa traz fices do eu, esta formao fluida das

    diversas mscaras sociais, definies e redefinies sobre nossas inven-es e reinvenes de ns mesmos e que so utilizadas ao longo da vida

    e que a cada momento damos vazo existncia das mesmas. Por isso,

    temos tambm, o enfoque de escrita que trai o autor. Que pulveriza senti-

    dos e possveis significaes na obra assim como nas interpretaes da-

    das pelos leitores. Temos o respaldo da trade entre autor-narrador e pro-

    tagonista que se confundem, se fundem e se completam ao longo da nar-

    rativa. Temos uma confluncia de motivaes e assuntos tratados de or-

    dem subjetiva na busca que a autora faz de pistas, de verdades e percep-

    es sobre si mesma e sobre sua relao com o mundo intersubjetivo que

    est imersa. E temos a legitimao e a autenticidade dadas ao texto pelos

    seus leitores ao fazerem relao entre autora e protagonista, autora e nar-

    radora, narradora e protagonista.

    5. Concluso

    No que tange a linguagem artstica literria, pode se dizer que a

    maneira como esta pode ser constituda forma-se as significaes, smbo-

    los que iro mediar a relao do sujeito com o mundo. So escolhidos

    aspectos desse mundo, variveis socioculturais que fomentam o processo

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    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 33

    de formao humana e subjetividades do sujeito de acordo com sua pr-

    pria localizao na estrutura social e tambm em virtude de suas vivn-

    cias individuais, cujo fundamento se encontra na sua bibliografia. Tais

    questes demonstram que a narrativa construda mediante estes deter-minados parmetros que esto imersos de sentidos, significaes e repre-

    sentaes de si mesmo, do mundo e do outro.

    Desta maneira, ao analisar Comer, Rezar, Amar, temos um con-

    fluncia de universos simblicos, significaes e conceitos. H um trun-

    camento entre autobiografia como forma de escrita ntima e a formao

    da narrativa ficcional. Logo podemos verificar que a autora, narradora e

    o personagem principal (a protagonista) se confundem numa s o que

    possibilita a identificao deste objeto artstico como autobiogrfico.

    Alm disso, podemos entender que tais conceitos so perigosos e

    movedios pois podem provocar posturas reducionistas. Entretanto em

    nosso caso, o que buscamos compreender como o autor pode criar v-rias fices do eu mesmo se tratando de uma escrita ntima e ter sua nar-

    rativa refratada em diferentes concepes, representaes, apresentaes

    e interpretaes. E, no caso especfico, em Comer, Rezar, Amar, a autora

    se torna a interlocutora de sua escrita, favorecendo a ao comunicativa

    com o leitor, com o seu pblico, ganhando a legitimao e autenticao

    na maneira que constri a sua narrativa que vive entre o autobiogrfico e

    o ficcional atravs do leitor.

    Em outras palavras, um processo de interlocuo que contextua-

    liza a vivncia da prpria autora sobre o olhar da narradora e a ao da

    protagonista. Uma srie de questes est envolvida no processo criativo

    desta obra que favoreceu a sua escolha e me fez ver que as diferentes fic-

    es do eu pudessem estar presentes na literatura ntima, na autobiogra-fia, pois perpassam pelas invenes, expresses e necessidades comuni-

    cativas encontradas na constituio da histria pessoal construda em

    Comer, Rezar, Amar.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BEGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construo social da reali-

    dade: tratado de sociologia do conhecimento. 22. ed. Trad.: Floriano de

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    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 35

    EU BIOGRFICO OU EU FICCIONAL?

    A INCONSTNCIA ENTRE O REAL E A FICO

    NAS REDES SOCIAIS

    Patrcia Peres Ferreira Nicolini (UENF) [email protected]

    Clesiane Bindaco Benevenuti (UENF)

    [email protected]

    Analice de Oliveira Martins (IFF/UENF)

    [email protected]

    RESUMO

    Este trabalho discute parte do objeto de estudo da universitria holandesa de De-

    sign Grfico Zilla van den Born, 26 anos, que, em 2014, simulou uma viagem de frias

    de 42 dias para a Tailndia, convencendo parentes e amigos da veracidade da viagem

    postando fotos alteradas por Photoshop em um Dirio criado em seu Facebook. O

    objetivo de Zilla era colher dados para seu trabalho de concluso de curso e abrir uma

    discusso sobre a autenticidade da vida reproduzida nas redes sociais. A vida repro-

    duzida nas redes sociais no , necessariamente, um relato autntico de um eu real,

    o que seria ento? Uma realidade fabricada pelo relato social? Zilla defende que a

    realidade pode ser alterada, dessa forma, a situao social ficcionada seria uma fal-

    cia. No entanto, quando analisadas as relaes sociais, percebe-se que o espao web

    um espao social de interao legtimo, no qual um eu biogrfico, diante da socieda-

    de, torna-se um ator social pronto para protagonizar diferentes escritas do eu de-

    pendendo da necessidade de convencimento e aceitao do outro. Dessa forma, as

    redes sociais tambm so palcos para essa atuao, permitindo a ficcionalizao do

    real dependendo do papel social protagonizado por esse eu. Sendo assim, no espao

    web, a quem caberia julgar o que real ou fico? Logo, o objetivo deste artigo refle-

    tir sobre essas escritas do eu feitas por Zilla nas redes sociais, analisando a incons-

    tncia da relao entre o real e a fico. Para tal, embasa-se nos estudos de Philippe

    Lejeune, Paula Sibilia e Denise Schittine.

    Palavras-chave: Escritas do eu. Espao web. Fico. Realidade.

    1. Introduo

    Em 2014, a estudante universitria Zilla van den Born foi notcia

    em vrios sites e canais de televiso em todo mundo, quando divulgou

    vdeos, fotos e postagens relatando uma experincia realizada por ela nas redes sociais em uma pgina na Vimeo. Na poca, Zilla estava concluin-

    do o curso de design grfico em Amsterd, Holanda, onde mora e atual-

    mente administra sua prpria empresa de design grfico. Em seu trabalho

    de concluso de curso (TCC), Zilla queria discutir a tese de que nem tudo

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
  • Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos

    36 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    o que vemos no Facebook verdadeiro e a realidade pode ser manipula-

    da.

    Para validar essa ideia, a universitria passou quarenta e dois dias

    isolada em seu apartamento, montou cenrios em seu estdio fotogrfico e usando as melhores ferramentas do Photoshop criou imagens perfeitas

    de frias na Tailndia, Sudeste da sia. As montagens eram to criveis

    que a famlia e os amigos de Zilla acreditaram piamente que ela estava na

    Tailndia passando frias. Alm das postagens no Facebook, a estudante

    criou um cenrio simulando o interior do hotel em que supostamente es-

    taria hospedada para conversar com parentes e amigos pelo Skype.

    Todo o processo foi documentado em vdeo. Desde sua encenao

    ao se despedir dos pais no aeroporto, seu clandestino regresso para seu

    apartamento em Amsterd, suas sadas para comprar comida tailandesa e

    seus momentos no estdio em que criava situaes ficcionalizadas. As

    criaes de Zilla foram muito ousadas, ela produziu montagens em que se encontrava em lugares paradisacos do pas asitico.

    Para alcanar esse efeito de realidade, alm das ferramentas do

    Photoshop, Zilla se valeu de muito talento e criatividade. Por exemplo,

    buscou recriar cenrios tipicamente asiticos com os recursos que tinha

    em seu apartamento e na cidade de Amsterd, como a visita que fez a um

    templo budista na qual tirou fotos com os monges.

    Fonte: http://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-

    mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociais. Acesso em: 10-01-2016).

    http://www.hypeness.com.br/wp-content/uploads/2014/09/viagem-fake2.jpghttp://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociaishttp://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociais
  • II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016 37

    Para simular um mergulho no fundo do mar asitico, Zilla foi at

    a piscina do clube, tirou as fotos e depois colocou os peixinhos com o

    auxlio do Photoshop. Bastou escrever um texto e public-lo com as fotos

    no Facebook para que em segundos uma enxurrada de curtidas e comen-trios entusiasmados da famlia e dos amigos inundassem suas postagens.

    Parecia realmente que ela estava na Tailndia.

    Original:

    Editada:

    Fonte: http://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-

    mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociais. Acesso em: 10-01-2016.

    http://www.hypeness.com.br/wp-content/uploads/2014/09/viagem-fake5.jpghttp://www.hypeness.com.br/wp-content/uploads/2014/09/viagem-fake7.jpghttp://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociaishttp://www.hypeness.com.br/2014/09/holandesa-simula-viagem-de-ferias-para-mostrar-como-e-possivel-manipular-as-redes-sociais
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    38 Cadernos do CNLF, vol. XX, n 06 Estilstica e lngua literria.

    Em entrevista para o site BuzzFeed, a jovem disse que o objetivo

    dessa experincia provar como fcil a realidade ser distorcida e mos-

    trar s pessoas que podemos filtrar e manipular o que mostramos nas re-

    des sociais. Todos sabem que as fotografias de modelos so manipula-das, mas muitas vezes queremos ignorar o fato de que tambm manipu-

    lamos a realidade nas nossas vidas, conclui Zilla.

    Logo, a vida reproduzida nas redes sociais no , necessariamen-

    te, um relato autntico da vida real. Essa inconstncia entre a realidade e

    a fico presentes nas redes sociais permite discusses pertinentes sobre

    a fronteira tnue que separa um eu biogrfico de um eu ficcional

    quando observar-se, separadamente, o plano da emisso e o plano da re-

    cepo de um relato social.

    2. Inconstncia entre o real e a fico nas redes sociais

    Antes do advento da internet e da criao das redes sociais, o pro-cesso de interao e comunicao entre as pessoas era geralmente pessoal

    e efetivo. As relaes comunicativas eram quase sempre presenciais, co-

    mo as interaes com membros familiares, no ambiente profissional e no

    ambiente pessoal. Mesmo quando o processo de comunicao se dava

    por intermdio do telefone ou de carta, havia um interlocutor esperado e

    muitas vezes um interlocutor conhecido.

    Atualmente, o espao web proporciona um processo de interao

    e comunicao virtual que aumentou exageradamente o nmero de inter-

    locutores que um sujeito pode ter ao longo da vida. Agora, esse interlo-

    cutor pode estar em qualquer lugar do planeta que o processo de comuni-

    cao acontecer em tempo real ou um locutor pode ter inmeros locut-

    rios simultaneamente sem haver nenhum contato efetivo.

    O interlocutor do espao web tem a perigosa certeza de que pode

    tudo ver sem ser visto e que pode tudo dizer e fazer sem ser descoberto.

    A pesquisadora Denise Schittine postula em sua pesquisa que esse espa-

    o virtual constitui um novo palco de atuao social