UAb - Antropologia Geral - Capitulo 7

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  • 7. O estudo das morfologias scio-espaciais

  • SUMARIO

    7. l Uma proposta de estudo das morfologias rurais europeias

    7.1.1 A estruturao dos elementos do parentesco

    7.1.2 A estruturao dos elementos dos sistemas agrrios

    l. l .3 Correlaes entre a organizao social e a paisagem agrcola local

    1.2 Dois estudos de terreno:

    7.2. l Um exemplo extico clssico: "Ls Variations Saisonnires ds SocitsEskimos - ude de Morphologie Sociale " (Mareei Mauss)l.1.2 Um exemplo europeu: "Espaos Sociais e Grupos Sociais no NordesteTransmontano " (Brian O 'Neil)

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  • wI;l j Objectivos de Aprendizagemi ' . -

    l ; Aps a leitura do VII Captulo - O estudo das morfologias scio-espaciais,::. o leitor dever ser capaz de entender:

    l A estruturao social dos elementos do parentesco c a sua relao^ com o espao local.

    l" O s principais sislemas agrrios e a sua estruturao social.

    : " ; Como utilizar um modelo de compreenso das formas de organizaov- do espao de economia agrcola e suas interdependncias com a - organizao social.

    Como aceder lgica global local atravs da apreenso das correlaes:I entre configuraes espaciais e organizao social.

    f . - A possibilidade de comparao dos resultados obtidos, designadamente; pela pertinncia do estudo dos dois sistemas sociais universais dasl; sociedades camponesas ou rurais: o sistema de parentesco e a estruturai- ; agraria.

    "*"' - Os objectivos concretos das duas experincias etnogrficasapresentadas no final do livro.

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  • 7.1 Uma proposta de estudo das morfologias rurais europeias

    A presente proposta metodolgica inscreve-se no panorama da etnologia dassociedades rurais, como uma das suas mltiplas reas de conhecimento. Trata-se de um perspectiva terica para a abordagem das sociedades rurais segundoum determinado ngulo de ataque; a qual, para alm das suas caractersticaspedaggicas e de exerccio, pretende incentivar o jovem antroplogo parainvestigaes acerca do tema da ruralidade. A concretizao deste panoramacientfico, grosso modo em torno do universo plural campons e rural, articula-se fundamentalmente volta de dois aspectos estruturantes: os sistemas deparentesco e os sistemas agrrios. Apesar da presente reflexo ecorrespondente exemplificao se apoiarem, por razes de precisometodolgica, no domnio portugus, no deixa de pretender ser vlida paraas sociedades rurais e camponesas em geral.

    Se o objecto da proposta insiste particularmente nas questes do parentesco edo espao, relacionadas com a actividade e economia agrria, deve-se ao factodestas reflectirem sistemas centrais da organizao social do universo camponse rural prprio da contemporancidade do fim do sculo XX - que tive ocasiode testemunhar durante anos de investigao no caso portugus em particular.Apesar do tempo passado e das consequentes fortes transformaes ocorridasem Portugal nestes ltimos anos, alguns dos modelos da sociedade ruraltradicional apresentam algumas continuidades entrada do sculo XXI e quepermanecem altamente significativas; tanto relativamente sua resistncia faces alteraes gerais do pas,,como mudana e respectiva recomposio sociallocal, justificando assim, entre outras razes, o prosseguimento do seu estudo.Outra das insistncias aqui feitas consiste no mtodo de observao e anliseantropogeogrica ( qual Mareei Mauss prefere, por certas razes, o termode morfologia social [ L 973: 394] dando-lhe contudo um sentido distinto), cornomodo de aceder lgica interna de funcionamento das pequenas comunidadesde economia agrria.

    Por outras palavras, o actual assunto centra-se no estudo dos processos dematerializao de certas propriedades fundamentais da organizao social local,no quadro de vida espacial aldeo, segundo a articulao da perspectivageogrfica e o mtodo e anlise da antropologia social.

    A importncia deste gnero de investigao prende-se com o facto do processosubjacente de cristalizao e configurao material, dos diferentes aspectossocioculturais locais, ser susceptvel de evidenciar a lgica interna alde.Lgica, naquilo que ela deve, por um lado, aos seus prprios mecanismossociais e, por outr:>, interaco das suas relaes, mais ou menos intensas,

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  • W - .' - ' '

    .licom a sociedade imediatamente envolvente e nacional. A finalidade ltimadesta abordagem liga-se com o objecto essencial da antropologia, como ficou

    O' i1't'l: claro ao logo deste livro, e que no e tanto evidenciar caractersticas sociaisf \". particulares, mas sobretudo tentar realar relaes do maior alcance gerali^ possvel, a partir de uma problemtica prvia.

    17! Compreende-se assim a proposta metodolgica, ao privilegiar o estudo dosrn" sistemas de parentesco - como mecanismo social central e universal - nas suas'j *J L relaes com as morfologias espcio-sociais locais, designadamente com as$ \s de ordenamento e funcionamento das estruturas agrrias.| ] Deste ponto de vista, contrariamente ao que poder eventualmente sugerir oi'"]"' que foi dito at aqui, a referida problemtica no dever ser entendida como4 tendo por principal finalidade o estudo de tipologias agrrias e de parentesco,t i nem de tipologias - eventualmente existentes - resultantes de uma relaol: automaticamente concomitante entre elas. Dever, ao contrrio, ser entendida

    j--- como um ponto de partida metodolgico para a compreenso da organizao social alde, graas possibilidade de leitura da materializao de fenmenosp sociais mais ou menos profundos - como os sistemas de parentesco - em formas!:. espaciais concretas - como as que resultam das estruturas agrrias e dos;;. ' diferentes suportes tcnicos que lhes esto associados.

    fr . Assim, a estratgia metodolgica duplamente interessante, pois permiteobservar no espao fenmenos subjacentes, dificilmente detectveis, aomesmo tempo que deixa perceber os mecanismos da sua manifestao eeventual inter-relao. De facto, a procura de correspondncias entre ossistemas de parentesco e agrrio autoriza o acesso aos fundamentossociolgicos das sociedades camponesas/rurais, dado ser razovel pensar haverefectivamente relaes estruturais entre ambos os sistemas - embora segundograus variveis a evidenciar - e serem, por esta razo, susceptveis de revelar oseu fundamento social global.

    C. Lvi-Strauss confirma a possvel existncia de estreitas correlaes entresistema social e ordenamento social do espao territrio quando refere queestas "(---) podem existir entre a configurao espacial dos grupos e as

    j ' ' propriedades formais que dependem dos outros aspectos da sua vida social"[1985:320].

    Esta afirmao refora a opinio de que a cristalizao das propriedades dosistema social no espao, pode ser procurada nas morfologias espcio-sociaisaldes (nas paisagens sociais) e em particular nas estruturas agrrias,dependentes da suas relaes de interdependncia com os sistemas deparentesco.

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  • Com efeito, o parentesco, nas suas diversas manifestaes, designadamentena forma de parentela, ou de residncia - como o grupo domstico vivendosob um mesmo tecto, com funes de solidariedade, produo e consumo -,oferece um meio de observao e compreenso das diferentes incidncias dosistema social sobre a organizao do espao, dado ser simultaneamente umaemanao e uma parte constitutiva e essencial desse mesmo sistema.

    Por seu turno, a estrutura agrria, como manifestao de uma actividadeeconmica fundamental, capaz de reflectir concreta c simbolicamente asrelaes do uso social que dado ao territrio aldeo.

    O pressuposto parte do princpio de que o espao natureza susceptvel de sertransformado segundo certos modelos sociais e culturais (econmicos,identitrios, simblicos) de um dado grupo e que estes imprimem certasconfiguraes significativas paisagem. No entanto, no se pretende dizercom tal que o espao reflicta como um espelho o todo social. A configuraoespacial pode espelhar mais ou menos o sistema social do grupo ou, pelocontrrio, responder a representaes que no lhe so correspondentes, ou arepresentaes de modelos exgenos ao grupo. Mas seja qual for o caso, emesmo quando o quadro espacial reflecte efectivamente o social do grupo, asua incidncia parece no ser total mas parcial. A incidncia tende, no entanto,a fazer-se atravs de elementos significativos do sistema o que consente pensarque mesmo quando o todo no se encontra totalmente materializado no espao,age pelas propriedades parciais activas do todo, conforme foi possvel observarnuma aldeia da Beira-Baixa [Dos Santos: 1992].

    Resumindo, as correlaes referidas podero ter um carcter estrutural ouresultarem de representaes que no subtendem o sistema local mas que, emqualquer das circunstncias, -so potentes factores de aco social, quer nosentido da resistncia mudana, quer da prpria mudana, face a influenciasexteriores.

    Nestas condies, as relaes de menor ou maior interdependncia entre estassociedades locais com o universo urbano envolvente - imediato e nacional -devero ser igualmente consideradas para avaliar o grau de intensidade dasinfluncias exgenas e tentar perceber o tipo de distncia - se existir- entre arepresentao do social e esse mesmo social. De facto, a identificao destasrelaes permite avaliar realmente o tipo de fenmeno inscrito no espao, edar a compreender se se trata de prtica do social real ou prtica de simplesideia desse social conduzindo eventualmente a reproduzir modelos sociaisexgenos ao grupo.

    Na realidade, pode acontecer no haver correspondncia entre estes dois nveis,e no caso de no existir ser interessante conhecer as razes de representaesno correspondentes prtica social.

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  • A importncia metodolgica do estudo dos sistemas de parentesco e agrrioadvm ainda do facto destes serem sistemas bsicos e sempre presentes emqualquer sociedade camponesa/rural, o que lhes confere caractersticas deuniversalidade.

    Deste modo, a universalidade da associao destes dois sistemas, seja qual fora rea seoirfica e cultural do seu estabelecimento, coloca o seu estudo numa

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    posio estratgica do ponto de vista comparativo. Esta caracterstica permiteque o presente tema de estudo no fique confinado aos campos folclrico,etnogrfico e mesmo etnolgico, para, inversamente, se colocar no centro daperspectiva comparativa antropolgica.

    Neste sentido, a procura e anlise das correlaes entre sistema agrrio e sistemade parentesco no s se afiguram como um instrumento singular decompreenso da lgica global dos sistemas locais de tradio agrcola comotambm, ao mesmo tempo, de comparao entre sociedades de mesmo tipodescontnuas no espao.

    C. Lvi-Straus da mesma opinio quando, na obra j citada, justifica ofundamento da perspectiva comparativa deste gnero de investigao aointerrogar-se se "(-) n^ haver qualquer coisa de comum a todas elas[sociedades] - to diferentes alis - onde se constata uma relao (mesmoobscura) entre configurao espacial e estrutura social?" [ibid:321 ], ao mesmotempo que sublinha a importncia terica e metodolgica da questo ao afirmarque se "() possui assim o meio de estudar os fenmenos sociais e mentais apartir das suas manifestaes objectivas, sob uma forma exteriorizada e - poder-se-ia dizer-cristalizada" [1985:321].

    Assim, do ponto de vista heurstico, a proposta de estudo simultneo do sistemade parentesco e do sistema agrrio, funda-se, como j foi dito, no s no factode tanto um como o outro serem factores intervenientes muito significativosna lgica global do sistema social local como tambm por serem, ao mesmotempo, comuns a qualquer sociedade camponesa. Porventura podero no seros nicos nestas condies, mas a evidncia desta caracterstica, no presentecaso, concede-lhes a mxima importncia estratgica do ponto de vistacomparativo.

    Em vista deste objectivo, o tema encontra-se dividido em trs campos deconhecimento interrelacionados, segundo a seguinte articulao:

    1) o estudo dos elementos de estruturao dos sistemas de parentescocom especial relevo para as parentelas e constituio dos gruposdomsticos e respectivas propriedades funcionais, segundo o modelode filiao e a modalidade de transmisso dos bens;

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  • 2) o estudo dos elementos de estrutura agrria - perspectivado segundouma abordagem geogrfica e sociolgica de compreenso dasmorfologias sociais aldes - nas suas diferentes articulaes com avida social e econmica local;

    3) Uma reflexo - apoiada ern estudos de caso - sobre as relaes entreos sistemas de parentesco e agrrio, evidenciando os processos deinteraco entre si, susceptveis de operarem fenmenos depermanncia e de mudana, materializadas em configuraes espaciaissignificativas dessa interaco.

    7.1.1 A estruturao dos elementos do parentesco

    A importncia do parentesco neste gnero de investigao realada luz daincidncia das suas propriedades bsicas e respectiva interveno dos seusmecanismos nos mltiplos aspectos da vida social camponesa.

    Inicia-se o seu estudo propriamente dito pela abordagem do mtodo de anlisedas terminologias, a fim de relacionar os termos de parentesco entre si nassuas oposies binmicas, para tentar perceber o contedo das relaes jurdicasque lhes esto subjacentes. Isto , para poder entender o carcter de determinadaconexo de parentesco naquilo que ela tem de subordinao ou simetria narelao entre Ego e Alter. Assim, por exemplo, em meio rural tradicionalportugus, os termos tio/sobrinho que designam dois indivduos de geraodiferente e de terceiro grau genealgico, no subentendem uma relaorecproca, contrariamente relao entre irmos e entre primos. No tratamentoentre si, um trata por voc e o outro trata por tu. Outro caso de no-reciprocidade, pode ser a idade relativa entre primos de mesma gerao, levandotambm um a tratar por voc e o outro a tutear.

    Ora, a reciprocidade ou no-reciprocidade de uma relao de parentesco importante para o conhecimento do carcter jurdico do contedo das relaesuma por uma, a fim de completar o quadro dos termos de parentesco e o seusignificado no mbito da lgica interna de uma nomenclatura.

    De facto, os termos de parentesco no devem ser unicamente comparados nassuas oposies binmicas, devem igualmente ser observados em relao aoconjunto da nomenclatura e considerados do ponto de vista dessa totalidade,enquanto sistema. Deste ponto de vista, o estudo das nomenclaturas constituium meio de compreenso, por via transversal, da totalidade do sistema deparentesco, do qual faz parte integrante.

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  • 1 ver A dos Santos "Os trsprincipais miodos histri-cos de cmputo dos grausde parentesco". Trabalhosde Antropologia e Etno-logia, N40, 2000.

    Com tal, no se pretende afirmar que uma nomenclatura espelha fielmente oconjunto do parentesco. Na realidade, quando ocorre uma mudana nas relaesde parentesco, esta s aps algum tempo se condensa numa nova configuraoterminolgica. Apesar desta reserva, no podemos, no entanto, deixar deconsiderar as terminologias de parentesco como o fundamento scio-lingusticoa partir do qual se exprime o parentesco, ou seja esta zona do social que seexpressa atravs da lngua para, por sua vez, se expressar atravs de relaesparentais.

    A anlise do significado destas relaes, expressas atravs das terminologias, realizada seguindo uma metodologia prpria, cujas variveis a ter emconsiderao so numerosas, implicando o seu estudo transversal uma certacomplexidade. Porm, no mbito desta disciplina, so ministrados unicamenteos meios necessrios para uma primeira abordagem das nomenclaturaseuropeias e em particular da terminologia portuguesa padro, assim como dassuas variedades locais.

    O primeiro passo metodolgico passa pela notao terminolgica das relaesde parentesco. Isto , notar os termos de parentesco utilizados no tratamentode referncia (ou seja, os termos que designam os parentes de quem se fala),seguindo o sistema convencional de abreviao lingustica dos mesmos,apresentado no V Captulo, para obter o seu campo de aplicao (a descriodos termos de parentesco) e retirar assim o seu significado (traduo) emdeterminada lngua padro.

    de referir ainda, do ponto de vista metodolgico, que, na anlise, para almde se distinguir terminologicamente a consanguinidade da aliana, deveprocurar-se ainda a expresso lingustica das relaes parentais segundo oscontextos de utilizao: na referncia e no tratamento directo, consoante ocontexto familiar e extra-familiar. Por outro lado, como os termos de parentescopodem indicar e constituir categorias de parentes de igual ou diferente nvelgenealgico, necessrio isolar estas ltimas para as poder analisarpormenorizadamente e inter-relacionar do ponto de vista da totalidade dovocabulrio parental.

    A anlise de uma nomenclatura implica igualmente que as relaes deparentesco devam ser medidas segundo um determinado mtodo de cmputodos graus genealgicos ou outras formas mtricas de medio. provvelque se tenha de recorrer a um dos diferentes modelos de contagem dos grausgenealgicos: essencialmente o cmputo romano (dito ainda clculo civil) mastambm o cannico, para realizar certas medies genealgicas e proceder sua confrontao com o sistema de contagem local portugus consoante umadas suas variantes locais, ou ainda para interpretar alguns documentos notariaise registos paroquiais (obviamente, o sistema germnico antigo fica de fora nocontexto portugus, assim como os modelos comuns ingls, o "commondegree", e francs que no so aqui abordados)'.

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  • Contudo, dado estes mtodos indicarem sobretudo a distncia consanguneaentre dois indivduos c nem sempre poderem indicar com preciso todas asrelaes genealgicas, toma-se necessrio cruz-los com outras variveis, taiscomo: gerao (G+/~), linha recta ascendente e descendente (Lr+A), linhas egraus colaterais, (LCol) (CoI), para se obter assim a relao precisa entreAltere Ego.

    Uma vez estabelecido o conhecimento de ama nomenclatura, c possvel passar rcconstituio das genealogias e iniciar assim o estudo do sistema de filiao.

    O estudo dos diferentes tipos de filiao const i tu i um dos elementosfundamentais de compreenso da totalidade social - e desde logo da organizaodo espao campons/rural - o que explica a sua posio central no campoantropolgico. Para determinar o tipo e grau de interdependncia - variveissegundo o tipo de sociedade em causa - entre os dois nveis sociolgicos,procurando os elementos de intcr-rclao, necessrio evidenciar o modocomo se define a pertena ao grupo de parentesco, segundo o tipo de filiao. igualmente necessrio evidenciar os contornos que delimitam a parentela ea sua subdiviso em grupos operatrios de parentes, de modo a fazer sobressairo tipo de relaes determinantes no contexto deste grupo de parentes alargadoe os seus efeitos no espao.

    Neste sentido, o estudo do modo de atribuio do apelido, que se realiza noseio do grupo mais restrito e identifica as linhadas- diferenciando-as, permitecompreender - designadamente no caso das sociedades rurais/camponesaseuropeias - o sistema de filiao e, por seu turno, atravs deste, identificarassuas ramificaes recorrentes com a organizao agrria. Para estacompreenso, concorre igualmente a identificao do modo de transmissodos bens patrimoniais que, embora no defina um tipo de filiao, , cm muitoscasos, paralelo ou mesmo correlativo ao modelo de atribuio do apelido.

    De facto, o modelo de transmisso do apelido, como processo de identificaoc meio de atribuio de direitos, deveres e obrigaes a certos indivduos,excluindo outros, pode reflectir o modo de partilha e sucesso patrimonial e,por sua vez, evidenciar a lgicaexpressa da sua relao com o contexto cultural- onde se realiza a atribuio do apelido - e assim evidenciar a natureza da suainscrio nas configuraes habitacionais e agrrias. Por exemplo, nas regiesonde se praticava a p\.\v\\\\\\\.preciputria (com doao da tera) - nas quais afuno do prenomc na comunidade perdia alguma da sua importncia - oapelido do ancestral fundador da casa sobrepunha-se ao apelido pessoal - quetambm se esbatia - e imprimia a sua marca no espao ao longo das geraes.Assim, nestas regies, certos apelidos - sob a forma de nomes de casas -tinham urna forte incidncia no espao c na longa durao, manifcstando-sedesignadamente sob a forma toponmica de delimitao e de identificao dospatrimnios, em lugar do nome dos indivduos que no deixavam marcas aolongo do tempo.

    - termo linhada uma tra-dtivo d i r ec t a da p a l a v r afrancs;) ligne. introdii/.ulapor mini no l i v r o Heranas[1092] para descrever, vol-to a lembrar, a seguinte rea-l idade : segmento de l inha-gem e n g l o b a n d o uma su -cesso de i n d i v d u o s apa-rentados, em l inha recta ouco la te ra l , por uma relaocom um mesmo ancest ra lcomum, seja qual for a rs;ra cie f i l i ao .

  • 1 O termo frairia aqui em-pregue no sentido de grupode irmos, o mesmo remidoque lhe do os psicanalistase que I.vi-Strauss adoptoupara re fe r i r o grupo degermanos no contexto fami-liar europeu. No deve serentendido no sentido dephratrie. em f r ancs ouphratry em ingls que sig-n i f i c a o conjunto de vrioscls eujos membros se con-sideram parentes segundouma regra de f i l i a ounil inear. Assim, os france-ses possuem dois vocbulosd i s t in tos para refer i r duasrealidades diferentes: jratrlee phratrie. Nestas condiesproponho que se faca a dis-tino destas duas reuliua-des empregando phratna( g r a f i a de or igem grega)para ind ica r a segundaacepo da palavra.

    Em meio campons, o prenomc e o apelido constituem uma herana hereditriaque o indivduo que a recebeu transmitir, tanto quanto possvel, infinitamenteno caso do apelido, e na maioria das vezes aitemadamente no caso o prenome,segundo o sexo do indivduo e certas regras precisas. Com efeito, graas aojogo dos apadrinhamentos, realizados geralmente naconsanguinidade prxima,a transmisso destes bens simblicos marcava no passado com o prenome -mas tambm no presente em muitos casos - a hereditariedade identitriaindividual na fratria', a identidade das linhadas geracionais e das parentclasassim como, com o apelido a rea patronmica local e regional. Estas diferenteszonas identitrias so por natureza espaos geogrficos c parentais de exclusoou de incluso da procura privilegiada do cnjuge ideal.Contrariamente aos pases a norte da Pennsula Ibrica, Portugal e Espanhaformam um conjunto cultural parte em matria de transmisso do nome defamlia - sobretudo do ponto de vista das culturas padres nacionais. Em topoucos aspectos como este c possvel delimitar fronteiras ntidas de rea cultural,como o caso da atribuio do nome de famlia.

    Na cultura padro portuguesa a transmisso do nome de famlia obedece regra bilateral. Trata-se efectivamente de uma regra administrativa admitida eusada pela maioria dos portugueses, embora o cdigo civil permita outroscasos de figura; esta caracterstica apresenta uma singularidade relativamenteao estipulado pelos cdigos de registo civil de outros pases europeus onde aregra obedece transmisso patrilinear do apelido. Porm, do ponto de vistado contexto aldeo portugus, a questo revela-se mais complexa, visto teremsido detectados usos muito diferentes do praticado no registo civil padro - oque parece no acontecer de forma to diversa noutros pases.

    A este respeito, podemos citar, a ttulo de exemplo, a forma bilinear estudadana aldeia dos Chos (concelho do Fundo), j aqui referida. No entanto, apesarda forma observada nesta localidade ser (do ponto de vista consuetudinrio)provavelmente muito mais corrente no pas do que se pensa, foi possvelconstatar na aldeia da Pena, no concelho de So Pedro do Sul, onde existe aprtica da instituio da casa (prtica de herdeiro principal e sucessor nico),uma forma oposta, prxima da transmisso patrilinear do nome de famliarelativamente ao herdeiro principal e sucessor nico. Diga-se, no entanto, quea referida aldeia se encontrava at h pouco tempo cm situao de grandeisolamento geogrfico e, ainda hoje, de acesso difcil. Actualmente cm faseacentuada de desertiicao, com uma populao residente muito envelhecidae reduzidssima, esta aldeia tem ainda um modo de vida enraizado num passadobastante remoto, embora em vias de extino. Pela sua posio geogrficaparticular, a aldeia da Pena representa certamente um conservatrio - cristalizadopelas condies do seu isolamento - de caractersticas sociais e culturaissingulares, mas muito provavelmente significativas de uma rea geogrficamais alargada, dado fazer parte de um sistema social de montanha e neste sero ncleo mais excntrico do conjunto.

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  • Uma vez identificadas as fratrias e as linhadas, impe-se ento o estudo dasparentelas (ou seja o grupo cogntico dos indivduos que tm um parentecomum) e suas fronteiras. Estas, como instrumento de anlise da configuraodo universo parental efectivo e da subdiviso em diferentes categoriasoperatrias de parentesco a que esto sujeitas - tais como famlia chegada,afastada, etc. -, permitem avaliar a operacionalidade diferencial destessubgrupos no contexto da globalidade do parentesco e da sociedade local.

    Naturalmente, o grupo cogntico4 no tem as mesmas funes das fratrias edas linhadas entrecruzadas que o subdividem, mas opera, mais ou menos natotalidade, em certas ocasies de forte solidariedade. Por exemplo, em casode morte de um dos seus membros, pode observar-se a sua configuraomxima junto porta dos cemitrios ou em actividades agrcolas urgentesnecessitando mo de obra em que o entrecruzamento de fratrias e linhadasopera uma associao de parentes em funo de um determinado recorte nogrupo cogntico e da tarefa a executar.

    A aliana matrimonial deve ser considerada do ponto de vista endgamo eexgamo relativamente ao grupo parental para, entre outros aspectos, detectaro grau de consanguinidade dos casamentos assim como a taxa de unies entreprimos germanos. O casamento entre primos prximos tem tendncia para teruma forte inscrio no espao agrcola, designadamente ao favorecer umamaior concentrao das parcelas e da propriedade. A aliana deve ser igualmenteestudada considerando a endogamia e exogamia local dos casamentos, a fimde delimitar as caractersticas e extenso da rea geogrfica matrimonial. Defacto, a rea de endogamia matrimonial reveladora da extenso da influnciasociocultural de determinado grupo e definidora de identidade local, regionale "tnica", facilmente detectvel graas circulao dos apelidos, como j foireferido.

    A estruturao dos casamentos, feita ao longo das geraes - segundoreencadeamentos contnuos, alternados ou diferidos realizados naconsanguinidade ou na realiana -, fazendo depender as alianas presentesdas alianas do passado e determinando as do futuro, deixa entender fortesinterdependncias com o espao circundante e com a propriedade, as quaisparecem depender de factores complexos que devero orientar as pesquisasno sentido da sua determinao.

    Como elemento importante de estruturao social do espao, o tipo de residnciamatrimonial que pode resultar de uma regra cultural explicita ou ser influenciadapor factores econmicos, tem um papel determinante que tambm dever seratentamente estudado. Este aspecto tanto mais importante quanto interessante verificar em Portugal a existncia de alguma variedade residencialcomo expresso de fortes modelos culturais residenciais, alterados, porm,

    4 O grupo cogntico cons-t i tudo por indiv duos des-cendendo de um mesmoancestral, pelos homens oupelas mulheres indiferente-mente. Este grupo constitui-se na base do princpio de-finido pela regra de filiaobilateral. Alguns antigos au-lorcs u t i l i z a v a m o termoeognlico para referir o gru-po de parentes consan-guneos em l i n h a materna,mas a e t u a l m e m e eslaacepo da palavra j no admi l i i l a

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  • em certas circunstncias conjunturais, por constrangimentos econmicos quese impem aos cnjuges.Actualmente, a prtica mais corrente certamente aquela que os antroplogosdesignam de residncia nco-local - praticada sobretudo nos meios urbanos -ou seja, quando os cnjuges residem numa moradia distinta da dos pais.Todavia, embora este modelo tenha tendncia para se estender totalidade dopas - para o qual tem certamente contribudo a generalizao do modo devida industrialo-urbano - outras formas existem, em alguns casos residuais.

    Na prtica, a residncia neo-local realiza-se facilmente quando os dois cnjugesso naturais de uma mesma localidade. Mas o caso muda de figura quandoso originrios de locais diferentes e obrigados a optar por um destes (patri oumatrilocalmente) para estabelecer a residncia matrimonial, independentementede, uma vez o local escolhido, se estabelecerem de forma neo-local. Assim,para o observador, o ponto de vista a considerar duplo: endolocal e cxolocal.para alm de outros factores a ter em conta, o que susceptvel de introduziruma certa variedade.

    revelador da diversidade residencial, o j referido exemplo de patri local idadeda aldeia da Pena, sejam ou no ambos os cnjuges originrios da localidade.Mas, na realidade, h outras zonas do pas onde tambm a prtica da

    -- . patrilocalidade persiste mais ou menos. Ainda no sentido da diversidade, aprpria Beira-Baixa parece ter conhecido, de forma generalizada, a residnciamatrilocal e mesmo uxorilocal dos cnjuges, pelo menos nos primeiros anosde casamento antes de o casal se estabelecer neo-localmente.

    Mais notvel o tipo de residncia relatado por B. O'Neil [1984] em Fontelas(Trs-os-Montes). Neste exemplo, a residncia dos cnjuges - ou pelo menosassim era na poca do estudo - natolocal, conjugada a uma inflexo matrilocaldurante perodos mais ou rnenos longos, segundo os casos. Esta, consiste nofacto de cada um dos cnjuges viver e trabalhar exclusivamente em casa deseus pais e s noite se reunirem para dormir num quarto existente em casados pais da esposa.

    O tipo residencial dever ser analisado estatisticamente para verificar a eventualexistncia de tendncias dominantes - na ausncia de regras explcitas - eeliminar os factores aleatrios individuais de carcter puramente econmicofazendo emergir os factores sociais subtendentes ao tipo de residnciamatrimonial dominante.

    Numa relao de maior ou menor interdependncia com o tipo residencial, atransmisso da herana e sucesso na gesto dos bens fundirios so porventurados fenmenos com a mais forte e concreta inscrio no espao, ao fixar certosindivduos terra e libertando outros, segundo modalidades cristalizantes em

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  • configuraes espaciais efectivas, de significativa visibilidade para oobservador.

    Por esta razo, compreende-se o interesse estratgico do estudo da divisodos bens (que subtende recorrentemente o sistema de parentesco) dado constituiruma forma de aplicao concreta de regras precisas, de distribuio dos benspatrimoniais entre germanos, com uma forte inscrio directa no espaoterritorial familiar e colectivo.

    Estas regras apresentam alguma variedade que muito provavelmente no serouma mera emanao exclusiva do sistema de parentesco, mas sero igualmentecondicionadas por determinadas condies exteriores a este e capazes deinfluenciar, por sua vez, a sua lgica. No caso particular do sistema fundirio,as condies geogrficas com as quais o sistema de parentesco tem de interagir,so numerosas e parecem ter algum papel determinante na definio das regrasde diviso dos bens, segundo se trate de terras de plancie ou de montanha,mais ou menos arveis, irrigveis ou no, mais ou menos abundantes, etc,

    Assim, em relao diversidade dos modos de transmisso da herana emPortugal5 - embora esta fosse mais acentuada no passado - o contraste situa-seessencialmente entre a partilha ab intestat (sem testamento e igualitria) e ap.r\h'preciputria (com doao da tera e desigual). Pode dizer-se que, noactual estado de conhecimento deste fenmeno em Portugal o primeiro modelotem maior expresso, embora com alguns locais de sobrevivncia preciputriaem certas zonas do pas, designadamente na regio do Barroso6 e em redor deViseu, segundo o que pude constatar. Porm, a Sul do Tejo a situao aindapouco clara dado haver uma maior insuficincia de investigaes sobre oassunto. Segundo certas informaes, pode dizer-se que no Alentejo a partilhacom algumas caractersticas de desigualdade, paralelamente a uma sucessoprimognita masculina preferencial, parece predominar na grande propriedade,na passagem da primeira para a segunda gerao de herdeiros. Contudo, estaforma apresenta algum contraste com a do herdeiro principal. No caso emapreo, nenhum dos herdeiros abdica da posse dos seus quinhes, quecontinuam a constituir a totalidade da propriedade de certo modo indivisa,simplesmente no sucedem na sua explorao directa que fica a cargo de umherdeiro e sucessor, obrigado a distribuir benefcios e prejuzos, segundo umcontrato estabelecido.

    Na citada aldeia da Pena, os actuais habitantes sero provavelmente uns dosltimos representantes de uma organizao social camponesa fundada nadiviso desigual dos bens: pela doao da tera (em vida ou por testamento)em benefcio de um herdeiro principal - geralmente em linha primognitamasculina ou, em alternativa, a "quem melhor merecer" -, seguida daconservao por este da totalidade dos restantes bens da diviso - por, emtroca de tornas, os co-herdeiros no exigirem as suas fraces quando deixam

    5 Relativamente a este aspec-lo ver a importanle sntesede Brian O'Neil, "Prticasde Sucesso em Portugal -panorama preliminar", Tra-balhos de Antropologia eEtnologia, 37, 1-2.

    6 Ver de Antnio Castanhei-ra, Transmisso do Patrim-nio e Reproduo Social: adevoluo dos bens e a pre-servao das Casas de La-voura de Salto, no Barroso,1989, FCSH da UNL (in-dito).

    195

  • a casa - e da sua explorao e gesto mesmo quando os restantes herdeirosficam solteiros a viver com o irmo chefe da casa. No exemplo referido, outroponto de estrutura reside na manuteno da identidade da casa patrimonial aolongo das linhadas domsticas, representadas pelos respectivos sucessores, ena regra da residncia patrilocal, segundo a qual as esposas vo residir com osmaridos para a aldeia destes. A composio dos membros de uma casa nocorresponde famlia nuclear; vrias geraes coabitam, para alm do factodos irmos, geralmente os mais novos, ficados solteiros, viverem e trabalharemcom o irmo herdeiro da casa patrimonial. A menos que emigrem para oestrangeiro ou para os meios urbanos - Viseu no exemplo da aldeia citada -onde desempenham as mais variadas profisses. Visitando nas frias os parentesna aldeia, levam a que a populao aumente fortemente nesta poca, na baseda reunio das fratrias e de seus descendentes imediatos.

    Assim, acabmos de delimitar o campo de interveno sociolgica doparentesco cujos principais elementos subtendem e coordenam os aspectos

    ;; essenciais da vida social, econmica e mesmo poltica das pequenas sociedades|ji locais. Trata-se de uma definio clssica de sistema de parentesco cuja relaoH com a vida social - no caso das sociedades locais europeias - possvelj . ; evidenciar e obter desta forma os meios para perceber o funcionamento da[ j . ; sociedade em causa assim como, pela mesma ocasio, aceder s razes de

    certas causas e efeitos relativamente incidncia dos sistemas de parentesconas relaes entre sociedade local e sociedade englobante.

    7.1.2 A estruturao dos elementos dos sistemas agrrios

    Como foi anunciado no incio do presente projecto metodolgico, proponho-me agora apresentar alguns tipos de configuraes espaciais de estrutura e depaisagem agrrias, como exemplos de uma maior ou menor correlao destascom o sistema social induzido do parentesco.

    Para tal, apresento o quadro clssico da tipologia agrria - estudada pelosgegrafos e historiadores agrrios - correspondente aos diferentes sistemassociais que lhes esto subjacentes e representativa de determinadas modelagenssociais do territrio habitado c respectivas paisagens. O quadro agrrio expostorepresenta, de certo modo, uma perspectiva macro-sociolgica (da escala local)do fenmeno, a partir do qual se pode construir o modelo micro-sociolgicode observao das relaes sociais de formao de paisagem e mltiplasvariaes das suas configuraes espaciais.

    Relativamente ao conceito de paisagem, aproveito a ocasio para incidentementereferir que este deve ser entendido no sentido de realidade fsica, resultante do

    196

  • ordenamento social do espao, cuja configurao objectivadae interpretada(sociologicamente) por um observador exterior ao grupo e no na sua inatingvelrealidade autnoma nem, obviamente, na perspectiva de recriao de umaviso esttica de paisagem, varivel segundo os indivduos e as culturas, esignificativamente mais subjectiva. De facto, como refere G. Lenclud [1995],quem estaria em condies de dizer que uma determinada realidade fsica nasua factualidade bruta, no olhada, independentemente de um esquemaconceptual fixando convencionalmente, mas no arbitrariamente, o que hexactamente de factual nela e que poderia supostamente escapar acodeformante de qualquer olhar? um facto que, na realidade, o fenmeno depaisagem observado s tem de tangvel a construo que o esquema conceptualfixado pelo etnlogo permite objectivar e graas a ele o torna inteligvel.Os gegrafos definem a estrutura agrria pelo estudo do conjunto das condiesfundirias e sociais das regies rurais. A paisagem agrria constitui, na maioriados casos, a expresso concreta desta estrutura, obedecendo no entanto a outrosfactores [A. Meynier, 1970].

    O conceito de utilizao ou sistema de cultivo, serve para designar a maneiracomo o cultivador, ou o agricultor - segundo aja referida distino de HenryMendras [1974] - explora as suas terras: a escolha das plantas cultivadas, osafolhamentos etc. [A. Meynier, 1970].

    Assim, uma paisagem agrcola define-se antes de mais pela intensidade deocupao do solo que, independentemente do grau desta, pode revelar grandesdiferenas de aspecto segundo as formas apresentadas dos campos: regularesou irregulares, rectangulares ou quadradas, direitas ou encurvadas; uniformesou variadas.

    Mas naturalmente, tambm a utilizao agrcola ou sistema de cultivo constituium dos elementos essenciais de configurao da paisagem agrria. No sendodesprovido de significado que se semeie trigo ou pasto, que se lavre ou cavemanualmente, que se lavre no sentido das curvas de nvel ou indiferentemente,que as culturas se repitam ou alternem, que se pratique pousio (segundodiferentes tipos possveis) ou no, que se plantem rvores ou no, que estassejam plantadas em pleno campo ou nos seus limites.Ainda o facto de os campos se apresentarem abertos, sem cercadura, constituium elemento de paisagem muito diferente dos campos fechados segundo vriostipos de sebes, taludes ou muros. Nestes termos, qualquer classificao dapaisagem agrria tem necessariamente como componentes quatro bases mnimasde anlise: densidade de ocupao, formas dos campos, utilizao ou sistemade cultivo, cercaduras.

    Os modos de relao entre campos cultivados, como elementos de morfologiascio-espacial, so susceptveis de revelar estruturas mentais e sociais

    197

  • 7 No caso portugus, mapasdo I n s t i t u t o Geogrf ico eCadas t r a l nas escalas ale1:25000 e mapas mil i taresnas escalas superiores.

    " I n s t i t u t o Geogr f i co eCadastral, fotografias verti-cais unicamente.

    '' Tanto openfielii comoboc.age so termos consa-grados em geograf ia agr-r ia . A p a l a v r a i ng l e saopenjield s i g n i f i c a l i t e ra l -mente campos abertos masna realidade ela pressupeuma fornia de organi/.aoagrria especfica aos cam-pos abertos. Inve r samen te ,a palavra francesa bociifiesignifica que se irata de umapaisagem de campos cerca-dos mas igualmente de umaorgan izao social co i res -pondente. Nestas condies,estes dois conceitos contmuma ambiguidade, qual sedeve dar ateno, na medi-da em que podem s igni f icarformas de organizao agr-ria ou simplesmente camposabertos ou fechados.

    contrastadas. Desde logo, a disposio de Iodos os elementos e respectivasrelaes que ordenam no espao paisagens agrcolas diferenciadas - cujavariedade reflecte naturalmente diferentes modos de vida social - sointeressantes para a anlise etnolgica na medida cm que expressam sistemassociais particulares e revelam diferenas entre si sempre significativas.

    Na ptica delineada, o espao campons/rural no qual o processo social localse realiza (evidenciando uma forma particular de organizao, da qual fazeminclusivamente parte as diversas configuraes caractersticas desse processo),confirma uma vez mais ser um terreno privilegiado de observao da potencialincidncia das relaes de parentesco e das organizaes familiares nas formasmateriais que tomam no espao. Esta incidncia - cujos vrios graus deintensidade so finalmente o objecto do presente assunto - susceptvel demodelar, mais ou menos marcadamente, a paisagem segundo o tipo de produoagrcola, as tcnicas utilizadas e inclusivamente o gnero de suportes materiais,tais como mquinas agrcolas antigas ou modernas, etc.

    Assim, o espao aldeo, na sua componente agrcola, deve ser abordadometodologicamente segundo um plano de observao especfico, convergindodo mesmo modo que o sistema de parentesco para evidenciar a morfologiasocial. Ou seja, repita-se, para evidenciar as configuraes espaciais derivadasda organizao social alde endgena e eventuais influncias exgenas,independentemente das condies geofsicas locais.

    Para esta abordagem interdisciplinar (de etnologia e geografia humana),concorrem vrios tcnicas de estudo geogrfico, para alm do mtodoetnolgico j exposto: a cartografia existente de diferentes escalas7, a cartografiade pormenor elaborada no terreno pelo investigador, a fotografia area (vertical,e tambm oblqua se existir)" como documento de terreno e de sntese emlaboratrio, etc. constituem instrumentos indispensveis para uma aproximaoda espacialidade alde e da sua dinmica social.

    Para alm dos grandes tipos de organizao agrria - como o openfield e obocage9- e de estabelecimento habitacional - como o habitat concentrado e ohabitat disperso - que se impe conhecer, a ateno dever concentrar-se muitoparticularmente nas formas derivadas ou intermdias destes tipos de organizaoagrcola e nas novas formas sociais de vida no espao rural.

    Existente num passado relativamente recente, o openfield opunha-se ao bocagegeografiaamente (pelo contraste entre os openfields das plancies da Europacentral e os bocages do oeste europeu) e pelo facto de corresponderem a duasgrandes organizaes agrrias e sociais muito diferentes que podem serdefinidas da seguinte maneira:

    198

  • O primeiro, caracterizava-se por uma paisagem agrcola de campos abertos,sem cercadura, dispostos em forma estelar volta de um habitat concentrado.Caracterizava-se igualmente pela parcelizao segundo a qual um indivduodispunha do direito de explorao, mas no forosamente da propriedade, deuma ou vrias parcelas nas diferentes folhas, onde se praticava a alternnciadas culturas. Esta alternncia, geralmente trienal (em certos casos podia serquadrienal), fazia-se segundo uma diviso dofinage10, ou de uma das partesofinage, em 3 folhas: a primeira, destinava-se ao trigo ou ao centeio; asegunda, a um cereal de Primavera, aveia ou cevada; a terceira ficava empousio. Ao fim de trs anos, a determinao cultural das folhas mudava. Porvezes, o trabalho das lavras, sementeiras e colheitas fazia-se em comum.Ningum era livre de trabalhar nos campos antes de uma deciso colectiva,como tambm ningum era livre da escolha das culturas praticadas. O pousioera forado. Para pasto, o gado dispunha das folhas em pousio assim comodas restantes folhas de cereais uma vez as colheitas feitas, ou seja no restolhodos alqueives. Deste modo, o gado particular pastava livremente em qualquerdas folhas, por vezes sob a guarda de um pastor comum.

    Embora neste sistema os indivduos estivessem sujeitos a constrangimentoscolectivistas, estes no pressupunham, apesar de tal, a repartio igualitriados meios de produo agrcola. Na realidade havia camponeses sem terra,dado nem todos disporem do direito de explorao de parcelas nem do mesmonmero de parcelas e de quantidades idnticas de terra.

    Muito provavelmente, este tipo de sistema social j no existir com o rigordescrito em nenhuma regio da Europa e possivelmente nunca ter existidoem Portugal sob a sua forma pura. Porm, no nosso pas, tero existido nopassado, segundo os modelos histricos descritos por A. Silbert [1978], pelomenos os "openfields da Beira-Baixa" e os "openfields do nordeste alentejano". fcil observar em Portugal, do estrito ponto de vista da configurao espacial(no da organizao social tpica), a paisagem agrcola de tipo openfield, comopor exemplo no caso do Alentejo, a qual se ope, grosso modo, actualpaisagem de bocage minifundiria mais comum no norte do pas. Inversamente,existiro isoladamente, em certas zonas, algumas das prticas tpicas doopenfield, inclusivamente onde o sistema cedeu o lugar a uma organizao detipo bocage. Por exemplo, o pascigo colectivo com pastor comum, em regimede vezeira11, embora de facto nestas zonas a sua prtica no esteja sequerassociada actualmente a uma paisagem de openfield.Os aspectos referidos, so alguns exemplos de prticas prprias de uma lgicacomum a vrias sociedades locais que no convm isolar do contexto da suaorganizao social, para no correr o risco de invocar em vo particularismos(que nada tm de particular quando vistos luz da metodologia comparativa)to caros etnografia portuguesa.

    10 O fina g corresponde palavra francesa que signi-fica o territrio agrcola deuma comunidade local. Na-tu ra lmente , o finage nopertence enquanto tal co-munidade no seu todo masaos seus membros individu-almente que podem alienaros seus direitos de proprie-dade a indivduos no per-tencentes ao local. Assim ofinage define unicamenteum territrio agrcola juntodo qual se estabeleceu umapopulao em vista de oexplorar economicamente esobre o qual ela exerce de-terminados direitos.

    11 Ver designadamente a re-gio do Barroso, segundoJorge Dias, 1981.

    199

  • A segunda grande paisagem, o bocage, caracteriza-se essencialmente pelaexistncia de campos fechados, segundo diferentes tipos de cercadura - plantadas(sebes diversas), construdas (taludes, muros) ou ambas (sebes, taludes e muros).

    ;

    tr Podem ainda observar-se campos de formas tendencialmente irregulares,i l . geralmente de pequena dimenso, associados ao habitat disperso e a uma

    ^ paisagem de minifndio, assim como ao consequente isolamento dosj; indivduos.'.f"'l Sendo a propriedade individual no caso do bocage, existe, por consequncia,Tl] uma total ausncia de constrangimentos de trabalho colectivos e, inversamente,'! ' um individualismo exacerbado. Individualismo somente rompido pelaf entreajuda voluntria, correspondente a uma troca de servios necessria, ern --*--; determinados momentos de forte actividade agrcola, durante os quais oj ; recrutamento dos indivduos se faz na base de subgrupos da parentela e, em

    menor grau, na base de relaes electivas de amizade e de vizinhana.

    A paisagem de bocage e, de certo modo, a prpria organizao socialcorrespondente, comum em Portugal e pode facilmente ser observada nonorte do pas, cm particular. No entanto, na realidade, esta apresenta-seraramente de forma pura, evidenciando, na maioria dos casos, no seio de grandescampos fechados, aspectos paisagsticos de upenfield. A situao actual resultade mudanas histricas que levaram a modificaes de organizao do espaoagrcola. A leitura destas mudanas pode ser feita no terreno (auxiliada porfotografias areas) e induzir algumas concluses interessantes relativamentes morfologias espcio-sociais anteriores.

    As paisagens descritas correspondem, porm, a duas grandes categorias deestrutura agrria as quais representam morfologias espcio-sociais diferentese sistemas sociais distintos, como j foi dito. No entanto, legtimo pensar quea duas paisagens idnticas, descontnuas geograficamente, poderoeventualmente corresponder prticas econmicas e lgicas sociais e culturaisdiferentes.

    j Na realidade, h fortes probabilidades para que, relativamente a eada uma das]" duas grandes paisagens principais, exista uma quantidade infinita de micro-|5. configuraes intermdias. Cada uma delas subtendendo sistemas sociais| possivelmente idnticos ou relativamente diferentes ou cm fase de mudana. : ntida.f i j Espao fsico, territrio e morfologia espcio-social, so conceitos que definem,j obviamente, realidades muito diferentes para as quais se chama a ateno.jj, O espao fsico apresenta-se segundo diferentes dimenses: areo, ecologia

    terrestre, martimo, etc., e em diferentes escalas de acessibilidade para o se]humano. Pressupe tambm, em certas situaes, a ideia, embora ilusria, d(|naturalidade, de espao virgem inclume de actividade humana.

    200

  • Como tal, o espao fsico deve distinguir-se teoricamente do territrio que um espao fsico investido por excelncia pelo homem como rea geogrficade actividade econmica e poltica. O territrio portanto um espao de acosocial e como tal de representaes de pertena e de referncia identitria:local, parental, de rea endogmica matrimonial, patronmica, regional, tnica,nacional.

    Quanto morfologia social que tem como suporte o espao ecolgico e oterritrio social ocupado nas suas diferentes escalas, define-se segundo M.Mauss [1950:389] pelo "substrato material das sociedades, quer dizer a formaque estas afectam quando se estabelecem no solo, o volume e a densidade, amaneira como distribuda, assim como o conjunto das coisas que servem delugar vida colectiva".

    A expresso "morfologia social" foi criada por Durkheim, aquando dainaugurao de uma nova seco na revista UAnne sociologique12 onde referiaa propsito o seguinte: "A vida social repousa sobre um substrato que estdeterminado tanto na sua forma como na sua dimenso. O que o constitui, amassa dos indivduos que compem a sociedade, a maneira como estodispostos no solo, a natureza e a configurao das coisas de todas as espciesque afectam as relaes colectivas. Segundo a populao mais ou menosconsidervel, segundo est concentrada nas cidades ou dispersa no campo,segundo a maneira como as cidades e as casas esto construdas, segundo oespao ocupado pela sociedade mais ou menos extenso, segundo aquilo queso as fronteiras que a delimitam, as vias de comunicao que a percorrem,etc., o substrato diferente"[1899: 520].

    Tanto a definio de morfologia social de Mauss como a de Durkheimapresentam uma maior abrangncia comparadas com a perspectiva de MauriceHalbwaks [1970] que concentrava toda a ateno no volume e densidadepopulacional, na sua distribuio e movimentos permanentes ou ocasionais.

    Para Mauss, a forma que as sociedades "tomam quando se estabelecem nosolo [...] assim como o conjunto das coisas que servem de lugar vida colectiva"[1950: 389] reflectem variadas configuraes de morfologia social. Tambmpara Durkheim "a natureza e a configurao das coisas de todas as espciesque afectam as relaes colectivas." [1899: 521] marcam o espao deformavariada e constituem morfologias com origem nas relaes sociais.

    Assim, no domnio especfico das estruturas agrrias, a paisagem , como j vimos, muito importante para a observao da relao entre morfologia sociale sub-sistema social induzido pelaestrutura do parentesco. A sua anlise devercompreender particularmente o estudo das formas que os campos apresentam,dado serem fortes indicadores do modo de partilha dos bens patrimoniaisfamiliares e dos mecanismos sociais que lhes esto subjacentes.

    '- L'Anne sociologique. 2eanne (1897-1898) Paris,1899, Sixicme section:"Morphologe sociale",M.E. Durkheim, introduc-tion, pp. 520-521.

    201

  • : Por outro lado, como as formas dos campos esto relacionadas com as suasdimenses, estas informam globalmente no s sobre a organizao social dominifndio, da grande propriedade e do latifndio, mas tambm - de modomais preciso - sobre o grau de atomizao da propriedade, a taxa de casamentosconsanguneos e, muito em particular, sobre os casamentos entre primos

    H"J:' germanos.l*-!sft""p 1: l O estudo de um dado sistema de cultivo - ou seja a escolha das plantas cultivadas**!{' e a associao entre elas -, dever tomar em considerao a topografia, aj ! _ _ pedologia, o clima, e ainda as formas e dimenses dos campos do lugar, dado

    , que a articulao entre estes diferentes factores fsicos explica a possibilidadee limitaes de escolha das culturas como define tambm o tipo de economiae de sociedade.

    Deste modo, o estabelecimento de um calendrio agrcola de uma importnciafundamental para poder perceber a articulao entre elementos de estruturaagrria referidos e o sistema social correspondente, sabendo-se de antemoque nele se inscrevem os diferentes ciclos sociais anuais. Deve ter-se, no entanto,conscincia que um calendrio agrcola pode diferir de ano para ano e mesmo

    mu j i . de cultivador para cultivador. As razes das diferenas prendem-se com ol 'l -M i facto dos factores climatricos apresentarem grandes variaes e levarem a

    consequentes atrasos ou adiantamentos em relao s sementeiras e demaisoperaes. Assim, como se sabe, corrente que em caso de mudanas extremasde clirna haja anos em que estas podem conduzir impossibilidade de praticaro cultivo de determinada planta.

    As variaes de calendrio entre cultivadores podem explicar-sc tambm pelasdiferenas de dimenso entre as suas exploraes. Com efeito, nas de maiordimenso o cultivo de determinada planta pode ter maior significado que nasunidades menores, pelo facto de nas primeiras as sementeiras poderem repetir-se vrias vezes no ano, segundo a sequncia serdio/tempo r ao, por exemplo.Inversamente, nas exploraes de menor dimenso necessrio libertar asparcelas para dar lugar s culturas seguintes.

    Nestas condies, devem ser elaborados vrios calendrios agrcolas a partirdos quais ser estabelecido um calendrio-tipo, expurgado das variaesclimatricas mais ou menos significativas e das eventuais diferenas dedimenso das exploraes entre cultivadores. De facto, uma vez identificadaa incidncia das alteraes climatricas na variao dos momentos de cultivo,as diferenas entre cultivadores evidenciam-se por si, sendo a sua leitura domaior significado para a compreenso da estratificao econmica local.

    A esta estratificao econmica, no sero provavelmente alheios os regimesde explorao agrcola. Segundo os modos de ocupao e explorao do solo,ser possvel, ou no, observar inclusivamente a existncia simultnea de

    202

  • numerosos rendeiros entre os proprietrios. De facto, muitos destes ltimospodero ser igualmente rendeiros a fim de complementar uma explorao demenor dimenso ou menor rendimento, como, por exemplo, no caso dospequenos proprietrios da zona de piemonte norte da serra da Gardunha. Oscasos de figura possveis podem ser variadssimos c o sistema local apresentaralguma complexidade. Com efeito, entre as categorias dos no proprietrios eproprietrios podem existir variadas situaes intermdias: 1) exploraoexclusiva da prpria propriedade; 2) situao de proprietrio e de rendeiro; 3)rendeiro unicamente; 4) ou ainda alguns destes casos de figura associados adiferentes formas de parceria, como as modalidades de teras, de meias, ete.,segundo o que me foi dado observar na r ferida zona da Gardunha [Dos Santos:1992].

    Assim a estrutura agrria, definida com o conjunto das condies fundirias esociais das regies rurais, toma aqui todo o sentido do ponto de vista dasmorfologias scio-espaciais locais, enquanto paisagens a partir das quais sepode inferir o modelo funcional das referidas condies fundirias e sociais seno mesmo proceder sua leitura directa.

    7.1.3 Correlaes entre a organizao social e a paisagem agrcolalocal

    A descrio que acabei de fazer refere formas de organi/ao social ruralmais ou menos correspondentes a um modo de vida ancestral, fortementeenraizado no nosso pas at ao final dos anos 70 e gradualmente alterado apartir de ento.

    Actualmente, o quadro social do espao aldeo encontra-se em mutao,caracterizada pela alterao do modelo de vida tradicional influenciadosobretudo pela crescente possibilidade de trabalho assalariado nos ncleos decentralidade industrialo-urbanos mais ou menos prximos. A atraco dasactividades tercirias e industr ia is tm levado, desde algum tempo, concentrao humana nos ncleos de centralidade, concomitantedcscrtificao do espao aldeo e ao gradual abandono da produo agrcolaautrcica.

    A pirmide etria alde encontra-se, na maioria dos casos, perfeitamenteinvertida em consequncia de uma baixa progressiva da natalidade, entre outrasra/es devido partida dos indivduos mais novos para os meios urbanos. Osefectivos das escolas primrias j no renem o nmero mnimo exigido decrianas para se manterem abertas, crn muitos casos mesmo escala da freguesia.

    203

  • 3L1-li'W-

    : - ; Assim, uma boa parte das aldeias encontra-se hoje semi abandonada e povoadapor gente relativamente idosa.

    Devido monetari/ao crescente e proximidade dos centros de distribuiodos diversos bens de consumo, entre outras razes, aspectos importantes dosmodos de vida aldeo tm vindo a diluir-se no modelo de vida urbano, tendendoa constituir-se, gradual mas crescentemente, num universo comum. Regra geral,os prprios bens consumidos na aldeia e na cidade so progressivamenteidnticos (o que pode variar significativamente a quantidade de bensconsumidos), contribuindo para alterai- e homogeneizar o gosto como tambmos valores relativos ao universo de consumo.

    O papel tido pelos rgos de informao (pela televiso em particular) noprocesso de aculturao local, veicula e infiltra nos meios tradicionalmentecamponeses novos valores e atitudes prprias da "modernidade" urbana. Estestendem a afirmar-se paralelamente ou a substituir os valores ancestrais

    ||":'" porventura ainda em vigor, criando nas geraes mais jovens situaes de'" anomia, semelhantes s dos plos de centralidade urbana.

    Pode dizer-se que o meio campons e rural se encontram em plenatransformao - desigual segundo as zonas - no que respeita economia, aosmeios de produo, s condies sociais do relacionamento inter-individual,s representaes sociais, viso cosmognica da vida, aos seus valores esmbolos.

    i ; . Todas estas modificaes tm naturalmente uma inscrio no territrio local,dando origem a uma paisagem que reflecte mais ou menos a nova situao.

    IIO habitat antigo cai em runas, destrudo ou modificado. Em certos casos,assiste-se a um radical apagamento de um passado arquitectnico cujas razesidentitrias mergulham pr fundamente no passado mas que, perante modelos

    de "modernidade" ansiados, aparecem localmente como altamente negativas.Processo no qual os emigrantes no tm maior envolvimento que os residentes,

    U 1 contrariamente ao que o senso comum leva a crer. Assim, um novo tipo de\':'. ' habitaes mais adaptado s novas exigncias de vida toma o lugar das antigasj" casas camponesas.*M|: . Uma parte considervel dos campos abandonado e rapidamente se cobre de-

    !

    ;' vegetao, por baixo da qual se esbatem as velhas vias de comunicao er; entram em runa os meios de captao de gua. Resultante desta situao, o

    j j sistema de irrigao progressivamente abandonado. As fontes de gua no\- so mantidas na medida em que so substitudas pela gua canalizada. As

    nascentes so obstrudas e na maioria dos casos encontram-se poludas,consideradas que so sem interesse por falta de actividade agrcola. Tambmas relaes sociais prprias da vida agrcola, atravs das quais se praticava a

    204

  • informao na volta de um caminho ou num encontro junto fonte etc., sofreramalteraes que poderia enumerar longamente.

    As relaes de parentesco acompanham estas modificaes gerais e tendem aadaptar-se nova situao. Desde h bastante tempo que o grupo familiarresidencial se vem modificando, dando a famlia alargada e extensa lugar famlia nuclear em todo o pas. Pais e avs vivem uma velhice mais longa esolitriae o recurso a lares de idosos crescente. Perdendo as terras importncia,os velhos pais deixam de ter nas mos o trunfo que lhes garantia algumaproteco graas ao jogo da herana em vida.As relaes estreitas entre consanguneos atenuam-se concentrando a sua foranum grupo de parentes cada vez mais reduzido. Concomitantemente, asparentelas perdem algum vigor e deixam de ter o papel relevante que tinhamno passado e na coeso dos grupos de parentesco face a terceiros. As fronteirasdas parentelas tendem a regredir, reduzindo o grupo de indivduos de relaesautomticas de parentesco que embora sejam ainda reconhecidos comoparentes, ficam sujeitos concorrncia de relaes de simples carcter electivo.Ou seja, o parentesco no seio da vasta categoria de primos obriga cada vezmenos a uma relao deste tipo. De facto, actualmente a tendncia indica queo recrutamento das relaes fortemente submetido a concorrncia pelo reforodas relaes electivas de vizinhana e pelas novas relaes que o trabalhoassalariado suscita.

    Enfim, podemos dizer que toda uma civilizao camponesa se esboroa sob osnossos olhos, dando lugar, pouco a pouco, a algo de novo do qual ainda nose descortinam formas socioculturais relativamente estveis e reconhecveis,mas s quais os estudiosos-devero estar atentos.

    Antes de terminar, diria que ern muitas zonas do pas, o mundo camponscede o lugar a algo que no corresponde fase rural descrita por H. Mendras[1974] a propsito da Frana. Na sua maioria, o mundo aldeo portugusparece passar directamente da civilizao camponesa secular fase doabandono, da desertificao, tal como aconteceu num passado recente emmuitas zonas de Espanha e acontece actualmente com a fase rural em certasregies de outros pases - designadamente da Frana -, solicitando assimquestes sobre o seu futuro, o seu papel, face, por exemplo, procura docampo pelos citadinos e sua reconverso sob a presso destes.

    Obviamente a situao de alterao ou abandono no sempre ntida ehomognea em todo o pas, resta ainda uma extensa zona agrcola fronteiriamuito evidenciada e interessante de observar. Trata-se da raia Luso-espanholaque no conjunto, de ambos os lados, representa 1.231 quilmetros dos quaisfazem parte dez distritos portugueses e seis provncias espanholas somandouma extenso de 135.675 quilmetros quadrados. 41% deste espao

    205

  • }-

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