UBUNTU EU SOU PORQUE NÓS SOMOS

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353 Ano X 06.12.2010 ISSN 1981-8469 Dalene Swanson Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal Mogobe Ramose A importância vital do “Nós” Dirk Louw Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha E mais: >> Eduardo Tomazine Teixeira: As UPPs. Uma incógnita >> Ricardo Bins de Napoli: Evolução, transumanismo e o advento de um novo ser humano Ubuntu. “Eu sou porque nós somos”

Transcript of UBUNTU EU SOU PORQUE NÓS SOMOS

  • 353Ano X

    06.12.2010ISSN 1981-8469

    Dalene Swanson Ubuntu, uma alternativa ecopoltica globalizao econmica neoliberal

    Mogobe RamoseA importncia vital do Ns

    Dirk Louw Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha

    E mais:

    >> Eduardo Tomazine Teixeira: As UPPs. Uma incgnita

    >> Ricardo Bins de Napoli: Evoluo, transumanismo e o

    advento de um novo ser humano

    Ubuntu. Eu sou

    porque ns somos

  • IHU On-Line a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos IHU Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Incio Neutzling ([email protected]). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 ([email protected]). Redao: Mrcia Junges MTB 9447 ([email protected]) e Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]). Reviso: Isaque Correa ([email protected]). Colaborao: Csar Sanson, Andr Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto grfico: Bistr de De-sign Ltda e Patricia Fachin. Atualizao diria do stio: Incio Neutzling, Greyce Vargas ([email protected]), Rafaela Kley, Cssio de Almeida e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada s segundas-feiras, no stio www.ihu.unisinos.br. Sua verso impressa circula s teras-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesutas - Residncia Conceio. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Incio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]). Endereo: Av. Unisinos, 950 So Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. Fone: 51 3591.1122 ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 4121.

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    Ubuntu. Eu sou porque ns somos

    Dos povos originrios da frica, surge uma concepo tica que desafia o estilo de vida da sociedade contempornea: o ubuntu. Para os povos de lngua bantu, esse termo significa eu sou porque ns somos. Essa filosofia do Ns pensa a comunidade, em seu sentido mais pleno, como todos os seres do universo. Todos ns somos famlia.

    Grande parte da luta contra a colonizao na frica e contra o apartheid, especialmente a partir das contribuies dadas pelo prmio Nobel Desmond Tutu, arcebispo anglicano emrito da Cidade do Cabo, na frica do Sul, encontrou sua fora nessa filosofia.

    A edio desta semana da IHU On-Line, junto com a edio 340, intitulada Sumak Kawsay, Suma Qamaa, Teko Por. O Bem-Viver, busca contribuir, em parceria com escritrio brasileiro da Fundao tica Mundial no Brasil, com a reflexo sobre uma tica Mundial a partir dos povos originrios do nosso continente e dos demais povos que aqui chegaram.

    Na discusso sobre o tema contribuem o filsofo e psiclogo sul-africano Dirk Louw, que afirma que ns somos por meio de outras pessoas, mas tambm por meio de todos os seres do universo; o filsofo sul-africano Mogobe Ramose, para quem a comunidade que nasce do ubuntu uma entidade dinmica entre os vivos, os mortos-vivos e os ainda no nascidos; a educadora sul-africana Dalene Swanson, que v o ubuntu como uma alternativa ecopoltica globalizao econmica neoliberal; o telogo norte-americano Charles Haws, que analisa o ubuntu como liberdade indivisvel a partir das contribuies do arcebispo Tutu; o telogo congols e doutor em sociologia BasIlele Malomalo, que situa o ubuntu dentro do contexto social brasileiro; e a filsofa e advogada norte-americana Drucilla Cornell, que reflete sobre as contribuies do ubuntu para as lutas feministas e dos grupos de direitos humanos em geral.

    Publicamos ainda, nesta semana, uma entrevista com Eduardo Tomazine Teixeira, mestrando em Cincia Poltica na Universidade de Paris VIII, sobre as Unidades de Polcia Pacificadora UPPs e com Horcio Costa que organizador, juntamente, com Berenice Bento, Wilton Garcia, Emerson Incio e Wiliam Siqueira, do livro Retratos do Brasil Homossexual. Fronteiras, Subjetividades e Desejos, recentemente lanado pela Edusp.

    O artigo Televiso e interesse pblico, de Carine Prevedello, doutoranda e pesquisadora do Grupo CEPOS, e uma entrevista com Ricardo Bins di Napoli, professor na Universidade Federal de Santa Maria UFSM, sobre o tema Evoluo e transumanismo, completam a edio.

    A todas e todos, uma tima leitura e uma excelente semana!

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    Leia nesta edio

    PGINA 02 | Editorial

    A. Tema de capa

    Entrevistas

    PGINA 05 | Dirk Louw: Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha

    PGINA 08 | Mogobe Ramose: A importncia vital do Ns

    PGINA 11 | Dalene Swanson: Ubuntu, uma alternativa ecopoltica globalizao econmica neoliberal

    PGINA 13 | Charles Haws: O ubuntu liberdade indivisvel

    PGINA 16 |BasIlele Malomalo: Eu s existo porque ns existimos: a tica Ubuntu

    PGINA 18 | Drucilla Cornell: As relaes entre o eu e o outro: o ubuntu como prtica tica da singularidade

    B. Destaques da semana

    Entrevista da Semana

    PGINA 21 | Eduardo Tomazine Teixeira: As UPPs. Uma incgnita

    PGINA 21 | Ricardo Bins di Napoli: Evoluo e transumanismo: o advento de um novo ser humano?

    Livro da Semana

    PGINA 25 | Horcio Costa: Estamos no comeo de um longo caminho a percorrer

    Coluna do Cepos

    PGINA 30 | Carine Prevedello: Televiso e interesse pblico

    Destaques On-Line

    PGINA 32 | Destaques On-Line

    C. IHU em Revista

    IHU Reprter

    PGINA 36 | Rosane Martins da Rocha

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    Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilhaPara o ethos do ubuntu, uma pessoa no s uma pessoa por meio de outras pessoas, mas tambm por meio de todos os seres do universo. Cuidar do outro, portanto, tambm implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres no humanos, afirma o filsofo e psiclogo sul-africano Dirk Louw

    Por Moiss sbardelotto | traduo lus Marcos sander

    No apenas ser porque tu s, mas tambm ser por meio de ti: essa , em resumo, a tica ubuntu, segundo Dirk Louw, psiclogo e filsofo da frica do Sul. Por isso, afirma, ser humano significa ser por meio de outros, sejam estes vivos ou mortos, humanos ou no.

    Em um sentido mais geral, ubuntu tambm significa simplesmente compaixo, calor huma-no, compreenso, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma s palavra, amor,

    explica Louw, nesta entrevista concedida por e-mail IHU On-Line.Por isso, para Louw, os recentes episdios polticos da sociedade sul-africana, como a superao do apar-

    theid, foi primordialmente o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistncia pacfica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenas.

    Louw indica ainda que o ubuntu resilientemente religioso, j que no s os vivos devem comparti-lhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros. Nesse sentido, afirma, o conceito africano de comunidade inclui toda a humanidade. Todos ns (isto , os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos famlia. E no s: por ter nascido em um pensamento holstico como o africano, o ethos do ubuntu afirma que uma pessoa no s uma pessoa por meio de outras pessoas, mas tambm uma pes-soa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres no humanos, explica Louw.

    Dirk J. Louw psiclogo clnico da provncia de Limpopo e ex-professor de filosofia da University of the North, na frica do Sul. Estudou na Universidade de Utrecht, na Holanda, na Universidade da frica do Sul e na Stellenbosch University, tambm na frica do Sul. pesquisador da pesquisador da Universidade de Jo-anesburgo e do Centro de tica Aplicada da Stellenbosch University e membro do Institute of Transpersonal Psychology. membro fundador da South African Philosopher Consultants Association, ex-membro do comit executivo da Sociedade Filosfica da frica do Sul e ex-editor do South African Journal of Philosophy. Entre suas publicaes, destacamos seu livro Ubuntu and the Challenges of Multiculturalism in Post-apartheid South Africa (Center for Southern Africa, Utrecht University, 2001) e seu artigo Ubuntu: An African Assess-ment of the Religious Other. Confira a entrevista.

    IHU On-Line O que significa ubun-tu? Quais so as noes centrais para essa filosofia e estilo de vida?Dirk Louw O sentido de ubuntu est resumido no tradicional aforismo afri-cano umuntu ngumuntu ngabantu (na verso zulu desse aforismo), que significa: Uma pessoa uma pessoa por meio de outras pessoas, ou eu sou porque ns somos. Ser humano significa ser por meio de outros. Qual-quer outra forma de ser seria des-umana no duplo sentido da palavra, isto , no humano e desrespeitoso

    ou at cruel para com os outros. Essa , grosso modo, a forma como a tica ubuntu africana descreve e tambm prescreve o ser humano.

    Em um sentido estritamente tra-dicional ou, se se preferir, religioso, ubuntu significa que s nos tornamos uma pessoa ao ser introduzidos ou iniciados em uma tribo ou em um cl especficos. Nesse sentido, tornar-se uma pessoa por meio de outras pesso-as implica em passar por vrios est-gios, cerimnias e rituais de iniciao prescritos pela comunidade.

    Entretanto, em um sentido comum ou, se se preferir, secular, ubuntu sig-nifica simplesmente compaixo, calor humano, compreenso, respeito, cui-dado, partilha, humanitarismo ou, em uma s palavra, amor.

    IHU On-Line Como o ubuntu se rela-ciona com a histria e a cultura afri-canas? Quais so as suas fontes?Dirk Louw As questes referentes s fontes do ubuntu e sua relao com a histria e a cultura africanas so contro-versas. Alguns pesquisadores sustentam

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    que o ubuntu tem sido comunicado por meio de histrias de gerao a gerao desde tempos imemoriais, e que as arti-culaes africanas dos valores do cuida-do e da partilha so muito mais antigas do que suas articulaes ocidentais ou at que as articulaes ocidentais tm suas razes nas articulaes africanas. Outros pesquisadores parecem sugerir que o ubuntu no passa de uma cortina de fumaa autofabricada para as atroci-dades cometidas por africanos no passa-do e no presente.

    Ento, o ubuntu existe? Os africanos de fato seguem o ubuntu? Essa pergunta merece mais ateno do que possvel aqui. Entretanto, ao menos quatro ob-servaes parecem apropriadas. Em pri-meiro lugar, afirmar que o ubuntu existe no significa necessariamente sustentar que a compaixo que ele expressa pre-valece ou prevaleceu sempre e em toda parte nas sociedades africanas. cla-ro que no prevaleceu nem prevalece. Contudo, depois que se conseguir olhar para alm das manchetes populares, po-dem-se detectar os mais annimos atos de compaixo entre os africanos. Para citar apenas um exemplo: a transio relativamente no violenta da socieda-de sul-africana, que passou de um Es-tado totalitrio para uma democracia multipartidria, no foi meramente o resultado das negociaes transigentes de polticos. Ela foi tambm e talvez primordialmente o resultado do sur-gimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistncia pa-cfica entre sul-africanos comuns a des-peito de suas diferenas.

    Em segundo lugar, embora talvez se duvide da existncia do ubuntu como uma realidade plenamente vivida, difi-cilmente se pode negar a sua existncia como um conceito, narrativa ou mito proeminente na frica e certamente no sul da frica. Chamar a tica ubuntu de mito no significa negar sua ver-dade factual embora o termo seja muitas vezes usado neste sentido. A palavra mito, da forma como usa-da aqui, descreve a tica ubuntu como uma histria duradoura que indepen-dentemente de sua verdade factual inspira moralmente e revela o sentido (isto , a relevncia ou importncia) da vida para as pessoas que participam dela, ou seja, que contribuem para

    cont-la e recont-la. Em terceiro lugar (ou formulando as

    duas primeiras observaes de forma diferente), antes de comear a negar ou afirmar a existncia de algo, seria de bom alvitre se envolver em anlises conceituais relevantes. O que exata-mente est sendo negado ou reafirma-do? Neste caso: o que exatamente se quer dizer com ubuntu ou existe? Finalmente, mesmo afirmando a exis-tncia do ubuntu, deve-se cuidar para no exagerar a influncia normativa da tica africana tradicional nas comuni-dades africanas.

    IHU On-Line Qual a relao entre o ubuntu e a religio? Como a tica ubuntu pode ajudar a melhor desen-volver um verdadeiro dilogo inter-religioso?Dirk Louw O ubuntu resilientemen-te religioso. Para um ocidental, a m-xima Uma pessoa uma pessoa por meio de outras pessoas no tem co-notaes religiosas bvias. Ele prova-velmente a interpretar apenas como um apelo geral para tratar as outras pessoas com respeito e decncia.

    Na tradio africana, entretanto, essa mxima tem um sentido profun-damente religioso. A pessoa que de-vemos nos tornar por meio de outras pessoas , em ltima anlise, um ancestral. E, da mesma forma, essas outras pessoas incluem os ances-trais. Os ancestrais so a famlia ex-tensa. Morrer um ltimo voltar para casa. Por conseguinte, no s os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos de-

    pendem uns dos outros. A tica ubuntu ajuda a melhor de-

    senvolver um dilogo inter-religioso verdadeiro condensando precondies vitais para esse dilogo. Essas precondi-es incluem um respeito pela religiosi-dade, individualidade, particularidade e historicidade ou natureza processual dos outros, assim como a valorizao do consenso ou do acordo.

    IHU On-Line O que o ethos do ubun-tu tem a ensinar s outras tradies, culturas e religies no africanas? Que aspectos o ubuntu pode ajudar a aprimorar na tica ocidental?Dirk Louw Permita-me reformular ligeiramente essas perguntas: o ethos do ubuntu unicamente africano? O ubuntu s faz parte da herana cultural africana? Seria etnocntrico e absurdo sugerir que a tica ubuntu de cuidado e partilha unicamente africana. Afi-nal de contas, os valores que o ubun-tu procura promover tambm podem ser identificados em vrias filosofias da Eursia. Isso no significa negar a intensidade com que esses valores so expressos pelos africanos. Mas o mero fato de serem expressos intensamente por africanos no torna, por si s, esses valores exclusivamente africanos.

    Entretanto, embora a compaixo, o calor humano, a compreenso, o cui-dado, a partilha, o humanitarismo etc. sejam sublinhados por todas as princi-pais cosmovises, ideologias e religi-es do mundo, eu gostaria, no entan-to, de sugerir que o ubuntu atua como uma justificao distintivamente afri-cana dessas formas de se relacionar com os outros. O conceito de ubuntu d um sentido distintivamente africa-no e uma razo ou motivao distin-tivamente africanas para uma atitude amorosa para com o outro.

    O que, ento, o ethos do ubuntu tem a ensinar s tradies, culturas e religies no africanas (incluindo as ocidentais)? Ele pode servir como um importante incentivo para reavaliar o ser por meio de outros em tradies, culturas e religies no africanas, para reenfatizar os imperativos do cuidado e da partilha com os outros.

    IHU On-Line Qual a importncia da

    A pessoa que devemos

    nos tornar por meio de

    outras pessoas , em

    ltima anlise, um

    ancestral. E, da mesma

    forma, essas outras

    pessoas incluem os

    ancestrais

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    comunidade e da famlia para a tica ubuntu?Dirk Louw lgico que a comunida-de/famlia muito importante para a tica ubuntu. Afinal, o ubuntu significa ser por meio de outros. Mas o que exatamente a comunidade/famlia significa nesse contexto? Espera-se que uma tica da compaixo seja inclu-siva, e no exclusiva, isto , que ela inclua, e no exclua; que abra espao, e no aliene. Mas quo inclusiva a comunidade que o ubuntu descreve e prescreve? s vezes, difcil evitar a impresso de que o ubuntu no preten-de ser exatamente uma lei universal do amor. Por exemplo: o sentido dos ritos de iniciao em sociedades afri-canas tradicionais parece implicar que o ubuntu funcionava (e ainda funciona) como uma tica vinculativa exclusiva-mente dentro dos limites de um cl especfico. Essa compreenso exclusiva da comunidade que o ubuntu com-bina com o bvio potencial do ubuntu de desencadear conflitos tnicos. Ela (ou uma verso dela) tambm parece constituir a base da forma pela qual al-guns negros sul-africanos tendem a ver o ubuntu como a diferena definitiva entre eles prprios como africanos e os no africanos (incluindo as chamadas pessoas de cor, asiticos e brancos).

    Ser membro da comunidade que o ubuntu no parece, portanto, ser fcil para os no africanos ou, ao me-nos, para os africanos no negros. Os defensores do ubuntu parecem estar divididos no tocante a isso. Em ter-mos gerais, todos eles enfatizam sua inclusividade. Entretanto, alguns pro-ponentes do ubuntu do a impresso de que, embora a comunidade que o ubuntu transcenda os limites de um cl especfico, ela s inclui aqueles cujas origens esto na frica. Outros salientam que a comunidade que o ubuntu tambm inclui estranhos, isto , pessoas que no esto relacio-nadas por sangue, parentesco ou casa-mento. Por fim, para alguns autores, o conceito africano de comunidade, em seu mais pleno sentido, inclui toda a humanidade. Todos ns (isto , os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos famlia ningum est excludo.

    IHU On-Line O senhor afirma que

    a nfase do ubuntu sobre o respei-to pela particularidade vital para a sobrevivncia da frica do Sul ps-apartheid. Nesse sentido, que as-pectos o ubuntu ajudou a forjar na sociedade e poltica sul-africanas? O que poderia ser ainda aprimorado?Dirk Louw O desafio da sociedade e da poltica da frica do Sul o desafio de afirmar a unidade ao mesmo tempo em que valoriza a diversidade, isto , de forjar a unidade na diversidade e, igualmente, a diversidade na unidade. O ubuntu ajudou a forjar a unidade na diversidade por meio de sua nfase na comunidade, expressada por palavras como simunye (ns somos um, isto , unidade fora) e slogans como um dano causado a um um dano causado a todos.

    Ele tambm forjou a diversidade na unidade atravs de reavaliaes criativas desse conceito, que acen-tuam a importncia da alteridade no ethos do ubuntu. Essas reavaliaes operam com conceitos de consenso ou de solidariedade que condizem com um regime democrtico em comuni-dades polticas africanas. Talvez seja necessrio trabalhar mais nesse senti-do. Uma compreenso emancipatria da democracia ubuntu (democracia comunitria) poder, por exemplo, exigir que os indivduos recebam tanta oportunidade quanto possvel para fa-zer mudanas e decidir por si mesmos como so governados.

    IHU On-Line O ubuntu tambm est relacionado ao respeito pela par-ticularidade do outro e ao respeito pela individualidade. Assim, como o ubuntu v a noo de outro?

    Em um mundo globalizado, o que o ubuntu pode oferecer para que se ultrapassem as diferenas culturais, polticas, econmicas e religiosas en-tre os povos?Dirk Louw importante que ningum seja um estranho em termos do suposto alcance da comunidade que o ubuntu, dado o potencial do ubuntu para dege-nerar em um comunitarismo totalitrio isto , dada a sua tendncia de excluir, e no de incluir, como se esperaria de uma tica do cuidado e da partilha. Como uma tica excludente, um ubuntu desvirtuado representa a fortificao e a preservao de uma identidade dada por meio da limitao e da segregao. Nos termos dessa tica, o slogan simunye (ns somos um) sinaliza, ironicamen-te, a pureza de classe, cultura ou etnia; racismo e xenofobia um fenmeno com o qual os (sul) africanos esto por demais familiarizados.

    O verdadeiro ubuntu se ope a ten-dncias totalitrias levando a plurali-dade a srio. Ao mesmo tempo em que constitui o ser pessoa por meio de ou-tras pessoas, ele valoriza o fato de que outras pessoas sejam assim chama-das, justamente porque, em ltima an-lise, nunca podemos ficar inteiramente na pele delas ou enxergar completa-mente o mundo atravs de seus olhos. Portanto, quando o ubuntusta l so-lidariedade e consenso, ele tambm l alteridade, autonomia e coope-rao (observe: no cooptao).

    IHU On-Line Como o ethos do ubun-tu compreende a nossa relao com a natureza e a proteo das vidas no humanas?Dirk Louw O pensamento africano holstico. Como tal, ele reconhece a n-tima interconectividade e, mais preci-samente, a interdependncia de tudo. De acordo com o ethos do ubuntu, uma pessoa no s uma pessoa por meio de outras pessoas (isto , da comunidade em sentido abrangente: os demais se-res humanos assim como os ancestrais), mas uma pessoa uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluin-do a natureza e os seres no humanos. Cuidar do outro (e, com isso, de si mesmo), portanto, tambm implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres no humanos.

    O conceito africano

    de comunidade, em seu

    mais pleno sentido,

    inclui toda a

    humanidade. Todos ns

    somos famlia ningum

    est excludo

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    A importncia vital do NsSegundo o filsofo sul-africano Mogobe Ramose, para a filosofia ubuntu, a comunidade lgica e historicamente anterior ao indivduo e por isso tem a primazia sobre este. Essa comunidade, explica, uma entidade dinmica entre trs esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos e a dos ainda no nascidos

    Por Moiss sbardelotto | traduo lus Marcos sander

    Se o ubuntu pode ser compreendido como uma ontologia, uma epistemologia e uma tica, sua noo mais fundamental a filosofia do Ns, segundo o filsofo sul-africano Mogobe Bernard Ramose. Em termos coletivos, o ubuntu se manifesta nos princpios da partilha, da preocupao e do cuidado mtuos, assim como da solidariedade.

    Por isso, Ramose, em entrevista por e-mail IHU On-Line, explicou que, na filosofia ubuntu, a comunidade lgica e historicamente anterior ao indivduo. Com base nisso, a primazia atribuda comu-nidade, e no ao indivduo. Essa comunidade definida como uma entidade dinmica entre trs esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos (ancestrais) e a dos ainda no nascidos.

    Entretanto, afirma, dentro desse contexto, o indivduo no perde sua identidade pessoal e sua autonomia. A luta contra a colonizao na frica se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No caso da colonizao, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo autonomia ou liberdade, explica.

    Segundo Ramose, sua luta atual que o ubuntu tenha uma presena real e visvel na Constituio sul-africana, a exemplo do que aconteceu no Equador e na Bolvia com relao aos princpios do sumak kawsa.Nesse sentido, para outras culturas, o ubuntu pode enfatizar a importncia vital de levar o Ns a srio. Ou seja, na prtica, um pollogo entre culturas e tradies para uma melhor compreenso mtua e a defesa da vida humana.

    Mogobe Bernard Ramose professor de filosofia da Universidade da frica do Sul Unisa e diretor do Centro de Aprendizagem Regional da Unisa, em Adis Abeba, na Etipia. Doutor em filosofia pela Katholieke Universiteit Leuven, da Blgica, desenvolve sua pesquisa nos campos da filosofia africana e da filosofia da poltica, direito e relaes internacionais. Trabalhou na Universidade do Zimbbue e de Venda, na frica, assim como na Tilburgh University, na Holanda. autor, dentre outros, de African philosophy through ubuntu (Mond Books, 1999). Confira a entrevista.

    IHU On-Line Qual o significado de ubuntu? Mogobe Ramose Ubuntu um termo que se encontra em vrias lnguas ban-to. Trata-se de duas palavras em uma, a saber: ubu e ntu no grupo nguni de lnguas; botho, bo e tho, no grupo sotho de lnguas; e hunhu, hu e nhu em xona.

    um conceito filosfico no sentido comum da filosofia como amor sabe-doria. Mas tambm um conceito filo-sfico no sentido estreito da filosofia como disciplina acadmica. Nesta l-

    tima acepo, o ubuntu tem trs sen-tidos inter-relacionados bsicos: como uma 1) ontologia, 2) epistemologia e 3) tica.

    IHU On-Line Quais so as origens culturais e histricas do ubuntu?Mogobe Ramose A linguagem e o pensamento andam de mos dadas. O pensamento o instrumento para o cultivo e a construo da cultura. As-sim, a linguagem na acepo ampla de fala, ao e escrita a fonte do ubuntu. comum pensar que as cultu-

    ras da frica indgena ao sul do deser-to do Saara so principalmente orais, isto , desprovidas de escrita. Mas essa concepo questionvel, porque tem uma acepo restrita do significado da escrita e tambm porque no se aplica totalidade da frica subsaariana, j que a Etipia, por exemplo, tem sua prpria lngua escrita, o amrico. A persistncia dessa concepo questio-nvel tornou a tradio oral como uma das fontes da filosofia ubuntu. Atravs do veculo da tradio oral, a cultura ubuntu e a histria dos po-

  • SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353

    vos de lngua banto continuam sendo transmitidas de uma gerao a outra.

    importante lembrar que o nome frica no foi dado ao continente pelos povos indgenas que vivem nele desde tempos imemoriais. como um nome de batismo imposto aos povos do Norte do continente primeiro pelos an-tigos gregos e romanos e, subsequen-temente, a todo o continente pelos colonizadores. A diviso da frica em duas partes com base no deserto do Saara tambm uma imposio. Por conseguinte, crucial reconhecer que quem nomeia ou batiza faz isso a par-tir de uma posio de poder. A partir disso, no surpreende constatar que alguns intelectuais indgenas do conti-nente rejeitam o nome frica como uma forma de expressar resistncia ao poder do nomeador que nomeia.

    IHU On-Line Quais so os conceitos centrais envolvidos na tica e na fi-losofia ubuntu?Mogobe Ramose muito importan-te notar que, de acordo com a onto-logia do ubuntu, be-ing [em ingls, o verbo ser], diferentemente de being [o substantivo ser], no tem um centro. Assim falamos das noes duradouras que at agora tm sido as marcas de autenticidade do ubuntu. A noo fundamental da epistemologia e tica ubuntu tomando o termo em-prestado de Tshiamalenga1 a filosofia do Ns. Nos termos dessa filosofia, os princpios da partilha, da preocupa-o e do cuidado mtuos, assim como da solidariedade, constituem coletiva-mente a tica do ubuntu.

    IHU On-Line Qual a relao exis-tente entre a tica ubuntu e a noo africana de comunidade, autonomia e colonizao?Mogobe Ramose A noo de comu-nidade na filosofia ubuntu provm da premissa ontolgica de que a comu-nidade lgica e historicamente an-terior ao indivduo. Com base nisso, a primazia atribuda comunidade, e no ao indivduo. Entretanto, disso

    1 Ignace-Marcel Tshiamalenga Ntumba (1932-): telogo e sacerdote nascido no Zaire. dou-tor em Teologia pela Universidade Catlica de Louvain, na Blgica, e em Filosofia pela Universidade de Frankfurt, Alemanha. Desde 1971, professor de Filosofia na Universidade de Kinshasa. (Nota da IHU On-Line).

    no se segue que o indivduo perca a identidade pessoal e a autonomia. O indivduo considerado autnomo e, portanto, responsvel por suas aes. De outra forma, toda a teoria e a prtica do lekgotla um frum para a resoluo de disputas entre indiv-duos, assim como entre o indivduo e a comunidade no teriam sentido justamente porque a pressuposio da autonomia individual no se aplicaria.

    A luta contra a colonizao na fri-ca se baseia justamente no reconhe-cimento da autonomia individual. No caso da colonizao, essa luta se ma-nifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo au-tonomia ou liberdade.

    IHU On-Line Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade e a poltica da frica do Sul? Nesse sentido, em sua opinio, que pontos ainda precisam ser mais desenvolvi-dos?Mogobe Ramose A primeira fase da transio para a nova frica do Sul foi parcialmente impulsionada pelo ubuntu na medida em que esse concei-to foi usado para dar sentido cons-tituio interina de 1993. Ironicamen-te, mas por razes bastante tticas, o ubuntu est completamente ausente da Constituio final de 1996.

    Apesar disso, o ubuntu foi usado, de maneira bastante discutvel, para justificar a abolio da pena de mor-te e para dar credibilidade ao projeto Verdade e Reconciliao2. No tocante a este ltimo projeto, alguns clrigos cristos assumiram a vanguarda na

    2 Projeto Verdade e Reconciliao: formado para investigar os abusos da era do apartheid, na frica do Sul. (Nota da IHU On-Line)

    justificao da Comisso da Verdade e Reconciliao a partir da base teolgi-ca de que o Deus cristo endossou a reconciliao ao assumir a carne hu-mana (a encarnao) como meio e m-todo para restaurar a relao rompida entre Deus e Ado e Eva, alienados por causa da queda.

    O problema dessa justificao que o mesmo Deus at agora no tem disposio nem capacidade para restaurar a relao rompida entre Ele e Lcifer, que O ofendeu com o pecado da soberba. Mesmo sem esse questio-namento da justificao teolgica da reconciliao, fato que a sociedade sul-africana contempornea continua em grande parte irreconciliada, na medida em que o abismo entre ricos e pobres aumenta, e os pobres se afun-dam em um abissal buraco negro. H um imperativo tico de se corrigir isso urgentemente. O ubuntu pode ajudar nesse sentido, insistindo no reconhe-cimento, no respeito, na proteo e na promoo de sua mxima tica, ex-pressada pelo provrbio feta kgomo o tshware motho se a pessoa est em uma situao em que precisa optar en-tre proteger e salvaguardar a riqueza ou preservar a vida humana, ela deve ento optar pela preservao da vida humana.

    IHU On-Line Como o ubuntu conce-be a lei, o direito e a justia?Mogobe Ramose A concepo ubuntu do direito parte integrante da filo-sofia do Ns que define a comunida-de como uma entidade dinmica com trs esferas, a saber: a dos vivos, a dos mortos-vivos (ancestrais) e a dos ainda no nascidos. A justia a efe-tivao e a preservao de relaes harmoniosas em todas as trs esferas da comunidade, e o direito o instru-mento para alcanar esse fim.

    IHU On-Line Na Amrica Latina, al-guns pases incluram a tica sumak kawsay (bem viver) em suas Consti-tuies, como o Equador e a Bolvia. E o senhor defende que no h uma razo a priori pela qual o ubuntu no deveria ser a filosofia bsica para a democracia constitucional na frica do Sul. Por qu?Mogobe Ramose Eu gostaria de sa-

    A noo de

    comunidade na filosofia

    ubuntu provm da

    premissa ontolgica de

    que a comunidade

    lgica e historicamente

    anterior ao indivduo

  • 10 SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353

    ber mais sobre sumak kawsay. Em uma resposta anterior, fiz referncia ao fato de que, por alguma ironia e certamente por razes tticas, o ubun-tu ficou de fora da Constituio final de 1996. A excluso do ubuntu dessa Constituio o que estou contestan-do, porque ela significa: 1) a rejeio de uma filosofia e de um modo de vida que tm sustentado e continuam sus-tentando os povos indgenas vencidos nas guerras injustas de colonizao da frica do Sul; 2) a integrao forada desses povos em um paradigma cons-titucional que no deles, na medida em que descartou deliberadamente a sua filosofia; 3) a mudana ttica do princpio da supremacia (soberania) parlamentar para a supremacia consti-tucional a transmutao da injustia da colonizao e de suas consequn-cias na justia e, portanto, a negao da justia para os povos indgenas ven-cidos da frica do Sul.

    Para a filosofia ubuntu, o tempo no muda a verdade, nem tem o poder de transformar uma injustia em jus-tia. por essa razo que eu defendo a presena real e visvel do ubuntu na Constituio sul-africana ainda a ser acordada.

    IHU On-Line O que o ubuntu pode ensinar a outras tradies, culturas e tica no africanas?Mogobe Ramose Para outras culturas, o ubuntu pode enfatizar a importncia vital de levar o Ns a srio. Na pr-tica, isso significaria um pollogo [ou polidilogo] de culturas e tradies que promova a filosofia intercultural para a melhoria da compreenso m-tua e a defesa da vida humana.

    Para outras culturas, o

    ubuntu pode enfatizar

    a importncia vital de

    levar o Ns a srio. Na

    prtica, isso significaria

    um pollogo de culturas

    e tradiesA tica do ubuntu se pronuncia contra uma interpretao ideolgica capitalista da realidade. Sua filosofia nativa espiritu-al est em maior consonncia com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, afirma a educadora sul-africana Dalene Swanson

    Por Moiss sbardelotto | traduo lus Marcos sander

    Reconhecido como um sistema de crenas, uma epistemologia, uma tica coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da frica, o ubuntu , em suma, uma forma tica de conhecer e de ser em comunidade. Essa a opinio da doutora em Educa-o nascida na frica do Sul e hoje residente no Canad, Dalene

    Swanson.Professora adjunta da University of British Columbia, em Vancouver, e de

    Alberta, em Edmonton, ambas no Canad, Dalene encontra no ubuntu uma das formas de humanismo africano. Mas, diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, o ubuntu no coloca o indivduo no cen-tro de uma concepo de ser humano: A pessoa s humana explica por meio de sua pertena a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa definida por meio de sua humanidade para com os outros.

    O ubuntu, afirma Dalene, uma expresso viva de uma alternativa eco-poltica e tambm a anttese do materialismo capitalista. Mas hoje, diz, a industrializao, a urbanizao e a globalizao crescentes ameaam corrom-per esse modo de ser africano tradicional, pois o ubuntu se posiciona contra essa interpretao ideolgica da realidade por meio de uma filosofia nativa espiritual que est em maior consonncia com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte.

    Dalene Swanson professora adjunta da Faculdade de Educao das Uni-versity of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, Ca-nad. Nascida na frica do Sul, membro associada do Centre for Cultu-re, Identity and Education da University of British Columbia. doutora em Educao pela University of British Columbia, com a pesquisa Voices in the Silence: Narratives of disadvantage, social context and school mathematics in post-apartheid South Africa. Sua tese lhe garantiu diversos prmios de ex-celncia, dentre eles o Canadian Association of Curriculum Studies Award de 2005; o prmio Ted T. Aoki, do mesmo ano; e o American Educational Research Association Award de 2006. Dentre outras publicaes, autora do captulo Where have all the fishes gone?: Living ubuntu as an ethics of research and pedagogical engagement, do livro In the Spirit of ubuntu: Stories of Teaching and Research [No esprito do ubuntu: Histrias de ensino e pesquisa] (Sense Publications, 2009). Confira a entrevista.

    Ubuntu, uma alternativaecopoltica globalizao econmica neoliberal

  • SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353 11

    IHU On-Line Fala-se do ubuntu como uma noo filosfica, um con-ceito abstrato, um fundamento tico ou uma ideologia nacionalista africa-na. Afinal, o que ubuntu?Dalene Swanson Ubuntu um sistema de crenas, uma epistemologia, uma tica coletiva e uma filosofia humanis-ta espiritual do sul da frica. Dentre as quatro categorias que voc menciona na pergunta, o ubuntu mais um fun-damento tico coletivo (ou um sistema de crenas) do que qualquer outra coi-sa, embora tambm seja considerado uma forma de filosofia e epistemologia africanas nativas. uma forma tica de conhecer e de ser em comunidade. Nes-se sentido, uma forma de humanismo africano. muito menos um conceito abstrato do que uma expresso cole-tiva cotidiana de experincias vividas, centradas em uma tica comunitria do que significa ser humano.

    Em Swanson (2007)1, eu o descre-vi da seguinte maneira: Ubuntu uma abreviao de um provrbio isi-Xhosa da frica do Sul, proveniente de Umuntu ngumuntu ngabantu: uma pessoa uma pessoa por meio de seu relacionamento com outros. O ubuntu reconhecido como a filosofia africa-na do humanismo, ligando o indivduo ao coletivo atravs da fraternidade ou da sororidade. Ele d uma contri-buio fundamental s formas nativas de conhecer e ser. Com nfases hist-ricas diversificadas e (re) contextuali-zaes ao longo do tempo e do espao, considerado uma forma espiritual de ser no contexto sociopoltico mais amplo do sul da frica. Essa aborda-gem no apenas uma expresso de uma filosofia espiritual em seu sentido teolgico e terico, mas uma expres-so da vivncia cotidiana. Isto , uma forma de conhecimento que fomenta uma jornada rumo a tornar-se huma-no (VANIER, 1998)2 ou que nos torna humanos (TUTU, 1999)3, ou, em seu

    1 Swanson, D. M. Ubuntu: An African contribu- Swanson, D. M. Ubuntu: An African contribu-tion to (re)search for/with a humble togeth-erness. The Journal of Contemporary Issues in Education, University of Alberta, v. 2, n. 2, p. 53-67, 2007. Special Edition on African Worldviews. Disponvel em: http://migre.me/1YZrO. (Nota da entrevistada)(Nota da entrevistada)2 Vanier, J. Becoming human. Toronto: Anansi (CBC), 1998. (Nota da entrevistada)3 Tutu, D. No future without forgiveness. New York: Doubleday, 1999. (Nota da entrevistada)

    sentido coletivo, uma maior humani-dade que transcende a alteridade de todas as formas (p. 55).

    IHU On-Line Sendo o ubuntu, portan-to, uma filosofia do humanismo africa-no, qual o significado e o valor do ser humano dentro desse contexto?Dalene Swanson Diferentemente da filosofia ocidental derivada do raciona-lismo iluminista, o ubuntu no coloca o indivduo no centro de uma concepo de ser humano. Este todo o sentido do ubuntu e do humanismo africano. A pessoa s humana por meio de sua pertena a um coletivo humano; a hu-manidade de uma pessoa definida por meio de sua humanidade para com os outros; uma pessoa existe por meio da existncia dos outros em relao inex-tricvel consigo mesma, mas o valor de sua humanidade est diretamente relacionado forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignida-de dos outros; a humanidade de uma pessoa definida por seu compromisso tico com sua irm e seu irmo.

    IHU On-Line Quais so as origens culturais e histricas do ubuntu?Dalene Swanson O ubuntu tem sido uma expresso vivida de uma filosofia coletiva tica entre os povos sul-afri-canos h sculos. Ele tambm tem expresses lingusticas e vividas em outros povos africanos mais ao norte. Nesse sentido, uma das normas cul-turais mais poderosas e universais que vinculam as pessoas em todo o conti-nente e transcende lnguas, tribos e lo-cais como uma tica humana coletiva.

    Em Swanson (2007), afirmei: Da for-ma como cheguei a entender o conceito, o ubuntu nasce da filosofia de que a for-a da comunidade vem do apoio comuni-

    trio e de que a dignidade e a identidade so alcanadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade e do com-promisso comunitrio. O adgio de que preciso uma aldeia inteira para criar uma criana est alinhado com o espri-to e a inteno do ubuntu. Assim como o apartheid ameaava corroer esse modo de ser africano tradicional embora, em alguns casos, ele ironicamente o fortale-ceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os oprimidos , da mesma forma a industrializao, a urbanizao e a globalizao crescentes ameaam fazer o mesmo (p. 53-54).

    IHU On-Line Quais aspectos o ubun-tu pode ajudar a aprofundar na tica ocidental? O que ele pode ensinar a outras tradies e culturas?Dalene Swanson Este um ponto crucial. Vivemos em uma era de globa-lizao econmica neoliberal profun-damente perturbadora. Nossas pautas de desenvolvimento foram sequestra-das por esse modelo econmico que se apresenta como a forma certa ou nica de promover o desenvolvimen-to. Moldado por relaes capitalistas de produo, esse modelo subscrito pelo materialismo, pelo individualismo e pela competio, e normaliza uma elite rica sobre os pobres privados de direitos (em que a raa, a classe, a na-cionalidade, o gnero, a etnia e o credo esto, na maioria das vezes, envolvidos diferencialmente). Para maximizar os lucros, pensa-se que algo tem de ser explorado. Em termos geopolticos, isso assume a forma de uma subclasse humana, mas, em termos ecolgicos, tambm inclui a devastao do meio ambiente em sua esteira. O discurso prevalecente apoiaria isso como um direito e uma exigncia necessria da segurana econmica nacional.

    Uma tica do ubuntu se pronunciaria contra essa interpretao ideolgica da realidade por meio de uma filosofia na-tiva espiritual que est em maior conso-nncia com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte. Visto que o princpio central do ubuntu o res-peito mtuo, ele est em consonncia com a epistemologia africana de modo mais geral, que circular em sua com-preenso e, consequentemente, est

    O ubuntu uma forma

    tica de conhecer e de

    ser em comunidade.

    Nesse sentido, uma

    forma de humanismo

    africano

  • 12 SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353

    mais em harmonia ecolgica com a Terra do que a epistemologia do racionalismo ocidental, que linear, exploradora e insustentvel. Portanto, o ubuntu tem uma contribuio crtica a dar no s para uma filosofia nativa interconectada globalmente, mas como uma abordagem contra-hegemnica a uma cosmoviso globalizante que exalta a riqueza mate-rial s custas da dignidade humana e da sustentabilidade ecolgica.

    Discursivamente, a globalizao econmica torna as alternativas no existentes. O ubuntu, como contribui-o para uma filosofia nativa, uma expresso viva de uma alternativa ecopoltica. Em um mundo crescen-temente movido a vigilncia, o futuro dos direitos humanos (e ecolgicos), da dignidade humana e da sobrevivn-cia de nosso planeta em termos am-plos dependem de noes filosficas e ideolgicas nativas como o ubuntu.

    IHU On-Line Como a tica do ubun-tu se relaciona com a noo africana de comunidade, autonomia e desco-lonizao?Dalene Swanson O ubuntu central para uma noo de comunidade, no em um sentido simplista de comunita-rismo primitivo, mas comunidade em termos de solidariedade com os esto sendo oprimidos e cuidado e preocu-pao sinceros pelo prximo, indepen-dentemente de classe, casta, credo ou circunstncia. Essa uma tica de responsabilidade pelo Outro em ter-mos de ubuntu, e testemunhar ou par-ticipar da diminuio da humanidade do outro equivale diminuio de sua prpria humanidade.

    Voc menciona a palavra autono-mia. No creio que este seja um cri-trio crucial do ubuntu. A autonomia sugere uma separao de alguma outra coisa. Se ns respeitamos a humanida-de do outro, de qualquer outro, no po-demos estar separados de sua humani-dade. O ubuntu sugere que ns estamos sempre inextricavelmente conectados com outro ser humano todos os outros seres humanos, que definem a nossa prpria humanidade. Suponho que voc considere que a autonomia entre em jogo no sentido de sugerir solidarieda-de. Sim, o ubuntu teve certa importn-cia na solidariedade antiapartheid na

    frica do Sul. Ser solidrio com outro ser oprimido, nesse sentido, constitui-ria um envolvimento com o ubuntu. E, como extrapolao disso, ele tem mui-to a ver com a descolonizao. Dessa forma, sua importncia para com a des-colonizao no tem tanto a ver com a resistncia a um poder colonial em uma frente nacional, como tem sido o legado da frica, mas agora tambm a novas formas de colonialismo atravs da globalizao econmica neoliberal e uma agenda de desenvolvimento cuja estrutura ideolgica definida dentro dos moldes poltico-econmicos dos po-deres imperiais.

    IHU On-Line Em uma sociedade marcada pela violncia e pela po-breza como a africana, quais so as contribuies e os limites da tica do ubuntu?Dalene Swanson Creio que preciso ser cuidadoso para no homogeneizar a sociedade africana e falar dela inteiramente em termos de dficit. Nem toda a sociedade africana mar-cada por violncia e pobreza. Essa terminologia tambm sugere que as sociedades no africanas talvez no se-jam marcadas por violncia e pobreza, ou o sejam menos. H muita violncia na Amrica do Norte, por exemplo. A natureza e a extenso podem ser di-ferentes, mas o capitalismo pode ser uma ideologia muito violenta. Embora uma parte dessa violncia talvez seja simblica, ela , no obstante, alta-mente destrutiva e cmplice na ne-gao da dignidade e dos direitos de muitos.

    A frica tambm tem muito a se orgu-lhar em termos de sua beleza e presen-a, mas tambm da beleza, resilincia, compaixo e humanidade de muitos de seus povos. Alm disso, h muitas pro-fundas contribuies e inovaes episte-

    molgicas histricas e contemporneas que vieram e que esto vindo da frica. Em muitos casos, ela tambm osten-ta sofisticao e criatividade industrial e tecnolgica, embora isso raramente seja reconhecido atravs das lentes dos poderes dominantes e dos discursos he-gemnicos.

    No obstante, voltando sua pergun-ta, segue-se o que escrevi em Swanson (2007), a respeito do papel do ubuntu na Comisso de Verdade e Reconciliao na frica do Sul ps-apartheid: O ganhador do prmio Nobel, o arcebispo Desmond Mpilo Tutu4, que, em 1995, tornou-se o presidente da Comisso de Verdade e Reconciliao na frica do Sul ps-apar-theid, era um vigoroso defensor da fi-losofia e do poder espiritual do ubuntu na recuperao da verdade por meio de narrativas das atrocidades da era do apartheid. Ele tambm o viu como ne-cessrio nos processos mais importantes e subsequentes de perdo, reconcilia-o, transcendncia e cura que surgem por meio do processo catrtico de dizer a verdade. Nesse sentido, o alcance das noes de verdade com relao ao mandato da Comisso de Verdade e Re-conciliao superava uma noo forense de descoberta da verdade para incluir trs outras noes de busca da verda-de que abrangiam a verdade pessoal ou narrativa, a verdade social ou dialgica e a verdade curativa ou restauradora (MARX, 2002, p. 51)5. Uma percepo da

    4 Desmond Tutu (131): Bispo anglicano sul-africano. Trabalhou como professor secundrio e, em 1960, ordenou-se sacerdote anglicano. Aps estudar teologia por cinco anos na Ingla-terra, foi nomeado deo da catedral de Santa Maria, em Joanesburgo, sendo o primeiro ne-gro a ter tal nomeao. Sagrado bispo, dirige a diocese de Lesoto de 1976 a 1978, ano em que se torna secretrio-geral do Conselho das Igre-jas da frica do Sul. Sua proposta para a so-ciedade sul-africana inclui direitos civis iguais para todos; abolio das leis que limitam a circulao dos negros; um sistema educacio-nal comum; e o fim das deportaes foradas de negros. Sua firme posio antiapartheid a poltica oficial de segregao racial lhe vale, em 1984, o Prmio Nobel da Paz. As Notcias do Dia, do stio do IHU, publicaram uma confe-rncia de Tutu, no evento Global Ethic Lectu-res, organizado pela Fundao tica Mundial, em que o arcebispo faz uma anlise aprofun-dada e pessoal da relao entre o ubuntu, a tica e as religies mundiais. O texto, intitu-lado Ubuntu: uma perspectiva africana sobre tica e dignidade humana, 30-04-2010, est disponvel em http://migre.me/1Z3W0. (Nota da IHU On-Line) 5 MARX, C. MARX, C. Ubu and ubuntu: On the dialectics of apartheid and nation building. Politikon:

    A industrializao,

    a urbanizao e a

    globalizao

    crescentes ameaam

    corroer o ubuntu

  • SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353 13

    epistemologia africana ressoa por essas postulaes da verdade em sua formu-lao e exposio. Como linha filosfi-ca da epistemologia africana, o ubuntu foca as relaes humanas, atentando para a conscincia moral e espiritual do que significa ser humano e estar em re-lao com um Outro. Isso se expressa no anncio da Comisso de que ele desloca o foco primordial do crime, passando da violao das leis ou infraes contra um Estado sem rosto para uma percepo do crime como violaes contra seres hu-manos, como dano ou mal feito a outra pessoa (apud Marx, 2002, p. 51). Mais uma vez, o imperativo da busca da ver-dade por parte da Comisso sustenta-do por uma concepo da epistemologia africana e do ubuntu em sua incorpora-o da verdade pessoal ou narrativa, da verdade social ou dialgica e da verdade curativa ou restauradora (p. 53).

    IHU On-Line A senhora define o ubuntu como humble together-ness, intimidade humilde, estar juntos em humildade. Qual o signi-ficado dessa definio para a relao entre o indivduo e a sociedade em geral?Dalene Swanson Cunhei o termo humble togetherness para exempli-ficar como o ubuntu atua no atravs de relaes de poder, em que uma pessoa superior a outra e mostra compaixo ou oferece ajuda de forma patriarcal ou paternalista, mas atravs do ato de se tornar humilde diante de outra pessoa, de ver o outro como uma pessoa igual, que contribui e digna, que tem uma presena na qual nossa prpria humanidade se reflete.

    Trata-se de uma conexidade abnega-da, voltada para fora, para o bem-estar de outra pessoa e o seu reconhecimento como pessoa. uma forma de mutu-alismo em que o orgulho de si mesmo depende inteiramente de se sustentar a dignidade do outro ou da comunidade. Falei sobre como o ubuntu sustenta uma metodologia de pesquisa mais reflexi-va por meio de um conceito de estar juntos em humildade e sobre como ela contribui para uma pedagogia e pr-tica da educao e da vida em alguns de meus artigos e captulos de livros,

    South African Journal of Political Studies, v. 29, n. 1, p. 49-69, 2002. (Nota da entrevis-(Nota da entrevis-tada)

    particularmente em Swanson (2007), (2009a)6 e (2009b)7.

    IHU On-Line Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade, a poltica e a economia sul-africanas? Onde ainda preciso melhorar?Dalene Swanson Toquei em algumas dessas questes ao fazer referncia Comisso de Verdade e Reconciliao. O ubuntu tambm tem sido usado em nvel de governo para incentivar a for-mao da nao, curar as cicatrizes do apartheid e a desconfiana entre as raas que aquele regime engen-drou. Embora isso tenha sido at certo ponto bem-sucedido em uma frente, o problema que foi implementado de cima para baixo, no sendo uma abordagem organizacional crescente que parte das bases. Os limites dessa abordagem podem ser vistos nas pou-cas semanas de violncia xenfoba do ano passado contra refugiados e imi-grantes de outros pases africanos que vivem e trabalham na frica do Sul.

    Nesse contexto, o ubuntu parecia se aplicar apenas aos companheiros sul-africanos dentro da nao do arco-ris e no aos estrangeiros um sinal de uma formao de nao que deu muito errado. Pode-se susten-tar que, no primeiro caso, h uma dis-cordncia entre as bases filosficas do ubuntu que promovem a fraternidade e a sororidade universais, extensivas a toda a humanidade, e o conceito de uma nao que invoca fronteiras e diferencia as pessoas (e sua humanida-de) de acordo com a cidadania, garan-tindo direitos a alguns e no a outros. Eu discuto esse problema com maior profundidade em Swanson (2007).

    Outro aspecto que pode ser destaca-do que o ubuntu assinala a anttese do materialismo capitalista. Com o adven-to contnuo da globalizao econmica e mediante a adeso a um modelo de desenvolvimento moldado pelo capita-

    6 SWANSON, D. M. Roots / Routes (Part II), SWANSON, D. M. Roots / Routes (Part II), Qualitative Inquiry. Sage Publications, v. 15, n. 2, p. 58-78, 2009a. Disponvel em: http://Disponvel em: http://migre.me/1Z2We. (Nota da entrevistada)7 SWANSON, D. M. SWANSON, D. M. Where have all the fishes gone?: Living ubuntu as an ethics of research and pedagogical engagement. In: Caracciolo, D.; Mungai, A. (Eds.). In the spirit of ubuntu: Stories of teaching and research. Rotterdam: Sense Publications, 2009b. p. 3-21. (Transgres-sions: Cultural Studies and Education). (Nota(Nota da entrevistada)

    lismo, a frica do Sul vem se tornando cada vez mais materialista, de tal modo que o abismo que separa os que tm e os que no tm aumentou considera-velmente, mesmo que as configuraes raciais dessa hierarquia tenham mudado at certo ponto. Isso representa uma ameaa para o ubuntu. Poder-se-ia sus-tentar que somente por meio da fora do ubuntu e de um conjunto coletivo de valores e de responsabilidades que honrem a humanidade, a dignidade e os direitos igualitrios dos outros que o status quo poderia ser superado talvez uma nova luta pela libertao.

    IHU On-Line Qual a relao entre o ubuntu e a transcendncia, em sen-tido teolgico?Dalene Swanson Acho que se pode ver isso na forma como o arcebispo Desmond Tutu deu ao ubuntu uma in-terpretao especificamente teolgica quando presidiu a Comisso de Verdade e Reconciliao8. Empregado como um frum espiritual para a recuperao da verdade e para fomentar as condies para o arrependimento e o perdo, o ubuntu foi mesclado com o cristianis-mo (com o qual estaria estreitamente aliado em termos dos princpios cris-tos autossacrificadores do ama teu prximo como a ti mesmo) para levar a efeito um ethos para a reconciliao e a transcendncia.

    Isso no era incomum, pois, em boa parte do contexto africano, a filosofia espiritual africana est integrada ou compatibilizada com a tica crist. No fim das contas, entretanto, lealdades e alianas so uma questo de inter-pretao. O ubuntu continua sendo es-sencialmente uma filosofia viva que praticada nas vidas de pessoas comuns em uma mirade de contextos em todo o continente, mostrando humanita-riedade, solidariedade, compaixo e uma sabedoria espiritual coletiva que oferece dignidade, respeito e humani-dade em sua expresso.

    8 As Notcias do Dia, do stio do IHU, publi-caram uma conferncia de Desmond Tutu, no evento Global Ethic Lectures, organizado pela Fundao tica Mundial, em que o arcebispo faz uma anlise aprofundada e pessoal da rela-o entre o ubuntu, a tica e as religies mun-diais. O texto, intitulado Ubuntu: uma perspec-tiva africana sobre tica e dignidade humana, 30-04-2010, est disponvel em http://migre.me/1Z3W0. (Nota da IHU On-Line)

  • 1 SO LEOPOLDO, 06 DE DEZEMBRO DE 2010 | EDIO 353

    O ubuntu liberdade indivisvelPara me envolver com o Outro como sujeito, como indivduo livre como eu mesmo, como outro ser humano, eu tambm tenho de me tornar sujeito, reconhecendo nossa sujeio comum histria, contingncia e ao destino, explica o telogo norte-americano Charles Haws

    Por Moiss sbardelotto | traduo lus Marcos sander

    A partir da tica do ubuntu, a liberdade e a autonomia do indivduo andam de mos dadas com a res-ponsabilidade pelos outros. por isso que ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos, ou seja, seres fundamentalmente livres em relao uma liberdade indivisvel.

    Para o telogo norte-americano Charles Graham Haws, essa relao entre sujeitos livres ocorre a partir do momento em que eles reconhecem sua sujeio comum histria, contingncia e ao

    destino. No existe um eu singular que preexista a nossas relaes com os outros. Sempre existimos tanto no singular quanto no plural, sintetiza.

    Nesta entrevista, concedida por e-mail IHU On-Line, Haws tambm aborda as relaes entre o ubuntu e o cristianismo. Para ele, o ubuntu nos ajuda a compreender a noo de comunidade crist, lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca da justia, explica.

    Alm disso, o ubuntu nos ajuda tambm a compreender nossas relaes com outros sujeitos no hu-manos. Segundo Haws, para que o ubuntu no se associe ao mito da predominncia da humanidade sobre a natureza ou lanimot (como escreve Derrida), ele no pode se limitar a dizer que o humano s pode se sentir plenamente humano em relao com a humanidade apenas.

    Charles Graham Haws formado em filosofia e cincias religiosas pelo Carson-Newman College, no Ten-nessee, dos EUA. Tambm mestre em teologia pela McAfee School of Theology, da Mercer University, de Atlanta, nos EUA, com a dissertao Re/writing Tradition and the Tradition of Re/writing: The Crucified God as the Foundation and Criticism of Christian Theology. membro da American Academy of Religion e da Society of Biblical Literature. Dentre outros, autor do artigo Suffering, Hope, and Forgiveness: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu, publicado no Scottish Journal of Theology. Confira a entrevista.

    IHU On-Line Quais so as noes centrais para se compreender o ethos do ubuntu?Charles Haws Ubuntu significa princi-palmente a interconexidade dos seres humanos, que uma determinao da compreenso dos seres humanos como seres fundamentalmente livres livres, por exemplo, de qualquer limitao fora da pessoa individual. Como o traduz a proverbial expresso xhosa, ubuntu un-gamntu ngabanye abantu, a humani-dade de cada indivduo est idealmen-te expressa na relao com outros ou, se me permitido parafrasear Tutu, o ubuntu liberdade indivisvel. jus-tamente essa tenso que me intriga em

    relao ao ubuntu e que chama a minha ateno, algo que tambm Robert Orsi1 comunica no ltimo Harvard Divinity Bulletin. Para me envolver com o outro como sujeito, como um indivduo livre como eu mesmo, como outros seres hu-manos, eu tambm tenho de me tor-nar sujeito atravs do reconhecimen-to de nossa sujeio comum histria, contingncia e ao destino2. Eu tenho

    1 Robert Orsi: historiador norte-americano e professor de estudos catlicos da ctedra Gra-ce Craddock Nagle da Northwestern Universi-ty, dos EUA. Foi professor da Fordham Univer-sity, da Indiana University, da Harvard Divinity School e da Harvard University. Tambm presi-diu a American Academy of Religion entre 2002 e 2003. (Nota da IHU On-Line)2 ORSI, Robert A. Theorizing Closer to Home. ORSI, Robert A. Theorizing Closer to Home. Harvard Divinity Bulletin, v. 38, n. 1 e 2, p. 36,

    de reconhecer minha prpria liberdade indivisvel, de que eu sou quem eu sou em relao com outros. Envolvemo-nos com o mundo, continua Orsi, atravs das circunstncias dentro das quais nos encontramos junto com eles assim que eu compreendo o ubuntu.

    Tambm importante reconhecer que o ubuntu um termo sul-africa-no que representa um ethos africano polissmico humanista e religioso. Variaes do conceito proliferam nas lnguas banto, que se multiplicam na frica central, oriental e meridional. Elas geralmente expressam comunita-riedade, respeito, dignidade e genero-sidade.

    2010. (Nota do entrevistado)(Nota do entrevistado)

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    IHU On-Line Qual a contribuio da teologia do reverendo Tutu para a compreenso do ubuntu?Charles Haws Uma compreenso popular do ubuntu em evidncia hoje deriva do uso do conceito como nome de um sistema operacional de cdigo-fonte aberto desenvolvido pela Linux3 . O sistema movido por uma filoso-fia de software livre. De fato, como visa a difundir e a levar os benefcios do software para todas as partes do mundo, a filosofia ubuntu expressa pela Linux enfoca a liberdade, a li-berdade de baixar, rodar, copiar, dis-tribuir, estudar, compartilhar, mudar e melhorar seu software para qual-quer propsito, sem pagar taxas de li-cenciamento; de usar seu software na lngua de sua escolha; e de usar softwares mesmo que trabalhem sob uma deficincia4.

    A compreenso popular apresenta-da pelo software da Linux dificilmen-te constitui a concepo robusta que Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se concentra no na liberdade de indiv-duos, mas na interconexidade desses indivduos ou, como eu disse acima, na liberdade indivisvel. isso que me atrai tanto no conceito, no seu poten-cial: o fato de compreender a liberda-de em relao a certo tipo de unidade, um tipo de unidade cuja possibilidade no reside na mesmidade, mas na jus-tia. isso que Tutu diz em Hope and Suffering (p. 23): Para que haja uni-dade, ela deve se basear, em ltima anlise, no valor da justia.

    Agora, o ubuntu avana rumo justia, no vingana; ele se dirige rumo restaurao, no retaliao. A teologia de Tutu entrelaa o ubun-tu no tecido da histria crist, afir-mando que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. A declarao do ubuntu a declarao de uma esperana transformadora, uma esperana por reconciliao e sua concretizao em meio vida huma-na, que est fragmentada e repleta de

    3 Confira nas Notcias do Dia 04-08-2007 do site do Instituto Humanitas Unisinos IHU: No fcil derrotar a Microsoft. Uma con-versa com o criador do Ubuntu: http://migre.me/2K6AY (Nota da IHU On-Line)4 Google. Google. About Ubuntu: The Ubuntu Story. Disponvel em: http://www.ubuntu.com/products/whatisubuntu. Acesso em: 25 maio 2010. (Nota do entrevistado)

    injustia.

    IHU On-Line Para o senhor, a teo-logia do ubuntu de Tutu desafiado-ra para a compreenso dominante da teologia ocidental. Por qu?Charles Haws O ubuntu se distingue tanto do individualismo cartesiano quanto do coletivismo homogneo da submisso vontade geral de Rous-seau5. Em A democracia na Amrica, De Tocqueville6 compara o pai da filo-sofia moderna, Descartes7, com o pai do protestantismo, Lutero8, satirizan-do: Quem no percebe que Lutero, Descartes e Voltaire9 empregaram o mesmo mtodo?. Seu mtodo co-mum de dependncia de si mesmo,

    5 Jean-Jacques Rousseau (112-18): fil-sofo franco-suo, escritor, terico poltico e compositor musical autodidata. Uma das figu-ras marcantes do Iluminismo francs, Rousse-au tambm um precursor do romantismo. As ideias iluministas de Rousseau, Montesquieu e Diderot, que defendiam a igualdade de to-dos perante a lei, a tolerncia religiosa e a livre expresso do pensamento, influenciaram a Revoluo Francesa. Contra a sociedade de ordens e de privilgios do Antigo Regime, os iluministas sugeriam um governo monrquico ou republicano, constitucional e parlamentar. (Nota da IHU On-Line)6 Alexis Carlis Clerel de Tocqueville (1805-1859): pensador poltico e historiador francs, autor do clssico A democracia na Amrica (So Paulo: Martins Fontes, 1998-2000). (Nota da IHU On-Line)7 Ren Descartes (1596-1650): filsofo, fsico e matemtico francs. Notabilizou-se sobretu-do pelo seu trabalho revolucionrio da Filoso-fia, tendo tambm sido famoso por ser o in-ventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do clculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fun-dador da filosofia e matemtica modernas, ins-pirou os seus contemporneos e geraes de filsofos. Na opinio de alguns comentadores, ele iniciou a formao daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (suposta-mente em oposio escola que predomina-va nas ilhas britnicas, o empirismo), posio filosfica dos sculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line)8 Martinho Lutero (1483-1546): telogo ale-mo, considerado o pai espiritual da Reforma Protestante. Foi o autor da primeira traduo da Bblia para o alemo. Alm da qualidade da traduo, foi amplamente divulgada em decorrncia da sua difuso por meio da im-prensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. Sobre Lutero, confira a edio 280 da IHU On-Line, de 03-11-2008, intitulada Reformador da Teologia, da igreja e criador da lngua alem. O material est disponvel para download em http://bit.ly/duDz1j. (Nota da IHU On-Line)9 Voltaire (16-18): pseudnimo de Fran-ois-Marie Arouet, poeta, ensasta, dramatur-go, filsofo e historiador iluminista francs. Uma de suas obras mais conhecidas o Dicio-nrio Filosfico, escrito em 1764. (Nota da(Nota da IHU On-Line)

    expresso em uma desconsiderao geral pela comunidade e tradio, passou a ser uma parte central no s da ideologia americana, na qual De Tocqueville se concentrou, mas tambm da teologia ocidental. A esse individualismo do Ocidente, contra-pe-se a ideia da vontade geral de Rousseau: o indivduo se submete repblica aderindo ao contrato so-cial, e o contrato social representa a conformao ou homogeneizao dos interesses individuais em interesses coletivos. O indivduo transfere seus direitos comunidade para suprimir a anarquia e alcanar segurana da vida e da propriedade; seu propsito formar uma sociedade a que ele se submeteria completamente.

    De acordo com o ubuntu, nenhuma dessas opes combina satisfatoria-mente a liberdade e a autonomia do indivduo com sua responsabilidade pelos outros; nenhuma das opes o chama a assumir o fato de ser livre somente na medida em que est in-terconectado, e que sua liberdade inseparvel de sua busca por justia. De fato, a compreenso teolgica do ubuntu por parte de Tutu afirma que Deus criou a humanidade indissolu-velmente interconectada. Mas o in-dividualismo prolifera em muitas te-ologias ocidentais, tanto acadmicas quanto eclesiais: elas tendem a cen-tralizar o indivduo em termos de ex-perincia religiosa o indivduo tem uma revelao pessoal, muitas vezes inexplicvel ou em termos de auto-ridade religiosa o crente individual responsvel diante de Deus por sua aceitao ou rejeio do evangelho. O ubuntu enfoca no s a diviso de indivduos, mas tambm a diviso de grupos, a confrontao de grupo con-tra grupo.

    Tutu acreditava que esse era o caso da Igreja sul-africana branca na ques-to do apartheid, cuja cumplicidade se refletiu fortemente nas convices teolgicas da Igreja. Se a Igreja sul-africana branca no se considerava responsvel por intervir, por condenar a sistemtica segregao do apartheid, ento ela no tinha qualquer percep-o de sua conexidade com os negros.

    IHU On-Line A partir da tica do

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    mundo, como possvel compreen-der a importncia e o sentido da re-conciliao e da justia?Charles Haws Citando Derrida10, poderamos dizer que a afirmao da conexidade em meio ao apartheid por parte de Tutu que os africnderes11 no estavam livres dos povos xhosa ou zulu (ou vice-versa) era efetivamen-te desobedincia civil, no desafio da lei, mas desobedincia com relao a alguma disposio legislativa em nome de uma lei melhor ou superior12. A lei superior do ubuntu a justia em um sentido total e restaurador, no par-cial ou retributivo. A tica ubuntu pressupe a reconciliao na medida em que define justia em termos de socialidade, de relao com o Outro; para alcanar a justia, especialmente em contextos repletos de divises, necessrio restaurar as relaes entre o meu prprio eu e o meu prprio Outro. A justia definida dessa manei-ra equivale lei superior que o ubuntu quer continuamente nos trazer lem-brana.

    Assim, em uma era de terrorismo

    10 Jacques Derrida (130-200): filsofo francs, criador do mtodo chamado des-construo. Seu trabalho associado, com frequncia, ao ps-estruturalismo e ao ps-modernismo. Entre as principais influncias de Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produo, figu-ram os livros Gramatologia (So Paulo: Pers-pectiva, 1973), A farmcia de Plato (So Pau-lo: Iluminuras, 1994), O animal que logo sou (So Paulo: UNESP, 2002), Papel-mquina (So Paulo: Estao Liberdade, 2004) e Fora de lei (So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). De-dicamos a Derrida a editoria Memria da IHU On-Line edio 119, de 18-10-2004, dispon-vel para download em http://migre.me/s8bA. (Nota da IHU On-Line)11 Os beres, beres ou boeres (tambm denominados africnderes): descendentes de colonos calvinistas dos Pases Baixos e tambm da Alemanha e Frana, tendo-se estabelecido na frica do Sul nos sculos XVII e XVIII, cuja colonizao disputaram com os britnicos. De-senvolveram uma lngua prpria, o africnder, derivado do neerlands com influncias limi-tadas de lnguas indgenas, do malaio e do in-gls. Atualmente, o africnder uma das onze lnguas oficiais da frica do Sul. (Nota da(Nota da IHU On-Line)12 BIRNBAUM, Jean; DERRIDA, Jacques. BIRNBAUM, Jean; DERRIDA, Jacques. Learn-ing to Live Finally. New York: Allen & Unwin, 2007, p. 43. Quanto ideia de desafiar a leiQuanto ideia de desafiar a lei em nome da lei, veja o ensaio de Derrida no volume editado por ele e dedicado a Mande-la: DERRIDA, Jacques. The Laws of Reflection: Nelson Mandela, in Admiration. In: DERRIDA, Jacques; TILILI, Mustapha (eds.). For Nelson Mandela. New York: Seaver, 1987, p. 11-42. (Nota do entrevistado)

    globalizado, da explorao de so-ciedades abertas e da tentativa de afirmar (embora de maneiras calcu-ladas) as regras da lei democrtica e dos direitos humanos, o que o ubun-tu busca? Como professor visitan-te do programa Semester at Sea, durante a primavera de 2007, Tutu discutiu o clima de medo existente nos EUA depois do 11 de setembro uma terrvel atmosfera de insegu-rana. Mas Tutu tinha a esperana de que os norte-americanos veriam sua segurana vinculada com a se-gurana de todos os demais. Lembro de assistir aos acontecimentos do dia 11 de setembro na televiso da sala de aula, estupefato e atnito, junto com todos os meus colegas, praticamente sem entender o que estava acontecendo. Qualquer que tenha sido a justificativa para come-ar a Guerra no Iraque, a presena norte-americana no Oriente Mdio se concentra agora no terrorismo, em desmantelar suas razes para que seus ramos no alcancem as praias norte-americanas de novo.

    No fao parte da gerao de nor-te-americanos que seguiu Bush para o Iraque. Mas fao parte da gerao de norte-americanos que precisam lidar com suas consequncias, a herana do 11 de setembro e de um clima interna-cional de radicalizao e antecipao. Se o ubuntu realmente um conceito robusto, devo perguntar qual seu pa-pel nesse contexto. Como os interes-ses nacionais do meu pas se rela-cionam com o ubuntu? Com que Outro os EUA esto relacionados e por quem

    so responsveis? O que significaria se, olhando pela tica do ubuntu, os EUA no se sentissem ameaados pelo fato de outros serem capazes e bons e se situassem em um todo maior e fossem diminudos quando outros so humilhados ou diminudos, quando ou-tros so torturados ou oprimidos13?

    IHU On-Line Qual o valor e o signifi-cado do ser humano e da vida huma-na para o ubuntu?Charles Haws A autonomia luterano-cartesiana mencionada anteriormente impregna o sujeito humanista, pois, como o ser humano a medida de todas as coisas, ele o autor de to-dos os sentidos e tem o domnio sobre si mesmo e seu mundo. Heidegger14 questiona essa tradio no Ocidente: Pelo fato de estarmos falando contra o humanismo, as pessoas temem uma defesa do desumano e uma glorificao da brutalidade brbara. Pois, o que mais lgico do que isto: quem nega o humanismo, no lhe resta seno afir-mar a desumanidade? (...) Deveria es-tar mais claro agora que a oposio ao humanismo de forma alguma implica na defesa do desumano, mas, ao con-trrio, abre outras perspectivas.15

    13 TUTU, Desmond. TUTU, Desmond. No Future Without For-giveness. New York: Doubleday, 1999, p. 31.New York: Doubleday, 1999, p. 31. (Nota do entrevistado)14 Martin Heidegger (188-16): filsofo alemo. Sua obra mxima O ser e o tempo (1927). A problemtica heideggeriana am-pliada em Que Metafsica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introduo meta-fsica (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line publicou na edio 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento jurdico-poltico de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinao por noes fun-dadoras do nazismo, disponvel para download em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger, confira as edies 185, de 19-06-2006, intitu-lada O sculo de Heidegger, disponvel para download em http://migre.me/uNtv, e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-truo da metafsica, que pode ser acessado em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, o n 12 do Cadernos IHU Em Formao inti-tulado Martin Heidegger. A desconstruo da metafsica, que pode ser acessado em http://migre.me/uNtL. Confira, tambm, a entrevis-ta concedida por Ernildo Stein edio 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispon-vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O biologismo radical de Nietzsche no pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua con-ferncia A crtica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questo da biopoltica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferena - pr-evento do XI Simpsio Interna-cional IHU: O (des)governo biopoltico da vida humana. (Nota da(Nota da IHU On-Line)15 HEIDEGGER, Martin. Letter on Human- HEIDEGGER, Martin. Letter on Human-

    Para me envolver com

    o outro como sujeito,

    eu tambm tenho de me

    tornar sujeito atravs do

    reconhecimento de nossa

    sujeio comum

    histria, contingncia

    e ao destino

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    De fato, o apartheid seria a bru-talidade desumana e brbara a ser denunciada, e o ubuntu ofereceria um humanismo alternativo ao sa-bor do apartheid, de gosto amargo. O ubuntu criticaria o sujeito huma-nista como dominador e autnomo no caso do apartheid sul-africano, o africnder como superior definin-do o sujeito, pelo contrrio, como relacional... Junto com a obra de Lvinas16, Derrida, Nancy17 e outros, o que eu encontro no ubuntu um tipo de movimento duplo que no converte a relao anrquica e assi-mtrica com o Outro na viso sinti-ca da totalidade social, nem institui um novo princpio de justia basea-do no ideal comunitrio dos valores morais compartilhados18.

    Voltando a Heidegger, uma das percepes mais importantes e te-mticas centrais de Jean-Luc Nancy que os indivduos de forma alguma esto fundamentalmente separados um do outro, o que muitssimo se-melhante concepo de Heidegger a respeito de Mitsein [ser-com] em Ser e tempo (1929). Apesar da radical dissoluo da comunidade na era ps-moderna, Nancy amplia sua perspiccia filosfica para nos lembrar de nossa existncia singu-lar-plural que sempre-j existimos

    ism. In: MCNeill, William (ed.). Pathmarks. New York: Cambridge University Press, 1998, p. 263. (Nota do entrevistado)16 Emmanuel Lvinas (106-15): filsofo francs nascido numa famlia judaica na Litu-nia. Bastante influenciado pela fenomenologia de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim como pelas obras de Martin Heidegger e Franz Rosenzweig, o pensamento de Lvinas parte da ideia de que a tica, e no a Ontologia, a Filosofia primeira. no face a face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsvel e lhe vem ideia o infinito. A IHU On-Line dedicou sua edio 277, de 18-10-2008, a Lvinas e a majestade do Outro, disponvel em http://mi-gre.me/26iFE (Nota da IHU On-Line)17 Jean-Luc Nancy (10-): filsofo francs, considerado um dos pensadores mais influen-tes da Frana contempornea, professor em-rito de filosofia na Universidade Marc Bloch de Estrasburgo e colaborador das Universidades de Berkeley e Berlim. De sua obra, foram pu-blicados em portugus os livros O mito nazista (Iluminuras, 2002) e O ttulo da letra: Uma leitura de Lacan (Escuta, 1991). (Nota da(Nota da IHU On-Line)18 Z ZiareK, Ewa Plonowska. An Ethics of Dis-sensus: Postmodernity, Feminism, and the Politics of Radical Democracy. Stanford: Stan-Stanford: Stan-ford University Press, 2001, p. 77. (Nota do entrevistado)

    em relao uns com os outros. No existe um eu singular que preexis-ta a nossas relaes com os outros; sempre existimos tanto no singular quanto no plural; seres singulares existem apenas em uma socialida-de original. Essa a ideia do con-ceito de compearance que conside-ro muito semelhante ao ubuntu em sua acepo mais bsica que apa-rece em The Inoperative Community (1991) de Nancy, no ensaio em Poli-tical Theory intitulado La Comparu-tion/The Compearance (1992) e em Being Singular Plural. Ou, nas pala-vras de Derrida, j estamos envolvi-dos na relao com o Outro antes de qualquer socius organizado19. E, no entanto, embora existamos em uma socialidade original, no devemos conceber o comum [commun] como o como-um [comme-un]20, pois a prpria respirao de toda comunidade, explica Derrida, um certo desenredamento inter-ruptor (...) do vnculo social21.

    IHU On-Line Como o ubuntu pode nos ajudar a entender a noo de comunidade crist? Podemos dizer que Jesus tambm viveu o ethos do ubuntu?Charles Haws Como escreve o bi-

    19 Derrida, Jacques. The Politics of Friend-ship. Trad. Gabriel Motzkin. The Journal of Philosophy, v. 85, n. 11, p. 633, 1988. (Nota(Nota do entrevistado)20 Derrida, Jacques; Ferraris, Maurizio. A Taste for the Secret. Trad. Giacomo Donis.Trad. Giacomo Donis. Cambridge: Polity Press, 2001, p. 25. (Nota do entrevistado)21 D Derrida, Jacques. Faith and Knowledge: The Two Sources of Religion at the Limits of Reason Alone. In: Derrida, Jacques; Vat-tiMo, Gianni (eds.). Religion. Stanford: Stan-ford University Press, 1998, p. 64. (Nota do(Nota do entrevistado)

    grafo Anthony Sampson22, Mandela23 foi educado com a noo africana da fraternidade humana, ou ubun-tu, que descrevia uma qualidade de responsabilidade e compaixo mtu-as.24 Mandela contava histrias so-bre uma pessoa que viajava por um pas e parava em um vilarejo para pedir gua e comida. O que levava os habitantes da aldeia a dar aquilo de que o estrangeiro necessitava era o ubuntu, diz ele. Esse certamente parece ser o ethos cultivado pelas histrias de Jesus em que ele anda pelo mundo greco-romano somente com uma tnica e sandlias. Certa-mente concordo que certos aspectos das histrias que os cristos contam sobre Jesus ilustram o ubuntu, mas considero, em ltima anlise, que o ubuntu transcende, inclusive ultra-passa, as fronteiras do cristianismo.

    De fato, o ubuntu tanto humanis-ta quanto religioso (talvez sem afirmar uma dicotomia entre ambos os aspec-tos). Eu diria que ele cultiva uma re-ligio humanista ou um humanismo religioso que milita contra sua prpria colonizao. Considerando que as co-munidades tendem a neutralizar as diferenas, tratando todos os mem-bros da mesma forma (por exemplo, o outro pertence minha comunidade somente na medida em que igual a mim), e a definir a si mesmas segundo

    22 Anthony Sampson (126-200): escritor e jornalista britnico, formado na University of Oxford em 1950. Mudou-se para a frica do Sul, onde se tornou editor da revista antiapar-theid Drum. Na frica do Sul, conheceu vrios lderes do Congresso Nacional Africano, in-cluindo Steve Biko e Nelson Mandela, de quem se tornou amigo ntimo e que o escolheu para escrever sua biografia depois de 26 anos de priso: Mandela: The Authorised Biography, publicada em 1999. (Nota da IHU On-Line)23 Nelson Rolihlahla Mandela (118): advo-gado, lder rebelde e ex-presidente da frica do Sul de 1994 a 1999. Principal representante do movimento antiapartheid, como ativista, sabotador e guerrilheiro. Considerado pela maioria das pessoas um guerreiro em luta pela liberdade, era tido pelo governo sul-africano como um terrorista. Em 1990 foi-lhe atribu-do o Prmio Lnin da Paz, recebido em 2002. Confira, nas Notcias do Dia de 19-07-2010, as notcias ONU declara Dia Internacional de Mandela em aniversrio de ex-lder, dispon-vel em http://migre.me/26mWe, e A homena-gem do Soweto a Mandela, disponvel http://migre.me/26mQW. (Nota da(Nota da IHU On-Line)24 Veja S Veja SaMPson, Anthony. Country Boy: 1918-1934. In: Mandela: The Authorized Biography. New York: Alfred A. Knopf, 2008. (Nota do en-trevistado)

    O ubuntu combina

    satisfatoriamente a

    liberdade e a autonomia

    do indivduo com sua

    responsabilidade pelos

    outros

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    uma lgica de oposio (por exemplo, excluindo o outro que no como eu) que so fatores muito atuantes no cristianismo , o ubuntu nos devolve interconexidade dos seres humanos sem a presuno de semelhana.25

    Alm disso, eu identificaria, com Nancy, a essncia do cristianismo como abertura: uma abertura do eu e do eu como abertura26. Assim, eu diria que o ubuntu nos ajuda a com-preender a noo de comunidade crist lembrando-nos de um tipo de kenosis27 na busca da justia que no espera para perguntar a quem voc reza (ou no reza).

    IHU On-Line O senhor afirma que, luz do ubuntu, o perdo () deve se mostrar mais profundamente quan-do toda a esperana est perdida. Em sociedades com forte violncia e pobreza, como as africanas e as la-tino-americanas, qual a contribuio do ubuntu para a construo de uma sociedade mais justa?Charles Haws Escrevi em um artigo anterior que, para Tutu, Deus, em Jesus Cristo, reconcilia a humanidade com o divino, afirmando a particula-ridade humana na particularidade de Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que tambm conecta a humanidade

    25 Veja Morin, Maria-Eve. Putting Commu-nity Under Erasure: Derrida and Nancy on the Plurality of Singularities. Culture Machine, 8, 2006. (Nota do entrevistado)26 N NancY, Jean-Luc. Dis-enclosure: The De-construction of Christianity. Trad. BettinaBettina Bergo, Gabriel Malenfant e Michael B. Smith. In: CaPuto, John D. (ed.). Perspectives in Continental Philosophy. New York: Fordham University Press, 2008, p. 145. (Nota do en-(Nota do en-trevistado)27 Kenosis: palavra grega que significa es-vaziamento, aniquilamento. Tornou-se um conceito importante para a teologia crist, pelo uso que faz Paulo de Tarso, na Carta aos Filipenses, captulo 2, versculo 8. (Nota da(Nota da IHU On-Line).

    bondade universal de Deus.28 Essa ideia de reconciliao e de perdo essencial ao cristianismo. O perdo da humanidade por Deus em Cristo e a formao da comunidade sobre esse fundamento caracteriza o cristianismo por excelncia. Ter f na possibilidade da reconciliao e do perdo segue e d esperana quando toda a esperana est perdida. Tutu compreende que o perdo no decorrncia de mrito, que a reconciliao procede da con-vico ubuntu a percepo da inter-conexidade.

    O perdo, mesmo em sociedades marcadas por violncia e pobreza, efe-tiva-se, de acordo com o ubuntu, ao buscar a reconciliao, ao recusar per-petuar ciclos de sujeio retaliao ou de responsabilizao do tipo toma l, d c. O ubuntu nos coloca estas perguntas: cremos que pertencemos a um todo maior e somos diminudos quando outros so humilhados ou di-minudos, e, parafraseando Mandela, vamos perdoar, procurar a reconcilia-o viver de acordo com o ubuntu a fim de possibilitar que as comunidades ao nosso redor sejam capazes de me-lhorar?

    28 H Haws, Charles G. Suffering, Hope, and For-giveness: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu. Scottish Journal of Theology, v. 62, p. 483, 2009. (Nota do entrevistado)

    IHU On-Line A partir do ethos do ubuntu, qual a compreenso da nos-sa relao com a natureza e da pro-teo das vidas de seres no huma-nos?Charles Haws Se compreendemos corretamente que a humanidade de cada indivduo se expressa em ter-mos ideais na relao com outros ou que eu sou eu mesmo somente em relao com outros, temos de perguntar at que ponto este eu assim como esse outro est limitado ao gnero homo. De fato, as questes sobre o que constitui a humanidade e qual ser o legado do humanismo se renovam, pois a prpria ideia de uma humanidade compartilhada algo que o ubuntu defenderia sofre sob o peso da his-tria e capenga em crise. Para que o ubuntu no se associe ao mito da predominncia da humanidade sobre a natureza ou lanimot (como escre-ve Derrida), ele no pode se limitar a dizer que o humano s pode se sentir plenamente humano em relao com a humanidade apenas. Repetindo: o que o humano e de que forma ele se difere do animal?

    Na busca do ubuntu por cultivar co-munidade, responsabilidade e justia nos seres humanos, ele certamente se ope explorao, presumivelmente tambm explorao da natureza. Mesmo assim, a concepo cientfica ocidental da natureza, que provm do humanismo renascentista e glorifica a capacidade humana de explorar e con-trolar a natureza, vendo a natureza agora como uma distribuio probabi-lstica de energia com uma tendncia entropia, no facilita um senso de justia mais do que humano. Talvez os recentes desastres ambientais e suas devastaes faam essa questo voltar mesa de discusso.

    O ubuntu no pode

    se limitar a dizer que o

    humano s pode se sentir

    plenamente humano em

    relao com a

    humanidade apenas

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    Eu s existo porque ns existimos: a tica UbuntuPara o telogo congols e doutor em sociologia BasIlele Malomalo, toda existncia sagrada para os africanos, ou seja, h um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso, o Ubuntu retrata a cosmoviso do mundo negro-africano

    Por Moiss sbardelotto

    Sou porque ns somos: em uma frase, esse seria o resumo da tica ubuntu. Porm, na construo histrica e cultural dessa tica que nasce na frica, que se encontra a sua riqueza. Para o filsofo e telogo congols BasIlele Malomalo, toda existncia sagrada para os africanos, ou seja, h um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso, o ubun-tu retrata a cosmoviso do mundo negro-africano.

    por isso que o suposto antropocentrismo que poderia estar por trs do ubuntu relativista, segundo Malomalo, nesta entrevista concedida por e-mail IHU On-Line. O ser humano africano sabe que nem tudo depende da sua vontade, afirma. Esta depende tambm da vontade dos ancestrais, dos orixs, em suma, do sagrado.

    Por outro lado, ubuntu e felicidade so conceitos que andam juntos: Na frica, a felicidade concebida como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro. E quem o meu outro? So meus orixs, an-cestrais, minha famlia, minha aldeia, os elementos no humanos e no divinos, como a nossa roa, nossos rios, nossas florestas, nossas rochas. Dessa forma, resume Malomalo, para a filosofia africana, o ser huma-no tem uma grande responsabilidade para a manuteno do equilbrio csmico.

    BasIlele Malomalo natural do Congo, frica, e possui graduao em Filosofia pelo Grand Seminaire Fra-ois Xavier Filosoficum e em teologia pelo Instituto So Paulo de Estudos Superiores Itesp. mestre em cincias da religio pela Universidade Metodista de So Paulo e doutorando em sociologia pela Universida-de Estadual Paulista Araraquara. Atualmente pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Lnguas Africanas e da Dispora Negra da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Cladin-Unesp. Confira a entrevista.

    IHU On-Line O que e quais as ori-gens do ubuntu?BasIlele Malomalo Etimologicamen-te, ubuntu vem de duas lnguas do povo banto, zulu e xhona, que habi-tam o territrio da Repblica da frica do Sul, o pas do Mandela1. Do ponto de vista filosfico e antropolgico, o

    1 Nelson Rolihlahla Mandela (1918): advoga-do, lder rebelde e ex-presidente da frica do Sul de 1994 a 1999. Principal representante do movimento antiapartheid, como ativista, sabo-tador e guerrilheiro. Considerado pela maioria das pessoas um guerreiro em luta pela liber-dade, era tido pelo governo sul-africano como um terrorista. Em 1990 foi-lhe atribudo o Pr-mio Lnin da Paz, recebido em 2002. Confira, nas Notcias do Dia de 19-07-2010, as notcias ONU declara Dia Internacional de Mandela em aniversrio de ex-lder, disponvel em http://migre.me/26mWe, e A homenagem do Soweto a Mandela, disponvel http://migre.me/26mQW. (Nota da IHU On-Line)

    ubuntu retrata a cosmoviso do mun-do negro-africano. o elemento cen-tral da filosofia africana, que concebe o mundo como uma teia de relaes entre o divino (Oludumar/Nzambi/Deus, Ancestrais/Orixs), a comuni-dade (mundo dos seres humanos) e a natureza (composta de seres animados e inanimados). Esse pensamento vi-venciado por todos os povos da frica negra tradicional e traduzido em to-das as suas lnguas.

    A origem do ubuntu est na nossa constituio antropolgica. Pelo fato de a frica ser o bero da humanida-de e das civilizaes, bem cedo nossos ancestrais humanos desenvolveram a conscincia ecolgica, entendida como pertencimento aos trs mundos

    apontados: dos deuses e antepassados, dos humanos e da natureza.

    Com as migraes intercontinen-tais e a emergncia de outras civili-zaes em outros espaos geogrficos, essa mesma noo vai se expressar em outros povos que pertencem s socie-dades ditas pr-cap