Ucrania pos guerra fria

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UCRÂNIA: A complexa herança da guerra A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, um dos pólos da Guerra Fria, em 1991, bem como o aparecimento de novas ameaças globais, como o terrorismo internacional, ligado ao fundamentalismo islâmico, podiam fazer crer que entre a Europa e os Estados Unidos, por um lado, e a Rússia, herdeira da URSS, por outro, se estabelecesse um clima de cooperação a fim de responder aos grandes desafios da atualidade. Mas tal não acontece, porque os interesses geostratégicos e econômicos prevalecem sobre direitos fundamentais dos povos, como o direito a optar pelo regime em que pretendem viver ou à liberdade de expressão. Estes processos manifestam-se com toda a evidência no espaço geográfico que antes constituía a União das Repúblicas Soviéticas. O Kremlin de Moscovo inventou o eufemismo «estrangeiro próximo» para justificar que toda essa área é «zona de seus interesses vitais». A Igreja Ortodoxa Russa segue o exemplo do poder político e fala em «território canônico». Por isso, a chegada ao poder presidencial de Victor Iuschenko, dirigente da oposição ucraniana pró-ocidental, é apresentada pelos órgãos de informação de Moscovo como uma verdadeira catástrofe: «A aproximação da NATO das fronteiras da Rússia», «o cerco ao nosso país», ou seja, o Kremlin volta a ressuscitar um dos princípios clássicos da geopolítica: o «princípio da anaconda». A Europa e os Estados Unidos continuariam a comportar-se como esse réptil gigante que se vai enrolando à volta da sua vítima (a Rússia) até estrangulá-la. O Ocidente, pelo seu lado, receia que a vitória do candidato apoiado por Moscovo, Victor Ianukovitch, seja mais um passo para a reconstrução de uma «mini-União Soviética», onde poderão ser integradas a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Esta luta tem também aspectos geoeconômicos. A Ucrânia é atravessada por gasodutos e oleodutos estratégicos. A partir de Janeiro, a empresa russa Transneft passará a controlar, nos próximos 15 anos, essas artérias de fornecimento de gás e petróleo à Europa e outras regiões do mundo. As petrolíferas ocidentais preferem não ficar reféns dos russos nesse campo e tentam participar nesse rentável negócio, que será ainda mais lucrativo quando aumentar o caudal de petróleo e gás do mar Cáspio, através da região do mar Negro, para o Mediterrâneo. Mas há ainda outro fator que influi fortemente na atual grave crise política do país: a luta entre os clãs oligárquicos que se digladiam pelas riquezas nacionais. Tanto Iuschenko como Ianukovitch são apoiados por fortes grupos econômicos, cujos capitais foram conseguidos de forma pouco transparente. Por tudo isto, é demasiado simplista reduzir a contenda entre Iuschenko e Ianukovitch a uma luta entre a democracia e a ditadura. As multidões nas ruas de Kiev acreditam que assim é, mas os russos, em Agosto de 1991, quando derrubaram o comunismo, tinham as

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UCRÂNIA: A complexa herança da guerra fria

A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, um dos pólos da Guerra Fria, em 1991, bem como o aparecimento de novas ameaças globais, como o terrorismo internacional, ligado ao fundamentalismo islâmico, podiam fazer crer que entre a Europa e os Estados Unidos, por um lado, e a Rússia, herdeira da URSS, por outro, se estabelecesse um clima de cooperação a fim de responder aos grandes desafios da atualidade. Mas tal não acontece, porque os interesses geostratégicos e econômicos prevalecem sobre direitos fundamentais dos povos, como o direito a optar pelo regime em que pretendem viver ou à liberdade de expressão.Estes processos manifestam-se com toda a evidência no espaço geográfico que antes constituía a União das Repúblicas Soviéticas. O Kremlin de Moscovo inventou o eufemismo «estrangeiro próximo» para justificar que toda essa área é «zona de seus interesses vitais». A Igreja Ortodoxa Russa segue o exemplo do poder político e fala em «território canônico». Por isso, a chegada ao poder presidencial de Victor Iuschenko, dirigente da oposição ucraniana pró-ocidental, é apresentada pelos órgãos de informação de Moscovo como uma verdadeira catástrofe: «A aproximação da NATO das fronteiras da Rússia», «o cerco ao nosso país», ou seja, o Kremlin volta a ressuscitar um dos princípios clássicos da geopolítica: o «princípio da anaconda». A Europa e os Estados Unidos continuariam a comportar-se como esse réptil gigante que se vai enrolando à volta da sua vítima (a Rússia) até estrangulá-la.O Ocidente, pelo seu lado, receia que a vitória do candidato apoiado por Moscovo, Victor Ianukovitch, seja mais um passo para a reconstrução de uma «mini-União Soviética», onde poderão ser integradas a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Esta luta tem também aspectos geoeconômicos. A Ucrânia é atravessada por gasodutos e oleodutos estratégicos. A partir de Janeiro, a empresa russa Transneft passará a controlar, nos próximos 15 anos, essas artérias de fornecimento de gás e petróleo à Europa e outras regiões do mundo. As petrolíferas ocidentais preferem não ficar reféns dos russos nesse campo e tentam participar nesse rentável negócio, que será ainda mais lucrativo quando aumentar o caudal de petróleo e gás do mar Cáspio, através da região do mar Negro, para o Mediterrâneo.Mas há ainda outro fator que influi fortemente na atual grave crise política do país: a luta entre os clãs oligárquicos que se digladiam pelas riquezas nacionais. Tanto Iuschenko como Ianukovitch são apoiados por fortes grupos econômicos, cujos capitais foram conseguidos de forma pouco transparente. Por tudo isto, é demasiado simplista reduzir a contenda entre Iuschenko e Ianukovitch a uma luta entre a democracia e a ditadura. As multidões nas ruas de Kiev acreditam que assim é, mas os russos, em Agosto de 1991, quando derrubaram o comunismo, tinham as mesmas ilusões e acabaram por receber um regime corrupto, oligárquico.

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