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1 UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA FREDERICO PACHECO LEMOS PARA UMA CONTRA-ANTROPOLOGIA DA RACIONALIDADE ECONÔMICA Repensando o “espírito” do capitalismo a partir das palavras do xamã Davi Kopenawa em A Queda do Céu Niterói 2017

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UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

FREDERICO PACHECO LEMOS

PARA UMA CONTRA-ANTROPOLOGIA DA RACIONALIDADE ECONÔMICA

Repensando o “espírito” do capitalismo a partir das palavras do xamã Davi

Kopenawa em A Queda do Céu

Niterói

2017

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FREDERICO PACHECO LEMOS

PARA UMA CONTRA-ANTROPOLOGIA DA RACIONALIDADE ECONÔMICA

Repensando o “espírito” do capitalismo a partir das palavras do xamã Davi Kopenawa

em A Queda do Céu

Monografia apresentada à Universidade

Federal Fluminense como requisito

parcial para obtenção do título de

licenciado em Ciências Sociais.

Orientadora: Profª. Drª. Oiara Bonilla

BANCA AVALIADORA:

___________________________________

Profª. Drª. Oiara Bonilla – UFF (GAP)

___________________________________

Prof. Dr. Antonio Rafael Barbosa – UFF (GAP)

___________________________________

Prof. Dr. Cesar Kiraly – UFF (GCP)

Niterói

2017

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

L557 Lemos, Frederico Pacheco.

Para uma contra-antropologia da racionalidade econômica:

Repensando o "espírito" do capitalismo a partir das palavras do xamã

Davi Kopenawa em A Queda do Céu / Frederico Pacheco Lemos. –

2017.

70 f. Orientadora: Oiara Bonilla.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências

Sociais) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências

Humanas e Filosofia, Departamento de Ciências Sociais, 2017.

Bibliografia: f. 67-70.

1. Antropologia. 2. Ontologia. 3. Capitalismo. 4. Utilitarismo.

5. Economia política. 6. Antropologia econômica. 7. Etnologia-

Amazônia. 8. Xamanismo. 9. Kopenawa, Davi, 1956. A queda do

céu. I. Bonilla, Oiara. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto

de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos que colaboraram na realização deste trabalho e que me

inspiraram, direta ou indiretamente, durante a graduação em Ciências Sociais. Com a certeza

de que sem vocês, fora dessa rede, essa monografia seria impossível, impensável.

Agradeço a minha família pelo apoio incondicional durante toda minha formação,

especialmente nos momentos mais tensos e delicados. Especialmente a minha mãe, Monika,

sempre amorosa, carinhosa e acolhedora, e ao meu filho Theo, que me ensina a reinventar a

vida, devolvendo a ela seu encanto, através da brincadeira, da inocência.

Agradeço aos amigos queridos do Grupo de Estudos em Ciências Humanas e

Ontologias pelas longas rodas de leitura, pelo aprendizado mútuo e horizontal, pelas horas de

puro dispêndio psico-lúdico, pelas conversas sem fim: Gustavo Fialho, Yan de Oliveira,

Eduardo Freitas, Diogo Campos, Gabriel Moreno, Rafael Limeira, Marlon Cardozo e Júlio

Albuquerque. Foi com vocês que acumulei a maior parte da bagagem teórica e tive os poucos

insights que orientaram a escrita desse ensaio. Em tempos de uma assombrosa soberania

estética da mediocridade, estar aliado a gente tão espirituosa e afável como vocês faz toda a

diferença.

Agradeço aos professores com quem tive o prazer de aprender a ter prazer estudando.

Especialmente a Oiara Bonilla, pela orientação atenciosa ao longo do ano passado tanto

enquanto seu monitor quanto na escrita deste trabalho; a Cesar Kiraly pelos cursos excitantes

sobre os Mil platôs e pela orientação durante a iniciação científica; a Antonio Rafael, por

aceitar gentilmente ler e comentar este texto, tendo acompanhado as ideias aqui apresentadas

desde sua gestação; a Mauricio Vieira, pelo brilhantismo de suas aulas sobre a filosofia de

Marx e pela ajuda com a bibliografia do primeiro capítulo e a Marcos Alvito, pela alegria

contagiante com que ensina e aprende, num gesto sempre “anarco-pandeirista”, dentro e fora

da sala de aula.

Agradeço, ainda, especialmente, a todos os funcionários da UFF, da segurança do

campus, da limpeza, responsáveis pela manutenção dos prédios e da biblioteca, secretários e

secretárias, que foram imprescindíveis para minha permanência na universidade e para a

escrita deste trabalho.

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Os brancos acham bonita a natureza que vêem, sem saber por quê. Nós, ao

contrário, sabemos que a verdadeira natureza é tanto a floresta como as

multidões de xapiri seus habitantes. (...) Se os brancos devastarem a floresta

e destruírem seus morros e suas serras, os xapiri perderão suas casas. Aí,

furiosos, irão fugir para longe de nossa terra e os humanos ficarão à mercê

de todos os males. Os brancos não poderão fazer nada, mesmo com seus

médicos e suas máquinas. Os espíritos temem os lugares muito quentes (...).

Temem também as cidades, empesteadas pela fumaça dos carros, aviões e

helicópteros. Gostam de andar pela floresta, onde se divertem e cujo

perfume fresco e úmido apreciam. Amam sua beleza e sua fertilidade. Nela

vivem e se alimentam, por isso, como os humanos, querem defendê-la. Mas

os brancos não os conhecem. Derrubam e queimam todas as árvores da mata

para alimentar seu gado. Estragam o leito dos rios e escavam os morros para

procurar ouro. Explodem as grandes pedras que ficam no caminho de suas

estradas. No entanto, colinas e serras não estão apenas colocadas no solo,

como eu disse. São moradas de espíritos criadas por Omama! Mas essas são

palavras que os brancos não compreendem. Pensam que a floresta está

morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então dizem

para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear as casas, os

caminhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem! Não querem ouvir

nossas palavras nem as dos espíritos. Preferem permanecer surdos.

Davi Kopenawa

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RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar a crítica dos hábitos de pensamento da civilização

capitalista realizada por Davi Kopenawa em A Queda do Céu à luz de certas críticas das

ciências sociais à racionalidade econômica. Em função disso, no primeiro capítulo, reconstruo

as imagens e conceitos do “espírito” do capitalismo através de uma releitura dos clássicos da

economia política e da filosofia moral utilitarista. No segundo capítulo, acompanho algumas

linhas de pensamento nas ciências sociais que se dedicaram a criticar os pressupostos da

economia política clássica, especialmente o princípio da utilidade clássica e a vulgata do

homo economicus. No terceiro capítulo, interpreto fragmentos do discurso de Davi Kopenawa

de modo a desdobrar as implicações ontológicas de sua “crítica xamânica da economia

política da natureza”, bem como indicar sua dimensão econômico-moral.

Palavras-chave: Contra-antropologia. Ontologias. “Espírito” do capitalismo. Utilitarismo.

Economia política. Antropologia econômica. Etnologia Amazônica. Xamanismo. Davi

Kopenawa. A Queda do Céu.

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ABSTRACT

This study is an attempt to analyse the critique of the habits of thought of capitalist

civilization realized by the yanomami shaman Davi Kopenawa in “The Fall of the Sky”,

enlightened by some classic critiques of the economic racionality made by the social sciences.

For this, on the first chapter, the images and concepts of the “spirit” of capitalism are rebuild

throughout a rereading of the classic political economy and the utilitarianist moral philosophy.

On the second chapter, some lines of social thought specially dedicated to critique the

presuppositions of classic political economy are followed. On the third chapter, some

fragments of Davi Kopenawa’s discourse are interpreted in order to open its ontological

implications as well as to indicate its economical and moral dimensions.

Keywords: Counter-anthropology. Ontologies. “Spirit” of capitalism. Utilitarianism. Political

economy. Economic anthropology. Amazonian etnology. Shamanism. Davi Kopenawa. The

Fall of The Sky.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 9

Capítulo 1 – O cogito da mercadoria: releitura do pensamento burguês ......................... 11

1.1 – O “espírito” do capitalismo..............................................................................11

1.2 – Ontologia moderna 13

1.3 – Origem do capitalismo e ascensão do homo economicus 18

1.4 – Moral e economia em Adam Smith 23

1.5 – O princípio da utilidade clássica 27

Capítulo 2 – A insuficiência da racionalidade econômica: um sobrevôo 29

2.1 – Crítica da economia política .29

2.2 – Reciprocidade, generosidade e dispêndio improdutivo 32

2.3 – Sociedades selvagens: contra o Estado e contra a Economia 39

2.4 – Jamais fomos utilitaristas................................................................................................. 40

Capítulo 3 – O “espírito” do capitalismo segundo o xamã yanomami Davi Kopenawa 42

3.1 – Uma contra-antropologia contra-ontológica 42

3.2 – Davi Kopenawa, os Yanomami e o contato com o povo da mercadoria: a fumaça do

metal e o ouro canibal 51

3.3 – A análise xamânica da paixão pela mercadoria ............................................................... 57

Considerações finais 63

Referências bibliográficas 66

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INTRODUÇÃO

...fazer antropologia é comparar antropologias...

Eduardo Viveiros de Castro

Foi durante os encontros semanais de nosso Grupo de Estudos em Ciências Humanas e

Ontologias do ICHF, em 2015, enquanto estudávamos textos clássicos como Os Argonautas

do Pacífico Ocidental de Malinowski e o Ensaio Sobre a Dádiva de Marcel Mauss, que

percebi a constante reaparição da recusa explícita desses grandes autores a uma ideia tão

difundida entre as abordagens do social ao ponto de tornar-se naturalizada: a do “homem

econômico” (homo economicus). Talvez a antropologia tenha sido em larga medida a

realização de um esforço especulativo pelo qual os contornos do “humano” são

sempiternamente relativizados, redesenhados, redefinidos e expandidos, contra essa figura de

fundo utilitarista caricata. E esse desenho específico do homem econômico seja um tipo

particularmente reducionista e caricatural impregnada no senso comum, especialmente dos

cidadãos de bem. Foi mais ou menos o que pensei à época.

Tal percepção nutriu minha curiosidade, e me levou a pesquisar posteriormente as

fontes originais desta concepção mais ou menos vaga da natureza humana em seu contexto, o

do pensamento social inglês do século XVIII. Embora todos os grandes antropólogos em

algum momento pareçam ter escrito uma crítica a noção de um tal homem utilitário, racional

stricto sensu, interesseiro etc., poucas vezes se ocupavam de fazer a referência a alguma obra

específica dos filósofos morais e economistas. Assim, havia um conjunto de textos a serem

trabalhados para que ao final da análise pudesse sobrevir uma inteligibilidade mais ampla

desta forma sintética com que este conjunto de ideias foi comumente chamado – o “homem

econômico” ou “homem calculador”, o homo economicus.

Paralelamente, tive a notícia em meados de 2015 da publicação em português de A

Queda do Céu e comecei a devorá-lo pelas beiradas. No prefácio, já recebi o recado de que se

tratava de uma “crítica xamânica da economia política da natureza”... Foi neste percurso que

surgiu a ideia-guia dessa monografia que apresento ao leitor.

“Os brancos não sabem sonhar, é por isso que destroem a floresta desse jeito”, disse

Davi Kopenawa (2015: 531) após assistir, em 1989, uma reportagem da TV Globo sobre o

avanço dos garimpeiros pelas terras yanomami. Estava em curso a “corrida do ouro” na

região. Foi este comentário algo enigmático que fundou o pacto político e literário entre Davi

Kopenawa e Bruce Albert. Davi Kopenawa pediu que Bruce passasse suas palavras para o

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papel, para que fossem divulgadas entre os brancos. Daí em diante, Bruce passou a se reunir

sistematicamente com Davi Kopenawa, gravando as conversas feitas sempre na língua

yanomami, que versavam sobre a cosmologia tradicional yanomami, o xamanismo, as

epidemias alastradas no contato com os brancos, e sua profecia apocalíptica a respeito da

queda do céu. Em 1993, Albert publica na revista francesa L’Homme um primeiro artigo

(19951) dedicado a comentar as 43 horas de gravação que tinha até então com Davi Kopenawa

(mais de quinhentas páginas de transcrição). Depois, ainda se passariam mais 15 anos de

trabalho em colaboração, com mais horas de gravação, transcrições e edições do manuscrito

até se chegar a versão final do livro A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami,

publicado em francês em 2008. Muita coisa muda, precisa mudar, depois de A Queda do Céu.

Sua publicação é um grande acontecimento científico e político de nosso tempo.

A proposta deste trabalho consiste em promover um debate entre o pensamento

utilitarista, cujas raízes deitam no século XVIII, e a crítica de Davi Kopenawa à estreiteza da

racionalidade econômica, elaborada em A Queda do Céu, mobilizando em função disso uma

certa tradição da história da antropologia. Parto da observação de que a evolução da crítica

antropológica à fantasmagoria do homo economicus nos ajuda a avaliar melhor a

profundidade e fecundidade teórica das palavras do xamã yanomami sobre o “povo da

mercadoria”. E vice-versa: as palavras xamânicas ressignificam e ampliam o sentido de

diversas teorias sociais críticas dos pressupostos do pensamento burguês. Assim, abordei os

sistemas de pensamento aqui comparados como compostos por linhas, de modo a destacar os

relevos que se formam no cruzamento de umas com as outras bem como evidenciar suas

disjunções.

No primeiro capítulo, reconstruo as imagens e conceitos do “espírito” do capitalismo

através de uma releitura dos clássicos da economia política e da filosofia moral utilitarista. No

segundo capítulo, acompanho algumas linhas de pensamento nas ciências sociais que se

dedicaram a criticar os pressupostos da economia política clássica, especialmente o princípio

da utilidade clássica. Por fim, no terceiro capítulo passo a palavra para o xamã Davi

Kopenawa e me dedico a interpretar fragmentos de seu discurso (ao mesmo tempo uma

autobiografia e um manifesto cosmopolítico) de modo a desdobrar as implicações ontológicas

de sua “crítica xamânica da economia política da natureza” (Albert 1995), bem como indicar

sua dimensão econômico-moral.

1 A publicação em português desse artigo de Albert se deu em 1995 e consta na bibliografia deste trabalho.

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CAPÍTULO 1 – O COGITO DA MERCADORIA: RELEITURA DO PENSAMENTO

BURGUÊS

1.1 – O “espírito” do capitalismo

Ao longo de todo o volume de A Queda do Céu (2015), Davi Kopenawa elabora

críticas incisivas ao modo de pensar dos Brancos (napë2). Esses, que são “o povo da

mercadoria”, possuem um pensamento particularmente “obscuro”, “curto”, “enfumaçado”,

“emaranhado de tonturas”, “cheio de esquecimento”, “vazio”, “fechado”, “cansado”, “cego”,

“surdo”3e outras tantas notáveis qualidades, segundo a visão do xamã-diplomata yanomami.

Sabemos que o povo da mercadoria é inseparável de uma determinada “atitude mental”4, de

um cogito5 propriamente mercadológico. E que as elaborações mais sofisticadas e

sistemáticas deste modo de pensar constituem as chamadas ciências modernas.

As ciências modernas mostram-se condição e, simultaneamente, efeito, do início do

capitalismo. Na medida em que o modo capitalista de produção da vida social se desenvolveu,

segundo sua lógica sempre expansiva e acumulativa, as ciências modernas ampliaram o

escopo de sua relevância e de seu domínio. A produção de mercadorias em larga escala e a

necessidade de conformação de um mercado internacional (cada vez mais capilarizado), por

exemplo, só se realizaram apoiados nas descobertas científicas inovadoras da modernidade,

que proporcionaram um grau de “domínio” da natureza nunca antes conhecido. Os brancos

são realmente “engenhosos”, como diz Kopenawa - “mas carecem muito de sabedoria”

2Napë referia-se originalmente a condição mutável e relacional de “inimigo”, “estrangeiro”, e passou a designar

de maneira mais corriqueira simplesmente os Brancos. Ver nota de rodapé na p.12 do prefácio de Eduardo

Viveiros de Castro.

3Cf. Kopenawa & Albert 2015: 75, 77, 112, 386, 390, 407.

4Tradicionalmente os antropólogos se referiram às formas de pensamento ditas “primitivas” sob essa designação,

“atitudes mentais”, provavelmente querendo expressar com isso o fato de que o pensamento nessas sociedades é

indissociável da imanência das práticas sociais. A opção aqui feita por tratar o pensamento ocidental sob esse

mesmo nome endossa a proposta de uma antropologia reversa e simétrica que ensaio nesta monografia.

5A expressão “cogito da mercadoria” aparece uma única vez numa entrevista de Gilles Deleuze (2013: 174), que

a emprega aparentemente de improviso e sem maiores precisões conceituais. Emprego-a livremente neste

trabalho para designar as mais relevantes teorias do pensamento burguês, o núcleo da racionalidade capitalista,

bem como a filosofia de vida (ou o ethos) tipicamente capitalista que se depreende delas. Afinal, como sustenta o

próprio Deleuze, faz parte do exercício criativo do pensamento o roubo de termos de outrem (Deleuze & Parnet:

1998)...

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(2015: 65)...

Além desse vínculo umbilical entre as fundações do capitalismo e seus fundamentos

teórico-científicos, existem também as inovações morais ligadas ao surgimento do capitalismo

– estas, também, causa e efeito da consolidação deste último enquanto sistema dominante.

Refiro-me tanto ao processo da Reforma protestante, conhecido por cultivar aquele vínculo

entre disposição para o trabalho e ascese (característica do ethos capitalista), conformando o

que Weber chamou de “o espírito do capitalismo”; quanto a seus ecos no campo da filosofia

moral, especialmente britânica.

Max Weber (2004: 41-71) analisa justamente o processo histórico pelo qual se

consolidou esta “filosofia da avareza”, subvertendo toda uma tradição medieval que não

cessava de condenar a auri sacra fames6. Partindo da ideia de que a compreensão das forças

motrizes da expansão do capitalismo moderno envolve antes de mais nada a questão do

“desenvolvimento do espírito capitalista” (ibid.: 61), Weber nos indica as linhas gerais deste

ethos particular que via (e ainda vê), na dedicação ao trabalho como um fim em si mesmo, um

meio para a salvação espiritual.

Porém, enquanto a análise weberiana se concentra na reflexão sobre as (novas)

práticas e ações sociais envolvidas nesse processo histórico que marca o protestantismo

especialmente calvinista; aqui, nosso objetivo é sobretudo interpretar os clássicos da

economia política e da escola utilitarista como representantes, no plano filosófico, dessas

ideias inauguradas pela imanência das práticas sociais capitalistas – e ainda mais: como

grandes pilares de sustentação do edifício da estrutura de pensamento dos brancos, o cogito da

mercadoria, o modo de pensar característico ao povo da mercadoria.

Em função desse vínculo estreito entre o modo de vida capitalista e sua forma de

pensamento – largamente combatidos por Kopenawa em função de suas irrefreadas

consequências mortíferas e destrutivas aos humanos visíveis e invisíveis – começamos este

estudo por uma reconstrução das imagens e conceitos próprios ao “espírito” do capitalismo

moderno: sua ontologia, sua filosofia moral e sua teoria econômica. Assim talvez

conseguiremos traçar um bom contorno da atitude mental característica ao povo da

mercadoria, indicando algumas determinações (psico)lógicas de seu ponto de vista.

6 Expressão usada por Weber, consagrada por um verso de Virgílio na Eneida, a “sagrada fome de ouro” fala da

incontida avidez por riqueza.

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1.2 – Ontologia moderna

Na base da ontologia moderna está a divisão fundamental entre humanos e não-

humanos, entre pessoas e coisas, entre o domínio da “cultura” e o domínio da “natureza”. Ou

ainda, entre o pólo do sujeito (o Homem) e o pólo do objeto (a Natureza). Poderes políticos

são postos de um lado, e os poderes naturais do outro. Aqui, os “homens-entre-eles”; lá, a

“coisa-em-si”. Daí que as ciências modernas tenham sido sempre diferenciadas entre aquelas

que tratam dos fenômenos naturais, regidos por leis físicas etc., e as outras que tratam dos

fenômenos especificamente humanos, regidos pelas artes da política, pelo arbítrio cultural.

Em toda a história do pensamento científico, especialmente nas humanidades,

encontramos incontáveis exemplos de autores que problematizaram esta separação. Porém

nunca – ou raríssimas vezes – a problematização deste dualismo chegou ao ponto de se deixar

de acreditar completamente nele. Enquanto permanecemos modernos, adeptos a esta visão

global da realidade, aderimos à crença de que esta dupla separação é um dado indiscutível da

realidade, de que se trata mesmo de uma distinção ontológica. Quero dizer que, ainda que as

discussões feitas no Ocidente sobre a relação entre natureza e cultura tomem diferentes

caminhos argumentativos (conforme se seja mais ou menos subjetivista ou objetivista,

fenomenólogo, estruturalista ou marxista, e assim por diante), todas partem da crença de que a

separação ontológica entre um domínio natural e um domínio cultural/social é um fato

inquestionável. Por mais que se discuta infinitamente quais as mediações pelas quais um pólo

se relaciona com o outro, que formas isso recebe, o jogo recíproco de determinações entre os

dois etc., parece óbvio e diretamente acessível a todos providos de razão e bom-senso que um

humano é um humano e uma coisa é uma coisa. Afinal, coisas não falam.

Poderíamos rebuscar na Antiguidade, no Gênesis judaico-cristão e no platonismo, o

início desta concepção dualista da realidade. Que distingue, por princípio, o corpo (natural,

sensível, imperfeito, mortal, pecaminoso) e a alma (divina, inteligível, perfeita, verdadeira,

eterna). Sem nos esquecermos de que nessa antiga distinção está subscrita também uma

desigualdade, uma assimetria evidente entre os dois planos: uma prioridade ontológica do

plano transcendental da alma com relação ao plano imanente da natureza.

O elo do ser humano com a natureza foi quebrado, para essa tradição européia e

médio-oriental da qual descendemos, no mito da expulsão do paraíso. Essa fissura atinge o

estatuto filosófico com Platão, com a teoria do mundo inteligível e do mundo sensível. E é

reforçada uma vez mais pela tradição cristã, com sua representação do mundo do corpo como

um “vale de lágrimas” e seu ideal espiritual ascético, atravessando e se multiplicando por toda

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a Idade Média.

Mas uma tal investigação genealógica acerca do dualismo subjacente a ontologia

ocidental dominante não nos interessa exaustivamente aqui, pois exigiria uma pesquisa de

longa duração à parte. Precisei apenas traçar essas indicações retrospectivas para não tomar o

que estou chamando de ontologia moderna como um modo de pensar que passou a existir

abruptamente na assim chamada Idade Moderna. A ontologia moderna atribui apenas, de

maneira especialmente vigorosa e exitosa, um novo sentido a essa antiga dualidade natureza-

homem, matéria-espírito.

Certamente, com o Renascimento e todo o frenesi que marca o cenário artístico,

intelectual e comercial que a Europa viveu desde o século XVI, percebemos reelaborações

extremamente significativas dessa forma dual de pensar a realidade. É quando Descartes

postula a existência da substância pensante (res cogitans) distinta da substância extensa (res

extensa), com um lugar reservado ainda à substância divina (res divina). É significativo que a

res divina não ocupe mais o lugar central de sua ontologia, como durante toda a tradição do

pensamento cristão. Para Descartes, Deus só é passível de ter sua existência comprovada pela

via da res cogitans. Deus constitui o fundamento da evidência subjetiva e da própria

objetividade (Descartes, [1641] 1973). É o nível do sujeito pensante, portanto, que atinge sua

valorização máxima e delineia os caminhos para se dominar e controlar o nível sensível do

corpo extenso bem como para se assegurar que Deus (ainda) existe. É o cogito que nos

assegura um conhecimento verdadeiro da realidade, através de um método que lhe seja

próprio – o método científico.

É só nesse contexto histórico que se desenvolvem, com grande impacto, as ciências

modernas. Primeiro, aquelas voltadas para o estudo da natureza – das leis mecânicas que

governam o movimento dos astros no universo, as propriedades da matéria, o magnetismo

terrestre, a anatomia humana, a termodinâmica dos gases etc. –; e, posteriormente, já pelo

século XIX, as ciências humanas, bastardas, que tomaram de suas ascendentes o modelo de

análise (tratar os fenômenos como coisas, eis o consenso do objetivismo epistemológico7),

porém deslocando-o a outro campo de fenômenos: as crenças, as instituições sociais, as

formas de solidariedade e de integração, os conflitos sociais etc.

Na modernidade, predominou então, com maior vigor e sob novas roupagens, a crença

de que a suposta passagem da natureza à cultura humana configurariam um verdadeiro salto

7 “Tratar os fatos sociais como coisas” foi o mantra durkheimiano que garantiu, como sabemos, o estatuto de

cientificidade da sociologia em seu berço francês.

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ontológico. Um movimento que, uma vez realizado, não poderia retornar ao estado anterior e

que na verdade colocaria o ser humano no caminho teleológico pelo qual chegaria a realizar

seu fim último: a liberdade, a paz universal, o domínio completo da natureza, o fim da

exploração do homem pelo homem8. O tão discutido tema da passagem do “estado de

natureza” do homem ao seu “estado social” entre os pensadores modernos indica

precisamente essa guinada antropocêntrica. A dominação da natureza pelo homem já estava

prevista desde o Gênesis, mas faltava a expansão da ciência e da tecnologia modernas para

sofisticar os meios pelos quais os homens poderiam exercer tal domínio.

*****

Bruno Latour (2013) em seu já clássico ensaio de antropologia simétrica Jamais

Fomos Modernos chama essa dicotomia ontológica fundamental ao pensamento no Ocidente

de “A Grande Divisão”. Vamos nos ater um pouco à sua argumentação.

Latour nos indica em primeiro lugar que essa Grande Divisão entre o domínio dos

humanos e o dos não-humanos ganhou um reforço fundamental na modernidade através da

ratificação científica de que existe, de fato, a natureza enquanto tal, desprovida de qualquer

atributo humano:

Em algum lugar, em nossas sociedades, e somente nelas, uma transcendência

inusitada manifestou-se: a natureza como ela realmente é, a-humana, por

vezes inumana, sempre extra-humana. (Latour 2013: 98)

Após esse acontecimento, passou a haver uma total assimetria entre as culturas

humanas que se relacionam com a natureza a partir de um conhecimento científico que dita

sua verdade, ou seja, que conhece a natureza tal como ela realmente é, desprovida de qualquer

subjetividade, e as demais culturas que só se relacionam com a assim chamada natureza

através de meios simbólicos, ou seja, que permanecem supostamente cegos à verdade

científica da natureza objetificada, presos a suas crenças culturais acerca da natureza, por isso

incapazes de conhecê-la realmente como ela é. Percebe-se que a assimetria em questão se dá

portanto entre as sociedades “modernas”, científicas, e as sociedades “primitivas”,

desprovidas de ciência. É a famigerada oposição entre “Nós” e “Eles”.

Assim, Latour identifica o vínculo entre a primeira Grande Divisão, interior, entre

humanos e não-humanos e a segunda Grande Divisão, exterior, entre Nós (civilizados) e Eles

(primitivos), que é de fato uma exportação da primeira:

8 Essa forma argumentativa é particularmente sensível nos autores que se fundamentaram numa filosofia da

história, como Kant, Hegel e Marx. Ver especialmente KANT, I. Idéia de uma história universal de um ponto de

vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão exterior:

apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura,

entre a ciência e a sociedade, enquanto que todos os outros, sejam eles

chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem separar de fato

aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é signo do que é coisa,

o que vem da natureza como ela realmente é daquilo que suas culturas

requerem. Não importa o que eles fizerem, por mais adaptados, regrados e

funcionais que possam ser, permanecerão eternamente cegos por esta

confusão, prisioneiros tanto do social quanto da linguagem. Não importa o

que nós façamos, por mais criminosos ou imperialistas que sejamos,

escapamos da prisão do social ou da linguagem e temos acesso às próprias

coisas através de uma porta de saída providencial, a do conhecimento

científico. (ibid.: 99)

Devemos reter disso que foi discutido até aqui o valor fundamental que adquire ao

Ocidente “civilizado” a oposição entre humanos e não-humanos e seu desdobramento

moderno que marca a oposição entre “Nós” e “Eles”. Já que a ciência da economia política e a

filosofia moral utilitarista, que analisaremos mais adiante, sempre se desenvolveram tomando

essas duas Grandes Divisões como prerrogativas dadas. E, sem dúvidas, quando Kopenawa se

refere aos brancos como o povo da mercadoria, ele tem em vista o fascínio tão típico destes

estrangeiros pelo acúmulo de mercadorias – indicativo de que o modus operandi capitalista

está entranhado em suas formas de pensar a relação com a natureza (objetificada) e com

outras culturas (exotizadas). O outro para os brancos assume a forma da coisa. E a coisa, sob

o capitalismo, é a mercadoria. Logo, toda a natureza torna-se “recurso natural”, e os índios

tornam-se (no melhor dos casos) trabalhadores em potencial.

Nada mais estranho ao xamã do que a concepção científica da natureza como um ente

dado, que está aí “à toa”, desprovido de intencionalidades, em suma, desprovido de

humanidade. Nada mais estranho ao pensamento indígena do que esta concepção assimétrica

“civilizada” do outro como um ser igualmente desprovido de humanidade, a quem dirigimos

ora o pacote colonizador etnocida, ora o extermínio genocida puro e simples.

A Grande Divisão entre Nós e Eles que, como vimos acima, decorre da Grande

Divisão interna entre pessoas e coisas e tem como seu critério a distinção entre os que

possuem um conhecimento científico da realidade (“Nós”, os civilizados) e os que não o

possuem (“Eles”, selvagens, mais próximos ao estado de natureza), existe também sob uma

formulação econômica, que nos é especialmente importante. De um lado, tem-se os povos que

transformam a natureza (trabalham) segundo instrumentos científicos e assim produzem em

grande escala, “gerando uma abundância generalizada” (Nós, o povo da mercadoria), e, do

outro lado, os que transformam a natureza segundo meios simbólicos, que não acumulam

17

riquezas excedentes e, por isso, supõe-se que vivem em constante estado de pobreza e luta

pela sobrevivência (Eles, os selvagens preguiçosos).

Lembremo-nos, por ora, daquelas frases iniciais d’A riqueza das nações, de Sir Adam

Smith:

Entre os povos primitivos de caçadores e pescadores, todos os

indivíduos aptos para o trabalho são mais ou menos aplicados em trabalho

útil e esforçam-se assim por prover, tanto quanto podem, às necessidades e

conveniências tanto da sua vida como da dos indivíduos da sua família ou

tribo que sejam demasiado velhos, novos ou doentes para poderem pescar ou

caçar. Esses povos, porém, são tão miseravelmente pobres que, por

necessidade, são obrigados, ou pelo menos, se sentem obrigados, a matar

diretamente, ou a abandonar os seus filhos, os velhos e os que sofrem de

doenças crônicas para morrerem à fome ou para serem devorados pelas

feras. Entre as nações civilizadas e desenvolvidas, pelo contrário, apesar de

um grande número de pessoas não trabalharem e no entanto consumirem dez

ou cem vezes mais do que aqueles que trabalham, a produção total da

sociedade é tão grande, que está abundantemente abastecida, e qualquer

trabalhador pobre, pertencendo mesmo ao mais baixo grau social, se for

sóbrio e trabalhador, terá a sua disposição um número muito maior de coisas

necessárias e úteis para a sua vida do que qualquer selvagem (1979: 3).

Nesse parágrafo perturbadoramente racista que marca a introdução e o plano geral da

obra mais importante de Adam Smith, sua Investigação sobre a natureza e as causas da

riqueza das nações, percebemos, sem dificuldades, qual o lugar reservado às economias

primitivas no quadro geral de sua teoria econômica. São economias da miséria, da escassez,

limitadas à luta constante pelo suprimento das necessidades materiais mais básicas.

sobrevivência. No seu primeiro capítulo, (ibid.: 12) Adam Smith compara ainda a situação de

três figuras: a de um príncipe europeu, a de um camponês pobre e trabalhador e a de um rei de

qualquer tribo africana. Diz ele que, embora o camponês disponha de menos bens de conforto

do que um príncipe, ainda assim, por mais pobre que seja, sempre terá a sua disposição, numa

sociedade marcada pela complexa divisão do trabalho capitalista, muito mais mercadorias e

bens de conforto do que muitos reis africanos juntos, “senhores absolutos da vida e da

liberdade de milhares de selvagens nus”.

Estamos diante da remodelação moderna que se imprime na ontologia ocidental, no

momento em que o contato das sociedades ocidentais com os povos autóctones de todo o

mundo se intensificou e o capitalismo passou a se configurar como a ordem social dominante,

produzindo desdobramentos no nível especulativo da moral – nascimento do homo

economicus – e da economia – autonomização da esfera econômica com relação ao conjunto

das instituições sociais como um todo (e aposta nessa independência da economia como

18

forma de garantir o bem-estar social generalizado)9.

Veremos mais à frente que a relação apontada por Smith entre a intensificação da

divisão do trabalho e a produção de uma “abundância” generalizada entre todas as classes das

sociedades industriais não se mostra tão evidente desde que adotemos um ponto de vista que

não esteja, de partida, comprometido com a metafísica moderna. Pois, se nos aprofundarmos

no debate e passamos a considerar as sociedades primitivas como Marshall Sahlins, que diz

delas: são as “primeiras sociedades da abundância”, já que há nelas uma recusa coletiva à

exploração do trabalho, e uma recusa a autonomização da economia diante das outras esferas

da sociedade; tornamo-nos capazes de elaborar uma avaliação mais crítica da sociedade

capitalista e tomá-la, de partida, como a primeira sociedade da escassez – por ser a única que

produz artificialmente, em seu seio, a escassez de toda uma classe, cujo trabalho é

sistematicamente explorado em benefício da riqueza “nacional”, isto é, da classe dominante10.

Mas antes precisamos nos deter um pouco mais em alguns detalhes acerca da origem

do capitalismo e da ascensão da ideologia do homo economicus.

1.3 – Origem do capitalismo e ascensão do homo economicus

Voltemo-nos ao velho Marx. Marx descreveu ao longo de todo o primeiro volume d’O

capital ([1863] 2013) o processo da relação capitalista, sua lógica interna: como o dinheiro é

transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais-valor se

obtém mais capital (D-M-D’). Mas o funcionamento atual dessa engrenagem supõe um

fenômeno anterior, que lhe serviu de ponto de partida: a dinâmica capitalista pressupõe a

assim chamada acumulação primitiva de capital. Assim, os dois últimos capítulos do primeiro

volume d’O capital se dedicam a analisar as condições históricas em que se deu essa

acumulação primitiva de capital bem como das relações entre a aurora do capitalismo e a

colonização.

Essa famigerada acumulação primitiva de capital, segundo Marx, “desempenha na

9 Cf. Polanyi, 2000.

10 Como diz Marx (2013: 842), a riqueza nacional é sempre idêntica, por sua própria natureza, à miséria do povo.

Kopenawa comenta que ficou assustado ao ver, nas grandes cidades que visitou, a miséria do povo, sem comida

e com roupas sujas e rasgadas: “Os brancos que criaram as mercadorias pensam que são espertos e valentes. Mas

eles são avarentos e não cuidam dos que entre eles não têm nada. Como é que podem pensar que são grandes

homens e se achar tão inteligentes? Não querem nem saber daquelas pessoas miseráveis, embora elas façam

parte do seu povo. Rejeitam-nas e deixam que sofram sozinhas.” (2015: 431).

19

economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia” (2013:

785). Já que, por um lado, o mito do pecado original nos conta como o homem foi condenado

a comer seu pão com o suor de seu rosto e, por outro, “é a história do pecado original

econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso”,

ou seja, gente que não tem nenhuma necessidade de trabalhar, porque se enriquece às custas

do trabalho alheio. Qual é o segredo da acumulação primitiva de capital, portanto, que fez

surgir estas duas classes antagônicas?

A história que antecedeu e forneceu as bases materiais para a consolidação do

capitalismo não tem nada de idílico ou “natural”, como supõem os economistas clássicos, mas

antes revela a necessidade brutal da conquista e subjugação dos povos, dos assassinatos, das

pilhagens e dos roubos, para a conformação da nova ordem social burguesa (ibid.: 786). A

relação capitalista pressupõe, sociologicamente, a separação entre os trabalhadores e a

propriedade das condições de realização do trabalho. O processo histórico da acumulação

primitiva de capital é, então,justamente o processo mediante o qual os produtores foram

separados dos meios de produção, criando assim os fundamentos para o funcionamento

maquínico, no momento seguinte, da lógica do capital.

Sabemos da importância, nesse processo de expropriação, da leis britânicas do século

XVIII (“Bills for Inclosures of Commons”) que instituiram o cercamento dos campos, das

terras comunais ainda existentes. Mas é preciso relembrar, antes, os acontecimentos desde o

século XV e XVI, ligados à conquista do Novo Mundo – a América – e à Reforma

protestante, que catalisou sucessivos roubos das propriedades da Igreja católica.

Durante a Reforma protestante, a Igreja católica, na época a maior proprietária de

terras do solo inglês, teve seus bens colossalmente roubados. As terras foram distribuídas,

presenteadas, vendidas, para que se tornassem economicamente produtivas, e todos os que

habitavam nessas terras foram tendencialmente lançados ao proletariado (ibid.: 793-794).

Marx resume:

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o

furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com

inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade

privada e moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação

primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista,

incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta

necessária de um proletariado inteiramente livre. (ibid.: 804)

A esses métodos “idílicos” que dizem respeito ao interior da Europa, Marx ainda

acrescenta toda a lista inconfessável dos métodos criminosos ligados à exploração e ao

extermínio dos povos indígenas americanos e africanos no bojo de sua inserção violenta à

economia capitalista mundial:

20

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a

escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da

conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa

reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da

produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos

fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a

guerra comercial entre as nações européias, tendo o globo terrestre como

palco. (ibid.: 821)

A acumulação primitiva de capital teve como um de seus principais pontos de

sustentação a exploração capitalista dos povos ditos primitivos. As nações européias cristãs

valeram-se do extermínio indígena, sem pudor, com a finalidade de impor seu poder sobre os

povos conquistados11. Vejamos esse exemplo infâme:

O tratamento dispensado aos nativos era, naturalmente, o mais terrível nas

plantações destinadas exclusivamente à exportação, como nas Índias

Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados, entregues à matança e

ao saqueio, como o México e as Índias Orientais. Tampouco nas colônias

propriamente ditas se desmentia o caráter cristão da acumulação primitiva.

Esses austeros e virtuosos protestantes, os puritanos da Nova Inglaterra,

estabeleceram em 1703, por decisão de sua assembly, um prêmio de £40

para cada escalpo indígena e cada pele-vermelha capturado; em 1720, um

prêmio de £100 para cada escalpo; em 1744, depois de Massachusetts-Bay

ter declarado certa tribo como rebelde, os seguintes preços: £100 da nova

moeda para o escalpo masculino, a partir de 12 anos de idade; £105 para

prisioneiros masculinos, £50 para mulheres e criança capturadas, £50 para

escalpos de mulheres e crianças! (ibid.: 823)

Assim, descontrói-se o ideal da economia clássica segundo o qual o capitalismo se

desenvolveu a partir de um desenvolvimento natural, “lento e gradual”, das tendências da

natureza humana que predispõem os homens à troca e à barganha, na medida em que

identificamos que o processo revolucionário real que instaurou as bases da ordem social

burguesa teve como condições sine qua non a escravização e o extermínio dos povos da

América e da África, a escravização disfarçada das massas de trabalhadores rurais europeus

que foram tendencialmente lançadas ao proletariado enquanto eram expropriados de suas

terras comunais, a exploração do trabalho infantil e a condenação à miséria à grande parte da

população que ia sendo forçadamente enquadrada no sistema comercial mundial. Não se

desmembraria o produtor dos meios de produção de outro modo que não o da violência de

uma nova classe dominante.

Encontramos ainda elementos da maior relevância para nossa questão aqui

desenvolvida no último capítulo d’O capital, que comenta a teoria moderna da colonização do

11 “As barbaridades e as iníquas crueldades perpetradas pelas assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões

do mundo e contra todos os povos que conseguiram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da

história universal e em nenhuma raça, por mais selvagem e inculta, por mais desapiedada e inescrupulosa que

fosse.” (Howitt apud Marx, 2013: 821)

21

Sir E.G. Wakefield. Ali, Marx discorre sobre as dificuldades impostas aos colonizadores

europeus ao tentar desenvolver o capitalismo nas colônias no continente americano. Os povos

indígenas não se submetiam com facilidade a essa lábia capitalista, a essa ética alucinada do

trabalho, de modo que qualquer tentativa de agenciar massas de trabalhadores em torno de um

capitalista tendiam a dar errado. Por quê? Porque os índios não se ofereciam para trabalhar em

troca de salário com constância. A oferta de trabalho assalariado nas colônias não é nem

constante, nem regular, nem suficiente, reclama Wakefield (ibid.: 840). Essa inconstância do

trabalhador das colônias a meu ver repousa sobre os mesmos fundamentos lógicos

identificados por Eduardo Viveiros de Castro sob a noção da inconstância da alma selvagem

(2002). É que os índios recusam a submissão, não tem nenhum Senhor, nem querem ter. Os

nativos manifestavam uma relação profunda com a terra, e não dependiam do capitalista.

Então eles fugiam livremente dos colonizadores para o interior, pois eles conseguiam se

manter com seu próprio trabalho na terra, sem depender de um senhor, de um capitalista. Seu

regime produtivo se baseava na propriedade privada fundada no trabalho próprio, nos termos

de Marx. Os índios nativos não eram educados para serem servis, para serem explorados e

dominados, para viver o “vale de lágrimas” do mundo do trabalho como um dever que lhe

garantiria a salvação de sua alma. Enquanto que o regime produtivo que se tentava implantar

pela classe capitalista é o da propriedade privada fundada no trabalho alheio.

Na Europa, o processo de acumulação primitiva já estava consumado no século XIX,

ao passo que nas colônias os europeus se defrontavam com o obstáculo do “produtor, que,

como possuidor de suas próprias condições de trabalho, enriquece a si mesmo por seu

trabalho e não ao capitalista” (ibid.: 835). Em função do profundo confronto entre esses dois

sistemas econômicos “diametralmente opostos”, a colonização precisaria ser muito

sistemática (systematic colonization em Wakefield) para conseguir dar conta de produzir

massas de trabalhadores assalariados nas colônias. Precisou tornar a vida dos índios um

inferno – contaminá-los com suas epidemias, assassiná-los, submetê-los a todo tipo de

sujeição, reprimir suas línguas e costumes –, precisou de massas de escravos africanos e ainda

precisou importar trabalhadores estrangeiros. A esses trabalhadores estrangeiros caberia o

papel de educar as gerações seguintes para a ética do trabalho, oferecendo-lhes o exemplo

ideal de sujeito trabalhador e prudente12 que subscreve os mandamentos da santíssima

trindade do Estado, do Mercado e da Ciência, respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito

Santo da teologia modernista (Viveiros de Castro, 2015b: 24).

12 Ver adiante a discussão sobre o “homem prudente” de Adam Smith.

22

*****

Davi Kopenawa nos oferece uma imagem desse confronto entre duas visões tão

opostas a respeito do papel do trabalho ao relatar à Bruce Albert a história da relação dos

Yanomami com os missionários protestantes norte-americanos da New Tribes Mission13.

Este confronto entre visões tão distintas sobre a “economia”14, a ocidental e a

ameríndia, nos permite perceber que cada uma delas difere da outra porque repousa sobre

premissas ontológicas radicalmente distintas. A colonização ocidental da terra e dos povos

selvagens só se justifica por se apoiar na ontologia dualista que advoga pela existência de dois

planos inconfundíveis: o das pessoas e o das coisas. Então o “outro”, nesse regime, assume a

forma da coisa – seja essa alteridade a do indígena ou a da “Natureza”. No sentido

simetricamente inverso, o “outro” segundo o pensamento indígena assume de antemão a

forma da pessoa: o que explica a coerência de se atribuir humanidade aos animais, às plantas,

aos alimentos etc. e de se pensar que talvez os espanhóis fossem sobre-humanos.15

Além disso, como aliás já dissemos, essa forma de se pensar e de se estabelecer

práticas econômicas segundo os princípios do capitalismo não se deu com “naturalidade” em

lugar nenhum, nem na Europa. O homo economicus, esta ideologia que concebe o homem

como um ser racionalmente orientado por seus interesses individuais, disposto para o

trabalho, calculista, utilitário etc.,é o signo vulgar da transformação de valores que se deu na

ruptura com a moral medieval16.

O pensamento social europeu, entre os séculos XVII e XVIII, marcados pelas guerras

civis, estava diante do poder altamente destrutivo das paixões humanas. E se preocupou em

pensar nos meios pelos quais as sociedades poderiam evitar os efeitos políticos desastrosos

das paixões nocivas por meio da mobilização de paixões positivas, curativas (Hirschman

2002). O problema característico de filosofia política e moral desse contexto foi então: como

13 Ver, no capítulo 3, a discussão sobre os primeiros contatos dos Yanomami com os missionários da New Tribes

Mission.

14 Se é que é possível falar de economia indígena, uma vez que ela não encontra-se separada das demais esferas

do socius: é uma economia inteiramente submetida aos princípios simbólicos gerais que estruturam as demais

instituições indígenas (parentesco, moral, religião, política...).

15 Refiro-me àquela anedota sobre as Antilhas que ficou famosa pelas mãos de Lévi-Strauss (1976). Enquanto os

espanhóis perguntavam-se se os índios tinham alma, os índios, por outro lado, submetiam os corpos dos

colonizadores a testes de putrefação, para verificar se se tratavam de humanos ou sobre-humanos...

16Esta inauguração dos valores modernos já foi analisada sob diferentes perspectivas por vários autores, como

Weber (2004), Polanyi (2000) e Hirschman (2002).

23

aproveitar as paixões individuais em favor do bem-estar social?, como transformar vícios

privados em benefícios públicos? O “interesse” – este termo mais brando do que a forma

medieval de se referir à ganância, à cobiça, ao desejo pelo enriquecimento – acabou por

concentrar esta capacidade de domar as paixões destrutivas dos homens. E se consolidou

como um verdadeiro paradigma: a promessa de um mundo governado pelo interesse era a de

um mundo governado pela constância e pela previsibilidade, onde poderia reinar a paz, o livre

comércio, o desenvolvimento industrial, em suma, o mantra da “felicidade geral dos homens”.

Contudo, já em meados do século XVIII, as teorias de Adam Smith parecem eclipsar

esse confronto anterior entre as paixões e os interesses. Pois já não se preocupava em

justificar o elogio aos interesses por meio da contenção de efeitos políticos desastrosos (a

guerra civil): simplesmente enfatizava a livre busca pelo ganho particular como

intrinsecamente ligada ao benefício material de toda a sociedade. Para concluir nossa

reconstrução do modo de pensar do povo da mercadoria abordaremos nas próximas páginas os

vínculos entre moral e economia no pensamento de Adam Smith e a doutrina da utilidade

clássica formulada por Jeremy Bentham. No capítulo seguinte, tratamos da crítica destas

teorias.

1.4 – Moral e economia em Adam Smith

Em sua Teoria dos Sentimentos Morais ([1759] 2015), Adam Smith discute a respeito

das paixões e dos afetos humanos, chamando-nos a atenção para essa “disposição natural” que

demonstramos ter para nos solidarizarmos com as paixões de outros, sejam alegres ou tristes.

A essa disposição, Smith chama “simpatia”.

Mas o ponto que parece interessar a Smith de maneira mais específica, e que recebe

por isso seu merecido enfoque, diz respeito aos prazeres mútuos que são experimentados nas

relações sociais quando há consonância das partes em relação quanto à justa medida entre

causas e efeitos das paixões. Ou seja, quando nos solidarizamos com as paixões do outro e

concordamos que a forma pela qual demonstrou seus sentimentos foi adequada, estabeleceu-

se numa justa medida, em relação às causas que produziram estes sentimentos. Por exemplo,

podemos entender uma pessoa que, por conta do falecimento de um familiar querido, fique de

luto por um ou ainda vários dias. Não pareceria razoável, porém, que um indivíduo fique em

profunda tristeza por dias e ainda peça afastamento de seu trabalho por ter quebrado seu

cigarro na chuva. Assim, Smith nos coloca que quando nos solidarizamos com o afeto de

24

outro no sentido de concordarmos que há ali, na expressão desse afeto, uma justa medida

entre as causas que o produziram e o efeito que decorreu dali (a própria expressão do afeto),

há consonância e, portanto, conveniência para ambas as partes neste vínculo social. No caso

contrário, isto é, quando nos solidarizamos com uma paixão, mas discordamos que esta seja

razoável tendo em vista as causas que a produziram, há dissonância e portanto inconveniência

neste vínculo social.

Daí, Smith chega ao “espectador imparcial”. O espectador imparcial consiste num

modelo social17 de avaliação da justa medida entre as causas e os efeitos das paixões, que os

indivíduos internalizam através de suas capacidades de imaginação e através de suas

experiências de vida, de sua educação num sentido amplo. Assim, tendo inculcado este

espectador imparcial e sendo os homens “naturalmente” interessados na aprovação integral de

seus atos pela sociedade, os indivíduos conseguem, assim, um maior autodomínio de suas

paixões, o que traz os efeitos de aprovação social e conveniência generalizada.

Então a filosofia moral e a teoria econômica de Smith se encontram. Smith destaca a

fundamental importância da produência para a conveniência, a harmonia e o bem-estar social

em sentido geral. Quem é o homem prudente? É sobretudo alguém que se limita a fazer

estritamente aquilo que lhe é esperado fazer, cumprir suas obrigações sociais, conservar uma

disposição para o trabalho (frugalidade). O homem prudente não fala sobre o que não tem

conhecimento nem sustenta posicionamentos polêmicos que possam ser inconvenientes aos

demais, etc. Podemos perceber que esse “homem prudente” que o autor nos descreve evoca os

traços daquilo que Max Weber chamou de “ethos capitalista”, ou seja, o homem prudente é,

de certa forma, o homem novo do século XVIII, que sustenta uma postura ética claramente

influenciada pelo protestantismo e que atendia às necessidades históricas do desenvolvimento

da economia capitalista. Fica claro, com isso, que quando Smith defende a importância social

de se cultivar esse modelo de homem prudente, preocupado em ser aprovado pela sociedade e

que por isso controla suas paixões e trabalha conforme lhe é esperado (e mandado), há,

simultaneamente, a defesa da economia de mercado como forma de gerar um bem estar social

generalizado. O homem prudente é um dos avatares do homo economicus.

Na base das preocupações do sistema filosófico de Smith se entrevê a busca por uma

teoria da natureza humana, que se esforce por dar conta de explicar a condição atual do

homem como resultado de determinados fatores, relativamente simples.

17 Parece-nos algo paradoxal a ideia de um modelo de avaliação das condutas morais que seja socialmente

construído e, simultaneamente, “imparcial”...

25

De um lado, em sua filosofia moral, ele almeja reduzir a conduta humana a um

princípio explicativo central: o da simpatia para com nossos semelhantes, descrito acima. E

desdobra desse princípio uma série de argumentos. Defende a ambição e a paixão pela

distinção social como constitutivas do“grande propósito da vida humana a que chamamos

melhorar nossa condição” (Smith 2015: 59). Chegando a pensar a busca por elevar-se de

posição social como: a “finalidade de metade dos esforços da vida humana” (ibid.: 69).

Indica, ainda, por essa via, as bases individualistas de seu pensamento, bem como a utilidade

de uma tal constituição da natureza humana.

Sem dúvida, todo homem é por natureza primeiro e principalmente

recomendado a seus próprios cuidados (...). Portanto, todo homem está

muito mais profundamente interessado no que diz respeito imediatamente a

si, do que no que diz respeito a outro homem qualquer; e talvez ter notícia

da morte de outra pessoa com a qual não tenhamos especial ligação nos

cause muito menos interesse, tire muito menos nosso apetite, interrompa

menos nosso descanso, do que uma insignificante desgraça que se abata

sobre nós. (ibid.: 102-103 – grifo meu)

A constituição da natureza humana mostra-se individualista e se apóia em dois

elementos: no propósito de “melhorar sua condição” e na preferência natural que todo homem

tem pela sua própria felicidade acima da dos outros. Embora essa preferênciapossa parecer

um vício dos homens, Smith nos argumenta que de fato há uma utilidade nela. É útil, segundo

seu raciocínio, que a natureza humana seja constituída por paixões egoístas, pois isso torna os

seres humanos capazes de se relacionar entre si enquanto cada um está interessado na

manutenção e melhoramento de sua própria condição e felicidade. E assim a sociedade, a

soma dos indivíduos, se orienta pela “felicidade”. Esse utilitarismo implícito remete a já

conhecida imagem do ser humano como um relógio que funciona mecanicamente, orientado

para um fim, tal como programado pela sabedoria de Deus (o engenheiro soberano). A

humanidade encontra aqui sua imagem reduzida, por uma baixa via naturalizante, a esta

teleologia da “felicidade” (seja lá o que queira dizer), que hoje em dia encontramos aos

montes em publicações de auto-ajuda.

Além disso, decorre deste individualismo o fato de que necessariamente sentimos

nossos próprios prazeres e dores com maior intensidade do que o dos outros, ao ponto de

haver uma hierarquia ontológica do interior com relação ao exterior (ibid.: 274). O humano é,

assim, descrito como um ser naturalmente fechado sobre si mesmo e sobretudo avesso ao

outro – incapaz de ouvi-lo, de vê-lo, de incorporá-lo.

A certa altura, acontece entretanto algo curioso. Smith está tão convencido e

entusiasmado com sua categoria do “espectador imparcial” que, a essa altura do texto, parece

falar deste como se se tratasse de um autêntico espírito auxiliar xamânico, que precisamos

26

deixar tomar nosso corpo a tal ponto que vejamos com seus olhos e possamos ouvir “com

diligente e reverente atenção” o que sua voz nos sugere. É que, se perdemos ao longo do dia

uma oportunidade clara e adequada de promover o interesse e a felicidade da sociedade,

“é esse morador que, à noite, chama-nos para prestarmos conta de todas

essas omissões e violações, e frequentemente suas censuras nos fazem corar

internamente, tanto por nossa insensatez e desatenção para com nossa

própria felicidade, quanto pela indiferença e desatenção talvez ainda maiores

pela felicidade de outras pessoas.” (ibid.: 328 – grifo meu)

A diferença gritante, porém, é que os espíritos que o xamã vê são radicalmente outros

(são humanos escondidos sob formas não-humanas), e por isso tem algo a ensinar ao xamã (o

conhecimento tem a ver com a capacidade de ocupar o ponto de vista do outro) (Cf. Carneiro

da Cunha 1998, Vilaça 2000, Viveiros de Castro 2004). Ao passo que o espectador imparcial

de Smith é sobretudo semelhante ao sujeito moral em questão, e lhe recomenda sempre o

mesmo, a identidade conforme às regras morais da sociedade, à adaptação submissa aos

imperativos modernos: a moderação e a frugalidade no trabalho. O que nos leva a

problematizar aquilo que para Smith é, antes, um axioma pressuposto: a moral como

naturalmente fundada na semelhança, na identidade, entre os “homens” (ibid.: 284, 328). Os

mundos indígenas, por sua vez, operam com economias morais fundadas na diferença, em que

ser capaz de ocupar o lugar do outro é condição para o conhecimento (ver com os olhos dos

espíritos), e as identidades pessoais são construídas e reguladas em relação com os outros. O

espectador imparcial recomenda-nos a observância das regras da autoridade, ao passo que os

xapiri do xamã nos levam ao encontro com a alteridade.

O outro polo do sistema de Adam Smith é sua teoria econômica exposta em A riqueza

das nações ([1776/1784] 1979). Enquanto na especulação moral ele discorre sobre o conjunto

dos afetos e paixões humanas, sua grande obra de economia se concentra na análise da paixão

tradicionalmente conhecida como cobiça ou avareza. O princípio da natureza humana que se

expõe nesta obra é a “tendência para negociar e trocar uma coisa por outra” (Smith 1979: 13).

Partindo desse princípio, almeja-se explicar a intensificação da divisão do trabalho nas

sociedades industriais civilizadas – e toda a história anterior ao capitalismo parece-lhe não

mais que uma lenta e gradual história durante a qual foi se cristalizando essa tendência natural

aos humanos para trocar coisas e barganhar por elas18.

Além disso, o economista inglês dá uma rápida comentada, como um bom moderno,

18Todos os estudos de antropologia econômica desde Malinowski fizeram questão de desmentir a suposta

universalidade dessa tendência a barganhar. Davi Kopenawa ao expor a lógica da generosidade e da

reciprocidade como estruturantes da vida material dos Yanomami contribui para esse argumento, e fala

explicitamente de um desprezo à barganha.

27

sobre a impossibilidade de identificar essa tendência humana em qualquer outro tipo de

animal, que a seus olhos não conhecem qualquer gênero de acordo (ibid.: 13). Sem dúvidas,

Smith desconhecia a diplomacia inter-específica característica à atividade político-ecológica

dos xamãs, especialistas que são em cosmopolíticas... Smith não deixa de completar sua

concepção intra-específica de humanidade com uma projeção narcísica sobre os povos

primitivos: aparentemente, estes já viveriam, mesmo que de forma incipiente, a tendência

geral a organizar a vida social pelo interesse individual (ibid.: 15).

Numa tribo de caçadores ou pastores, poderemos encontrar, por

exemplo, um indivíduo que faça arcos e flechas mais perfeitos do que

qualquer outro. Esse indivíduo trocará frequentemente esses seus produtos

com os dos seus companheiros, obtendo assim gado ou caça; com o tempo,

apercebe-se que pode conseguir assim mais gado e carne do que se for ele

mesmo a matar os animais. É o seu próprio interesse que o leva, portanto, a

considerar a manufatura de arcos e flechas como a sua tarefa mais

importante, transformando-se assim numa espécie de armeiro. Um outro

homem da tribo será o melhor na construção de paredes e tetos das cabanas.

(...) É portanto a certeza de poder trocar o excedente de sua produção, depois

de satisfeita as suas necessidades, pelo excedente da produção dos outros

homens que leva cada homem a dedicar-se a uma única tarefa e a

desenvolver e aperfeiçoar qualquer talento ou habilidade que possua para um

dado tipo de atividade. (ibid.: 15)

1.5 – O princípio da utilidade clássica

Jeremy Bentham ([1789] 1979) compartilha da mesma pressa argumentativa de Smith.

Talvez seja o frenesi tipicamente moderno... Sua teoria da natureza humana é marcadamente

reducionista e axiomática. Cheia de pressupostos que não nos parecem inequívocos, desde

que levemos a sério as ontologias alheias ao Ocidente. Seu ponto de partida é a constatação de

que o ser humano é dominado por duas forças fundamentais (“dois senhores soberanos”): a

dor e o prazer. Sendo assim a natureza humana, o interesse de todo indivíduo razoável só

poderia ser aumentar a soma total dos prazeres e diminuir a soma total das dores em jogo em

cada situação. E sendo a sociedade não mais do que a soma de indivíduos ontologicamente

heterogêneos, o interesse da sociedade não passa da soma dos interesses individuais.

O princípio da utilidade é proposto como o único capaz de reconhecer esse traço da

constituição humana e de levar adiante esse reconhecimento como princípio regulador de toda

ação moral e política.

Bentham, em rara demonstração de abertura de pensamento, chega a admitir que

existem outros princípios e motivos que permitem explicar por que uma ação foi praticada.

Mas logo retorna a sua estreiteza habitual ao postular que nenhum princípio, que não o da

utilidade, permite explicar porque uma ação pode ou deve ser praticada (Bentham 1979: 12).

28

Todos os problemas morais se resolvem, para a escola utilitarista, no cálculo racional

que contrabalança a soma de prazeres e de dores em cada evento. Stuart Mill ([1871] 2000),

alegadamente, seria menos dogmático do que Bentham. Porque introduz no esquema desse

cálculo, para além das diferenças quantitativas das somas de prazeres e dores, diferenças

qualitativas entre prazeres superiores e inferiores. Não nos convencemos tanto disso. Na

introdução de seu livro On Liberty, lemos o que o autor entende ser o sentido “amplo” da

noção de utilidade:

Considero a utilidade como a solução última de todas as questões éticas, mas

deve-se empregá-la, porém, em seu sentido amplo, fundamentada nos

interesses permanentes do homem como um ser de progresso19 (2001: 14 –

grifo meu).

Trata-se aqui também de uma ontologia que traça uma essência humana tacanha, que

se deixa levar pelas fraseologias do “progresso”, da “liberdade”, da “felicidade”, ideais

modernos e burgueses. Todo o esforço da escola utilitarista foi por solidificar a “felicidade”

como a pedra de toque do raciocínio prático em geral, capaz de guiar a conduta humana ao ser

tomado como o fim desejável de toda ação. Stuart Mill afirma que a teoria da vida na qual se

apóia a teoria moral utilitarista sustenta que “o prazer e a ausência de dor são as únicas coisas

desejáveis como fins” (2000: 30), e chega mais adiante a postular que “na realidade, não há

nada que se deseje exceto a felicidade” (2000: 65).

O problema dessa forma de pensar é a absoluta incompreensão a que é lançado todo

um universo de fenômenos. A objeção mais evidente à doutrina utilitarista que postula a

felicidade como fim supremo das ações morais é a de que muitos fins que os seres humanos

buscam são valorizados intrinsecamente, em si mesmos, e não apenas instrumentalmente, ou

seja, enquanto meios para qualquer fim, mesmo a “felicidade geral”. Esse modo de pensar não

dá conta de explicar as diferentes racionalidades e princípios da natureza humana mobilizados

na criação artística, nas festas – seja o carnaval do Rio ou as festas reahu dos Yanomami, os

ritos sacrificiais de maneira geral, as orgias, os sistemas econômicos da troca-dádiva como o

kula, enfim, a lista é extensa – maior, inclusive, suspeito, do que as poucas ações sociais que o

utilitarismo é capaz explicar.

19 Tradução livre original em inglês: “I regard utility as the ultimate appeal on all ethical questions; but it must

be utility in the largest sense, grounded on the permanent interests of a man as a progressive being.”

29

CAPÍTULO 2 – A INSUFICIÊNCIA DA RACIONALIDADE ECONÔMICA: UM

SOBREVÔO

2.1 – Crítica da economia política

Há uma forte tradição de pensadores que compartilham do diagnóstico de que as ideias

de utilidade, de interesse (individual ou coletivo), de progresso, felicidade, etc., não dão conta

de abarcar dimensões fundamentais da natureza humana. Como disse Bataille, toda vez que o

sentido de um debate depende do valor da palavra útil, pode-se dizer que o debate é falseado e

a questão fundamental é eludida. “Não existe, com efeito, qualquer meio correto, tendo em

vista o conjunto mais ou menos divergente das concepções atuais, que permita definir o que é

útil aos homens.” (Bataille 2013: 19). O homo economicus já foi atacado teoricamente por

diferentes vias.

Neste capítulo destacaremos algumas das principais contribuições do pensamento

social que tomam a insuficiência heurística do princípio da utilidade clássica como um ponto

de partida de suas teorias. E chegam assim, por vias próprias, a diferentes teorias da natureza

humana. E consequentemente a diferentes concepções da relação entre natureza e cultura.

Este sobrevôo nos ajudará a avaliar a rotação de perspectiva (Viveiros de Castro 1999)

a que somos levados pelo contraste com a cosmovisão xamânica de Davi Kopenawa, que

discutiremos no próximo capítulo. Neste capítulo, trata-se da crítica antropológica do cogito

da mercadoria, enquanto no próximo capítulo trata-se de sua antropologia reversa segundo o

ponto de vista indígena.

* * * * *

Sabemos que dentre as primeiras disciplinas científicas do campo das humanidades,

destacam-se a História e a Economia. Assim, seus parâmetros epistemológicos e

metodológicos tenderam a contaminar as demais ciências humanas sob a forma de vulgatas:

historicismo, economicismo. Sabia-se pouco, em termos científicos, sobre a humanidade. Mas

já se sabia que o ser humano é “naturalmente” um ser histórico, um ser de “progresso” e que a

base material (“natural”) da vida humana é essencialmente econômica, já que as exigências

fisiológicas nutricionais põem em questão, em primeiro lugar, a necessidade de que haja

trabalho, isto é, trabalho socialmente organizado. Assim, vimos no primeiro capítulo como a

economia política clássica concebia o atual estágio das sociedades civilizadas como um longo

e processual desenvolvimento das tendências “naturais” à barganha e à troca, à satisfação de

30

seus interesses (concebidos como necessidades) e assim por diante.

Entre os antropólogos evolucionistas, compartilhava-se também o ideário do

progresso, a famigerada concepção da escala evolutiva selvagens-bárbaros-civilizados, e,

especialmente em Morgan, a propriedade assumia um lugar fundamental na discernibilidade

entre um macro-tipo de sociedade e outro: sociedades de caçadores-coletores (selvageria),

sociedades agrícolas (barbarismo) e sociedades industriais ou complexas (civilização)20. É a

aurora da disciplina antropológica – neste momento, como é sabido, profundamente vinculada

às ideologias colonialistas e imperialistas vigentes nas nações européias.

Sir James Frazer, por exemplo, demonstra considerar que o aspecto econômico

encontra-se de fato mais no polo da natureza do que no da cultura:

“(...) sob a superfície tanto da selvageria como da civilização as forças

econômicas são tão constantes e uniformes em sua operação quanto as forças

da natureza, das quais elas são, de fato, meramente uma manifestação

peculiarmente complexa” ( Frazer 1918, v.2: 217apud Strathern 2014: 188).

O que se entrevê aqui é a ideia de que as forças da natureza são as mesmas em toda

parte, restando a diferença nas formas culturais de trabalhá-las, e de organizar socialmente

este trabalho, segundo tais ou quais meios, finalidades, etc. Como vimos no primeiro capítulo,

a razão sociológica ocidental, apoiada no Grande Divisor Natureza/Cultura, pensa o ser

humano como um ente que, por um lado, é determinado pela natureza (pelas leis físico-

materiais) e, por outro lado, transcende essas determinações e cria instituições simbólico-

morais reguladas por leis exclusivamente humanas. Por isso os debates teóricos se ocuparam

de buscar a especificidade do humano dentre os demais animais e as mediações entre o polo

da natureza e da cultura. Na formulação acima citada de Frazer, percebe-se o lugar

privilegiado que por muito tempo se atribuiu à economia: a mais “natural” das instâncias da

sociedade21. Daí que o pensamento evolucionista escalona a diversidade cultural nos três

estágios evolutivos acima mencionados, e pressupõe, aos dois menos desenvolvidos, o

movimento teleológico de progresso, que os impulsiona em direção à civilização (mais ou

menos segundo o esquema dialético forças produtivas/ relações de produção), e a seus

20 Veremos adiante a incorporação dessa tipologia por Marx e Engels e seu desdobramento nas teorias neo-

evolucionistas.

21 Esse argumento fica ainda mais evidente na seguinte passagem, extraída do prefácio de Frazer ao Argonautas

do Pacífico Ocidental de Malinowski: “Não precisamos refletir muito para nos convencermos de que as forças

econômicas são de suma importância em todos os estágios ao desenvolvimento humano, do mais humilde ao

mais elevado. A espécie humana, afinal, é parte integrante do mundo animal e, como os outros animais, precisa

de um alicerce material ao qual pode sobrepor uma vida melhor – intelectual, moral e social; sem esse alicerce,

esta superestrutura é impossível. A fundamentação material, que consiste na necessidade de alimento e em certo

grau de calor e proteção contra os elementos, forma a base econômica ou industrial e constitui condição

necessária da vida humana. (...)” (Frazer In:Malinowski, 1978: 5)

31

excepcionais“privilégios”: o Estado, a escrita, a propriedade privada, a família monogâmica, a

religião monoteísta.

Karl Marx talvez tenha sido o primeiro a criticar, desde seus escritos de juventude

([1844] 2010), certas premissas da economia política com maior consistência. Marx (2008:

239-246) percebe, em primeiro lugar, que os economistas burgueses tomam o indivíduo como

ponto de partida de suas análises – e não como resultado histórico. Além disso, tratam

igualmente as formas capitalistas da troca (compra e venda), da propriedade (privada), como

formas naturais, como pontos de partida de suas análises.

Ora, o individualismo22 fornece a base ontológica às teorias liberais da natureza

humana, que fundamentam sua doutrina econômica e sua moral, e não parece ser,por isso, a

Marx, uma base segura para se assentar qualquer ciência social. Ao tomar o indivíduo como

“natural”, e não como produto histórico, os economistas dão a sua abordagem um caráter

naturalizante e essencialista. O humano é reduzido à caricatura do indivíduo racional.

Essa talvez seja a contribuição mais significativa que tiramos de Marx para nosso

argumento. A crítica de Marx é de fato uma crítica ontológica,na medida em que desconstrói

o individualismo subjacente à concepção da natureza humana dos economistas. Advoga pela

irrevogável historicidade da essência humana, contra a naturalização, a eternização e a fixação

dos contornos do ser humano aos moldes do indivíduo burguês. Contra a naturalização e o

individualismo, Marx desenvolve uma ontologia histórica e relacional (2010: 103-114, 115-

138). Que opera, no primeiro plano, com “forças” que assumem diferentes conformações

historicamente (forças produtivas versus relações de produção etc.), enquanto a ontologia

presumida pela economia burguesa trata das “formas” como essências naturais (“o” indivíduo,

“a” propriedade privada e assim por diante).

Entretanto, precisamos apontar duas limitações fundamentais de Marx, que o colocam

de algum maneira numa posição reflexiva dificilmente conciliável com o perspectivismo e o

multinaturalismo que alimentam as razões sociocosmológicas ameríndias23.

Em primeiro lugar, ainda que relacional e não atômica-individual, sua ontologia

permanece antropocêntrica, porque permanece assentada sobre a premissa de que a espécie

22Por individualismo quero dizer a concepção segundo a qual os seres humanos são naturalmente indivíduos

ontologicamente independentes movidos em primeira instância por seus interesses individuais racionalmente

motivados.

23 Tomamos, neste trabalho, a sociocosmologia yanomami, descrita em A Queda do Céu, como um bom exemplo

de um pensamento social perspectivista e multinaturalista.

32

humana é a única universal, enquanto as demais espécies de seres são limitados por suas

estreitas necessidades particulares (Viveiros de Castro 2002: 375-376).

Além disso, o forte impacto exercido pela publicação de Ancient Society, de Lewis H.

Morgan, em Marx – que viu ali uma extensão antropológica da concepção materialista da

história por ele formulada quarenta anos antes –, acabou por gerar efeitos nefastos em boa

parte das publicações marxistas neo-evolucionistas em etnologia, inspiradas no trabalho de

Engels A origem da família, da propriedade privada e do Estado. A importação desse modelo

historicista – segundo o qual as lutas de classes, o antagonismo entre forças produtivas e

relações de produção, constituem a engrenagem da história e do devir do ser social

(combinado com a tipologia tripartite evolucionista) – às realidades das sociedades indígenas,

mostrou-se, em muito, inadequada, como bem observa Pierre Clastres (2011: caps.VIII e X).

Se Marx buscou desdobrar as forças do pensamento econômico para além de suas amarras

ideológicas burguesas, como um caminho para superá-lo, o neo-evolucionismo da etnologia

marxista acaba por interpretar toda a vida dos selvagens nos termos desta lógica econômica

que é exclusivamente moderna e capitalista, contribuindo mais para generalizá-la do que

destruí-la.

Economistas formalistas e antropólogos marxistas mostram em comum o

fato de serem incapazes de refletir sobre o homem das sociedades primitivas

sem incluí-lo nos quadros éticos e conceituais oriundos do capitalismo ou da

crítica do capitalismo. Seus irrisórios empreendimentos têm o mesmo lugar

de nascimento, produzem os mesmos efeitos: ambos praticam uma etnologia

da miséria. (Clastres 2011: 183)

Por isso, ainda que as contribuições de Marx sejam extremamente fecundas e de

notável importância, as exigências da intenção deste ensaio – avaliar a contribuição do

pensamento de Davi Kopenawa para a crítica do cogito da mercadoria – nos levam a um

deslocamento do terreno do marxismo para acompanhar, de maneira panorâmica, certo

percurso da história da antropologia24. Marx não é suficiente para desdobrar a densidade

filosófica expressa no discurso do xamã Davi Kopenawa porque seus parâmetros ontológicos

são ainda comprometidos por demais com os das sociedades industriais.

24Esta trajetória antropológica que examinaremos culmina, por fim, na virada qualitativa pela qual passou a

etnologia das terras baixas sul-americanas entre os anos 1970 e 1980, da qual a relação e a obra conjunta de

Bruce Albert e Davi Kopenawa pode ser tomada como representante maior. Cf. Capítulo 3.

33

2.2 – Reciprocidade, generosidade e dispêndio improdutivo

O trabalho de Malinowski constitui um marco na forma de se pensar

antropologicamente as práticas econômicas e ideias morais entre os povos chamados

primitivos. Sua obra, tomada em conjunto, é interessantemente ambígua. Destroi o homo

economicus, mas também reforça, em sua teoria funcionalista da cultura, o individualismo e o

utilitarismo, como veremos.

Em sua monografia sobre o sistema de trocas trobriandês ([1922] 1978), ele busca

atingir a atitude mental dos nativos com relação a esses fatos, aparentemente, de ordem

econômica: a circulação dos colares de conchas vermelhas soulava e dos braceletes de

conchas brancas mwali ao longo do circuito do Kula. E logo percebe que essa modalidade de

troca “não se fundamenta num mero cálculo utilitário de lucros e perdas”, como comenta

Frazer no prefácio, “e que ela vem de encontro a necessidades emocionais e estéticas de

ordem mais elevada que o simples atendimento aos requisitos da natureza animal (1978: 6-7).

A descoberta de Malinowski é a de que, no Kula, a troca de objetos desprovidos de

finalidades utilitárias (os soulava e os mwali) ocupa, na mente dos indígenas, um lugar mais

importante do que as transações de objetos úteis, que se realizam secundariamente, nas bordas

do circuito altamente ritualizado do Kula. Com isso, Malinowski diz abertamente que seu

intuito é colaborar para destruição da noção de “homem econômico primitivo”:

Outra noção que precisa ser destruída de uma vez por todas é a do “Homem

Econômico Primitivo”, encontrada em alguns textos de ciências econômicas.

Essa criatura fictícia, de existência persistente na literatura econômica

popular e semipopular, cuja sombra penetra até mesmo na mente de certos

antropólogos competentes esterilizando-lhes a visão através de ideias

preconcebidas, é um homem primitivo ou selvagem imaginário, movido em

todas as suas ações por uma concepção racionalista do interesse pessoal,

atingindo seus objetivos de maneira direta e com o mínimo de esforços. Um

único exemplo bem analisado será suficiente para mostrar quão absurda é a

suposição de que o homem (...) seja movido por interesses particularistas

puramente econômicos. Esse exemplo, que nos é fornecido pelo primitivo

habitante das ilhas Trobriand, lança por terra toda essa falsa teoria. O nativo

de Trobriand trabalha movido por razões de natureza social e tradicional

altamente complexas; seus objetivos certamente não se referem ao simples

atendimento de necessidades imediatas nem a propósitos utilitaristas. Assim,

antes de mais nada, como já vimos, o trabalho nativo não é executado

segundo a lei do menor esforço. Muito pelo contrário, em sua realização são

despendidas grandes parcelas de tempo e energia que, do ponto de vista

utilitário, são inteiramente desnecessárias. O trabalho e o esforço não

constituem apenas meios para atingir certos fins, mas sob certo ponto de

vista, um fim em si mesmo. (...) (Malinowski, 1978: 56)

34

É então um complexo sistema de deveres e obrigações, fortemente ancorados em uma

teoria trobriandesa da magia, que impulsiona os nativos a seguirem realizando o Kula, e não o

desejo de satisfazer necessidades fisiológicas (“primárias”). “O Kula não se realiza sob a

pressão de quaisquer necessidades, visto que seu objetivo principal é o de permuta de artigos

que não tem nenhuma utilidade prática” (ibid.: 73). Assim, só podemos compreendê-lo

segundo o ponto de vista nativo se livrarmo-nos de noções preconcebidas que alimentamos

sobre a natureza do “comércio”.

Em primeiro lugar, há uma noção de “posse” radicalmente distinta da que é

convencional ao pensamento econômico moderno: os colares e os braceletes estão sempre em

movimento, de modo que ninguém os possui por muito tempo, sob a pena de ganhar má

reputação (ibid.:71).

Além disso, o dogma principal que organiza esse sistema de trocas é: não há

barganhanas transações do Kula (ibid.: 366), o que desmonta de uma só vez toda especulação

smitheana acerca da economia natural, fundada na tendência humana fundamental que

supostamente nos inclinaria à troca e a barganha, com vistas a um melhoramento de nossa

própria condição de vida (cf. o capítulo 1). Igualmente infundado o“escambo”. Todo um

decoro, portanto, envolvido nessas trocas cerimoniais, que constituem relações vitalícias

(“uma vez no Kula, sempre no Kula”, como dizem). Não se pode negociar, e nem é

recomendável que se procure retribuir uma dádiva de maneira apressada. Há a busca

socialmente regulada pela equivalência na troca (ibid.: 81), mas não se pode impor essa

equivalência. Há essa expectativa de que o parceiro retribua de maneira equivalente na troca,

sob a pena de não ser considerado moralmente um bom parceiro para tal modo de aliança –

mas quebraria a etiqueta trobriandesa tentar impor, por meios coercitivos, a algum aliado, a

devolução de um presente mais valioso.

A noção de “posse” e a estima pela riqueza entre os trobriandeses mostra-se então

radicalmente distinta das noções modernas usuais, justamente porque ganham sentido no

interior da gramática da generosidade que ali opera25. Para os nativos do Kula, “possuir é dar”

(ibid.: 81):

Pressupõem que qualquer pessoa deve naturalmente partilhar seus bens e

deles ser o depositário e distribuidor. Além disso, quanto mais alta a

categoria social, maiores as obrigações. (...) A riqueza é, portanto, o

principal indício do poder – e a generosidade sinal da riqueza. Com efeito, a

25 Veremos no próximo capítulo a importância da generosidade entre os Yanomami, frequentemente destacada

por Davi Kopenawa.

35

avareza é o vício mais desprezado, constituindo entre os nativos a única

coisa sobre a qual eles fazem críticas morais realmente acerbas. A

generosidade, por outro lado, é tida como essência da bondade. (ibid. –

grifos meus)

A estima pela generosidade significa o desprezo à avareza, ao espírito mesquinho –

justamente aquele afeto que teve de ser considerado sagrado pela ética protestante,

especialmente calvinista, na aurora do capitalismo26.

Os símbolos de riqueza do Kula (os vaygu’a) não são usados nem considerados como

dinheiro ou moeda. Não são usados como valor de troca nem como medida de valor. Os

vaygu’a não são mercadorias. Seu valor está em si mesmo, e não em servir de meio para

atingir outros fins. O objetivo de um vaygu’a é meramente ser possuído e trocado; e sua

função se resume a circular ao longo do anel do Kula, enquanto estabelece alianças

intertribais e prepara rituais mágicos.

Entretanto, a despeito dos objetivos e impactos do Argonautas do Pacífico Ocidental,

Malinowski desenvolveu em outros textos27 os fundamentos funcionalistas clássicos do

conceito de cultura. E ali não há dúvida de que seu funcionalismo é umbilicalmente vinculado

ao individualismo e ao utilitarismo tipicamente britânicos. “Para Malinowski, o conceito de

função referia-se ao papel desempenhado pelas instituições sociais na satisfação das

necessidades básicas dos organismos individuais” (Viveiros de Castro 2002: 304). Eduardo

Viveiros de Castro chega a comentar, ironicamente, que a orientação individualista e

utilitarista teve Malinowski como seu “grande campeão antropológico” (id., ibid.). Não

precisamos nos alongar na análise desse aspecto de Malinowski, uma vez que já discutimos

longamente o utilitarismo e o individualismo enquanto vícios do pensamento ocidental. Basta-

nos indicar uma passagem da primeira página de seu artigo Que é Cultura?, em que a cultura

é concebida como um ambiente “secundário” que deve em primeiro lugar dar conta de

satisfazer exigências instintuais e fisiológicas “primárias”, para demonstrar que o expoente da

London School of Economics, por mais que tenha contribuído para destruir a noção de

homem econômico primitivo, não deixou de fortalecer, pelo outro lado, um conceito de

cultura apoiado numa acepçãoestreita, de fundo biológico, de “função”:

(...) em primeiro lugar consideramos implícito que a teoria da cultura deve

tomar sua posição baseada no fato biológico. Os seres humanos são uma

espécie animal. Estão sujeitos a condições elementares que têm de ser

atendidas de modo que os indivíduos possam sobreviver (...). Ademais, com

26 Como vimos no capítulo 1.

27 Cf. especialmente, Malinowski 1975: caps. IV, VII, VIII, IX e X.

36

sua bagagem de artefatos e sua capacidade para produzi-los e apreciá-los, o

homem cria um ambiente secundário. (...) A análise apenas esboçada, na

qual tentamos definir a relação entre uma realização cultural e uma

necessidade humana, básica ou derivada, pode ser denominada funcional.

Pois função não pode ser definida de nenhumaoutra maneira senão como a

satisfação de uma necessidade por uma atividade na qual os seres humanos

cooperam, usam artefatos e consomem bens ([1940] 1975: 42, 44).

* * * * *

Marcel Mauss leu os trabalhos de economia primitiva de Malinowski com grande

entusiasmo e organizou o seu Ensaio sobre a Dádiva – forma e razão da troca nas sociedades

arcaicas ([1924] 2003), articulando os fatos da Melanésia, com os fatos ligados ao potlatch

no Noroeste da América e fenômenos similares na Sibéria28.

Lévi-Strauss (2003: 32) tem razão ao elogiar o uso da noção de “função” em Mauss:

não mais como Malinowski, que buscava a função instrumental dos costumes, Mauss pensa a

função no sentido algébrico. Isto é, os costumes e valores existem em função uns dos outros,

de modo que é possível determinar relações constantes entre os valores sociais de um grupo e

de conhecer uns através dos outros. Mauss leva adiante a inspiração e curiosidade

malinowskiana pelos sistemas arcaicos de trocas de obrigações, porém abandona seu

empirismo ingênuo que busca em cada costume ou instituição um serviço prático prestado à

sociedade.

O Ensaio sobre a Dádiva marca uma virada importante para esse debate. Jamais existiu

a economia “natural”, é o que diz o sobrinho de Durkheim. E, de fato, as regras de direito

“arcaicas” que fazem com que os presentes recebidos sejam obrigatoriamente retribuídos,

Mauss nos ensina, levam-nos a compreender mecanismos sociopsicológicos que sempre

presidiram e ainda hoje suprem a noção de interesse individual (Mauss 2003: 188-190). A

diferença da economia moderna para a economia primitiva aponta, ao fim e ao cabo, para a

diferença entre concepções ontológicas. Em suma, o problema é que as economias primitivas

não operam com uma distinção clara entre “coisas” e “pessoas”. Nas economias e direitos

primitivos nunca há simples trocas de bens:

Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam

mutuamente, trocam e contratam (...). Ademais, o que eles trocam não são

exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis

economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços

28 Lygia Sigaud (1999: 95) indica que no ano letivo de 1923-24, Mauss trabalhou em seus cursos no College os

‘documentos de Malinowski sobre as Ilhas Trobriandesas, na Melanésia’. “No final do relatório do curso, é

anunciado que um resumo daquele ensinamento seria publicado em breve no Année Sociologique. Tratava-se,

certamente, do que viria a ser o próprio ED [Ensaio sobre a Dádiva].”

37

militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é

apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão

um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente”.

(Mauss 2003: 190-191)

Por isso, os próprios termos que empregamos não são inteiramente exatos. Apenas não

encontramos outros melhores em nossas línguas indo-europeias (cujas estruturas foram feitas

à imagem e semelhança das premissas ontológicas do Grande Divisor). Os conceitos de

direito e de economia que costumamos opor – liberdade e obrigação; liberalidade,

generosidade, luxo e poupança, interesse, utilidade – deveriam ser reelaborados para

descrever tais fenômenos (id.: 303). Não são exatos porque nesses mundos, ao contrário do

nosso, a generosidade não se opõe diretamente ao interesse, nem liberdade se opõe à

obrigação – e a natureza não se opõe à cultura, nem as coisas se opõem às pessoas.

É ainda uma noção complexa que inspira todos os atos econômicos que

descrevemos; e essa noção não é nem a da prestação puramente livre e

puramente gratuita, nem a da produção e da troca puramente interessadas

pelo útil. É uma espécie de híbrido que floresceu nessas sociedades (ibid. –

grifo meu)29.

Mauss chega, ao fim de seu longo ensaio, a conclusões morais e de economia política de

grande relevância. É também por isso que aqui neste ensaio optamos por trabalhar de maneira

conjunta e comparativa a moral, a economia política e a ontologia. No que se refere a moral,

Mauss conclui (o que será radicalizado por Bataille) que nas sociedades industriais, em suas

margens, ainda existem expressões deste sistema de trocas baseado na dádiva. Os valores

sociais ligados à reciprocidade, à generosidade e ao dispêndio, como meios de obtenção de

prestígio, estão por toda parte:

Assim, pode-se e deve-se voltar ao arcaico, ao elementar; serão

redescobertos motivos de vida e de ação que numerosas sociedades e classes

ainda conhecem: a alegria de doar em público; o prazer do dispêndio

artístico generoso; o da hospitalidade e da festa privada e pública. (ibid.:

299)

No que se refere a economia política, Mauss destaca que as imaginações dos

economistas e filósofos utilitaristas sobre a suposta economia “natural”, ou a suposta natureza

econômica humana, não passam de preconceitos. Que descreveriam mais as sociedades dos

próprios economistas do que as sociedades que chamaram de primitivas.

*****

29 Destaque-se o aparecimento, algo escondido, da noção de híbrido, nesse texto clássico de 1924, que ganhou

força conceitual no desnudamento da ontologia moderna feita por Bruno Latour (2013).

38

Georges Bataille ([1933] 2013) toma o ensaio de Mauss como base de sua teoria

filosófica do dispêndio improdutivo. Enquanto Malinowski e Mauss se atentam para a força

espiritual que há nas coisas que faz com que o sistema de trocas de obrigações funcione,

Bataille se atenta para a insuficiência do princípio da utilidade clássica em dar inteligibilidade

a todos esses fenômenos sociais ao ponto de propor um novo princípio (e uma nova teoria

econômica): o princípio da perda suntuária, do dispêndio improdutivo.

Bataille radicaliza ainda a ideia de que esses fenômenos não são exclusivos aos

mundos indígenas: veja-se, nas sociedades modernas, o culto às jóias, o prazer das festas

luxuosas, as práticas sexuais “perversas” (isto é, não orientadas para a reprodução), o êxtase

dos jogos, a celebração das artes (2013: 22-23)... A nova economia é a economia geral, por

oposição à economia particular praticada pelos economistas burgueses.

A “concepção lamentável” da utilidade clássica, diz Bataille, é incapaz de justificar

porque as sociedades humanas podem ter “interesse em perdas consideráveis, em catástrofes

que provoquem, de acordo com necessidades definidas, depressões tumultuosas, crises de

angústia e, em última análise, um certo estado orgíaco.” (ibid.: 20). A economia geral,

portanto, precisa levar absolutamente a sério a função social do dispêndio improdutivo e

introduzi-lo na base, tomando a produção e a aquisição como meios subordinados ao

dispêndio:

O caráter secundário da produção e da aquisição em relação ao dispêndio

aparece de modo mais claro nas instituições econômicas primitivas, pois a

troca ainda é tratada basicamente como uma perda suntuária dos objetos

cedidos: apresenta-se assim, basicamente, como um processo de dispêndio

sobre o qual se desenvolveu um processo de aquisição. (ibid.: 24)

Ao passo que nas sociedades “modernas”, vemos que as classes dominantes sempre

foram as classes que despendem e que organizam os fluxos sociais do dispêndio improdutivo,

suas justificativas e prerrogativas. E que, ao mesmo tempo, advogam pela produção, pela

aquisição e pela conservação de bens como um way of life – o ethos capitalista. Classes

dominantes e classes dominadas, classes que despendem e classes que produzem. Mas os

produtores também querem – e conseguem, nas margens do sistema – despender, exceder

limites... É que toda a ideologia calculista da conservação de bens e de seu consumo racional,

em suma, a ideologia do homo economicus, dirige-se mais às classes subalternas do que

exprime a situação das classes dirigentes que administram o capital (por mais calvinistas que

sejam).

Essa economia geral precisa partir de um ponto de vista cósmico. Deste ponto de vista,

39

a matriz do real é o excesso, a abundância, e não a carência, a falta, a miséria, como tendem a

pensar os economistas.

Na superfície do globo, para a matéria viva em geral, a energia está sempre

em excesso, a questão está sempre colocada em termos de luxo, a escolha

está limitada ao modo de dilapidação das riquezas. É para o ser vivo

particular, ou para os conjuntos limitados de seres vivos, que surge o

problema da necessidade (id., p.46). (...) A partir do ponto de vista

particular, os problemas são colocados em primeiro lugar pela insuficiência

dos recursos. São colocados em primeiro lugar por seu excesso, caso se

parta do ponto de vista geral. (ibid.: 58)

Bataille delinea assim as direções de uma filosofia da vida e da natureza apoiada na

superabundância de energia cósmica sobre a superfície do globo, que é apenas dilapidada,

modulada, pelos seres vivos, dentre eles o ser humano. Todo ser vivo é por assim dizer uma

expressão luxuosa da abundância energética da vida. E a atividade humana é basicamente

condicionada por esse movimento geral da vida. Percebe-se que é uma filosofia da vida

totalmente diferente do que a tacanha filosofia da vida de Stuart Mill, do cálculo racional para

a felicidade. A economia, para Bataille, é a do excesso, e a política, uma soberania do inútil.

Lévi-Strauss ([1949] 2012) parece concordar com Bataille ao sublinhar o caráter

especialmente “supraeconômico” (2012: 94) de instituições similares ao potlatch, em que

prevalecem aspectos ético-estéticos, ou simbólico-morais, e subsiste o caráter econômico num

plano limitado e subordinado, secundário.

N’O pensamento selvagem ([1961] 1997), Lévi-Strauss endossa a crítica ao

utilitarismo enquanto modelo explicativo dos sistemas de pensamento indígenas. Aponta o

erro cometido por Malinowski ao buscar explicar o interesse dos primitivos pelas plantas e

animais totêmicos pelos “reclamos de seu estômago” (1997: 22). Toma como ponto de partida

a observação de que esses sistemas de pensamento tão complexos não poderiam ter sido

desenvolvidos em função de uma mera utilidade prática. Certamente expressam uma

criatividade assídua, um desejo de conhecer pelo prazer de conhecer.

Daí, Lévi-Strauss compara a ciência moderna com o pensamento mítico dos selvagens.

O que ambos sistemas de pensamento compartilham é o fato de que constituem sistemas

classificatórios – classificam e ordenam o real, ainda que segundo meios e finalidades

distintas. A base de todo pensamento é a ordenação do universo. Com efeito, a verdadeira

oposição discutida por Lévi-Strauss não se dá tanto entre o pensamento dos selvagens (nem

de uma humanidade primitiva e arcaica) e o pensamento dos modernos, mas entre o

pensamento em estado selvagem e o pensamento cultivado ou domesticado com vistas a obter

um rendimento (id. ibid.: 245). O modelo do pensamento científico é o do engenheiro, e o do

40

pensamento mítico é o do bricoleur. O primeiro, opera com conceitos; o segundo, opera com

signos. Expressam, assim, diferenças significativas de concepção da relação entre natureza e

cultura. É que o pensamento selvagem postula uma humanidade de fundo a todo o real:

A diferença, portanto, não é tão absoluta quanto seríamos tentados a

imaginar; entretanto, permanece real na medida em que, em relação a essas

limitações que resumem um estado da civilização, o engenheiro sempre

procura abrir uma passagem e situar-se além, ao passo que o bricoleur, de

bom ou mau-grado, permanece aquém, o que é uma outra forma de dizer que

o primeiro opera através de conceitos, e o segundo, através de signos. No

eixo de oposição entre natureza e cultura, os conjuntos dos quais ambos se

servem estão perceptivelmente deslocados. Com efeito, pelo menos uma das

maneiras pelas quais o signo se opõe ao conceito está ligada a que o segundo

se pretende integralmente transparente em relação à realidade, enquanto o

primeiro aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja

incorporada ao real. Segundo uma expressão vigorosa e dificilmente

traduzível de Peirce: It addresses somebody (id.: 35).

Essa ideia está na base da atitude perspectivista e multinaturalista do pensamento ameríndio, e

é especialmente notável nas formulações de Davi Kopenawa, como veremos no terceiro

capítulo.

2.3 – Sociedades selvagens: contra o Estado e contra a Economia

As contribuições de Pierre Clastres e de Marshall Sahlins são também significativas

para nosso argumento. Clastres (2011; 2012) operou uma revolução nos estudos de

antropologia política e na etnologia americanista em geral ao tomar a ausência de Estado nas

sociedades indígenas como indício de toda uma filosofia política contra o Estado. A literatura

científica, até então, se esforçava por explicar quais os fatores teriam sido determinantes para

a falta de Estado nas sociedades indígenas, sempre lida como carência de um Estado. Seriam

os fatores climáticos? Seria o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas? Seria,

talvez, incapacidade cognitiva?...

Todas essas formas de colocar o problema partem do ponto de vista da escassez, da

falta, portanto, do ponto de vista particular a que Bataille aludia. Ou ainda um ponto de vista

que enxerga as sociedades indígenas apoiado num critério transcendental, alheio a realidade

indígena: o vínculo entre sociedade e centralidade política. O que nos leva a entender melhor

os mundos indígenas é, porém, partir do ponto de vista da abundância, do excesso: não há

escassez de meios materiais a determinarem suas decisões político-ideológicas; é antes uma

racionalidade institucional “de sobra”, que transborda para todos os lados, por ser

cosmopolítica, que inibe a aparição de centros de poder. O que só se apreende por uma

41

abordagem que desdobre os princípios sociais ameríndios em seus próprios termos, na

imanência de suas práticas. Esta filosofia política, tal como identificada por Clastres e

generalizada em termos cosmo-ontológicos por Viveiros de Castro, impregna o tecido social e

regula tanto as relações entre humanos quanto entre humanos e não-humanos.

Clastres elogia o trabalho de Sahlins (1972), que de alguma maneira completa o seu

argumento da filosofia política indígena, desta vez estendendo-o para a instância econômica.

Os índios não tem Estado porque não querem o ter: igualmente, não tem uma economia

acelerada, não produzem grandes excedentes, porque não o querem. Inibem a formação de

uma classe separada da sociedade que se destine a controlar as decisões políticas ou a

controlar as reservas de excedentes. De fato, há farto material etnográfico de todo o globo

terrestre que constata que as sociedades chamadas primitivas tem capacidade de produzir

acima de suas necessidades imediatas. A questão toda é, então, a dos meios pelos quais esta

produção excedente é, quando realizada, consumida e consumada. Como vimos, estes meios

são ocasiões rituais para dispêndios coletivos. Festas de todo tipo, como as que se passam

num circuito Kula melanésio, ou no potlatch do noroeste americano, ou ainda as festas

funerárias reahu dos Yanomami. Por isso são, a bem da verdade, as primeiras sociedades da

abundância, como diz Sahlins. A produção das riquezas encontra-se subordinada aos

princípios da reciprocidade, da generosidade e do dispêndio coletivo. De modo que a

economia não chega a existir ali, portanto, como uma instância autônoma do campo social. O

que o trabalho de Sahlins impõe, então, é a descoberta de que as sociedades primitivas são

sociedades da recusa da economia, comodisse Clastres (2011: 173). Sociedades selvagens:

contra o Estado e contra a Economia.

2.4 – Jamais fomos utilitaristas

Essas contribuições teóricas e etnográficas desmontam o princípio da utilidade clássica

enquanto princípio norteador da atividade humana, por descreverem práticas de nossa

sociedade e das sociedades chamadas primitivas que são reguladas em função de outros

valores que não a estrita racionalidade do interesse.

O indivíduo racional e interesseiro não constitui uma forma universal da natureza

humana, mas antes uma forma limitada ao pensamento moderno e burguês (Marx). Não há

instrumentalidade que dê conta de explicar as economias morais da reciprocidade

(Malinowski e Mauss). Esses sistemas econômico-morais mostram uma generosidade que não

se opõe imediatamente ao “interesse”, liberdade que não se opõe à obrigação. Na base desses

42

processos o que se identifica é a soberania do princípio da perda suntuária, do dispêndio

improdutivo (Bataille). Uma soberania do inútil, postulada como primeira instância de

qualquer economia, desde que considerada sob o ponto de vista geral. Não há, além do mais,

“necessidade prática” ou “utilidade”, que dê conta de reconhecer a complexidade do

pensamento indígena, esta ciência do concreto (Lévi-Strauss). Nem reducionismos pela via

das condicionantes materiais que justifique a recusa ao Estado e a recusa à economia como

esfera autônoma do meio simbólico-moral (Clastres e Sahlins).

De fato, nenhuma sociedade nunca funcionou estritamente de acordo com a

representação do mundo utilitarista. Nós, portanto, jamais fomos realmente utilitaristas, e é

este paradigma que devemos questionar hoje para que possamos compreender nosso mundo

lido pelos olhos do xamã yanomami Davi Kopenawa.

43

CAPÍTULO 3 - O “ESPÍRITO” DO CAPITALISMO SEGUNDO O XAMÃ

YANOMAMI DAVI KOPENAWA

As mercadorias deixam os brancos eufóricos e esfumaçam todo o

resto em suas mentes. Nós não somos como eles. Mais do que nos

objetos que queremos possuir, é nos xapiri que nosso pensamento fica

concentrado, pois só eles são capazes de proteger nossa terra e de

afastar para longe de nós tudo o que é perigoso. Se os brancos

pudessem, como nós, escutar outras palavras que não as da

mercadoria, saberiam ser generosos e seriam menos hostis conosco.

Também não teriam tanta gana de comer nossa floresta.

Davi Kopenawa

3.1 – Uma contra-antropologia contra-ontológica

O espírito do capitalismo mantém, desde seu nascimento, como vimos no primeiro

capítulo, núpcias com o espírito científico.

A ciência pode estudar tudo, menos a si própria. Transforma as coisas em objetos de

ciência – mas não consegue por em questão os pressupostos ontológicos de sua própria

atividade científica: a distinção clássica entre Natureza e Cultura.

O capitalismo, igualmente, regula tudo segundo sua lógica própria: transforma

qualquer coisa em mercadoria. Só não consegue autorregular sua lógica interna, feita

soberana, autônoma, desimpedida. Os princípios lógicos (axiomas) que ordenam a vida social

no capitalismo só se transformam o tanto necessário para capturar novos elementos a sua

engrenagem sistêmica. O capitalismo só se reinventa por meio de novos fluxos descodificados

com a finalidade de ampliar, ao fim e ao cabo, o domínio de sua axiomática – expandir seus

limites interiores, aumentar a escala de reprodução e acumulação de capital. O capitalismo

instaura, assim, “uma escravidão incomparável, uma sujeição sem precedente” (Deleuze &

Guattari 2011: 337), pois instaura uma sujeição à axiomática da acumulação de capital, e não

tanto ao gozo de uma classe dominante, como na máquina imperial bárbara (id. ibid.). A

classe dominante no capitalismo é, grosso modo, apenas representante do desejo do capital –

ele mesmo abstrato, auto-regulado, tornado autônomo e venerado: “produzir por produzir”: o

capital-Deus, o capitalismo como religião. Nesse sentido, o burguês, embora situado na ponta

da pirâmide social, não é tanto um senhor, mas antes o maior dos escravos: o “primeiro

servidor desta máquina esfomeada, besta de reprodução do capital, interiorização da dívida

infinita. Eu também sou escravo, são estas as novas palavras do senhor” (Deleuze &Guattari

2011: 337). A particularidade dos modernos-capitalistas, então, talvez não seja tanto a de

44

desfrutar exclusivamente dos privilégios da ciência e do acesso às “coisas como elas são”;

mas de ser a sociedade que atingiu maior êxito numa busca desenfreada e inconseqüente por

ser governada por fórmulas abstratas30. Davi Kopenawa identifica essa servidão do desejo ao

capital como a pedra de toque do esfumaçamento do pensamento dos napë: “Por quererem

possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se

esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas” (Kopenawa &

Albert 2015: 407-408 – grifo meu)31.

Perguntamo-nos, diante disso: é possível pensar a ciência e o capitalismo sem partir

das premissas da própria ciência e do capitalismo? Ou, como estudar o mundo moderno sem

partir das premissas do mundo moderno? É a questão que se coloca uma antropologia

simétrica. A tarefa da antropologia simétrica é estudar o mundo moderno sem partir da

metafísica moderna (Latour 2013: 20).

Neste trabalho, nos ocupamos até agora da análise dos fundamentos filosóficos do

modo de vida capitalista, bem como da crítica destes fundamentos realizada segundo algumas

linhas de força do pensamento social ocidental.Vimos como Adam Smith pensava os povos

indígenas. Vimos, também, como, de várias formas, já se criticou esse efeito de ótica

eurocêntrico, que impede ao nosso pensamento uma aproximação mais fiel às filosofias

nativas. Agora, é a vez de acompanharmos o que pensa o xamã yanomami Davi Kopenawa a

respeito do modo de vida e dos hábitos de pensamento do homem branco.

A crítica xamânica da relação doentia mantida pela civilização capitalista com a Terra

e com as minorias indígenas exposta em A queda do céu marca uma virada fundamental no

diálogo historicamente assimétrico entre indígenas e a maioria não indígena. É essa virada ou

“rotação de perspectiva” que acompanharemos nas páginas seguintes. Talvez, daí, possamos

chegar a algumas conclusões a propósito de uma metafísica comparada pela via da

antropologia.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert é uma contra-antropologia histórica do

mundo branco (Albert 2015: 542) e a primeira tentativa sistemática de antropologia simétrica

30 Vale lembrar o posfácio ao Capital em que Marx indica a virulência do entrecruzamento da ciência com o

capitalismo: a ciência não teria nada que ver com a busca pelas causas produtivas dos fenômenos (se é que

alguma vez já teve...). A ciência se tornaria apenas um instrumento policialesco da manutenção do domínio do

capital (Marx 2013: 86).

45

do Antropoceno32 (Viveiros de Castro 2015b: 24). Ali, temos, rigorosamente elaborada, uma

descrição da ordenação do mundo segundo outra cosmologia. E uma reflexão sobre os

Brancos (napë) segundo outra antropologia. A contra-interpretação indígena da civilização

capitalista – “o povo da mercadoria” – nos fornece uma visão inédita do mau encontro

histórico entre os povos indígenas da América e os estrangeiros (napë) que a invadiram

(Albert 2015: 43). Justamente porque o “homem”, ali, é outra coisa, que não um estado de

exceção ontológico, como para os modernos. O “mundo” ou “cosmos” ali não se mantêm em

equilíbrio em função de engrenagens físico-químicas: mas antes por acordos políticos entre

agentes, normalmente, invisíveis. E a “natureza” não existe como entidade estritamente

objetiva, que “está aí à toa”, como diz Kopenawa – quase como se estivesse esperando para

ser dominada técnica e cientificamente pelos homens (o ponto culminante da evolução das

espécies, como supõe a vulgata filosófica moderna). O termo yanomami que se traduz por

“natureza”, Urihi-a, indica antes um conjunto complexo de relações entre humanos e extra-

humanos que assegura a estabilidade cosmológica da terra-floresta, como nos ensina Davi

Kopenawa:

O que eles chamam de natureza é, na nossa língua antiga, Urihi a, a terra-

floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que

nomeamos Urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores

estão vivas. Assim, o que chamamos de espírito da floresta são as

inumeráveis imagens das árvores, as das folhas que dão seus cabelos e as dos

cipós. São também as dos animais e dos peixes, das abelhas, dos jabutis, dos

lagartos, das minhocas e até mesmo as dos grandes caracóis waramaaka. A

imagem do valor de fertilidade nëroperi da floresta também é o que os

brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá a sua riqueza. De

modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza,

e não os humanos. Os espíritos sapo, os espíritos jacaré e os espíritos peixe

são os donos dos rios, assim como espíritos arara, papagaio, anta e veado e

todos os outros espíritos animais são os donos da floresta. Assim é. Os xapiri

estão constantemente circulando por toda a mata, sem sabermos. São eles

que, vindo das montanhas, fazem surgir os ventos com suas corridas e

brincadeiras, tanto a brisa do tempo seco, iproko, como o vento da época das

cheias, yari. São os espíritos da chuva maarique descem do céu para

refrescar a terra com suas águas e mandar embora o tempo de epidemia. Por

isso, se os xapiri ficassem longe de nós, sem que os xamãs os fizessem

dançar, a floresta ficaria quente demais para podermos continuar vivos nela

por muito tempo. Seus seres maléficos nëwari e os espíritos da epidemia

32Antropoceno é “a época geológica atual que, na opinião crescentemente consensual dos especialistas, sucedeu

ao Holoceno, e no qual os efeitos da atividade humana – entenda-se, a economia industrial baseada na energia

fóssil e no consumo exponencialmente crescente de espaço, tempo e matérias-primas - adquiriram a dimensão

de uma força física dominante no planeta, a par do vulcanismo e dos movimentos tectônicos.” (Viveiros de

Castro 2015b: 24).

46

xawarari viriam morar perto de nossas casas e não parariam mais de nos

devorar. (Kopenawa&Albert 2015: 475)

A conclusão que a antropologia chega ao passar pela análise cuidadosa destes fatos

etnográficos tão recorrentes nas sociedades ditas primitivas – quais sejam, interações sociais

com “donos” dos animais, das plantas, senhores dos ventos e trovões, protetoras dos rios,

espíritos invisíveis que garantem a fertilidade do solo, etc., que reportam de maneira gritante a

mobilização prática de outras antropologias e outras cosmologias – é a de que tais formas de

pensamento se apoiam numa outra ontologia. Que despreza, desloca, sobrepõe, confunde e

imbrica o “nosso” Grande Divisor: Natureza e Cultura.

A linha de força do pensamento antropológico que chega, esquematicamente, a essa

constatação – as sociedades primitivas operam, em sua dimensão prática e semiótica, com

termos de uma ontologia radicalmente distinta da ocidental, de tal modo que corremos o

risco de não estarmos a fazer efetivamente “antropologia” enquanto não levarmos a sério as

imaginações conceituais nativas – se configurou a partir dos anos 1980 e ficou conhecida

como operadora de uma virada ontológica. Esta virada propõe, em linhas gerais, a criação de

novos conceitos a partir de etnografias interessadas em descrever outros modos de descrição

do mundo (Sztutman 2013: 149).

Assim, a tarefa da antropologia, desde que concebida enquanto movimento de

“descolonização permanente do pensamento” (Viveiros de Castro 2015b: 20), é a de

modificar o conceito de “humano” que recebemos de herança de nossa tradição intelectual

letrada em função dos conceitos de “humano” verificados nas narrativas indígenas. Subversão

da antropologia dominante (colonialista, messiânica) pela antropologia indígena

(antropófaga): uma contra-antropologia ou antropologia reversa. Que só ganha sentido e

robustez no interior de uma outra ontologia, isto é, segundo outras premissas fundamentais

sobre a natureza do real. O exercício em jogo é, então, o de formular uma contra-

antropologia contra-ontológica, como disse Eduardo Viveiros de Castro33, levando

absolutamente a sério o que diz a palavra nativa. Talvez assim seja possível atingir uma

visada sobre nossa civilização, capitalista e científica, que ponha em cheque seus pressupostos

(que enquadram de antemão o que é e deve ser a vida), a favor de uma abertura ética, estética,

política e especulativa a modos alternativos devida.

33Colhido de sua fala de encerramento da conferência “Variações do Corpo Selvagem”, proferida no SESC-SP

em 28 de outubro de 2015. Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=nkwWnDmepDc,

acessado em 10/01/2017.

47

Esta definição da antropologia segundo Viveiros de Castro reabilita pela via da

simetrização(Latour [1991] 2013), da reversibilidade (Wagner, [1975] 2012) e da

reflexividade (Strathern [1986] 2013) uma antropologia comparada. Que trata de sistematizar

e generalizar esses dados etnográficos comuns a boa parte do continente americano, de modo

a valorizar os pressupostos cosmo-ontológicos comuns que se apresentam na base desses

dados, para permitir o confronto com as premissas cosmo-ontológicas do Ocidente.

Aproximar as atitudes mentais ameríndias semelhantes para melhor destacar suas diferenças

com relação à atitude mental da civilização capitalista (que chamamos aqui de o cogito da

mercadoria, que é, mutatis mutandis, o pensamento domesticado com vistas a ganhos de que

fala Lévi-Strauss).

É significativo destacar, por ora, que, como indica Taylor (1984), as terras baixas da

América do Sul foram a última região geográfica do planeta a ser etnografada. Os povos

americanos só receberam especial atenção dos antropológos desde a inflexão vivida pela

etnologia napassagm dos anos ’70 para ’80, marcadamente em função do Congresso dos

Americanistas em Paris, em 1976. A autora destaca A Sociedade Contra o Estado [1974], de

Pierre Clastres, e a série das Mitológicas de Lévi-Strauss [1964-1971] dentre as poucas obras

de consistência teórica voltada para as sociologias indígenas sul-americanas existentes à

época.

Na década de 1980, o campo do americanismo viveu uma intensificação da produção

de monografias, solidificando um arcabouço de dados. O que possibilitou o desenvolvimento

de teorias etnográficas mais sofisticadas sobre os modos de vida ameríndios, até então pouco

conhecidos. A etnografia de Tânia Stolze Lima entre os Juruna (1995, 1996), em diálogo com

Eduardo Viveiros de Castro, desemboca enfim, nas teses do perspectivismo e do

multinaturalismo na América indígena. Vale acompanhar algumas dessas teses, que

expressam fina sintonia com o pensamento de Davi Kopenawa.

A etnologia verifica recorrentemente que, entre os ameríndios, a espécie humana não é

concebida como uma espécie “a parte” dentre as demais espécies naturais. Ao contrário, é

muito comum, nos povos do continente, a concepção segundo a qual, “o mundo é habitado

por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem

segundo pontos de vista distintos” (Viveiros de Castro 2002: 347). Nesse sentido, a

humanidade constitui, por assim dizer, o substrato universal dos seres vivos. Não o ser

humano enquanto espécie (‘human kind’), mas, precisamente, a humanidade enquanto

48

condição de pessoa (‘humanity’). O que é concebido como universal aos seres é a posição de

sujeito – enquanto que suas particularidades dizem respeito às diferenças entre seus corpos34.

Daí que tenha se cunhado o termo multinaturalismo: que expressa a ideia segundo a qual os

diferentes corpos-naturezas que se distribuem no cosmos são como roupas que escondem um

mesmo interior, formalmente idêntico à consciência humana. O que é o inverso simétrico do

multiculturalismo habitual ao pensamento moderno: que supõe a universalidade da natureza e

dos corpos físicos, e a particularidade do espírito e das diferenças culturais. O

antropomorfismo ameríndio é o avesso do antropocentrismo típico a modernidade ocidental.

Com efeito, é característico do pensamento ameríndio a suposição de que toda forma

de existência possui, potencialmente, uma dimensão humana que é, em condições normais,

invisível. Na experiência ordinária, os homens se vêem a si próprios como humanos e os

animais como animais. Assim, se alguém vê espíritos dos mortos ou não-humanos como

humanos, sabemos que as ‘condições’ não estão normais (id. ibid.: 350)...Via de regra, essa

dimensão humana dos seres não-humanos, ou melhor, extra-humanos, só aparece em

condições especiais (como o transe ou os sonhos), mais comumente entre os xamãs. Por sua

vez, os animais predadores e os espíritos vêem os humanos como animais de presa, ao passo

que os animais de presa vêem os humanos como espíritos ou animais predadores (id.: ibid.).

Davi Kopenawa nos dá o exemplo do ponto de vista dos seres maléficos nëwari, que tomam

os yanomami como presas, comem de sua carne aos poucos, deixando-os doentes:

Quando nos encontram na floresta, os seres maléficos nëwari nos

consideram como suas presas. Vêem-nos como macacos-aranha e a nossos

filhos como papagaios. É verdade! É o nome que nos dão. De modo que

nunca poderíamos sobreviver sem a proteção dos xapiri, que os nëwari

temem como inimigos ferozes. (Kopenawa, Albert 2015: 177-178)

Essa qualidade perspectiva do pensamento ameríndio nos leva a identificar que as

noções cosmológicas de “natureza/objeto” e “cultura/sujeito” não designam ali regiões do ser,

mascategorias relacionais, mutáveis, em perpétua disputa. Designam, com efeito, pontos de

vista. A ideia fundamental desse modo de pensamento é a de que toda relação é uma relação

social, o que se torna mais nítido na análise da caça, da guerra e do xamanismo. A posição de

humano está eminentemente em disputa nessas relações: entre a caça e o caçador, entre o

guerreiro e seu inimigo, entre os espíritos maléficos que roubam ou violentam a alma do

doente e os espíritos convocados pelo xamã que fazem guerra aos primeiros e resgatam a alma

34 Eduardo Viveiros de Castro nos atenta que não se trata do corpo enquanto ente fisiológico, mas sobretudo do

corpo como expressão de um conjunto de modos singulares de ser que constituem um habitus (2002: 380).

49

do doente, realocando-a em seu corpo, curando-o35. Não se sabe, de antemão, digamos assim,

se é dia da caça ou do caçador. Por conta da grande recorrência de contextos nativos descritos

segundo o idioma da predação, convencionou-se tomar o pensamento amazônico como uma

“metafísica da predação” (Lima 1996; Lévi-Strauss 2000; Bonilla 2005; Viveiros de Castro

2015a). Como Viveiros de Castro resumiu ironicamente: a questão para o pensamento

ameríndio é “quem come quem”.

Essa atitude do pensamento indígena (tomar toda relação como uma relação social,

inter-subjetiva) é particularmente observável ainda, como se sabe, nos mitos, que contam

quase sempre histórias da especiação. Isto é, histórias sobre como cada ser se tornou uma

espécie definida e distinta partindo de um fundo humano comum, partindo de uma

indiscernibilidade originária entre os homens e os animais (Lévi-Strauss & Eribon 1988: 193).

Tal indiscernibilidade não consiste propriamente numa indiferenciação pura e simples, pois os

humanos e os animais não chegam a ser identificados uns com os outros – trata-se, na

verdade, de um estado de diferenciação interna, intensiva e infinita entre o humano e o

animal, que só se torna externa, extensiva e finita pela via da especiação pós-mítica (Viveiros

de Castro 2006: 323). Disso o bom-senso ameríndio conclui que os humanos continuaram

iguais a si mesmos e os não-humanos são, com efeito, ex-humanos e, no fundo, ainda

humanos (idem 2002: 355).

Há muito e muito tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos

antepassados, que eram humanos com nomes animais, se metamorfosearam

em caça. Humanos-queixada viraram queixadas; humanos-veado viraram

veados; humanos-cutia viraram cutias. Foram suas peles que se tornaram as

dos queixadas, veados e cutias que moram na floresta. De modo que são

esses ancestrais tornados outros que caçamos e comemos hoje em dia. As

imagens que fazemos descer e dançar como xapiri, por outro lado, são suas

formas de fantasma. São seu verdadeiro coração, seu verdadeiro interior. Os

ancestrais animais do primeiro tempo não desapareceram, portanto.

Tornaram-se os animais de caça que moram na floresta hoje. Mas seus

fantasmas também continuam existindo. Continuam tendo seus nomes de

animais, mas agora são seres invisíveis. Transformaram-se em xapiri que são

imortais. (...) Nós também, por mais que comamos carne de caça, bem

sabemos que se trata de ancestrais humanos tornados animais. São habitantes

da floresta, tanto quanto nós. Tomaram a aparência de animais de caça e

vivem na floresta porque foi lá que se tornaram outros. Contudo, no primeiro

tempo, eram tão humanos quanto nós. (Kopenawa & Albert 2015: 117)

35 Como os seres compartilham de uma mesma humanidade de fundo, tem-se que os espíritos maléficos

devoradores de humanos (que causam suas doenças) são espíritos canibais. Isso é particularmente importante

para a discussão a respeito do “ouro canibal” adiante.

50

Os conceitos de perspectivismo e multinaturalismo abrem mais alguns contrastes que

nos ajudam a desdobrar a densidade filosófica das palavras de Kopenawa. Da noção de

humano como fundo universal compartilhado por todos os seres deriva-se uma metafísica da

alteridade radicalmente avessa à ocidental. Nossa tradição moderna concebe o Outro sob a

forma do objeto, da coisa–seja a Natureza que é coisificada, tornada “recursos naturais”, seja

outro grupo social, que por ser destituído de humanidade pode ser colonizado, explorado,

etc... Ao passo que os índios tomam o Outro sob a forma do sujeito, da pessoa: o modelo da

alteridade é a pessoa, sejam as multidões de seres invisíveis que povoam os céus, a floresta e

os rios – “Não pensem que a floresta é vazia. Embora os brancos não os vejam, vivem nela

multidões de espíritos, tantos quantos animais de caça” (id. ibid.: p.118)– sejam os inimigos

de guerra36 cuja humanidade nunca é posta em questão (Viveiros de Castro 2002: cap 4).

Se o outro não é, a priori, uma coisa, mas uma pessoa, conhecê-lo envolverá

igualmente um ideal epistemológico que leve em conta essa pressuposição. Os modernos,

como sabemos, primam pela objetivação dos fenômenos, descrevê-los como coisas, segundo

leis físicas etc. O ideal epistemológico indígena é, na contra-mão, o da subjetivação: a

inteligibilidade dos fenômenos é atribuída a possibilidade de deduzi-los de causas subjetivas.

De remontá-los a uma ou várias agências(extra-)humanas que constituem “razão suficiente e

causa eficiente” do fenômeno(Viveiros de Castro 2015b: 12). A questão para o pensamento

indígena é investigar o “quem das coisas”, para tomarmos a famosa expressão de Guimarães

Rosa. Enquanto para os modernos a questão prioritária é reduzir o “quem” às coisas.

Por isso, para os Yanomami (e para os povos indígenas em geral), estudar, não

envolve passar pela escola decorando os desenhos “nas peles de papel” dos brancos, como diz

Kopenawa tantas vezes. Mas sim aprender a ouvir as palavras dos xapiri, aprender seus cantos

e suas danças de apresentação, travar relações com eles nos sonhos. O sonho e as viagens

alucinatórias xamânicas constituem, com efeito, a principal via para o conhecimento. É essa a

escola indígena, onde aprendem “as coisas de verdade” (Kopenawa &Albert 2015: 77).

36 Sobre a oposição entre a guerra entre os brancos e a guerra ameríndia, Davi Kopenawa, mais uma vez, é

preciso em seu comentário: “Embora os brancos se achem espertos, seu pensamento fica cravado nas coisas ruins

que querem possuir, e é por causa delas que roubam, insultam, combatem e por fim matam uns aos outros. É

também por causa delas que maltratam tanto todos os que atrapalham sua ganância. É por isso que, no final, o

povo realmente feroz são eles! Quando fazem guerra uns com os outros, jogam bombas por toda parte e não

hesitam em incendiar a terra e o céu. (...) Somos outra gente. Só nos flechamos quando queremos resgatar o

valor de sangue de um dos nossos; só quando queremos tornar recíproco o estado de homicida õnokae daqueles

que o mataram. (...) Os brancos não podem dizer que somos maus e ferozes apenas porque queremos vingar

nossos mortos! Não matamos ninguém por mercadorias, por terra ou por petróleo, como eles fazem! Brigamos

por seres humanos. Guerreamos pela dor que sentimos por nossos parentes recém-falecidos.” (Kopenawa &

Albert 2015: 442-445)

51

Podemos dizer, portanto, que toda filosofia amazônica é essencialmente um “onirismo

especulativo” – “em que a imagem tem toda a força do conceito, e em que a experiência

ativamente ‘extrospectiva’ da viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção

ascética e meditabunda” (Viveiros de Castro 2015b: 39-40).

Nós somos habitantes da floresta. Nosso estudo é outro. Aprendemos as coisas

bebendo o pó de yãkoana com nossos xamãs mais antigos. Nos fazem virar

espírito e levam nossa imagem muito longe, para combater os espíritos

maléficos ou para consertar o peito do céu. É assim que os xamãs nos fazem

conhecer os xapiri, abrem seus caminhos até nós e os mandam construir

nossas casas de espíritos. Nos ensinam também a palavra de seus cantos e a

fazem crescer em nosso pensamento. (...) É assim que aprendemos a pensar

direito com os xapiri. É esse o nosso modo de estudar e, assim, não

precisamos de peles de papel. O poder da yãkoana nos basta! É ela que faz

morrer nossos olhos e abre nosso pensamento. É verdade. Com olhos de

vivente, não é possível realmente ver as coisas. (Kopenawa& Albert 2015:

458)

Como o modelo geral de inteligibilidade dos fenômenos nesses regimes é o humano

(isto é, o da intencionalidade, da agência), toda sociologia é cósmica e toda política envolve,

na verdade, relações cosmopolíticas. Por assim dizer, há como que um direito internacional

das espécies que regula as relações entre os humanos ‘imediatos’ e os cidadãos extra-humanos

(as multidões incontáveis de espíritos auxiliares xapiri) envolvendo prescrições e restrições

morais que devem ser rigorosamente respeitadas sob a pena de se perder a estabilidade

cosmológica e retornar ao caos: a queda do céu sendo a imagem maior desse movimento nas

palavras de Davi Kopenawa.

Os xapiri já possuíam a ecologia quando os brancos ainda não falavam nisso.

São eles que, desde sempre, combatem os seres maléficos nëwãri, afugentam

o ser do tempo chuvoso Ruëri, acalmam os seres trovão, impedem a terra de

cair no caos e o céu de desabar (ibid.: 483-484 – grifo meu).

Se tudo tem um fundo humano oculto, toda relação assume a forma da relação social e

envolve cuidados éticos. O que faz do mundo um lugar perigoso, povoado por múltiplas

intencionalidades poderosas e invisíveis, dotadas de perspectivas próprias. As ações sobre o

que chamamos de “natureza” não põem em jogo apenas causas físicas mas, sobretudo,

cosmopolíticas e metafísicas. Todo manejo prático do que chamamos em nosso linguajar

burocrático “recursos naturais” envolve, de fato, cuidados rituais, manipulações de objetos

mágicos, acordos inter-específicos, que assegurem a boa realização da empreitada. O caçador

que come a carne de sua própria caça, por exemplo, é mal visto pelos xapiri, nos explica

Kopenawa (id. ibid.: 473-475). E toda carne precisa ser dessubjetivada para poder ser comida,

52

de modo a evitar imbróglios metafísicos entre a alma (humana) do animal caçado e a alma do

comedor. Esse perigo e esses cuidados altamente ritualizados parecem infundados,

desnecessários e exagerados aos olhos dos brancos, que preferem permanecer surdos às

palavras dos índios e dos espíritos (id. ibid.: 476).

Assim, nesse mundo onde toda coisa é humana, o humano é, certamente, “toda uma

outra coisa” (Viveiros de Castro 2015a: 54). Há que se compreender que mundo é esse, e por

quem ele é habitado, para alcançarmos, aproximadamente, o ângulo sob o qual lhe aparece

nossa civilização industrial e nossos hábitos dominantes de pensamento.

3.2 – Davi Kopenawa, os Yanomami e o contato com o povo da mercadoria: a

fumaça do metal e o ouro canibal

Feita essa introdução às bases ontológicas do pensamento ameríndio, caberia

apresentarmos aqui, resumidamente,os Yanomami no Brasil e um pouco da história de vida de

Davi Kopenawa, bem como a relação do xamã com Bruce Albert, antes de concluirmos com a

interpretação xamânica da paixão pela mercadoria.

Davi Kopenawa nasceu por volta de 1956 no norte da Amazônia brasileira, no alto rio

Toototobi (AM), num mundo ainda afastado dos brancos. Desde sua infância foi confrontado

com os sucessivos protagonistas do avanços da fronteira regional: agentes do Serviço de

Proteção aos Índios [SPI], militares da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites [CBDL],

missionários evangélicos sobretudo da New Tribes Mission, trabalhadores de estradas,

garimpeiros e fazendeiros (Albert 2005: 43). Tomo a liberdade de transcrever, a seguir,

passagens do Prólogo de A Queda do Céu que nos trazem informações históricas valiosas.

Os primeiros contatos, esporádicos, dos Yanomami do Brasil com os brancos,

coletores de produtos da floresta, viajantes de estrangeiros, militares das

expedições de demarcação de fronteiras ou agentes do SPI datam do início do

século XX. Entre as décadas de 1940 e 1960, algumas missões (católicas e

evangélicas) e postos do SPI se instalaram na periferia de suas terras, abrindo

assim os primeiros pontos de contato regular, fontes de obtenção de bens

manufaturados e também de vários surtos de epidemias letais. No início da

década de 1970, esses primeiros avanços da fronteira regional seriam

bruscamente intensificados, primeiro pela abertura de um trecho da Perimetral

Norte ao sul das terras yanomami em 1973 e, passados dez anos de trégua,

com a irrupção de uma corrida pelo ouro sem precedentes em sua região

central, em 1987. A construção da estrada foi abandonada em 1976, e a

invasão dos garimpeiros, relativamente contida a partir de meados da década

de 1990. Entretanto, intensas atividades de garimpo foram retomadas nestes

últimos anos e, além disso, a integridade da Terra Indígena Yanomami vem

sofrendo novas ameaças, tanto de companhias mineradoras como da frente

agropecuária local, interessadas em expandir suas atividades no oeste do

estado de Roraima. (...) Desde o final da década de 1970, reside na

53

comunidade de seus sogros, no sopé da “Montanha do Vento” (Watoriki), na

margem direita do rio Demini, a menos de cem quilômetros a sudeste do rio

Toototobi.

Quando criança, Davi Kopenawa viu seu grupo de origem ser

dizimado por duas epidemias sucessivas de doenças infecciosas propagadas

por agentes do SPI (1959-1960) e, depois, por membros da organização norte-

americana New TribesMission (1967). Foi submetido por algum tempo ao

proselitismo desses missionários, que se estabeleceram no rio Toototobi a

partir de 1963. Deve a eles seu nome bíblico, a aprendizagem da escrita e um

apanhado pouco atraente do cristianismo. Apesar da curiosidade inicial, não

demorou a se indignar com seu fanatismo e obsessão pelo pecado. Rebelou-se

finalmente contra sua influência no final da década de 1960, após ter perdido a

maior parte dos seus durante uma epidemia de varíola transmitida pela filha de

um dos pastores.

Adolescente e órfão, revoltado por sucessivos lutos devidos às

doenças dos brancos, mas ainda intrigado pelo seu poderio material, Davi

Kopenawa deixou sua região natal para trabalhar num posto da Fundação

nacional do Índio (Funai), no baixo rio Demini, em Ajuricaba. Lá se esforçou,

em suas próprias palavras, para “virar branco”. Tudo o que conseguiu foi

contrair tuberculose. Essa desventura lhe valeu uma longa permanência no

hospital, onde aproveitou para aprender alguns rudimentos de português. Uma

vez curado, pôde voltar a sua casa no interior do rio Toototobi, mas só por

algum tempo. Em 1976, após a abertura da Perimetral Norte, foi contratado

como intérprete da Funai. Assim, durante alguns anos, percorreu quase toda a

terra yanomami, tomando consciência de sua extensão e de sua unidade

cultural, para além das diferenças locais. A experiência lhe deu também um

conhecimento mais preciso da obsessão predatória dos que ele chama de

“Povo da Mercadoria”, e da ameaça que ela representa para a permanência da

floresta e a sobrevivência de seu povo.

Finalmente, cansado de suas peregrinações de intérprete, Davi

Kopenawa se instalou definitivamente em Watoriki, no início da década de

1980, depois de ter se casado com a filha do “grande homem” (pata thë) da

comunidade. Este, xamã renomado, iniciou-o em sua arte e, tradicionalista

convicto, tem sido desde então seu mestre de pensamento. Essa iniciação foi,

para Davi Kopenawa, a ocasião de uma volta às origens, graças à qual pôde

retomar uma vocação xamânica manifestada desde a infância mas

interrompida pela chegada dos brancos. Posteriormente, serviu-lhe de alicerce

para desenvolver uma reflexão cosmológica original a respeito do fetichismo

da mercadoria, da destruição da floresta amazônica e das mudanças climáticas.

No final da década de 1980, mais de mil Yanomami morreram no

Brasil, vítimas das doenças e da violência que acompanharam a invasão de seu

território por cerca de 40 mil garimpeiros. Davi Kopenawa ficou transtornado

com esse drama, que reavivou nele velhas lembranças do extermínio dos seus

pelas epidemias (xawara) dos brancos quando era criança. Depois de anos

engajado para conseguir a legalização das terras yanomami, ele então se

envolveu numa campanha internacional em defesa de seu povo e da

Amazônia. Sua experiência inédita dos brancos, sua incomum firmeza de

caráter e a legitimidade decorrente de sua iniciação xamânica rapidamente

fizeram dele um porta-voz destacado da causa yanomami. Ao longo das

décadas de 1980 e 1990, visitou vários países da Europa e os Estados Unidos.

Em 1988, recebeu o prêmio Global 500 das Nações Unidas, por sua

contribuição à defesa do meio ambiente. Em 1989, a ONG Survival

International o convidou a receber em seu nome o prêmio Right Livelihood,

considerado o prêmio Nobel alternativo, por atrair a atenção internacional

sobre a situação dramática dos Yanomami no Brasil. Em maio de 1992,

durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e

54

Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (ECO-92 ou Rio-92), obteve finalmente a

homologação da Terra Indígena Yanomami por parte do governo brasileiro.

Em 1999, foi condecorado com a Ordem de Rio Branco, pelo então presidente

Fernando Henrique Cardoso, “por seu mérito excepcional”. (...)

Apesar da fama, cultiva um altivo desprezo pelas coisas materiais, e só

sente algum orgulho quando perturba a arrogante surdez dos brancos. Suas

atividades preferidas são, na floresta, responder aos cantos dos espíritos e, nas

cidades, falar em defesa de seu povo. É hoje uma liderança yanomami muito

influente e um xamã respeitado. Defensor incansável da terra e dos direitos

dos Yanomami, continua zelando com rigor pela tradição de seus maiores, em

particular de seu saber xamânico. Desde 2004 é presidente fundador da

associação Hutukara, que representa a maioria dos Yanomami no Brasil. Em

dezembro de 2008, recebeu uma menção de honra especial do prestigioso

prêmio Bartolomé de Las Casas, concedido pelo governo espanhol pela defesa

dos direitos dos povos autóctones das Américas e, 2009, foi condecorado com

a Ordem do Mérito do Ministério da Cultura brasileiro. (Albert 2015: 44-47)

A respeito dos primeiros contatos de Davi Kopenawa com os brancos missionários da

New Tribes Mission é interessante salientar um aspecto. Estes, bem intencionados que eram

em salvar as almas dos índios, tentavam explicitamente educar os Yanomami para o

imperativo do trabalho, espalhando entre eles, não sem violência, as palavras da mercadoria,

os mandamentos do “espírito” (santo) do capitalismo. Na ocasião da construção de uma pista

de pouso na terra yanomami para receber gente que, como os missionários, também traria as

palavras de Deus (“Teosi”), Kopenawa descreve a agressividade do único missionário

brasileiro do grupo, Chico:

Nossos pais trabalharam duro mesmo para abrir a pista! Por mais que fossem

resistentes no trabalho, dava dó de vê-los derrubando grandes árvores a

machadadas, sob o sol escaldante, dias a fio. Chico era muito agressivo.

Repisava as palavras de Teosi e só interrompia para dar ordens. Assim que um

homem parava para descansar um pouco, ele gritava, com raiva: “Volte ao

trabalho! Não fique sem fazer nada! Se você não trabalhar, não vai receber

nada!” Era muito penoso. (Kopenawa & Albert 2015: 260)

Posteriormente, enquanto funcionário da FUNAI, Kopenawa chegou a morar com

Chico e a ser seu parceiro de trabalho, experimentando ainda mais sujeição. “Não sou

preguiçoso, não, mas ele me fez trabalhar demais! Não parava de me dar ordens!” (id. ibid.:

298). Nessa época, ele ainda estava obcecado pelas mercadorias e pela engenhosidade dos

brancos, só pensava em viver como um branco, em virar branco, como diz.

É com o tempo, com a corrida do ouro37 e a brutal invasão de dezenas de milhares de

37 Breve história da corrida do ouro na Amazônia na década de 1980: “Tudo começou em 1979, com uma alta da

taxa da onça de ouro (31,1 gramas) que atingiu um recorde histórico de 850 dólares na bolsa de Londres no

começo de 1980 (de 1943 a 1973, havia oscilado entre 35 e 42 dólares). Em poucos anos, a garimpagem passou

ao status de atividade econômica dominante na Amazônia, ocupando cerca de meio milhão de garimpeiros e

produzindo, em 1987, aproximadamente cento e vinte toneladas de ouro colocando o Brasil em terceiro lugar na

55

garimpeiros na terra yanomami na década de 1980, e as epidemias que vieram nesse processo

dizimando mais de mil Yanomami, que Davi, tornado xamã, começa a desenvolver a série de

reflexões cosmológicas profundas sobre a fumaça do metal (poopëwakixi) e o ouro canibal.

Davi vê na violência predatória dos garimpeiros, que comem a terra da floresta como espíritos

queixada (warëripë), chafurdando dia e noite na lama, e espalham suas febres mortais entre os

habitantes da floresta, o emblema da ignorância dos brancos, da “escuridão confusa” de seu

pensamento “plantado nas mercadorias” (Albert 1995: 10). Os brancos não vêem (taai38) os

espíritos da floresta e suas danças de apresentação, desconhecem absolutamente as imagens

essenciais (utupë) da terra-floresta (urihi a). Por isso, a estes invasores estrangeiros (napë), a

floresta não passa de um cenário inerte, “criado à toa”, inóspito, que pode ser explorado,

destruído e despovoado de maneira desmedida. Como diz Kopenawa citado no artigo de

Bruce Albert:

Os garimpeiros são hostis a nós porque são como espíritos maléficos; são

filhos de comedores de terra-floresta. Eles dizem que nós somos ignorantes,

mas estão errados. É o contrário. Somos nós que sabemos das coisas e que

protegemos a floresta. Somos amigos da floresta porque nossos espíritos

xamânicos são os seus guardiães. (...) São eles que nos fazem pensar direito e

ficar lúcidos. Quando estão perto de nós, fazem crescer nossa mente, fazem-na

ir longe. Nosso pensamento não é fixado em outras palavras. É fixado na

floresta, nos espíritos xamânicos (...). Os brancos não conhecem esses

espíritos, nem a imagem do princípio de fertilidade da floresta. Eles acham

que ela só existe à toa, por isso a destroem (Albert 1995: 11).

Além dessa “cegueira” dos brancos diante das multidões de seres que habitam a

floresta e que são seus verdadeiros donos e protetores, Davi chama atenção para a relação

entre a extração de ouro nas terras yanomami e as fumaças de epidemia (xawara wakixi) que

dizimam seus nativos visíveis e invisíveis. O saber xamânico yanomami tradicionalmente

toma o ouro como um metal quente e perigoso que foi escondido no interior da terra, embaixo

da água dos rios, por Omama (o demiurgo yanomami), para proteger os humanos de suas

propriedades patogênicas. Assim, diante da invasão massiva dos garimpeiros em suas terras,

essa mitologia do ouro é estendida e renovada. Albert lembra que a associação simbólica entre

objetos dos brancos e a fumaça/cheiro patogênico, onipresente nas representações yanomami

produção aurífera mundial, depois da África do Sul e da ex-União Soviética. Esta corrida do ouro na Amazônia

dos anos 1980 passaria a ser o boom extrativista mais importante da região desde o auge da borracha.” (Albert

1995: 6).

38 Note-se que o verbo taai designa “ver” e também “conhecer”, afinal a visão é, nesse mundo, o principal

sentido ligado ao conhecimento.

56

do contato, surgiu a partir da co-incidência entre a aquisição dos objetos metálicos e o

alastramento de epidemias de infecção respiratória, sob a forma de fumaça do metal (1995:

13). Que, por sua vez, deriva da ideia pré-contato de fumaça de feitiçaria guerreira.

No discurso de Kopenawa, essa associação amplia-se como “fumaça do ouro”

(oruwakixi), “fumaça do minério” (mineriowakixi). Ele chega inclusive a usar muitas vezes a

palavra xawara (epidemia) como sinônimo de minério (pooxiki). Associando, assim, a

fumaça do ouro – exalada pelos garimpeiros que queimam o minério e o expõem ao sol em

latas de metal), com seu calor patogênico que não só torna os humanos doentes como faz fugir

o “sopro” da floresta e seu “princípio de fertilidade”, tornando-a inabitável para seus donos,

os xapiri – às emanações de outras matérias primas (outros minérios e combustíveis) que os

brancos tiram do fundo da terra para serem transformadas em mercadorias (matihipë39) nos

fornos de suas fábricas:

As palavras da imagem de Omama nos ensinam a recear o ouro e os demais

minérios. Trata-se de coisas maléficas desconhecidas e temíveis, que só

provocam doença e morte. O ouro, quando ainda é como uma pedra, é um ser

vivo. Só morre quando é derretido no fogo, quando seu sangue evapora nas

grandes panelas das fábricas dos brancos. Aí, ao morrer, deixa escapar o

perigoso calor de seu sopro, que chamamos de oru a wakixi, a fumaça do

ouro. Ocorre o mesmo com todos os minérios, quando são queimados. É por

isso que a fumaça dos metais, do óleo dos motores, das ferramentas, das

panelas e de todos os objetos que os brancos fabricam se misturam e se

espalham por suas cidades. Esses vapores, quentes, densos e amarelados como

gasolina, colam no cabelo e nas roupas. Entram nos olhos e invadem o peito.

É um veneno que suja o corpo dos brancos das cidades, sem que o saibam.

Depois, toda essa fumaça maléfica flui para longe e, quando chega até a

floresta, rasga nossas gargantas e devora nossos pulmões. Queima-nos com

sua febre e nos faz tossir sem trégua, e vai nos enfraquecendo, até nos matar

(Kopenawa & Albert, 2015: 362-363).

Assim, essa fumaça patogênica acaba por queimar o próprio peito do céu,

contaminando, poluindo, o “mundo inteiro” (urihi pata)40. Como diz Bruce Albert:

A extensão do campo semântico de xawara wakixi, de poder patogênico a

poluição industrial, envolveu essa expressão num deslizamento neológico que

39 O termo matihi(-pë, no plural)teve seu sentido estendido desde o contato, passando a designar também

“mercadorias”. Tradicionalmente, o termo designa certos bens especialmente valiosos para os Yanomami: os

adornos com que se arrumavam para as festas reahu (os tufos de caudais de arara, os rabos de tucano, as

braçadeiras de cristais de mutum e jacamim que ornavam seus braços e as pequenas penas de papagaio e cujubim

que enfiavam no lobo das orelhas), os ossos do morto que serão queimados no ritual funerário, e também a

pequena cabaça em que as cinzas são guardadas.

40 Os brancos também conhecem isso de que fala Davi Kopenawa, e chamam de poluição. Mas, “apesar de

sofrerem também, eles não querem desistir. Seu pensamento está todo fechado. Só se importam em cozinhar o

metal e o petróleo para fabricar suas mercadorias.” (Kopenawa & Albert 2015: 365).

57

a conduziu de uma interpretação epidemiológica da alteridade dos brancos –

que ainda persiste – a uma crítica cosmológica de sua atividade econômica: de

uma metáfora tradicional da hiperpredação pela feitiçaria guerreira (associada

aos efeitos do timbó na pesca) a uma tradução xamânica do efeito estufa

(Albert 1995: 14).

O xamã chega ao nível mais profundo de sua análise ao nos descrever o que se passa no

registro cosmológico dos seres invisíveis. É que, sob a aparência visível a todos das “doenças

do minério”, desenrola-se na verdade a caça canibal do espírito da epidemia, Xawarari, que só

pode ser detectado e combatido pelos espíritos auxiliares (xapiri) dos xamãs. As imagens

essenciais (utupë) dos Xawarari acompanham os fluxos das mercadorias. Assombram os

índios em sonhos e nas visões xamânicas. É o desejo pelas mercadorias dos brancos que atrai

esses espíritos maléficos canibais, que devoram as imagens essenciais (utupë) dos habitantes

da floresta, deixando-os doentes e matando-os:

O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a

tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa

carne. Gente comum só conhece delas os eflúvios que as propagam. Porem

nós, xamãs, vemos também nelas a imagem dos espíritos da epidemia, que

chamamos de xawarari. Esses seres maléficos se parecem com os brancos,

com roupas, óculos e chapéus, mas estão envoltos numa fumaça densa e têm

presas afiadas. Entre eles estão os seres da tosse, thokori, que rasgam as

gargantas e os peitos, ou os seres da disenteria, xuukari, que devoram as

entranhas, e também os seres do enjoo, tuhrenari, os da magreza, waitarori, e

os da fraqueza, hayakorari. Eles não comem caça nem peixe. Só têm fome de

gordura humana e sede de nosso sangue, que bebem até secar. (...).

Esses seres xawarari moram em casas repletas de mercadorias e

comida, como os acampamentos de garimpeiros. É lá que cozinham as carnes

dos habitantes da floresta. (...) A epidemia xawara prospera onde os brancos

fabricam seus objetos e onde os armazenam. Sua fumaça surge deles e das

fábricas em que cozem os minérios de que são feitos. É por isso que a doença

e a morte golpeiam os habitantes da floresta assim que estes começam a

desejar as mercadorias. (...) É acompanhando os objetos dos brancos que

acabam vindo se instalar em nossas casas, como convidados invisíveis. De

modo que, para nós, as mercadorias têm valor de epidemia xawara

(Kopenawa& Albert 2015: 366-368).

Os Xawarari são os representantes no nível invisível das maiores ameaças aos povos

amazônicos41. O modo de vida capitalista tende a dissolver, implodir e capturar os modos de

vida indígenas. É relevante observar que a análise xamânica de Davi Kopenawa é, ao fim e ao

cabo, uma análise do desejo. É o desejo pelas mercadorias, pelo acúmulo delas, e o desejo

organizado em função delas (mercadorias em série:“Awei! Quero ter aquele objeto! E

também quero aquele outro, e o outro, e mais aquele!”42) que ameaça a estabilidade

41 Seria o tal “espectador imparcial” de Smith um Xawarari?

42 Cf. mais a frente a transcrição integral dessa passagem.

58

cosmológica do modo de vida indígena, que se apóia no xamanismo, em que o desejo se

orienta pelas palavras dos espíritos donos e protetores da floresta (os xapiri), e não das

mercadorias.

3.3 – Análise xamânica da paixão pela mercadoria

O capítulo d’A queda do céu que trata da paixão pela mercadoria no mundo urbano-

industrial dos brancos merece especial atenção. Por ser o que interpreta de maneira mais

explícita a obsessão cega e surda envolvida no verdadeiro culto às mercadorias que marca o

ritmo basal da vida social civilizada. E também porque retoma, de maneira explícita, algumas

racionalidades políticas e econômico-morais que evocamos no capítulo 2, que a antropologia

já destacou servindo-se dos modos de pensamento de sociedades indígenas de outros

continentes na maioria das vezes.

Davi começa sua análise nos contando a história dos brancos, como eles começaram a

fabricar suas mercadorias, inventaram o dinheiro e passaram a se ver como um grupo social

excepcional por sua capacidade técnico-científica e produtiva:

No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá

eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se

perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados

mais sábios, os que Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram.

Depois deles, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar

os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se

esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças

cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas

ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a

desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo

da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com

voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em

grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se

apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso o fez

esquecer a beleza da floresta. Pensaram: “Haixopë! Nossas mãos são mesmo

habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o

povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca

passar necessidade! Vamos criar também peles de metal para trocar!”. Então

fizeram o papel de dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e

as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e

rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz

dos raios que caem na terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos.

Visitando uns aos outros em suas cidades, todos os brancos acabaram por

imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se

espalharam por toda a terra de seus ancestrais. É o meu pensamento. Por

quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo

desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se

para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os

brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os

59

rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase

(p.408) nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de

seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra. (Kopenawa &

Albert 2015: 407-408 – grifos meus)

Diante do regozijo narcísico ao se dar conta de sua engenhosidade, os brancos

começaram a espalhar as palavras das mercadorias e do dinheiro, e assim a lógica do capital

foi se ampliando e se reproduzindo, capturando as diferenças entre os povos a favor da

identidade em torno da nova linguagem econômica que se consolidava. Esse desejo

desmedido por quererem possuir todas as mercadorias acabou por ocupar o centro da nova

engrenagem histórico-social e tornou vãs todas as palavras que não as da mercadoria – e seus

duplos: o “desenvolvimento”, o “progresso”, a “modernização”. Toda as diferentes estruturas

tradicionais de pensamento são reduzidas a pó e poeira no choque histórico com o movimento

expansivo das motosserras e britadeiras do progresso.

Contra a revolução copernicana do capitalismo, digamos assim, que põe as

mercadorias e a lógica do capital no centro, fazendo girar a seu redor os seres humanos e

demais viventes do planeta, Davi Kopenawa nos apresenta uma outra forma de se relacionar

com a riqueza, que opera segundo a reciprocidade, a generosidade e o dispêndio improdutivo:

Os humanos adoecem, envelhecem e morrem com facilidade. Já o metal dos

facões, dos machados e das facas fica coberto de ferrugem e sujeira de

cupim, mas não desaparece tão depressa. Assim é. As mercadorias não

morrem. É por isso que não as juntamos durante nossa vida e nunca

deixamos de dá-las a quem as pede. Se não a déssemos, continuariam

existindo após nossa morte, mofando sozinhas, largadas no chão de nossas

casas. Só serviriam para causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram

nossa morte. (...) Já que somos mortais, achamos feios agarrar-se demais aos

objetos que podemos vir a ter. Não queremos morrer grudados a eles por

avareza. (...) Nem bem acabamos de consegui-los e logo os damos a outros

que, por sua vez, os querem. E assim as mercadorias se afastam de nós

depressa e vão se perder nas lonjuras da floresta, carregadas pelos

convidados de nossas festas reahu ou por outros visitantes. Desse modo,

tudo está bem.

(...) Esse é o nosso costume, tanto com os objetos que fabricamos

como com as mercadorias que nos vêm dos brancos. Eles, no entanto,

costumam pensar que queremos muito os seus bens só porque os pedimos

constantemente. Mas não é verdade! Nenhum de nós deseja suas

mercadorias só para empilhá-las em casa e vê-las ficando velhas e

empoeiradas! Ao contrário, não paramos de trocá-las entre nós, para que

nunca se detenham em suas jornadas. São os brancos que são sovinas e

fazem as pessoas sofrerem no trabalho para estender suas cidades e juntar

mercadorias, não nós! Para eles, essas coisas são mesmo como namoradas!

Seu pensamento está tão preso a elas que se as estragam quando ainda são

novas ficam com raiva a ponto de chorar! São de fato apaixonados por elas!

Dormem pensando nelas, como quem dorme com a lembrança saudosa de

uma bela mulher. Elas ocupam seu pensamento por muito tempo, até vir o

sono. E depois ainda sonham com seu carro, sua casa, seu dinheiro e todos

60

os seus outros bens – os que já possuem e os que desejam ainda possuir.

Assim é. As mercadorias deixam os brancos eufóricos e esfumaçam todo o

resto em suas mentes. Nós não somos como eles. Mais do que nos objetos

que queremos possuir, é nos xapiri que nosso pensamento fica concentrado,

pois só eles são capazes de proteger nossa terra e de afastar para longe de

nós tudo o que é perigoso. Se os brancos pudessem, como nós, escutar

outras palavras que não as da mercadoria, saberiam ser generosos e seriam

menos hostis conosco. Também não teriam tanta gana de comer nossa

floresta. (...) Trocamos os bens entre nós generosamente para estender a

nossa amizade. Se não fosse assim, seríamos como os brancos, que

maltratam uns aos outros sem parar por causa de suas mercadorias. Quando

visitantes querem os objetos que temos, dá dó vê-los se lamentando por não

os terem e desejá-los tanto. Então, logo os damos a eles, para conquistar sua

afeição.(...)

Quando somos generosos, visitantes e convidados voltam para suas

casas satisfeitos e alegres. Se, ao contrário, ficamos avarentos, eles partem

com o peito cheio de raiva, porque recusar-lhes bens equivale a uma

declaração de inimizade. Então, tomados pelo rancor, vão querer se vingar,

com substâncias de feitiçaria hwërit.

(...) É o nosso costume. Achamos que é assim, ganhando o rastro de

outra pessoa, que ficamos amigos dela. Nossos maiores, antigamente,

pensaram que os brancos agiriam desse modo com eles. Estavam muito

enganados! Ao contrário, foi sem dizer uma palavra que os grandes homens

desses forasteiros despacharam seus genros e filhos para a nossa floresta,

para pegar balata, peles de onça e ouro. Nós somos diferentes. Nós nunca

pensamos em mandar os nossos para a terra dos brancos sem dizer nada, só

para tirar dela tudo o que tem! (...)

Mas os brancos são gente diferente de nós. Devem se achar muito

espertos porque sabem fabricar multidões de coisas sem parar. Cansaram de

andar e, para ir mais depressa, inventaram a bicicleta. Depois acharam que

ainda era lento demais. Então inventaram as motos e depois os carros. Aí

acharam que ainda não estava rápido o bastante e inventaram o avião. Agora

eles têm muitas e muitas máquinas e fábricas. Mas nem isso é o bastante

para eles. Seu pensamento está concentrado em seus objetos o tempo todo.

Não param de fabricar e sempre querem coisas novas. E assim, não devem

ser tão inteligentes quanto pensam que são. Temo que sua excitação pela

mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos. Já

começaram há tempos a matar uns aos outros por dinheiro, em suas cidades,

e a brigar por minérios ou petróleo que arrancam do chão. Também não

parecem preocupados por nos matar a todos com as fumaças de epidemia

que saem de tudo isso. Não pensam que assim estão estragando a terra e o

céu e que nunca vão poder recriar outros.

Suas cidades estão cheias de casas em que um sem-número de

mercadorias fica amontoado, mas seus grandes homens nunca as dão a

ninguém. Se fossem mesmo sábios, deveriam pensar que seria bom distribuir

tudo aquilo antes de começar a fabricar um monte de outras coisas, não é?

Mas nunca é assim! (...) Ao contrário, os brancos costumam empilhar seus

bens de modo mesquinho e guardá-los trancados. Por sinal, sempre levam

com eles muitas chaves, que são as das casas em que escondem seus

pertences. Vivem com medo de ser roubados. E, ao final, só os dão com

muita má vontade, ou sobretudo os trocam por peles de papel que também

acumulam, pensando em se tornar grandes homens. Devem pensar, com

satisfação: "Faço parte do povo da mercadoria e das fábricas! Só eu possuo

todas essas coisas! Sou inteligente! Sou um homem importante, sou rico!”

Quando eu era jovem e visitei pela primeira vez a cidade de Manaus e

depois Boa Vista, aqueles amontoados de mercadorias empoeiradas me

61

deixavam confuso. Perguntava a mim mesmo porque razão tamanha

quantidade de ferros de machado e redes, fabricados havia tanto tempo,

ficavam envelhecendo assim, atulhados sobre tábuas até mofar, sem ser

distribuídos para ninguém. Só bem mais tarde entendi que os brancos tratam

suas mercadorias como se fossem mulheres por quem estão apaixonados. Só

querem pegá-las para depois ficar de olho nelas com ciúme. Acontece a

mesma coisa com seus alimentos, que sempre empilham em suas casas.

Quando pedimos, nunca os dão sem antes nos fazer trabalhar para eles. Nós

não somos gente que recusa comida a visitantes! Quando nossas roças estão

cheias de mandioca e bananas, moqueamos bastante caça e convidamos os

moradores das casas vizinhas para saciar sua fome numa festa reahu. Assim

que se instalam em suas redes, depois de sua dança de apresentação,

oferecemos a eles, sem sovinice, grandes quantias de mingau de banana-da-

terra, num tronco de árvore escavado no centro da casa. Nós os fazemos

beber até ficar com a barriga inchada e acabar vomitando! Decerto não

dizemos a eles: “Ma! Não me peçam nada para comer! Primeiro trabalhem

nas nossas roças! Tragam caça! Vão buscar água e lenha para nós! O valor

de nossas bananas é muito alto! São caras!

A comida dos brancos não tem um valor tão grande quanto eles

pretendem! Como a nossa, ela desaparece assim que é engolida e acaba

virando fezes. Suas mercadorias também não são tão preciosas quanto eles

dizem. É só o pavor que eles têm de sentir falta delas que os faz aumentar

seu valor. Uma vez velhos e cegos, dará mesmo dó vê-los ainda agarrados a

elas! Mas, quando morrerem, vão ter de largar todos esses objetos de

qualquer jeito! Aí vão abandoná-los quer queiram quer não e seus parentes

não vão parar de se desentender para pegá-los. Isso tudo é ruim! Fabricando

e manuseando tantas mercadorias, os brancos devem pensar que ganham

muito renome. Mas não é nada disso. Para que assim fosse, teriam de ser

menos mesquinhos! Aí, quem sabe, gente distante, como nós, acabaria

falando deles com contentamento e os guardaria no pensamento.

Nós, habitantes da floresta, só gostamos de lembrar dos homens

generosos. Por isso temos poucos bens e estamos satisfeitos assim. Não

queremos possuir grandes quantidades de mercadoria. Isso confundiria nossa

mente. Ficaríamos como os brancos. Estaríamos sempre preocupados:

“Awei! Quero ter aquele objeto! E também quero aquele outro, e o outro, e

mais aquele!”. Não acabaria nunca! Então, a nós basta o pouco que temos.

Não queremos arrancar os minérios da terra, nem que suas fumaças de

epidemia acabem caindo sobre nós! Queremos que a floresta continue

silenciosa e que o céu continue claro, para podemos avistar as estrelas

quando a noite cai. Os brancos já têm metal suficiente para fabricar suas

mercadorias e máquinas; terra para plantar sua comida; tecidos para se

cobrir; carros e aviões para se deslocar. Apesar disso, agora cobiçam o metal

de nossa floresta, para fabricar ainda mais coisas, e o sopro maléfico de suas

fábricas está se espalhando por toda parte. Os espíritos do céu que

chamamos hutukari ainda estão segurando seu peito longe de nós. Porém,

mais adiante, depois que eu e os outros xamãs morrermos, talvez sua

escuridão desça sobre nossas casas e, então, os filhos de nossos filhos não

verão mais o sol. (Kopenawa & Albert 2015: 409-410, 413-415, 418-420 –

grifos meus)

É nítido no discurso de Davi a mobilização daquelas lógicas econômico-morais

mencionadas, da reciprocidade, da generosidade e do dispêndio improdutivo. E a ojeriza à

avareza, à mesquinhez dos Brancos. A (r)existência dessas lógicas alternativas na regulação

das relações sociais (que incluem, bem entendido, humanos e extra-humanos) nos mundos

62

indígenas – e, a bem da verdade, nas margens de nosso próprio mundo – expressam a

estreiteza da representação utilitarista do mundo. Mostra, assim, o quão limitado e acidental é

o cogito da mercadoria... Revela ainda, com especial vigor, que é e sempre foi possível – e

continuará sendo, enquanto o apocalipse não vingar – fazer política e economia fora do

registro da dominação e da exploração. A troca de objetos úteis é secundária no circuito dos

ritos funerários reahu, que envolvem dádivas oferecidas sem barganha, de maneira generosa,

e excedentes produtivos para garantir o consumo luxurioso nestas festas cerimoniais43.

É falsa, portanto, a ideia de que as sociedades fornecem diferentes versões para

responderem aos mesmos problemas fundamentais da natureza humana. Na verdade, os

problemas variam e se reinventam. Os ameríndios não estão preocupados em “melhorar sua

condição” ou em trilhar o caminho – mediado pela produção e aquisição de bens – que os leva

a “felicidade”, a uma “vida mais confortável”, como postularam os economistas e filósofos

utilitaristas44. Nem vivem a luta pela sobrevivência, a luta contra a escassez de recursos etc. É

antes o contrário o que se passa. Segundo uma economia geral, que parte de um ponto de vista

cósmico, vemos que a floresta é dotada de um sopro de riqueza e fertilidade – ela é a própria

matriz da abundância do real. “Nós nunca morremos de fome na floresta. Só morremos da

fumaça de suas epidemias” (Kopenawa & Albert 2015: 486). Davi Kopenawa nos mostra com

especial nitidez e persuasão o quanto, na verdade, a lógica incessante e automatizada de

“melhorar a sua condição”, isto é, a lógica que mantém os brancos com o pensamento preso,

plantado nas mercadorias, é doentia. Não só porque torna os brancos eles próprios tristes, em

suas cidades, rapidamente envelhecidos e com o pensamento vazio (Kopenawa & Albert

2015: 436), mas sobretudo porque as últimas consequências do emprego desenfreado desta

lógica são de fato o fim do mundo tal como o conhecemos, a queda do céu.

É esse o núcleo da crítica xamânica da economia política da natureza (Albert 1995): a

objetificação da natureza, que a transforma em “recursos naturais”, fundamenta as práticas da

43As festas reahu são longos rituais funerários, que podem durar dias, compostos por várias etapas. As cinzas dos

mortos (matihi) são cerimonialmente comidas. A festa destina-se a esquecer os mortos e secundariamente a

decidir como distribuir ou destruir seus bens. Caracteriza-se pela abundância de alimentos e bebidas,

compartilhados generosamente com grupos vizinhos convidados, e pelos diálogos yäimuu entre xamãs que visam

a resolução de dívidas ou possíveis animosidades.

44 Essa frase merece uma explicação. Bem entendido, quis dizer que a ideia de melhorar de condição de vida em

direção à felicidade ou a uma vida mais confortável segundo o pensamento ameríndio passa por outras vias, que

não aquela dos autores cujo pensamento está plantado nas mercadorias. Melhorar sua condição, viver bem, para

um Guarani Kaiowá ou um Pataxó por exemplo, tem a ver diretamente com a garantia da posse de sua própria

terra, e não com o acumúlo de mercadorias dos brancos. Certamente, além disso, existem também muitos índios,

hoje, que desejam melhorar de vida no sentido smitheano, mas nesse caso trata-se justamente de um resultado da

ação do povo da mercadoria e suas transcendências cultuadas (o Estado, o Capital, etc.).

63

civilização capitalista que (embora muitas vezes sejam legais do ponto de vista jurídico), de

fato destroem a floresta e todos os seus habitantes. Se bem que, se são legais ou ilegais, como

sabemos, não importa tanto para a existência dessas práticas, como percebeu Davi: os brancos

só escutam as palavras da mercadoria – suas leis, escritas em peles de papel, não passam de

mentiras (Kopenawa & Albert 2015: 435). As palavras de Kopenawa nos dão assim lições

valiosas ao debate ecológico. Contra a imagem de uma natureza morta e despovoada, uma

natureza “meio ambiente”, a defesa yanomami pela terra-floresta é a defesa da preservação

dos infinitos habitantes da floresta, que falam diretamente ao xamã. Enquanto não atendermos

globalmente ao apelo dos índios e de seus espíritos xamânicos, as catástrofes socioambientais

continuarão a ocupar lugar de destaque de nossos jornais, anunciando sempre um passo a mais

dado na direção do fim desse mundo – que, vale lembrar, leva juntos índios e brancos.

64

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se vê, a metafísica ocidental é a fons et origo de toda

espécie de colonialismo – interno (interespecífico), externo

(entre-específico), e se pudesse, eterno (intemporal).

Eduardo Viveiros de Castro

E a aposta em descrever o modo como os outros descrevem o

mundo é também uma aposta na possibilidade de estes modos

de descrição transformarem os nossos.

Renato Sztutman

Tendo acompanhado, ainda que de maneira algo artificial e sumária, a visão civilizada

das sociedades selvagens e a visão selvagem das sociedades civilizadas, podemos tirar daí

algumas conclusões.

Em primeiro lugar, temos em mente que esse jogo entre as duas visões nos leva a

reequilibrar a distribuição de valores que convencionalmente atribuímos às noções de

“selvageria” e de “civilidade”, bem como de “natureza” e de “cultura”. Esse jogo nos leva

ainda a alargar, confundir e complexificar o que entendemos como sendo o fenômeno

“humano”.

O alargamento e a instabilidade a que é lançada a noção de “humano”, por sua vez,

levam o conjunto das nossas ciências a fazer pesquisas que não partam das antinomias

modernas, mas investigue antes o “império do centro” (Latour 2013), morada dos quase-

objetos e quase-sujeitos, híbridos de natureza e cultura. A rigor, só há híbridos e mediações

entre natureza e cultura por toda parte. A “purificação” como o exercício científico por

excelência, em que os fenômenos são recortados ora para o polo do natural ora para o polo do

social, não é mais do que uma ficção moderna. O império do centro, justamente o lugar onde

nossa ciência nunca ousou estudar por já tomá-lo como um porto seguro. Reinventando nossa

ciência, desterritorializando nossa fabulação prática diante do “humano” e da “natureza”,

talvez possamos aprender – com quem já sabe – a frear toda a catástrofe socioambiental que

parece ser a trademark do capitalismo global, que só funciona segundo um desejo desmedido

de expansão e acumulação.

É perceptível, assim, que a comparação e o confronto entre sistemas de pensamento

que se assentam em distintos pressupostos ontológicos enriquece a reflexão antropológica

com um sentido político acentuado: o da descolonização de nossa matriz de pensamento. É

quando sabemos que as coisas não se limitam ao que pensávamos que elas fossem que

aprendemos que existem outros mundos neste mundo. Quero dizer que é neste momento que

percebemos que talvez a saída para nossos dilemas civilizacionais não esteja em ir mais para a

65

frente: mais desenvolvimento, mais progresso etc., mas antes em virar para os lados e ouvir o

que esses habitantes longínquos de outras sociedades tem a nos dizer. Desde que levemos

sério as palavras dos outros sobre nosso mundo, jamais teremos sido modernos como diria

Latour. É o nosso centro “moderno” de referência que se esvai, e a história que pode não

caminhar mais, como uma linha reta, no sentido do desenvolvimento progressivo das forças

produtivas etc. Devemos abandonar o fundo messiânico de nossa forma de pensar, encrustada

de um misto de filosofia da história e teologia, que nos leva a apostar nos

desenvolvimentismos e progressismos de todo tipo, a favor de uma abertura antropofágica,

em sentido oswaldiano (Andrade 1995), ao que dizem os outros sobre o mundo, e a como eles

inventam seus mundos – afinal conseguiram fazer, por milênios, com a floresta, o que a

civilização industrial conseguiu destruir em duzentos anos.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert nos fornece, assim, uma bela oportunidade

para reler nossa tradição intelectual com outros olhos. É o que busquei fazer neste ensaio. Por

um lado, essa releitura possibilita a radicalização de nítidos contrastes, por exemplo, entre

Kopenawa e Adam Smith. Por outro lado, nos leva a experimentar intercessões, pontos de

comunicação, entre os diferentes discursos mobilizados, como a) a identificação na fala de

Kopenawa daquelas lógicas da reciprocidade, da generosidade e do dispêndio improdutivo

que remetem aos estudos clássicos de economia “arcaica”, b) a identificação da recusa à

sujeição e à separação da instância econômica das demais esferas sociais que evoca os

trabalhos de Clastres e Sahlins, e c) o diálogo evidente entre toda a explanação acerca da

ordenação do universo e a teoria cosmológica do perspectivismo e multinaturalismo

ameríndio cunhada por Viveiros de Castro. Sabemos, ainda, que o perspectivismo e o

multinaturalismo não teriam surgido como um insight teórico para a etnologia amazônica sem

as leituras prévias de filósofos menores45 da tradição européia (poderíamos dizer que são

modernos de direito porém anti-modernos de fato), como Leibniz, Nietzsche, Spinoza.

Assim, a antropologia reversa do “espírito” do capitalismo realizada por Davi

Kopenawa, da qual destacamos neste ensaio sua dimensão ontológica e econômico-moral, nos

leva a alcançar uma nova interpretação dos pensadores canônicos representantes do modo de

vida moderno-capitalista, e ainda a colher frutos das tradições menores de nosso pensamento,

que se dedicaram a criticar este modo de vida e de pensamento. Em suma, toda a nossa

herança intelectual ganha novas interpretações possíveis quando animadas pelo estudo dessas

45 No sentido de Deleuze & Guattari (2011).

66

outras tradições de pensamento, de modo a dissipar as hierarquias históricas que as separam

ao experimentar conexões transversais inauditas entre elas.

Talvez, assim nosso pensamento deixe de ser tão surdo, cego, enfumaçado, cheio de

esquecimento e obcecado pelas mercadorias...

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