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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE
PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI
GT17 - Democratização e teorias democráticas na América Latina contemporânea.
Antagonismo da Assembléia Popular com o Governo Lula:
o democrático e popular na fala de militantes desse movimento social
Flávio Lyra de Andrade - UFPB
e-mail: [email protected]
Discutimos nesse texto a produção das condições sociais e políticas que
originaram a Assembléia Popular– AP, debatendo os significados da constituição do
campo democrático e popular dos movimentos sociais gestado com a redemocratização,
e a aceleração do seu processo de erosão com o governo Lula. A AP é uma rede de
movimento sociais criada, em 2005, como um desdobramento do processo de realização
da 4ª Semana Social Brasileira, promovida e pelo Setor de Pastoral Social - SPS 1 da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, coordenada conjuntamente com a
Rede Jubileu Sul e Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no âmbito
Nacional, mas a Consulta Popular no âmbito das coordenações estaduais. A AP vai se
constituindo já antes de 2005.
A Assembléia Popular2 é uma articulação de forças sociais que promove lutas e
campanhas, com o objetivo construir um projeto popular para o Brasil: um país
politicamente democrático, economicamente justo, socialmente equitativo e solidário,
culturalmente plural e ambientalmente sustentável. Sua organização se dá a partir de
movimentos sociais e populares, pastorais sociais, redes e fóruns, nos municípios,
Estados e em âmbito nacional, no campo e nas cidades.
Analisando o ideário da AP, em entrevistas3, identificamos que este se expressa
fortemente politizado, e apresenta um Projeto Popular, que podemos entender como um
projeto de “modernidade alternativa”4 para o país. A AP nasce antagonizando-se com o
1 O SPS foi criado no início dos anos 1990, é composto por representantes das várias pastorais sociais e organismos eclesiais, que atuam com segmentos sociais e temáticas que as vinculam a práticas políticas e ações de cunho educativo e político-social não confessional, desenvolvendo atividades na linha da garantia dos direitos, promovem a cidadania, a participação política. 2(Antes de 2005, a AP) vai se construindo em torno de grandes duas ações pedagógicas, os plebiscitos. O plebiscito da dívida em 2000 e o plebiscito da Alca, em 2002. O que levou a gente a construir a Assembléia foi o impasse do ponto de vista histórico, porque tanto no sentido da Consulta Popular, como no sentido da própria articulação do Jubileu Sul, que é aquela articulação que os países do hemisfério sul fizeram a partir do debate da questão da divida, foi algo assim extremamente pedagógico pra militância. O problema foi o processo de continuidade daquele plebiscito. Ele foi a frente num abaixo-assinado, mas daí veio o Governo Lula. Aí a gente percebeu que aquele movimento ali em torno da campanha contra a Alca precisava ser canalizado pra algum lugar e o abaixo assinado resolveu momentaneamente, mas: O que fazer? A partir das articulações em torno do Jubileu Sul, que ficou conhecido como o pessoal da Campanha contra a Alca, e era na pratica a Consulta Popular, e as Semanas Sociais Brasileiras, que vai culminar na Assembléia Popular Nacional. As Semanas Sociais Brasileiras estavam discutindo “O Brasil que temos, o Brasil que queremos”. A quarta Semana Social Brasileira estava discutindo esse tema e a gente na Assembléia [...] 2005, era um momento em que o governo Lula enfrentava a primeira crise [...] Qual é o foco? O foco é a construção de processos […] construir um espaço nas comunidades, nas universidades, nos sindicatos, enfim onde tiver força viva vamos construir um espaço de reflexão e debate. Discutir quais são os problemas que o povo tem e apontar quais são as soluções (Entrevista 7).3 A entrevistas foram realizadas para pesquisa da Dissertação de Mestrado em Sociologia do autor, defendida em fevereiro de 2012 na UFP,: “Construção de identidades coletivas na assembléia popular: trânsitos em processos sociais entre o campo político e religioso”. Foram entrevistados(as): seis homens e seis mulheres; quatro com mais de cinqüenta anos, cinco com idade entre trinta e cinqüenta anos e três com idade entre vinte e trinta anos; seis coordenadores, cinco na instância estadual, uma na nacional, e seis militantes, um nacional e cinco estaduais. Estes entrevistados(as) têm vínculo, ou tiveram durante algum tempo quando participaram na AP, com as seguintes organizações: Cáritas (1), Associações de Moradores (2), MTC - Movimento dos Trabalhadores Cristãos (2), Associação das Mulheres Rendeiras (1), Turma do Flau (1), Consulta Popular (3), RECID - Rede de Educação Cidadã (2), CEBs (1), Coordenação do Setor de Pastoral Social (1), SPM (1), CIMI - Conselho Indígena Missionário (1), Rede Jubileu Sul Brasil (1), MST (1), Sindicato (1), Assessoria Parlamentar do PT(1). Na citação das entrevistas neste artigo, utilizarei numeração que utilizei para identifica-las na dissertação.4 As condições de tempo e lugar e as escolhas conscientes e inconscientes, sem contar o inevitável acaso, modelaram os processos de modernização, fazendo-os diferentes, segundo as distintas sociedades. o Nesse sentido teremos nos processos históricos e sociais, tensões entre projetos de modernidade liberais e alternativos, de direita ou de esquerda, aqui assumimos a noção de modernidade alternativa, enquanto uma perspectiva de esquerda, que se expressam nas sociedades liberais, nas brechas como propostas democráticas, anarquistas, socialistas, comunistas, derrotadas mas não vencidas, contribuindo decisivamente para promoção de reformas sociais e políticas de remodelagem das sociedades liberais, as quais estão movidas em defesa dos interesses das grandes maiorias - REIS, Daniel Aarão & ROLLAND, Denise (Org.). Modernidades Alternatias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. Portanto assumo aqui o projeto da AP, e suas tradição vinculada ao campo democrático e popular dos movimentos sociais, como um programa que revela as potencialidades emancipatórias expressas como caminho para uma modernidade alternativa.
Governo Lula, rompendo com o simbolismo que ele representava junto ao campo político
dos movimentos sociais. Debateremos aqui as perspectivas presentes na ação do
movimentos sociais no contexto pós era Lula, problematizando os sentidos, conteúdos e
paradoxos do democrático e do popular nesse contexto.
Conflito político antagônico: a fundação da AP, o Governo Lula e o PT
O contexto político no qual se forja a AP é marcado por antagonismo com posições
do Governo Lula, e mais ainda, com o que representa o Governo Lula, em sua ruptura
com o 'projeto histórico dos movimentos sociais'. As ações coletivas promovidas pela AP
incorporam reivindicações de democracia política participativa e direta, de democracia
econômica e social que se confronta com a perspectiva nacional desenvolvimentista que
têm o governo Lula, na leitura dos entrevistados.
No primeiro momento do Governo Lula, os movimentos acabam se retraindo e pensando cada um na sua estratégia e como eu ter o meu ganho, de como eu ter a minha. Como é que vou me relacionar com esse governo. Então no primeiro momento não houve um movimento que pensou. Bom como é que os movimentos sociais vão se articular frente a essa nova conjuntura do Governo Lula. Isso levou evidentemente a um processo de fragmentação, de esvaziamento da luta popular (Entrevista 7)
Na visão destes entrevistados, Lula rompe com o campo democrático popular dos
movimentos sociais, esta é uma das principais razões de fundação da AP, a não aceitação
da lógica de desenvolvimento social e econômico implementada pelo governo e suas
prioridades pela chamada 'governabilidade'. Somado a isso estão os limites dos
mecanismos e espaços de participação dos movimentos, no delineamento de uma
democracia que amplie as suas dimensões participativa e direta. Nos relatos que seguirão
teremos assinalados muitas contradições quanto às expectativas de uma democracia
participativa no Brasil.
A experiência do PT no governo federal, não conseguiu dar seguimento a
experiências de democracia participativa iniciadas nos municípios e Estados em que
esteve na administração. Por exemplo, em avaliação conduzida pela pesquisadora
inglesa Wainwright (2006) sobre a crise do Governo e do PT em 2005, na qual centra sua
análise na questão da participação, ela nos trás um exemplo que é revelador para
compreender a natureza da e de aspectos do conflito que se instala na relação com os
movimentos. Ela relata um caso que demonstra a superficialidade presente na cultura
política das lideranças do PT no Governo, quanto à democracia participativa: um
pesquisador sobre orçamentos participativos em governos municipais e estaduais petista,
interpela gestores do governos federal sobre a necessidade de estender a experiência de
democracia participativa para o governo federal, e “ouviu como resposta que já havia a
democracia participativa: um operário estava no gabinete presidencial” (p. 15).
O processo de participação popular no orçamento e outros aspectos da administração pública implicam uma estratégia em relação ao poder que ilustra, no presente, o que uma transformação socialista poderia realizar de forma mais completa, no futuro. Ao mesmo tempo, permite experimentos que aprofundam a natureza de tal transformação. Além disso, a conexão entre o presente e o futuro é orgânica: democracia participativa envolve desenvolver a capacidade dos cidadãos em exercer controle popular e ao mesmo tempo ganhar apoio popular para a transformação radical. Sendo consistentemente perseguida, esta meta poderia ajudar a superar a contradição que tem acompanhado a esquerda, entre radicalismo e sucesso eleitoral (WAINWRIGHT, 2006, p.15).
A entrevista abaixo demonstra a percepção presente na AP sobre como setores do
PT se relacionavam com os movimentos sociais.
É bom que se diga isso. Houve um esvaziamento desse processo dos setores mais ligados ao PT. No momento que durante a Campanha Contra a ALCA , a militância do PT fez o grosso, construiu o plebiscito, ao mesmo tempo houve uma orientação, naquele momento, pra não participar do plebiscito, pra não falar contra a ALCA, porque isso poderia atrapalhar, porque o plebiscito foi em setembro de 2002 e a Campanha do Lula era na sequência e pra não atrapalhar a Campanha do Lula houve toda essa orientação. (Entrevista 7).
Este conflito político e o antagonismo que vai demarcar as posições da AP em
relação ao Governo Federal e o PT, seja no que expressam os entrevistados quanto às
relações dos movimentos sociais com o governo em relação a gestão das políticas
públicas, seja naquilo que é revelado pelo teor do conteúdo e proposições das
campanhas e mobilizações articuladas pela AP, exige que seja contextualizado de forma
breve, a partir de algumas análises, o lugar histórico que o PT têm na trajetória das
esquerdas e na construção de uma nova institucionalidade democrática no país -
guardado os limites que a experiência de governos petistas nas esferas municipais,
estaduais e agora federal, têm representado.
Esta análise se insere numa abordagem que distingue as condições de
desenvolvimento do PT em relação à esquerda anterior a 1964, representada
particularmente pelo PCB. Fortes (2005) nos apresenta uma breve análise da trajetória do
PT, que nos parece elucidativa, para situar aquilo que nos interessa, de uma forma
problematizadora. Ele começa nos chamando atenção para o fato de que o PT é a
primeira organização da esquerda brasileira construída num período em que foi possível a
atuação política legal continuada, sendo nisso precedido apenas pela fugaz experiência
do PCB entre 1945 e 1947. Também foi o PT o primeiro partido de esquerda cuja
constituição partiu de lideranças orgânicas – em que os seus protagonistas eram ao
mesmo tempo atores e sujeitos políticos da iniciativa, não era uma vanguarda intelectual
revolucionária que convocava os protagonistas da história - surgidas de uma nova
configuração da classe trabalhadora nacional, em especial o “novo sindicalismo” - sendo
que a maioria dessas lideranças, que não tinham vínculo com organizações políticas
anteriores ou movimentos políticos de caráter internacional, foram aqueles que tiveram
peso decisivo na definição do caráter do partido que se propunham a criar.
“Evidentemente reconhecer esse protagonismo não implica menosprezar o papel
desempenhado pelas organizações de esquerda que optaram por aderir à proposta do
PT, nem pelos grupos ligados a Igreja Católica a ele vinculados desde o início” (FORTES,
2005, p. 196). Mas precisa-se registrar que existe um vinculo originário entre o PT e a
classe trabalhadora brasileira, que demarca uma singularidade do contexto político e da
sua construção “que o levou a ser produto e ator do processo de democratização mais
profundo e sólido vivido no país” (p. 196). Para ilustra isso ele apresenta o quão relevante
foi o papel que esse partido desempenhou na ampliação da presença de trabalhadores e
trabalhadoras rurais e urbanos, negros, feministas, líderes comunitários etc no Legislativo
e no Executivo. Esse perfil dos petistas eleitos coroa uma mudança na densidade social e
política brasileira que emerge com a ação dos novos movimentos sociais, nos anos 1970
e 1980.
Seguindo com sua analise, Fortes afirma que é possível demonstrar que o PT teve
um papel ativo na redefinição da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros. A
própria consolidação da idéia, explicitamente sustentada pelo partido, de que o
trabalhador não era apenas aquele que usava chave de fenda e enxada, mas também o
que manipulava a caneta, ideia, esta respaldada pela importante mobilização sindical de
setores como os bancários e professores, indicava importantes mudanças na relação
entre trabalhadores manuais e intelectuais, ou classe média assalariada. É a partir do
desenvolvimento dessa nova consciência de classe que o PT a partir dos anos 1980, vem
contribuir para reduzir “a interdição do acesso ao espaço público pelos subalternos na
sociedade brasileira e para quebrar as relações de hierarquia e deferência que
caracterizam o padrão autoritário dominante nas nossas relações sociais” (FORTES,
2005, p. 200).
Outro aspecto importante que ele analisa refere-se à construção da identidade do
PT em suas origens, e as marcas que estas deixam em sua história e institucionalização.
Fruto de diferentes avaliações e experiências das esquerdas quanto ao golpe e a
resistência a ditadura, na história do nascimento do PT temos a seguinte equação.
Os comunistas e sua 'áreas próximas' consideravam inviável a construção de uma força política de esquerda com base no discurso classista que marcava o PT em suas origens e apostavam que a iniciativa, marcada além de tudo pelo expontaneísmo, não geraria mais do que uma efêmera frente de grupelhos, jamais um partido no sentido próprio do termo. Já os petistas denunciavam o stalinismo, a ausência de democracia interna, a ortodoxia teórica e a falta de autonomia na relação com os movimentos sociais que caracterizavam o comunismo. (FORTES, 2005,p. 201)
Essa tensão gerou uma atitude de radicalização no processo de diferenciação em
relação a forças históricas anteriores da esquerda brasileira. O PT termina, por um lado,
sendo depositário da autocrítica da maioria das organizações dos grupos da esquerda
revolucionária, e por outro lado, “da rejeição à 'infiltração' de ativistas no meio operário, o
que levava muitos sindicalistas 'autênticos' a nutrir aversão pela própria idéia de 'esquerda
organizada'” (p. 201). Somado a tudo isso, no discurso petista, marcadamente paulista e
operário, a visão da história do país e das suas lutas sociais, muitas vezes passa a
sensação de que “o Brasil foi descoberto em São Bernardo do Campo”, o que denota uma
rejeição “por experiências passadas cujo principal efeito é alimentar a ignorância em
relação a história e a idéia, fundamentalista e prepotente, de que 'detemos a concepção
política correta e nosso futuro está assegurado'” (p.201). Esta idéia é percebida no
contexto da AP:
Então a gente começou esse processo de organização contando com a colaboração de alguns parceiros históricos da luta e acho que, em algum momento, quando a gente teve um apoio da Central Única dos Trabalhadores. É a gente conseguiu extrapolar um pouco os limites do Recife e interiorizar a Assembléia Popular, que acho que em 2005, 2006 a gente conseguiu fazer isso e ter Plenárias no Recife e nas micro regiões. Então foi um momento assim, acho que a gente conseguiu um envolver um maior quantitativo de pessoas. Depois e isso acho que tem um fator, o Presidente da CUT era um cara que vinha da igreja, que é do sindicato SINTEPE. Ele tinha esse maior diálogo e entendia a importância da Assembléia Popular, a partir do momento que uma outra pessoa assume, não tem esse dialogo, não é? E começa a achar que a Assembléia Popular vai naquele contexto político vai bater muito no Governo e a CUT naquele momento era um braço do Governo (Entrevista 5).
Por fim nos interessa na análise de Fortes, argumentos que problematizam a idéia
predominante sobre a crise do PT, de que houve um distanciamento entre estrutura
partidária e base social, que o projeto originário do PT teria sido desviado em função de
uma prioridade pela ação institucional em detrimento dos movimentos sociais. Em sua
leitura, num primeiro argumento, ressalta que os fatores determinantes na ascensão ou
no declínio de movimentos se localizam num plano muito mais profundo da estrutura
social do que o reservado à ação partidária. Ele entende que o determinante foi a
reconfiguração da classe trabalhadora brasileira em meados dos anos 1970, que
aglutinou a esquerda em torno do reconhecimento da novidade que significava o
fenômeno dos novos movimentos sociais, que optaram por colocar a sua experiência
organizativa e intelectual a serviço daqueles. Assim como a análise sobre a crise dos
movimentos sociais que deram origem ao partido, no que deve observar as
consequências do processo de “desestruturação do mundo do trabalho, que colocou
nosso sindicalismo em posição de heróica, porém defensiva, resistência e pelo cerco à
Teologia da Libertação, enfrentando um Vaticano conservador, o movimento carismático e
ascensão do pentecostalismo” (FORTES, 2005, p. 202).
Um segundo argumento que levanta, identifica a drenagem de lideranças e
quadros tanto para o partido como para as posições que ele passou a ocupar na estrutura
do Estado, que teve de fato, um inegável impacto nas organizações e movimentos sociais
populares. No entanto, pondera, que isto também possibilitou que algumas demandas
vinda dos movimentos fossem atendidas, como também permitiu que canais mais
democráticos para sua expressão e negociação fossem criados. Um último argumento
remete ao que ele entende ser um erro, que é subestimar o papel da política eleitoral e
prender-se aos postulados do século XIX, que diante da realidade do voto censitário, viam
nela apenas uma democracia formal. Para ele deve-se evitar qualquer purismo numa
análise sobre a política de massas no Brasil atual. A política continua a expressar uma
complexa representação de interesses, que nos processos eleitorais tem seu caráter
ideológico mascarados pelo uso de estratégias de mídia. As imagens dos candidatos e
suas proposições são apropriadas e reelaboradas com base na distribuição desigual do
capital cultural, gerando nos debates públicos a reprodução do senso comum e das
relações de poder pré existentes, em especial em tempos de descenso dos movimentos.
Na AP há posições diferenciadas sobre a participação nos processos eleitorais.
Há posições diferenciadas, mas […] a posição majoritária que se apresenta é uma relação de apostas na força dos partidos, na colaboração desses movimentos com os partidos de esquerda no caso o PT é o símbolo [...] mas os partidos de esquerda o PC do B, o PCR a equipe de colaboração aposta também na importância que esses partidos têm para trazer conquistas para os movimentos nessa direção, então isso tem sido a praxe, tem sido, digamos, a aposta mais forte mesmo diante de ponderações de minorias, na qual eu me incluo, quero dizer que é difícil você apostar que a gente possa construir uma sociedade nova a partir de instrumentos que já deram o que podiam dar. Há uma conjuntura para tudo. A conjuntura atual não favorece muito a ação transformadora dos partidos. Hoje os partidos se acoplam de tal modo ao Estado que não tomam distancia dele e normalmente tem o objetivo de se auto-reproduzir (Entrevista 9).
Mas as eleições têm gerado fenômenos positivos na relação entre o partido e as
bases, que para além da crescente profissionalização, abre espaços de participação e,
por meio de tarefas e ações concretas, possibilita um tipo de envolvimento ativo que
muitas organizações populares e o próprio partido, em seu funcionamento rotineiro,
perderam a capacidade de proporcionar. O que termina sendo uma das poucas fontes
para o surgimento de novos ativistas. Portanto, para ele, ao invés de se falar de uma
opção pelo institucional em detrimento dos movimentos, entende que o ciclo das lutas
sociais dos anos de 1970 e 1980 veio contribuir para mudar a
relação da nossa sociedade com a política, gerando o momento mais democrático de nossa história, e, simultaneamente, de criar ou renovar instituições capazes de sobreviver ao esgotamento dos próprios movimentos (ao menos em sua forma original), estabelecendo condições inéditas para que novas lutas venham a gerar um processo de transformações cumulativas (FORTES, 2005, p. 204).
E nesse sentido, relativiza, posições que esperaram da figura de Lula e seu
Governo respostas políticas que talvez não sejam possíveis historicamente ou que não
estavam no horizonte das perspectivas da tradição que ele representa. Faz isso na forma
prospectiva, em relação ao que o Governo Lula conseguiu realizar,
por meio da retomada do crescimento econômico e da incorporação de amplos segmentos excluídos á cidadania, vem criar condições históricas para uma reconfiguração da classe trabalhadora brasileira e para o desenvolvimento de novos movimentos sociais. Esses movimentos devem portar contradições não apenas com o Estado, mas também com as instituições geradas no momento histórico, como o próprio PT, os sindicatos e as organizações populares construídas nos anos 1970 e 1980 (FORTES, 2005, p.204-205).
Talvez um exemplo que dialogue, com a idéia de que o processo histórico vai
gerando novas contradições sociais e políticas e produzindo a possibilidade de novas
respostas, quanto às formas de organização dos movimentos, e a ruptura com certo
senso comum de antigos modelos conhecidos e vivenciados, encontre na AP uma
interlocução viva.
Pra onde vai o Brasil? Qual o Brasil que a gente quer construir? E ai foi quando a gente fez a ação formidável de construir a Assembléia Popular, nessa perspectiva do projeto popular, pegando ai varias organizações e movimentos. Acho que foi um momento assim, houve um impasse, inclusive lembro que no momento de construção da Assembléia, lá em Brasília. Já no governo Lula em 2005, era um momento em que o Governo Lula enfrentou a primeira crise, do mensalão. Todas aquelas questões colocadas e a Assembléia Popular como ela estava? Ela veio de um processo de profunda reflexão, profundo debate, mas sobre tudo de uma profunda inserção na luta de massa. Isso fez com que aquele processo lá quase que passasse ao largo, sabe? Do que estava colocado naquele momento como sendo o grande debate político, que era a questão do mensalão, que era todas aquelas questões em torno da corrupção do PT e a Assembléia curiosamente nem discute isso. (Entrevista 7).
O debate proposto por Fortes acima, nos ajuda a lidar de forma problematizadora
com algumas questões que surgem muito fortemente nas entrevistas quanto ao lugar dos
partidos, das eleições, do Estado e dos movimentos sociais nessa conjuntura, o que nos
parece denotar que advêm do impacto da crise do PT pelas opções assumidas em nome
da governabilidade, desde a primeira hora até a eclosão dos escândalos de 2005. O
trecho abaixo demonstra como este debate foi se estabelecendo no interior da AP
A crítica que eu faço é à política do Estado [...]. O problema não é FHC ou Lula, a questão é o Estado que está lá além de pessoas, não é Lula, não é Dilma, não é uma pessoa, é o Estado. […] A gente não pode entender uma nova sociedade desenhada por um Estado cujo o limite está dado, não é só o Estado Brasileiro, qualquer estado na Bolívia, na Venezuela em qualquer lugar. O Estado tem seus limites também. Ele atende a uma parcela, mas não tem como atender outros se não mudar a sociedade no caso. Claro que essa mudança não acontece à tomada do quartel como em fim aqueles instrumentos tradicionais. Acho que não são mais validos pra hoje, mas isso não quer dizer que pelo fato de a gente não ter mais esses instrumentos a gente vá ceder, vá se render a utopia maior de uma sociedade que faça justiça. Se justiça significa assegurar as necessidades materiais básicas pra todos e as necessidades imateriais também, isso num processo continuo, a longo prazo, não é uma coisa já, mas a partir de como a sociedade hoje é desenhada, como o Estado está desenhado, senão , ai não tem sentido (Entrevista 9).
Comparando as avaliações dos entrevistados, com entrevistas feitas por
Wainwright (2006), analisadas por Arruda (2006), constatamos posições coincidentes
quanto ao momento de crise do governo e do PT e dos significados disto para as relações
entre os movimentos sociais e governo, e o PT. Arruda apresentando uma síntese das
principais posições expressas nas avaliações dos militantes, quanto à história e a
configuração do movimento popular e do PT, nestas, ele identifica: os que acreditam que
o partido e o governo ainda são instrumentos de transformação social, e de promoção da
sociedade civil a protagonista do seu próprio desenvolvimento, e os que já não acreditam
nisso; os que ficaram e os que saíram do PT; os que desejam construir um novo partido e
os que acreditam que a era dos partidos políticos acabou, e que novas formas de
participação social na política estão emergindo e prevalecerão ao longo do século XXI. A
AP parece apresentar-nos, um leque semelhante de questões que precisam ser
respondidas em sua organização e ação coletiva. Arruda nos mostra um balanço sobre
esse momento e as posições que as entrevistas apresentam, as quais estabelecem novas
balizas para seguirmos com nossa reflexão. Ele diz que as clivagens das opiniões
apresentadas
num contexto de um governo hegemonizado pelo PT, implicam um tremendo desperdício de energia humana e enfraquecem o bloco histórico que incorpora a urgência de uma profunda transformação social. Os lideres do partido e governo fracassaram ao desperdiçar a oportunidade histórica de liderar o Estado brasileiro com o fim de inaugurar um processo sistemático de educação para um nova cidadania. Tal processo envolveria um contato constante com as massas da população e, em particular, com os lideres dos movimentos populares (ARRUDA, 2006, p. 21-22).
Ele nos acrescenta, em sua análise, elementos relativos a opções assumidas na
macroeconomia e a ausência de projeto de desenvolvimento em questão nesse contexto,
argumento que está muito presente, nas posições da AP. A ausência no PT e no governo
Lula de um projeto de desenvolvimento para o país. O PT tinha uma crítica à prática
capitalista neoliberal, mas não estava formulando projeto que contivesse uma outra
perspectiva de desenvolvimento econômico “voltado para a superação da injustiça, da
desigualdade da renda e da riqueza, da exclusão da maioria do direito de possuir e
controlar os recursos produtivos; nem tinha estratégia de ação para realizar a transição da
desordem para a ordem almejada” (ARRUDA, 2006, p. 22)
Para avançarmos em direção a outras reflexões sobre o contexto da relação dos
movimentos com o governo Lula, recorremos a análises propostas por Ricci (2010) sobre
o fenômeno, que ele nomeia de lulismo5. Ricci chama atenção para os impasses criados 5 Neste trabalho não faremos a discussão sobre a categoria “lulismo”, que têm sido utilizada por outros estudiosos que tem debatido sobre os traços definidores do Governo Lula, Ricci o define assim: “O lulismo completa a modernização conservadora iniciada por Vargas porque reafirma o Estado como demiurgo da sociedade civil e das relações de estabilidade das relações sociais no Brasil. Não inova em termos de processo decisório na gestão
pelo participacionismo durante a gestão de Lula, que demonstrou a permanência de fortes
traços de práticas tradicionais e patrimonialistas no interior das organizações populares
que pretendiam enfrentá-las. Ele nos lembra que a maioria dos militantes que lideraram o
movimento de participação popular, que influenciou a legislação garantida na Constituição
de 1988 e o sistema de gestão pública participativo a partir dos anos 1990, foram
formados por ‘programas de formação’ que tinham na educação popular seu eixo central,
o que na opinião dele, gerou conseqüências na forma desta mesma militância lidar com a
nova realidade institucional, devido ao ideário ali veiculado.
Em sua análise, as mudanças de contexto político institucional a partir de fins dos
anos 1980, trouxeram uma grande inflexão para a trajetória dos movimentos sociais e as
proposições de educação popular. Os movimentos aumentaram o seu grau de poder
político, chegando mesmo a profissionalizar sua ação, o que levou a terem de criar um
corpo administrativo permanente, fluxo estável de recursos financeiros, planejamento de
ações, regras para organização institucional, criação de corpo técnico de assessoria. Com
essa profissionalização “os valores universais e mesmo o ideário humanista-cristão que
cimentava a quase totalidade dos movimentos sociais que se espraiavam pelo território
nacional passaram a ser apropriados ou reformulados por cada uma das organizações
que consolidavam” (RICCI, 2010, p. 238-239). Somado a isso se observou o ingresso de
muitas lideranças no parlamento e executivos municipais, tal realidade vai modificar as
posturas anti-institucionalistas e afetar a autonomia dos movimentos sociais. Surgem
contradições geradas, a partir de uma espécie de “blocos de representação de interesses”
no interior dos parlamentos e para captação de recursos para manutenção das
organizações populares. A nova realidade política vai criar rearranjos no sistema de
representação dos movimentos sociais:
A primeira, orientada pelo afastamento das lideranças em relação aos movimentos sociais dos quais eram oriundos e subsumindo na lógica das burocracias públicas, aproximando-se de uma situação de cooptação institucional. A segunda, marcada pela separação da prática política dos líderes no interior do sistema institucional em relação ao seu discurso de legitimação, este último voltado inteiramente para os movimentos sociais (…). Uma terceira possibilidade foi a limitação da pauta da liderança aproximando-se do que na teoria política denomina-se representação delegada, ou seja, uma representação restrita aos interesses de um movimento especifico (RICCI, 2010, p. 239-240).
Projeto Popular: o democrático e o popular na AP
A Assembléia Popular nasce fazendo o debate sobre um Projeto Popular para o
Brasil. Podemos dizer que a AP se estrutura e constrói sua unidade em torno da
construção de um projeto mínimo, nomeado de Projeto Popular, em contraponto ao pública. Ao contrário, reedita o que Welffort (1992) identificou como sistema dual da política nacional que limita a competição entre forças políticas (…) apóia-se no presidencialismo de coalizão que rearfirma a dualidade política. E incorpora as massas até então marginalizadas socialmente pelas mãos do Estado, eliminando qualquer controle social ou sistema integrado de participação dos beneficiários na gestão das ações estatais” (RÍCCI, 2010, p. 17).
chamado projeto democrático e popular, que estaria representado no governo federal pela
vitória do presidente Lula, naquilo que este governo passa a se confundir com 'a
perspectiva desenvolvimentista nacional conservadora, articulada a lógica da globalização
neoliberal.
Discutiremos aqui as noções contidas na expressão Assembléia Popular, buscando
compreender o sentido contido na proposição desta nomeação auto-atribuída e
contextualizando política e teoricamente a Assembléia e o Popular. A expressão
Assembléia Popular propõe dois conteúdos, um relativo ao termo 'assembléia' e outro
relativo ao termo 'popular'.
O termo 'assembléia' está vinculado à discussão de democracia direta e
participativa. O termo 'popular' se articula com as idéias de classes populares,
movimentos populares, projeto popular, termos com amplitudes semânticas e políticas de
conteúdo amplo, que se relaciona com o ideário da transformação social, o socialismo.
Debatemos compreensões sobre os termos das relações sociedade e Estado, e os
elementos contraditórios e/ou paradoxais que estão implicados na contraposição que a
AP faz na leitura da realidade e proposta de um Projeto Popular para o Brasil, como
alternativa a um projeto democrático popular, identificado com o Governo Lula.
Trabalho de base e autonomia na construção da AP, compõe os eixos centrais da
metodologia da sua metodologia. Nesta metodologia de trabalho percebemos
características vinculadas à tradição dos novos movimentos sociais e da educação
popular, que também são caras ao cristianismo da libertação (FLÀVIO, 2012). Como
expressa uma entrevistada, “até a maneira da gente trabalhar é um assunto na AP”. Nos
exemplos dados pelos entrevistados existe uma maior ênfase relativa a algumas
dimensões desse jeito de trabalhar: articulação entre as ações de formação, mobilização
e organização, acompanhamento de ações locais; o trabalho sobre alguns eixos
temáticos definidos a cada ano; a busca por articular as questões nacionais à questão
local; a referência à memória dos lutadores, militantes importantes no processo de
construção histórica. Como foi comum nas experiências de educação popular, sua
proposta política estratégica se apresenta articulada em trono de três dimensões no
planejamento da sua ação: mobilização, organização e formação.
No processo de organização encontramos muito presente o entendimento de que
se constrói a força do poder popular a partir de pequenas conquistas, entendidas como
processo pedagógico de construção de espaços coletivos, grupalização, aprendizagem
política e vivência de experiências de trabalho popular, de planejamento da ação coletiva,
estando tudo isso muito marcado pelo debate sobre o desenvolvimento de um trabalho de
base. Isso nos remete ao estudo das experiências de democracia de base, nas CEBs,
realizados por Paulo Kichken (2003), em novo contexto de descenso e perda de
autonomia das organizações comunitárias, como salienta a fala deste entrevistado.
Onde há movimento está alguém da Assembléia lá acompanhando, dando, fazendo eco, ajudando a construir, isso é um ponto importante que eu considero que são pequenas conquistas que despertam mais emoção, mais interesse também e ajudam a firmar a luta. […]. As conquistas são didáticas, elas são pedagógicas quando não se vê avanço a tendência é o desânimo, então quando a gente se esquece a importância dessas conquistas, por pequenas que sejam, a gente termina agravando a situação de mobilização e de despertar das massas (Entrevista 9).
Quanto ao processo de formação, os registros das entrevistas destacam os
momentos de realização de debates sobre a conjuntura, seminários e o Curso de
Realidade Brasileira – CRB. Como nos relata uma entrevistada, os processos de
mobilização e luta social, têm sofrido nesses últimos quatro anos, mudanças que vão no
sentido de reforçar ações no campo local, e não só em âmbito nacional. As organizações,
os movimentos e as pastorais têm priorizado esse trabalho local, porque ele é
fundamental para manutenção da articulação do trabalho ‘macro’ da Assembléia. As lutas
estão efervescendo muito mais agora do que nos últimos dez anos, só que num patamar
local, onde ela informa estar sendo sentindo o impacto mais fortemente do modelo do
governo federal. Fazendo tudo isso parte de um processo de rearticulação.
Para avançar na análise sobre a visão que os militantes da AP têm sobre o
conteúdo proposto, de forma subjacente, ao construir a assembléia popular, faremos um
resgate das referências políticas e ideológicas presentes em propostas de constituição de
conselhos ou assembléias populares na experiência histórica.
Teixeira (2000) faz discussão em que resgata o papel revolucionário dos Conselhos
e sua relação com o Partido, Sindicato e o Estado - relacionando a recuperação dessa
história e origem da democracia direta e participativa, a experiência política recente do
Brasil . No Brasil o surgimento dos Conselhos no formato atual, constituído de cidadãos e
membros de governo, dá-se numa conjuntura de opressão política e de emergência e
desenvolvimento dos movimentos sociais que desemboca num processo duro de
resistência, de crise do regime e, finalmente, na transição negociada entre as elites.
Podemos distinguir duas direções que nortearam a criação desses espaços públicos de
participação: iniciativas de governos de vários matizes ideológicos e iniciativas de
movimentos populares e entidades da sociedade civil, resultantes de processos de lutas
específicas de base local.
Neste sentido, na experiência do Brasil foi marcante no debate sobre os conselhos,
a oposição entre conselhos populares e conselhos de gestão. Isto vai se expressar mais
fortemente, nas primeiras experiências de gestão do PT. Nelas os conselhos eram
entendidos como órgãos independentes do Estado, não vinculados a quaisquer
instâncias; como espaço de discussão, organização e luta, e não deveriam ser criados
pela administração, embora essa pudesse estimulá-los. Ao mesmo tempo, afirmava-se
que os conselhos eram formas de poder popular, baseados na democracia direta, tendo o
caráter deliberativo, mas não definindo se estas deliberações deveriam ser acatadas pela
administração. Apesar da ambigüidade das definições, parece claro que não se pretendia,
através dos conselhos, prover políticas, mas fortalecer os movimentos, mobilizar e
organizar os trabalhadores6.
Assembléia Popular: os sentidos da democracia. Faremos aqui uma
comparação entre a concepção de assembléia popular contida em cartilha do Jubileu Sul:
“Assembléias Populares – reinventando a democracia, estudar juntos, lutar juntos”
(JUBILEU SUL, 2005), utilizada no processo de preparação do 1º evento nacional, em
2005, e a compreensão dos entrevistados militantes da AP.
Em seu roteiro a cartilha responde ao que é a Assembléia Popular, iniciando por
afirmar que ela nasce da busca por garantir uma forma democrática de organização da
vida social. Para isso sugerem que se imagine o que seria se tivéssemos em cada bairro,
zona administrativa, cidade, comunidade rural, um espaço onde cada cidadão e cidadã
pudesse dar sua opinião sobre assuntos como a gestão da saúde, da educação, da
política externa do país, das agendas a serem cumpridas pelos governos. Ou se
tivéssemos uma dinâmica de participação sistemática e regular, que possibilitasse às
pessoas, pensando com sua própria cabeça, fossem os principais sujeitos de definição
das políticas públicas, estabelecendo prioridades e acompanhamento sobre o processo
de execução, não apenas do ponto de vista do orçamento público, mas sobre a própria
natureza dessas políticas públicas. Em fim reafirmam que a missão desses espaços de
democracia direta é o de tomada de decisões, e não apenas um espaço de opinativo.
No entendimento transmitido, para poder construir este tipo de Democracia
Popular, que combina a democracia direta, nas mãos do povo, com a democracia
representativa, não é fácil. É necessário propiciar ao povo informações e estimular a
participação. A população informada, esclarecida e estimulada a participar vai dizer o que
sente, o que precisa, o que quer. Vai estabelecer quais são as prioridades para o seu
bairro, para a sua cidade, para o seu estado, para o nosso país. E isso tudo deverá
acontecer em reuniões coletivas, com muita gente participando. Estas são as
6 Nesse contexto de origem do surgimento dos conselhos no Brasil, são relevantes as experiências de caráter informal sustentadas por movimentos sociais, no formato de 'conselho popular', às vezes articulados à ‘assembléia popular’. São exemplos os conselhos no Movimento de Saúde da Zona Leste de São Paulo, as alternativas à inércia e ao comprometimento dos sindicatos oficiais na forma de 'Comissões de Fábrica', do Conselho Popular da Comunidade de Osasco e a experiências da Assembléia Popular de Campinas.
Assembléias Populares.
A expressão ‘assembléia’ é usada para fazer referência a um tipo de democracia?
Inquirimos, a partir das entrevistas, que tipo de democracia seria o desejável para a
Assembléia Popular: democracia direta, democracia participativa, democracia popular?
Estaria a AP buscando uma contraposição ao modelo de democracia liberal e/ou
republicana representativa e deliberativa presente no Brasil? O que vai (re)definir o
caráter democrático contido na expressão Assembléia Popular? A idéia de ‘assembléia’
remete para a democracia direta, é certo, mas o que define uma democracia direta,
participativa, radical? Este debate permeia a AP e pode ser constatado nas entrevistas
realizadas, como a descrita abaixo, na qual uma liderança comunitária manifesta o seu
entendimento sobre o sentido da expressão ‘assembléia’ e ‘ popular’.
A gente tem esse entendimento de que a gente não se sente representado pelas pessoas que foram eleitas pela sociedade. Então assim, se a gente coloca representantes, oficialmente a gente elege pessoas e essas pessoas não correspondem aos anseios da população. Não fazem aquilo para que elas foram eleitas. Então a gente compreende assim, que a Assembléia é um espaço pra gente tentar colocar os nossos anseios, os nossos sonhos. Dizer assim, a gente quer isso. O nosso desejo é esse, a gente quer fazer lei desse tipo. Então, a Assembléia ela vai ter um sentido importante, porque você está ali na base, é uma Assembléia Popular. Não é uma assembléia de deputados federais, de um pequeno grupo de gente que vá decidir a sua vida, não! É uma Assembléia (Entrevista 4).
Na tradição dos novos movimentos sociais os sentidos dados a expressão
'assembléia' envolvem participação, cidadania e democracia. Simbolicamente a idéia de
'assembléia' está vinculada à participação das bases, de todos, daqueles que estão
representados pelas direções dos movimentos, e que são sujeitos da construção das lutas
por direitos. A luta por direitos e cidadania entendida aqui como construção de uma outra
cultura política que não a tradicionalmente predominante, construção de uma nova
hegemonia social, política e cultural capaz de reconfigurar as relações políticas e sociais e
o Estado. Lutas sociais que produzem novos arranjos institucionais que vão sendo
experimentados em diferentes contextos, seja em processos que redefinem a forma de os
movimentos se organizarem, que envolvem as relações entre movimentos, ou naqueles
que envolvem a relação dos movimentos com o Estado. Arranjos institucionais que vão
delineando diferentes projetos de gestão da sociedade, que recriam valores presentes no
projeto socialista que foi derrotado na sua realização como socialismo real (DAGNINO,
2006; WAINWRIGHT, 2005).
A rede de movimentos, sua metodologia e estratégias de ação, e as campanhas de
mobilização nacional desenvolvidas pela Assembléia Popular, são exemplos deste caráter
assembleístico, participativo, que, entre outras medidas, têm tomado o plebiscito como
expressão de democracia direta, de possibilitar a expressão da vontade popular. Neste
sentido, a AP expressa o seu anseio por um projeto democrático.
Existe um anseio de toda a população de se ver representada pelos poderes executivos, de ter um Estado democrático, de ter um Estado em que as políticas públicas sejam políticas de Estado e não políticas de Governo, né? É anseio de participação cidadã das pessoas. A Assembléia, ela promove muito isso com a metodologia de educação popular, metodologia de escutar todos esses segmentos, de todos esses segmentos terem voz e vez na organização das suas lutas, suas demandas, das suas vitórias. Então, é um espaço, a idéia do espaço da Assembléia Popular é um espaço que reúne diversos segmentos e por ser uma assembléia [...] existe uma coordenação pra ir organizando, mas o processo em si é um processo democrático, que não tem um movimento que se sobreponha a outro. Então a gente acredita que esse espaço seja espaço de construção, um espaço democrático, espaço aonde possa se reunir os diversos e os mais múltiplos setores da sociedade (Entrevista 5).
Projeto Popular: um caminho incerto para transformação social. Para
iniciarmos a discussão sobre o entendimento de projeto popular que está presente na AP,
e seu questionamento à democracia, trazemos à tona uma afirmação e algumas
perguntas.
A gente tem participado de Greve dos Bancários, estamos lá. Tava lá outro companheiro da Assembléia e eu fazendo animação, e isso ai vai dando um pouco o mote de como na prática, começar uma construção de um Projeto Popular, que vai acontecendo não com uma coisa escrita anterior, mas com a prática, que está e vai acontecendo nessas coisas e ao mesmo tempo, que se completa com a formação no CRB – Curso de Realidade Brasileira (Entrevista 12).
Seguimos com a pergunta de outro entrevistado: É possível mudança nos marcos
da cultura ocidental a partir dos conteúdos da democracia em suas experiências históricas
conhecidas?
Mas a concepção de democracia é a mesma, ou seja, ditatorial. Então a gente é chamado a ser mais criativo hoje, criativo. Não esperem respostas, não esperem receitas em relação a isso, dizem. Mas uma coisa é certa: como está a gente já tem certeza que não dá, não vale a pena! Se isso foi importante durante o século dezenove, o século dezoito, convencer o papel da formação do Estado, a formação da democracia tal como ela (...) se teve seu papel importante, isso deve ser respondido pelas gerações de cada tempo. A certeza que a gente tem é que esse tipo está esgotado. Não tem mais, não tem mais sentido e também ai de nós se a gente acreditasse que não haveria jeito, é assim ou nada, não é assim! A história é longa, milenar. A história da democracia tem uma duração muito menor, e a história da democracia moderna é mais recente ainda, então ela não tem que ser cumprida eternamente, ela é histórica e se é histórica, ela é mutável, e cabe a nós fazer essa mudança ao longo prazo, não existe essa idéia de fazer essa mudança de hoje pra amanhã. Uma coisa que é secular não vai mudar de um dia pra noite (Entrevista 9)
‘Projeto Popular’ aparece nas entrevistas, às vezes de forma explicita, às vezes
nas entrelinhas, se nos apresenta como um caminho incerto, tencionado por afirmações
socialistas revolucionárias e radicais e processos de construção de experiências de
democracia de base; lutas sociais e organização política autônoma e socialista popular;
de forma mais amena também aparece uma perspectiva nacional democrática popular
desenvolvimentista – representada por aqueles(as) que são integrantes da AP mas
permanecem vinculados ao PT.
Para discutir a expressão 'popular', na denominação da rede de movimentos
sociais que estamos analisando, podemos recuperar de forma panorâmica as discussões
políticas e sociológicas sobre os sentidos do popular e que problematizam as
interpretações teóricas atribuídas ao seu uso. Para isso recorremos ao estudo de Paoli e
Sader (1986) sobre classes populares, para melhor localizar essa noção no interior da
construção política e de sentido dada ao ‘popular’, devido a ênfase que tem na
experiência de formulação de Projeto Popular.
Paoli e Sader (1986) enfatizaram elementos de ordem teórico-metodológica para
construção e uso da categoria 'classes populares'. Ressaltaram que a sua utilização, no
período dos anos 1980, vinha ganhando terreno nas ciências sociais e pretendia ocupar
um lugar substitutivo ao de classe operária, buscando, nesse intento, manter rigor na
delimitação das fronteiras de cada classe – na distinção que se tentava fazer entre
trabalho produtivo e improdutivo para fundamentar a análise sobre proletariado. Para eles,
o que seria nos movimentos sociais, sua composição de classe – enquanto posição em
relação a estrutura produtiva – não aparece nem homogênea, nem nítida. Portanto, o rigor
analítico “desloca-se do campo da delimitação das fronteiras entre classes, frações,
categorias sociais, para o campo da compreensão especifica da prática dos atores sociais
em movimento” (p. 59).
Delineia-se, para eles, um novo modo de se entender os trabalhadores e os
movimentos populares, como um conjunto de pessoas e grupos que têm em comum,
naquele momento analisado, múltiplas lutas, referindo-se a fins de 1970. São vários
movimentos de “luta contra opressões diversas, a maioria de base popular, cuja promessa
tirava de cena os atributos de alienação e heteronomia tradicionalmente atribuídos aos
trabalhadores” (p. 60). Percepção essa, nova, que permite passar a pensar a constituição
do cotidiano como espaço simbólico de vivência da dominação e de formulação de
projetos para quebrá-los, assim como, passar a desconfiar da memória do vencedor e do
discurso competente. Constrói-se a partir daí uma imagem de classe que é múltipla e
diferenciada, que, no entanto, se articula através da noção de enfrentamento coletivo com
um poder que também não é único. É movimento que se põe coletivamente em luta
contra os poderes vigentes, a cada momento redefinindo o campo de lutas e os próprios
agentes.
A partir da noção de atores múltiplos, integrais, cujo coletivo se forma pela
articulação das diversas situações de dominação contestadas, por seus movimentos, a
avaliação do que as classes populares são – enquanto essência – perde o sentido, para
se transformar numa avaliação daquilo que os grupos estão enfrentando e estão sendo.
Quando dizemos ‘trabalhadores’ ou ‘movimentos coletivos populares’, estamos
entendendo que o social não é mais estrutura, mas cotidiano. Os trabalhadores não são
mais personificação desta estrutura, nem apenas objetos de exploração do capital, nem
apenas produtos das instituições políticas. São sujeitos que elaboram e produzem
representações próprias, de si mesmos, seja como trabalhadores, favelados, mulheres,
negros, ou tudo isso, dependendo do movimento de vida coletiva na qual constroem sua
experiência. Ou seja, não há identidade constituída que não se modifiquem na medida da
própria coletivização, pois elas se constroem nas lutas e enfrentamentos.
A expressão Assembléia Popular possibilita fazer ainda discussão sobre a
representação social do 'popular' na história dos movimentos sociais, levantando algumas
hipóteses possíveis para permanência do popular na construção de sua(s) identidade(s)
coletiva(s), que se insinuam na conjuntura política estudada. Para tanto identificamos, de
forma pontual e sumária referências de autores que exploraram essa dimensão em
estudos que realizaram sobre movimentos sociais, nos quais discutem os sentidos do
popular e/ou problematizam interpretações teóricas recorrendo ao seu uso.
Além da noção de classes populares citada acima, vamos encontrar correntemente
o uso de movimentos populares ou movimentos sociais populares. Movimentos populares
é uma expressão que será amplamente utilizado pela literatura dos movimentos sociais
no Brasil e na América Latina, para fazer a distinção de características fundamentais da
composição dos movimentos sociais, no caso sua extração popular, no sentido da
organização das camadas sociais pobres; e, ao mesmo tempo, como expressão política
ideológica de viés socialista, que buscava substituir o sujeito político operário pelo
'pobretariado', termo cunhado por Michel Lowy. Movimentos populares também é um
termo de uso corrente na literatura dos teólogos da libertação e de pesquisadores/
militantes que trabalhavam com os movimentos no meio urbano. Eles enfatizam a esfera
de reprodução da vida e a antagonização com o Estado como símbolo da exploração pelo
não atendimento às demandas de serviços e terra urbana.
Este uso apresentado acima se estende para expressão movimentos sociais
populares ou movimentos sociais populares rurais, por afirmação da importância, no
contexto do Brasil, de agregar e manter vinculado aos estudos de 'novos movimentos
sociais' o recorte de classe. Esta afirmação se baseia em um entendimento que as lutas
contra a exploração capitalista e pelo o reconhecimento de direitos, contra a opressão e
discriminação por razões étnica e racial, de desigualdade de gênero, de opção e
orientação sexual, lutas pela reforma urbana, reforma agrária, defesa do meio ambiente,
promoção da cultura da periferia, são lutas que ainda que pluri-classistas, lidam com forte
teor de desigualdade e conflitos de ordem social não equalizados historicamente.
Projeto Popular ou Projeto Democrático Popular. Interessa-nos aqui identificar
as novas conformações da relação sociedade civil e Estado, no contexto pós governo
Lula. Para tanto problematizo aqui a noção de projeto político, no sentido em que esta é
utilizada por Dagnino (2004). Noção que só pode ser compreendida a partir de uma
abordagem teórica que articule no nível empírico da investigação, a análise de “distintos
projetos políticos em disputa, e especialmente no esforço de desvendar a crescente
opacidade construída por referências comuns” (p. 98), no que se refere à democracia,
participação e cidadania, através de deslocamentos de sentido que sofrem. Entendo
portanto ‘projeto político’
como um conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orienta a ação política dos diferentes sujeitos (…) eles não se reduzem a estratégias de atuação política no sentido estrito, mas expressam, veiculam e produzem significados que integram matrizes culturais mais amplas, no que se refere a relação Estado-sociedade civil, sem incorrer na clivagem simplista de considerar a sociedade civil como 'pólo de virtudes democratizantes', e o Estado visto como 'encarnação do mal' (DAGNINO, 2004, p. 98).
Nessa perspectiva, quebramos a visão homogeneizadora dos dois pólos,
sociedade e governo, ou melhor, movimento e governo, identificando os deslocamentos
de sentido pelos quais tem passado as noções democracia, participação e cidadania,
identificando o que os projetos políticos escondem e revelam. Dagnino (2006), para tanto,
constrói uma tipologia de projetos que estão em disputa hoje na América Latina e no
Brasil, na qual distingue as formas de democracia e as tensões criadas, de um lado, em
torno da participação cidadã e das lutas pela democratização realizadas pelos
movimentos sociais, de outro, pelos experimentos de gestões democráticas de governos
de centro esquerda, com suas iniciativas de participação social.
Nesta análise ela delimita a existência de pelo menos três tipos de projetos em
disputa: i) projeto autoritário; ii) projeto neoliberal; iii) projeto democrático participativo. A
nós interessa discutir, de forma mais fina, as diferenças que se apresentam no interior do
que é identificado como projeto democrático participativo, já que a AP surge contestando
a sua existência, na forma como ficou mais nomeado no Brasil - projeto democrático e
popular -, o qual ao mesmo tempo, se confundiu com a história do PT - e em especial
caracterizará as suas gestões de governo como administrações democráticas e
populares. Buscaremos, portanto, situar as distinções e indiferenciações presentes na
proposição de ‘projeto democrático e popular’ e ‘projeto popular’.
Queremos, no âmbito da compreensão sobre as disputas na sociedade civil, e na
sua relação com o Estado, recuperar a discussão sobre o processo de constituição de um
campo democrático e popular (PALUDO, 2001) durante as décadas de 1970 e 1980, e a
sua desarticulação e/ou reconfiguração a partir da derrota eleitoral de Lula em 1989 e/ou
seu esgarçamento maior provocado com a eleição de Lula para a presidência da
república, em 2002 (VERAS, 2011). A constituição desse campo coincide com a
formulação correspondente às suas perspectivas políticas e ideológicas, de um projeto
democrático e popular.
Esta conformação de campo democrático e popular, e do ideário que vai se
constituir num projeto democrático e popular desse campo é percebido, nomeado e
interpretado de diferentes maneiras. Paludo considera que
o Campo Democrático e Popular (CDP) se constitui em nosso país nas décadas de 1970/80, de um lado, em contraposição aos desdobramentos específicos do projeto de modernidade e, de outro, na continuidade do aprofundamento de concepções e práticas que procuravam articular a democracia com a justiça social e com a construção de um projeto alternativo de sociedade. O CDP representa, no espaço social […], a articulação e congregação de forças políticas e culturais com capacidade de intervenção política e organizativa. Apesar das especificidades das práticas sociais, de identidade, composição social e projetos, o CDP orientava-se para a luta pela democratização formal e para aprofundamento desta democracia, que consiste na partilha do poder político, econômico e cultural, apontando já nesse período para necessidade do alargamento e universalização dos direitos civis, políticos e sociais. Na luta pelo aprofundamento da democracia, por exemplo, diferenciava-se de outros campos que também lutavam pela democratização formal […] A luta e as condições que configuram seu processo deixam de ser pensadas nos estritos limites do econômico e passam a ter uma maior e melhor expressão de sua dimensão política e cultural. Além disso, o CDP se orienta pela autonomia dos diferentes sujeitos sociais – partido, Estado, movimento -, pelo rompimento de relações hierarquizadas entre direção e base, pelas formas de participação direta do popular na reflexão, decisão, execução e controle das deliberações, enfatiza o caráter pedagógico das relações” (PALUDO, 2001, p.45-46).
Sader (1988) apresenta uma nova configuração para os sujeitos sociais que
produziam as mobilizações sociais na década de 1970 em torno da idéia de articulação de
uma classe trabalhadora ampliada, formada pelo novo sindicalismo, as comunidades
eclesiais de base e intelectuais de organizações de esquerda na diáspora, atuando como
um movimento democrático e popular na sociedade civil.
Doimo (1995), analisando os anos 1980 e os primeiros anos da década de 1990,
ao abordar a participação política dos movimentos sociais, faz um balanço das práticas
políticas e das formas de organização e intervenção, identificando que, para além do
projeto (do) popular, existem ações temáticas e territoriais dos movimentos, que se
articulam em redes constituídas em torno de um campo ético-político democrátioa e
popular. E nesse processo assinala uma inflexão que estava em curso quanto às
concepções e práticas políticas nos inícios dos anos 1990, qual seja, o abandono da
noção de ‘popular’
Embora não se possa esquecer que os recursos de poder para tanto vieram, paradoxalmente, de condutas informadas por códigos ético-políticos um tanto avessos à
própria institucionalidade política, o fato é que também o apelo aos direitos de cidadania sempre estiveram colocados neste mesmo universo. Significa dizer que, ao lado de posturas de negação da institucionalidade, foram desenvolvendo padrões de convivência positiva com a institucionalidade, mediante reivindicação à face provedora do Estado (…) a própria noção de popular começou a perder terreno para a idéia de 'sociedade civil organizada' e aquela postura de negatividade indiscriminada para com a esfera institucional, que marcara o período precedente, cedeu lugar a relações de seletividade positiva para com a esfera político-administrativa. Com efeito, verifica-se uma gradual e sensível mudança no discurso. Cada vez mais fala-se menos em 'democracia de base' e mais em 'democracia como valor universal', menos em 'movimento popular' e mais em 'movimentos sociais organizados', menos em 'luta contra o Estado' e mais em 'participação da sociedade nas decisões' através do estabelecimento de parcerias” (DOIMO, 1995, p. 225).
Como se pode observar são distintas as interpretações sobre o projeto democrático
e popular, mas ele é presente desde o período da redemocratização até os dias atuais. O
processo, desencadeado nos anos 90, redunda nos anos 2000, com a eleição de Lula e a
reconfiguração, ou melhor dizendo, a erosão do chamado campo político democrático e
popular, em função dele não ter se realizado na ação de governo. Do qual resultará a re-
emergência do debate sobre a articulação de um projeto popular, que nasce ainda
durante os anos 1990 com lançamento de “A opção brasileira” (BENJAMIN, 1998) em
1998, e a criação, do movimento da Consulta Popular, hoje uma organização política. Vale
relembrar que esta iniciativa representa explicitamente uma insurgência contra a
hegemonia do PT e da CUT, no interior desse campo político democrático e popular, para
enfrentar a onda neoliberal do Governo FHC. Este processo fomenta a articulação de
setores ligados as pastorais sociais e CEBs, movimentos sociais urbanos e rurais
liderados pelo MST e intelectuais dissidentes do PT, que propõem um Projeto Popular
para o Brasil. Esta iniciativa, como já salientamos, será retomada em 2005, após início do
1º mandato de Lula, na fundação do movimento Assembléia Popular, em defesa da
construção de um projeto popular, em contraposição ao projeto democrático e popular do
Governo Lula.
Os movimentos sociais buscam produzir ações estratégicas de construção
de uma contra hegemonia cultural e política que possam ser expressão de interesses
públicos, através de arranjos sociais e políticos não institucionais predominantemente,
mas também institucionais, que reforcem a constituição de um poder popular e/ou
espaços públicos ampliados com base em outras lógicas de governo. Entendemos que
existe, na AP, uma perspectiva ambivalente ou polissêmica de ação política, que se
identifica na construção de um Projeto, por vezes democrático e popular e por vezes,
apenas popular.
O importante é que esta se fazendo uma teoria política nova, uma democracia radical de alta intensidade, e isso só se alcança por meio da democratização de todos os espaços [...] A proposta é substituir relações de poder por relações de autoridade compartilhada, um
trabalho democrático muito mais amplo do que se pensava até agora. Nessa mesma linha precisa-se construir a emancipação a partir de uma nova relação entre o respeito a igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença. [...] Não temos hoje os conceitos para enfrentar o novo, a descontinuidade, a ruptura, a revolução. Os instrumentos hegemônicos que temos são as semânticas legitimas da convivência política e social: a legalidade, a democracia, os direitos humanos. Deve-se tentar ver se os instrumentos hegemônicos podem ser utilizados de maneira contra hegemônica, se pode-se desenvolver um conceito contra-hegemônico de legalidade, de direitos humanos e de democracia. E por outro lado ver se nas culturas e nas formas políticas marginalizadas e oprimidas pela modernidade ocidental, encontram-se embriões, sementes de coisa novas (SANTOS, 2007, pg 60-63, 84-85).
A Assembléia Popular nos parece constituir-se como uma recriação, em algum
grau, da experiência de ação política inspirada em uma visão político cultural de
construção de proposições que insistem na possibilidade da construção de uma
modernidade alternativa 'democrática e popular'. Perspectiva que está em disputa com
uma visão de mundo pós-moderna, que reforça análises acomodadoras e
assimilacionistas da dinâmica social, marcadas pela pluralidade fragmentadora das
identidades coletivas e de ações que possam ser movidas por estas subjetividades,
abortando assim interpretações que dêem visibilidade a mobilizações políticas geradoras
de movimentos sociais que se antagonizam com micro e macros poderes instalados em
instituições de Estado.
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