UFS (Filosofia EaD) Material Didatico_Ontologia_III

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Ontologia III

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  • Ontologia III

  • GovernoFederal

    Ontologia III

    Celso R. Braida, Dbora Pazetto Ferreira, Michelle C. Olsen e Emmanuelli S. Padilha.

    Florianpolis, 2010.

  • Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

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    O59Ontologia III / Celso R. Braida ... [et al.] . Florianpolis : FILOSOFIA/EAD/UFSC, 2011.170 p. il.inclui bibliografia.UFSC. Curso de Licenciatura em Filosofia na modalidade a distncia.ISBN:07.007.007-71. Ontologia. I. Braida, Celso Reni.

    CDU 007.07

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  • Sumrio

    Apresentao ......................................................................9

    1. A noo de entidade e a tarefa da ontologia .......111.1 Condies de existncia e condies de identidade ........... 14

    2. Realismo, Nominalismo e Conceptualismo .............232.1 Realismo ................................................................................... 27

    2.2 Nominalismo ........................................................................... 35

    2.3 Conceptualismo ...................................................................... 42

    3. O quadrado ontolgico e as formas de predicao ......................................................................47

    3.1 O quadrado aristotlico ......................................................... 51

    3.2 O monismo nominalista ........................................................ 54

    3.3 O quadrado fregeano .............................................................. 57

    3.4 Uma ontologia mono-categorial ........................................... 62

    3.5 Uma ontologia quadri-categorial .......................................... 65

    3.6 Implicao categorial .............................................................. 69

  • 4. Dependncia Ontolgica e Relaes Conceituais ...................................................................734.1 Relaes de dependncia ....................................................... 76

    4.2 A independncia ontolgica .................................................. 81

    4.3 Fundao e emergncia ontolgica ...................................... 84

    4.4 Nveis de realidade e implicao conceitual ........................ 88

    5. Sobre os objetos intencionais ...................................935.1 O problema da referncia das expresses .........................100

    5.2 Efetivo, objetivo e subjetivo .................................................112

    6. Noes de Ontologia da Realidade Social ..........1216.1 A ontologia social de John Searle .......................................125

    6.2 A Natureza da realidade social e institucional ..................127

    6.3 Fatos brutos e Fatos institucionais ......................................127

    6.4 Um modelo simples de construo da realidade social ...130

    6.5 Intencionalidade coletiva, atribuio de funo e funes de status .................................................................................131

    7. A Ontologia da Obra de Arte em Ingarden ..........1397.1 Consideraes Ontolgicas acerca da Obra de Arte

    Literria .................................................................................1457.1.1 A Estrutura da Obra de Arte Literria ................................ 148

    7.1.2 Formaes fnico-lingusticas ............................................... 149

    7.1.3 As unidades de significao .................................................. 152

    7.1.4 Objetividades Apresentadas ................................................. 156

    7.1.5 Aspectos Esquematizados ..................................................... 159

    7.2 As bases nticas da Literatura .............................................160

    7.3 Outros Tipos de Obra de Arte ............................................162

    7.4 As Obras de Arte Teatrais, Musicais e Pictricas ..............163

    7.5 Possveis Desenvolvimentos das Teorias de Ingarden .....169

  • 8. A noo de realidade virtual .................................1738.1 A noo de potncia .............................................................178

    8.2 O virtual como smile ...........................................................181

    8.3 Anlise ontolgica ................................................................183

    8.4 Reviso do conceito de virtual ............................................187

    8.5 A definio de virtual ...........................................................189

    Referncias .....................................................................191

  • ApresentaoO objetivo desse livro apresentar conceitos e procedimentos de

    anlise ontolgica e aplic-los na exposio e discusso de tpicos de ontologia contempornea. A compreenso subjacente de ontologia definida pela tarefa de explicitar as noes de ser e existncia impl-citas nos diferentes discursos e prticas com pretenso de sentido e validade, sobretudo naqueles em que se pretende dizer o que isso que h, o que poderia haver mas no h, o que h e no poderia ha-ver, ou ainda o que no h e no pode haver. Dessa maneira, ns ad-mitimos um escopo mais amplo para os estudos ontolgicos do que aquele proposto por Aristteles. O filsofo, com efeito, sugeriu que a filosofia primeira, depois denominada metafsica, tinha por objeto todos os entes existentes, mas apenas no que concerne ao seu ser. Mais tarde, sobretudo a partir de Duns Scotus e Leibniz, essa cincia passou a considerar no apenas os entes existentes, mas tambm as entidades possveis. Nos dias correntes, porm, as discusses ontol-gicas so pautadas, em geral, pelas indicaes de Alexius Meinong, Edmund Husserl e Roman Ingarden. Para Meinong, que defendia uma metafsica livre, o escopo da teoria dos objetos deveria incluir, alm das entidades existentes e possveis, tambm as impossveis, alm de abrir espao para objetos que estariam para alm de ser e de no-ser. Essa posio bastante controversa. A orientao de Husserl consiste em manter esse escopo alargado, mas distinguindo claramente entre ontologia formal e ontologias materiais. As onto-logias materiais exploram os conceitos de domnios de realidades particulares, como o da natureza, da conscincia, da sociedade, da

  • matemtica, etc.; a ontologia formal explora os conceitos ontolgicos formais, tais como os de objeto, estado de coisa, propriedade, relao, todo e parte, nmero, etc., que se aplicam a todos os domnios de objetos e entidades.

    Nesse livro, seguimos a sugesto de Roman Ingarden, que subdivi-diu o escopo da ontologia em trs domnios: o existencial, o formal e o material. A ontologia existencial considera as condies de existn-cia de uma entidade, como as formas de dependncia, modalidade e temporalidade; a ontologia material considera os diferentes tipos de entidades, como as espao-temporais, as psicolgicas e as histri-cas; j a ontologia formal considera as diferentes entidades quanto forma: objeto, propriedade, evento, processo, relao, estado de coi-sa, sistema. Desse modo, o escopo mximo mantido em todos os mbitos da ontologia, pois essa investigao explora a entidade dos entes e a objetidade dos objetos, no plano do conceito, de tal modo a explicitar as suas condies de existncia e de identidade sem res-tringir-se descrio do que h atualmente. A concepo subjacente de ontologia e de filosofia de que a se trata de explicitao e de anlise de conceitos, esquemas e proposies, implcitos nas nossas prticas discursivas, filosficas, cientficas, polticas, poticas e tc-nicas, com pretenso de sentido, validade e verdade objetiva. Nos primeiros cinco captulos so expostos conceitos bsicos e distines; nos ltimos trs, esses conceitos e distines so aplicados a temas especficos. Para uma melhor compreenso do contedo discutido, sugere-se a leitura e o domnio prvio dos contedos dos livros On-tologia I e Ontologia II.

    Esse livro uma obra coletiva, produto das atividades de pesquisa e discusso por mim orientadas no Ncleo de Investigaes Metaf-sicas do Departamento de Filosofia da UFSC. O livro composto de oito captulos; a organizao e concepo, bem como os captulos 1, 3, 5 e 8 so de minha autoria; os captulos 2 e 4 so de autoria de Michelle C. Olsen, o captulo 6 foi escrito por Emmanuelli S. Padilha e o captulo 7 por Dbora Pazetto Ferreira.

    Celso R. Braida

    Florianpolis, agosto de 2010.

  • Captulo 1 A Noo de Entidade e a

    Tarefa da Ontologia

    Neste captulo, indicamos a tarefa e o escopo da ontologia, bem como a metodologia utili-zada, e introduzimos os conceitos de entidade e objeto. Esta distino importante para se evitar a confuso entre as realidades e as elabo-raes mentais, lingusticas e imaginrias que, embora objetivas, no tm consistncia onto-lgica autnoma.

  • A noo de entidade e a tarefa da ontologia 13

    1. A noo de entidade e a tarefa da ontologia

    No dia a dia, seguidamente nos defrontamos e fazemos a tenta-tiva de responder questes do tipo o que h/existe? e o que isso que h/existe?. Essas questes so cotidianas e em geral sabemos responder para a maior parte dos casos, sobretudo quando res-tringimos a questo a um domnio particular. O problema que h diferentes respostas para essas questes, e alm disso tais ques-tes, o mais das vezes, so feitas com um escopo ilimitado. Ento surge o problema: como arbitrar entre as diferentes respostas? A ontologia, pode-se dizer, a elaborao terico-conceitual das noes e esquemas que permitem explicitar o que dito com h e existe (conceitos de existncia e ente) e com a identificao e diferenciao de entidades e objetos (conceito de identidade onto-lgica, de ser). As diferentes ontologias estabelecem uma armao conceitual pela qual se podem avaliar as suposies ontolgicas, isto , as postulaes de existncia e de identidade para entidades, fixando os sentidos em que se diz , h e existe.

    Na linguagem da vida ns dizemos e reconhecemos como significativas, e s vezes como verdadeiras, frases do tipo das seguintes:

  • 14 Ontologia III

    (i) A bola azul. (ii) Cato honesto. (iii) A honestidade uma virtude. (iv) A morte de Cato foi violenta.

    Admita-se que essas frases sejam pronunciadas numa situao e que nela sejam aceitas como verdadeiras. Segue-se que h nessa situao coisas tais como bola, azul, Cato, honestidade, virtude, morte? Digamos que esse seja o caso; ento, cabe a pergunta: essas coisas so no mesmo sentido? Em outras palavras, no mesmo sentido que afirmamos que h/existe a bola, o azul, Cato, a hones-tidade, a morte?

    Essas questes indicam o que entendemos por investigao ontolgica e a partir disso podemos ento fixar provisoriamente a tarefa da ontologia como a de explicitar teoricamente a esfera semntica das expresses h/existe/, e de propor critrios para se dizer que algo existe e para se dizer que algo tal ou qual. Em termos mais tcnicos, uma ontologia estabelece as condies de existncia e as condies de identidade para entidades e objetos. A partir de uma exposio dessas condies e critrios, podemos dizer e ajuizar com segurana o que h e o que isso que h.

    1.1 Condies de existncia e condies de identidade

    Os dados elaborados na ontologia so as frases em que se diz que h algo ou em que se diz o que isso que h. A concepo defen-dida aqui de que as noes ontolgicas tm de ser destiladas das nossas prticas discursivas com pretenso objetiva formal e material, pois uma proposio ontolgica est condicionada em sua pretenso de sentido e validade tanto pela noo de experi-ncia objetiva quanto pela noo de inferncia vlida. Embora um contraexemplo efetivo, emprico ou formal, seja dificultoso em funo do grau de abstrao das proposies ontolgicas, esses so os nicos critrios disponveis para a correo e o controle de su-posies ontolgicas. Nesse sentido, uma ontologia torna-se acei-tvel na medida em que congruente com a experincia objetiva

  • A noo de entidade e a tarefa da ontologia 15

    e com os padres objetivos de raciocnio vlido que embasam as asseres sobre a existncia e a identidade de entidades.

    Esse tipo de investigao conceitual foi denominado por P. F. Strawson metafsica descritiva, a qual, segundo ele, trataria prin-cipalmente das categorias, dos conceitos e de suas relaes rec-procas, da estrutura conceitual que se perfaz quando procuramos explicitar a estrutura da predicao e da forma lgica das proposi-es codifi cadas por nossas frases com sentido. Embora se aceite como bem posta essa concepo, adota-se aqui o vis de Ingarden, pelo qual a ontologia tambm uma anlise do contedo dos con-ceitos, explicitadora e investigadora de possibilidades e conexes reais entre os momentos desses contedos. Ambos contrapem esse tipo de anlise s pretenses da tradicional disciplina Meta-fsica, entendida como investigao da existncia e da realidade efetiva de entidades e propriedades.

    A investigao aqui denominada ontologia, por conseguinte, quer ser uma investigao conceitual, mais especifi camente, de ex-plicitao, anlise e construo de conceitos utilizados para pen-sar e dizer as coisas e os acontecimentos, seja daqueles conceitos que ns efetivamente aplicamos, seja daqueles que ns podera-mos aplicar nos mais diferentes mbitos do pensamento. A adoo dessa estratgia desfaz previamente aquela tenso existente entre metafsica e cincia, resultante da falsa ideia de um acesso especial ao real, ao mesmo tempo em que estabelece claramente o mbi-to das investigaes ontolgicas: explicitar e instaurar esquemas conceituais que sirvam de indicaes para o pensamento e para a prtica em meio vida vivida conscientemente.

    Todavia, ainda assim restam pelo menos duas grandes vias de acesso ao mbito ontolgico, indicadas a pelos nomes Strawson e Ingarden: a via lgico-semntica confi gurada por Frege e Tarski, e a via fenomenolgica de Husserl e Ingarden. A nossa suposio que o dilogo entre essas duas perspectivas nos conduzir aos con-ceitos apropriados. No se trata de reduzir a ontologia Fenome-nologia (como fez Heidegger, seguindo Husserl) nem de reduzi-la

    P. F. Strawson (1919 - 2006). Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~conte/txt-strawson.html.

    Ingarden (18931970). Fonte: http://en.academic.ru/dic.nsf/enwiki/933365.

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    Semntica Formal (como fez Tugendhat, seguindo Wittgens-tein). Trata-se antes de revisar e de reconfigurar tanto os concei-tos quanto os contedos, tanto as formas quanto os significados. At se alcanar o ponto em que essas redues e perspectivas se-jam visualizveis como caminhos entrecruzados na difcil e incon-tornvel tarefa de estabelecer uma base analtica comum para o ajuizamento e a resoluo das discusses e conflitos cujas razes so as prprias fundaes do sentir, do agir e do falar subjacentes vida consciente, capaz de dar e receber razes do que sente, diz e faz. A tarefa primria de uma ontologia, portanto, estabelecer uma plataforma terica capaz de explicitar as diferentes posies e conflitos tericos que emergem das tentativas de articular e dizer o que isso que h.

    A partir dessa posio, faremos a experincia de tratar e analisar as proposies e os conceitos ontolgicos como sendo autnomos em relao aos conceitos semnticos (gramaticais, lingusticos), no contexto da tradio de anlise lgico-semntica (Frege, Tarski, Davidson), ao mesmo tempo em que os diferenciamos dos concei-tos intencionais (fenomenolgicos, psicolgicos) da tradio das teorias do objeto de Meinong, Twardowski e Husserl. A hiptese-guia para essa reviso de que os conceitos ontolgicos perma-necem irredutveis a conceitos semnticos e intencionais, ou seja, de que a anlise da linguagem e a anlise da conscincia intencio-nal, embora constituam procedimentos legtimos de explicitao e de esclarecimento conceituais, no dispensam nem substituem a anlise ontolgica, esta ltima concebida como anlise da coisa mesma da fala e do pensamento, a saber, anlise daquilo de que se fala e sobre o que se pensa. Faz-se ainda a tentativa de tornar bvia a condio de fundados e dependentes dos conceitos se-mnticos e fenomenolgicos, de linguagem e de conscincia, em relao aos conceitos ontolgicos bsicos, tanto material quanto formalmente, embora se admita que na ordem da descoberta es-tes sejam posteriores. Porm, a principal consequncia da atitude terica aqui adotada consiste na inviabilizao da transferncia indevida de conceitos e distines gramtico-lingusticas para o mbito ontolgico.

    A metdica, para tornar isso evidente, consiste na utilizao de um procedimento baseado em quatro indicaes: a ideia de

    Twardowski (18661938). Fonte: http://en.wikipedia.

    org/wiki/File:Kazimierz_Twardowski_1933.jpg

  • A noo de entidade e a tarefa da ontologia 17

    definibilidade, - de que conceitos ou momentos um conceito qualquer definvel, de Tarski e Husserl; a ideia decorrente de ordem de prioridade conceitual quais conceitos um conceito qualquer pressupe, de Martin-Lf (1942- ) e Chisholm (1916-1999); as ideias de fundao e dependncia ontolgica, de Hus-serl e Simons (1950- ); e, por fim, a ideia de ordem de aplicao de conceitos, de Davidson. A hiptese de que a conjugao des-sas indicaes, e sua aplicao sistemtica ao contedo expresso por frases significativas, ir permitir a explicitao de conceitos e categorias ontolgicos, bem como estabelecer sua localizao nos quadros referenciais tericos de fundo. Alm disso, admitida essa estratgia metdica, segue-se de modo natural o questionamento da tese to difundida da relatividade ontolgica ( linguagem, conscincia, ou cultura), pois essa tese sugere e tem como con-sequncia que os conceitos ontolgicos (e metafsicos), mesmo quando legtimos, so definveis, fundados e dependentes em rela-o linguagem ou conscincia. Implica tambm que os concei-tos ontolgicos sejam de ordem derivada em relao aos concei-tos semntico-gramaticais ou intencional-fenomenolgicos. Mas essas consequncias apenas se do se a linguagem e a conscincia forem postas como independentes e infundadas; porm, tanto a noo de linguagem quanto a de conscincia tm sido pensadas como fundadas na noo de ato, para mencionar apenas um con-ceito que, assim, suposto como anterior aos conceitos de lingua-gem e conscincia, mesmo ali onde se defende veementemente a tese da relatividade ontolgica. Esse questionamento significa sobretudo recusar o modo como os conceitos ontolgicos foram dispensados em favor dos conceitos de conscincia e de lingua-gem desde Kant e Wittgenstein. O ponto de ancoragem dessa re-cusa est no procedimento metdico que obriga a pensar esses conceitos como tambm definidos e fundados, e cuja aplicao pressupe que outros conceitos mais bsicos sejam aplicveis.

    Utilizaremos a distino entre entidade e objetidade para indi-car uma soluo para um plexo de distines que tm sido assunto polmico entre os ontlogos, a saber: as distines entre entes e objetos reais e irreais, entre objetos de primeiro nvel e de nveis superiores, entre existentes e subsistentes, concretos e abstratos,

  • 18 Ontologia III

    particulares e universais, etc. Nisso confundem-se vrios pro-blemas e ambiguidades, mas as confuses nascem sobretudo da impreciso terminolgica, da qual no escapam nem os melhores textos dos melhores pensadores.

    Neste livro, por entidade sempre ser entendido algo real, isto , algo no qual tanto um outro algo quanto atos semnticos e inten-cionais podem estar fundados; objetidade, ao contrrio, sempre ser indicada para algo fundado, seja num ato semntico seja num ato intencional.

    Essa distino retoma as distines feitas por Grossmann (2004, p. 139-142) e Butchvarov (1979, p. 40-55), em que so introduzidas variveis para objetos e variveis para entidades com o propsito de resolver o problema da semntica de frases existenciais negati-vas. Alm disso, nessa distino ecoa aquela de Husserl entre ob-jetos reais e objetos irreais. Desse modo, podemos dizer que a Lua e Bruna Lombardi so objetidades, pois so contedos, ou partes de contedos semnticos ou intencionais, mas que alm disso so tambm entidades, pois ambas constituem suportes nticos para outras entidades e eventos, e tambm servem de fundao para atos semnticos e intencionais; o Drago Lunar e Diadorim, ao contrrio, so to somente objetidades. Hoje, em 2010, a partcula denominada Bsons de Higgs ainda apenas uma objetidade que os fsicos postulam existir, isto , que supem como existente para efeitos tericos.

    Com essa distino espera-se poder mostrar que o antigo e per-sistente problema dos irreais e dos objetos inexistentes dissolve-se; todavia, o cerne de onde ele nasce no simplesmente denegado, mas repensado e revisado a partir de conceitos mais claros e pre-cisos. Contudo, essa apenas uma primeira fissura no sentido da expresso H/existe isso e aquilo, pois o uso dessa expresso no distingue o haver de uma objetidade do haver de uma entidade. Os conceitos de objeto e de entidade, contudo, no introduzem j categorizaes ontolgicas, pois diferentes tipos e modos de ser constituem-se como objetos e entidades. As peas de xadrez, o jogo de xadrez, o ato de mexer as peas, o ato de abrir uma partida,

    Personagem do romance Grande Serto: Veredas, escrito em 1956 por Guimares Rosa

    Tambm chamada de partcula de Deus pela

    imprensa de todo o mundo. Em 1964 o professor escocs

    Peter Higgs sugeriu a existncia dessa partcula,

    que teria sido a responsvel pela converso da matria

    inicialmente criada no Big Bang na massa que

    conhecemos hoje. Fonte: http://www.exitmundi.nl/

    BlackHole_lab.gif

  • A noo de entidade e a tarefa da ontologia 19

    a deciso de abandonar a partida, o campeonato, o empate tcnico, o sentimento de fracasso, etc. so capturveis como objetos e enti-dades. A deciso, por exemplo, de admitir indivduos substanciais e estados de coisas, ou de admitir apenas fatos e eventos como pri-mrios, j uma tomada de posio terica em ontologia.

    O ponto visado por essas lies o de apresentar a investi-gao ontolgica como momento indispensvel da atividade fi-losfica, especificamente no sentido de mostrar, primeiro, que a metafsica e a ontologia so passveis de investigao atual e no somente histrico-filolgica; segundo, que os conceitos ontolgicos so irredutveis aos conceitos epistemolgicos, se-mnticos, estticos, ticos, polticos, etc., alm de no serem redutveis nem substituveis pelos conceitos das diferentes cin-cias empricas e formais.

    O ataque correto e justo Metafsica tradicional representou o golpe de morte a um tipo de legitimao e validao que garantia ao filsofo um lugar na instituio da Cincia e da Tcnica. Diante desse ataque bemsucedido, restou aos filsofos a legitimao por meio da subordinao da atividade filosfica a uma ou outra cin-cia: a Lingustica, a Psicologia, a Matemtica, a Sociologia, a Etno-grafia, etc. Outros, mais cientes da natureza da filosofia, a partir da via transcendental do a priori buscaram as condies de possi-bilidade de sentido, pela via da semntica ou da intencionalidade; ou ainda a conciliao dessas duas posturas, a via da metacincia e do metadiscurso. De qualquer modo, essas estratgias tinham um custo e uma desvalorao: o custo da eliminao da ontologia e da metafsica como disciplinas fundantes, e a depreciao do discurso filosfico, que agora ou seria sem sentido ou deixaria tudo como est, pois seria to somente um discurso sobre os outros discursos. Por isso, praticar ontologia tem de ser visto como um ato dupla-mente excessivo, pois excede os limites estabelecidos pela forma atual da universidade e tambm exige um esforo excedente, pois requer uma ateno s formas de doao e apreenso e no apenas aos contedos. O lugar problemtico da ontologia contempornea deve-se, contudo, a suposies ontolgicas bem difundidas, a sa-ber, a posio subjetivadora moderna que faz tudo girar em torno de um tipo de ser especial, a conscincia, e a posio relativizado-

  • 20 Ontologia III

    ra contempornea que faz tudo se dissolver nas diferentes gram-ticas. Em franca oposio a essas posies, aqui a ontologia pensada como o esforo pelo qual ns podemos compreender a interdependncia de todas as coisas e o entrelaamento dos acontecimentos. Desse modo, podemos mostrar que a recusa da ontologia e da metafsica indica a vontade de soberania, relativi-zadora de todo e qualquer liame que pudesse pr em questo o poder de constituio do sujeito moderno e o poder destrutivo/construtivo da mquina lingustica contempornea.

    A pretenso da anlise ontolgica desses temas mostrar, como foi dito, a indispensabilidade das noes ontolgicas. As perguntas o que h? e como o que h? so o incio da ontologia enquan-to disciplina do pensar investigador. O seu respondimento esgota a tarefa positiva do saber, pois, dada uma situao, conhecer o que nela h e como isso que ali h suficiente para termos cincia da situao e para bem falar. Todavia, a pergunta propriamente filo-sfica mais ampla e formula-se em duas questes: o que isso que h? e em que sentido se diz e h?. Trata-se agora, por um lado, no apenas de saber o que e o como do que h, mas de saber o ser disso que h; e, por outro, trata-se de explorar o conceito de ser para alm daquilo que h, as possibilidades e impossibilidades de ser que no esto dadas na situao. O meio pelo qual o pen-samento se libera da realidade e de suas determinaes a explo-rao do espao lgico das possibilidades, para isso recorrendo variao categorial e principial, na forma de um quadro de catego-riais e de princpios capazes de apreender os nexos de sentido da situao. Dada uma situao da qual se pode dizer que h ali duas pessoas e uma arma, ainda no est dito o que essa situao; do mesmo modo, dada uma situao da qual se pode dizer que h ali um conjunto de tomos sob uma determinada estrutura, ainda no se disse se um evento meramente fsico ou se talvez um sinal significativo. Desse modo, esperamos poder mostrar que a ontologia, como disciplina do pensar refletido, continua a ser uma condio para o exerccio da filosofia.

  • A noo de entidade e a tarefa da ontologia 21

    Leituras sugeridas A discusso atual de ontologia est diretamente associada ao

    modo como o pensador norte-americano W. V. Quine se posicio-nou sobre o assunto. A posio de Quine define-se por uma tese sobre como nos comprometemos com a existncia de entidades e sobre como se deve entender a noo de existncia, exposta so-bretudo nos textos Sobre o que h e Relatividade ontolgica, publicados no volume Relatividade ontolgica e outros ensaios; trad. O. Porchat e A. Loparic; De um ponto de vista lgico, trad. L. H. dos Santos e al. So Paulo, Abril, 1980. A posio de Quine considerada e criticada no livro do filsofo britnico, Paul F. Strawson, Anlise e Metafsica, uma introduo Filosofia. Alm disso, para uma viso sistemtica do lugar da ontologia no pen-samento filosfico, o livro do filsofo teuto-brasileiro Bruno L. Puntel, Estrutura e Ser, indispensvel.

    Reflita sobreQual o sentido da expresso h nas frases h uma bola no ar-

    mrio, h um personagem no livro e h um nmero primo na sequncia 100 a 111? O h e o existe so usados sempre no mesmo sentido? Quais so os critrios usados para dizer-se que h ou existe alguma coisa?

  • Captulo 2 Realismo, Nominalismo

    e Conceptualismo

    Neste captulo, apresentamos as posies acerca da natureza e da existncia de entidades gerais ou universais. Tradicionalmente, esse problema conhecido como o problema dos universais e remonta a Aristteles. Trata-se de saber se as determinaes, propriedades e rela-es atribudas s coisas particulares existem e qual a sua natureza. Os realistas afirmam que de algum modo os universais existem tal como as coisas de que eles so atributos; os nomina-listas negam a existncia dos universais, afir-mando que se trata apenas de nomes comuns a muitas coisas; por sua vez, os conceptualistas afirmam que os universais so atributos ou es-tados da mente.

  • Realismo, Nominalismo e Conceptualismo 25

    2. Realismo, Nominalismo e Conceptualismo

    Diante da variedade das experincias e dos acontecimentos, as diferentes lnguas criadas pelas diferentes comunidades humanas sempre introduzem dispositivos de designao. Na lngua portu-guesa comum usar nomes prprios, como Maria e Florianpo-lis, descries definidas, como O atual prefeito de Florianpolis e O beijo de Clio em Zeno. O uso de expresses designadoras bsico para a interao comunicativa e a cooperao em atividades nas quais necessrio indicar um determinado objeto e manter a ateno do outro voltada a esse objeto. Essa prtica pressupe a ca-pacidade de identificar um objeto numa situao, diferenciando-o de outros, e, sobretudo, de reidentific-lo. Referir-se a um objeto e retomar a referncia ao mesmo objeto em diferentes momen-tos e lugares, pode-se dizer, uma habilidade fundamental para as nossas prticas e saberes. Todavia, bem conhecida tambm a noo de falsa indicao ou de nome que no nomeia nada. As prticas discursivas mostram que um enunciado pode muito bem ser significativo e no falar nada de nada. A ontologia inicialmente apresenta-se como uma resposta estilizada s questes naturais o que h/existe? e o que isso que h?. As tentativas de resposta pergunta o que que h? so tambm tentativas de distinguir com segurana os nomes efetivos dos nomes vazios. Considerem-se os seguintes enunciados:

  • 26 Ontologia III

    1. Clio e Zeno encontraram o anel mgico.

    2. O casamento de Zeno entristeceu Clio.

    3. A lealdade de Zeno apenas se compara tristeza de Clio.

    Nessas frases, as expresses Clio, Zeno, o anel mgico, o casamento, a lealdade, a tristeza exercem funes referenciais primeira vista. Com elas indica-se algo do qual se pode predi-car com verdade e falsidade muitos predicados. O sentido dessas frases parece exigir que haja algo que essas expresses nomeiam. Pois, primeira vista, no faz sentido dizer que algum encontrou um anel mgico e concomitantemente dizer que anis mgicos no existem; ou ento dizer que algo entristeceu algum e dizer ao mesmo tempo que esse algo no ocorreu. Porm, no haveria nenhum problema lingustico ou gramatical caso se falasse assim, pois o problema quanto s suposies de existncia e concepes ontolgicas. Agora, do fato de que seja normal o uso desse tipo de frase, isto , do fato de que essas frases possam ser usadas em situaes efetivas de comunicao, segue-se que h entidades cor-relatas a essas expresses? Nomeia-se e descreve-se algo sempre que se usa com sentido um nome ou uma descrio?

    Realismo, Conceptualismo e Nominalismo apresentam maneiras distintas de se posicionar diante dessa questo, sobretudo no que se refere ao problema de saber se os termos gerais, nomes comuns ou universais, como tristeza e anel, nomeiam algo ou no.

    Esse problema conhecido como o problema dos universais e surgiu no contexto da discusso e interpretao das teses de Plato e Aristteles, sobretudo pela provocao cnica de Antstenes, quan-do afirmava: Scrates, eu vejo cavalos, mas no a cavalidade!.

    Exemplificando: enquanto Aristteles, Locke e Nietzsche foram indivduos nicos, singulares, concretos, dizemos que os trs ti-veram em comum o fato de terem sido filsofos, homens, sbios, de terem escrito livros, etc. Nesse caso, os indivduos so particu-lares. J aquilo que podemos predicar deles, e que aparece como as semelhanas por eles compartilhadas so universais. Portanto, algumas das questes que envolvem particulares e universais so:

    Chamamos de universais, grosso modo, o que observamos ser comum entre muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, em contraposio aos particulares, que por definio so nicos e bem localizados no espao e no tempo.

    Cf. Ontologia II, cap. 2.

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    em que sentido dizemos que duas coisas distintas so de alguma forma iguais?; o que significa dizer que predicados so univer-sais?; o que significa esse so quando dito em relao a predica-dos e termos gerais?; queremos dizer que os universais existem assim como os particulares?; qual o estatuto ontolgico daqui-lo que atribumos a um particular?; e o que um particular?. Aceita a distino entre particulares e universais, e entre abstratos e concretos, a pergunta incontornvel, subjacente e irresolvida nas discusses ontolgicas quanto ao sentido de ser/h/ quando usado para dizer h particulares e universais, h entidades con-cretas e abstratas. Se verdade que Clio deu uma bola amarela para Zeno, ento podemos inferir que h uma bola, que h uma cor dessa bola, que h duas pessoas e que h uma relao de do-ao. Esses haveres esto implicados no sentido da frase Clio deu uma bola amarela para Zeno. O problema est em dizer em que sentido, um ou vrios, h bolas, cores, doaes, pessoas.

    Essas questes conduziram o que era conhecido na poca me-dieval como o problema dos universais ao problema da predicao ou discusso acerca de entidades abstratas, tais quais proprie-dades, relaes e tipos, uma vez que os universais foram aponta-dos basicamente como sendo propriedades (qualidades, caracte-rsticas, atributos), relaes ou tipos. Assim, uma propriedade o que dizemos de um ou vrios indivduos como algo que se pos-sui, seja algo intrnseco ou adquirido, como a cor da pele negra ou a habilidade de calcular. Uma relao seria algo que ocorreria entre dois ou mais indivduos, podendo tambm ser necessria ou casual, como ser filho de algum ou estar a um metro de dis-tncia. Por fim, um tipo pode ser compreendido como uma es-pcie ou classe em que encaixamos um grupo de indivduos que se assemelham por compartilharem determinadas caractersticas, tais como ser humano, ser brasileiro, ser par, ou qualquer identi-ficao que permita contar algo por um. Nesse caso dizemos que os indivduos pertencem a tal tipo. Note que diversos indivduos distintos compartilham esses universais ao mesmo tempo, tendo a pele negra, sendo filhos de algum ou sendo brasileiros, ao pas-so que Nietzsche foi s um, voc nico e eu tambm. Dizemos que diferentes particulares exemplificam determinado universal quando atribumos uma mesma propriedade a vrios indivduos,

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    ou quando esses indivduos instanciam tal propriedade. Isso im-plica um desligamento espao-temporal daquilo que identificamos como universais. Diferentemente dos particulares, que, enquanto seres concretos no nosso mundo sensvel, no podem ocupar dois lugares diferentes ao mesmo tempo, vemos que caracterstica dos universais, enquanto entidades abstratas, estarem em vrios lugares ao mesmo tempo sendo o mesmo (eles so multiexemplificveis), o que mostra que eles so fundamentalmente repetveis e isso indica um tipo bem estranho de ser (se que de algum modo eles so).

    Posicionar-se frente questo dos universais designa o tipo de comprometimento ontolgico que se quer ter com propriedades, relaes e tipos. Ou seja, que tipo de ser voc vai atribuir aos uni-versais. Realistas, nesse sentido, so aqueles filsofos que defen-dem a existncia de universais independentemente das prprias coisas ou da mente humana. Ou seja, existiria a brancura inde-pendente de pessoas, ou dessa ou daquela coisa branca particular, para pens-la. Existem diferenas dentro do prprio realismo de acordo com o modo como se veem os universais, o que veremos mais abaixo. Nominalistas so aqueles que defendem a existncia efetiva apenas de particulares, considerando os universais ento como meros nomes que damos s propriedades das coisas, seus tipos ou relaes. Para eles, no existe algo como o ser brasilei-ro. Existe eu, voc, seu vizinho e todas essas pessoas individuais e nicas que nasceram no Brasil ou se naturalizaram. Brasileiro s o nome que damos a essa semelhana de tipo observada em um grupo especfico de particulares.

    As duas posies so acolhidas por seus defensores em virtude dos problemas que elas se propem a resolver dentro desse debate, que trata, segundo Michael J. Loux, de uma questo que volta s origens da metafsica ela mesma, se h uma explicao geral para o trusmo pr-filosfico de que coisas compartilham atributos. (LOUX, 1998, p. 21).

    Mas evidente que se h duas posies distintas porque elas carregam algum tipo de problema de difcil resoluo que costuma ser alvo de crtica da outra corrente. Vamos analisar cada uma se-paradamente e ver quais so seus pontos fortes e fracos?

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    2.1 RealismoAchamos que conveniente s falar de coisas existentes quando es-

    to no tempo, ou seja, quando podemos indicar algum tempo em que

    elas existem (sem excluir a possibilidade delas existirem em todos os

    tempos). Assim, os pensamentos e os sentimentos, as mentes e os ob-

    jetos fsicos existem. Os universais, porm, no existem neste sentido;

    diremos que subsistem ou tm uma essncia, onde essncia se ope a

    existncia como algo eterno. Portanto, o mundo dos universais pode

    tambm ser descrito como o mundo da essncia. O mundo da essncia

    imutvel, rgido, exato, encantador para o matemtico, para o lgico,

    para o construtor de sistemas metafsicos, e para todos os que amam a

    perfeio mais que a vida. (RUSSELL, 2005).

    Realistas, como j vimos e como aparece na citao de Russell acima, so defensores de que os universais existem independen-temente dos nossos pensamentos acerca deles ou das prprias coisas que os exemplificam. Ou seja, para eles existem basica-mente duas categorias de objetos que do conta de alocar tudo o que h: os particulares e os universais (LOUX, 1998, p. 23). Mes-

    mo que haja distines entre as ontologias dos realistas a saber, entre os que defendem que os universais existem antes da coisa (ante re), ao estilo de Plato, e que contemporaneamente so tambm atribudos a um tipo de realismo lgico (com Russell e Frege); e os que defen-dem que os universais existem na coisa (in re), ao estilo de Aristteles, que comporiam hoje algo como um realismo naturalista , ainda assim eles concordam que se trata de dois ti-pos diferentes de entidades e que ambas so indispensveis para a nossa compreenso do mundo e muito frutferas no que diz respeito resoluo de problemas filosficos histricos.

    Comearemos ento nossa anlise sobre o realismo com uma das questes fundamentais que seus defensores se propem a resolver, que diz respeito predicao, compreen-so de sentenas predicativas do tipo S P. Sentenas desse tipo

    Problemas filosficos histricos

    Em seu livro Logical Investigations of Predication Theory and the Problem of Universals, Cocchiarella apresenta Gottlob Frege como um realista lgico que no trata os universais com uma natureza de indivduo, mas diz que eles tm uma natureza pre-dicvel apenas (p. 107), o que o afastaria da abor-dagem platnica. A despeito das diversas classifi-caes dentro do realismo, seguiremos a apresen-tao segundo a abordagem clssica de Michael J. Loux, que expe suas diferentes correntes de acor-do com o que tm de aproximado.

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    constituem a forma mais bsica de predicao que existe, o que elas dizem que um predicado (P) dito de determinado sujeito (S). A exemplo da sentena (1): Maria bonita. Para que essa sentena seja verdadeira, pressupomos que ela diga algo a respeito de como um fato no mundo aqui, que Maria seja bonita. Isso implica uma relao de correspondncia entre um enunciado lingustico e um acontecimento no mundo real. Entendemos perfeitamente que Maria corresponda a algum no mundo, mas se apenas o su-jeito da sentena tiver um referente, a anlise parece incompleta. Que dizer ento da qualidade ser bonita? O que os realistas pre-tendem que assim como Maria possui um referente efetivo, seu atributo tambm deve possuir, ou seja, da mesma forma que no-mes particulares possuem uma referncia no mundo, termos ge-rais tambm devem possuir. E por conta disso que seramos ca-pazes de compreender tais sentenas e nos pronunciarmos acerca de sua veracidade. Continuando a anlise, alm de dizermos que Maria bonita, tambm podemos dizer que Joana bonita, e que vrias outras pessoas ou coisas so bonitas, de onde inferimos que bonita um universal e que os particulares aos quais cabe dizer que so bonitas possuem essa propriedade. Assim, as sentenas do tipo S P so inicialmente explicadas pelos realistas como um sujeito S que possui uma propriedade (universal) P.

    Mas pensando em universais como termos gerais, no soa um tanto estranho falarmos que bonita um universal? E que di-ferentes pessoas compartilham a propriedade bonita? Intuiti-vamente, quando pensamos em um universal, pensamos em um nome tambm, algo que possa ocupar o papel de um sujeito numa frase, que seja ainda mais geral que um simples adjetivo. No pen-samos em universais como bonita, sbio ou circular; pois seno poderamos imaginar outros universais semelhantes, como boni-to, sbia e arredondado, que seriam compartilhados por um grupo diferente de objetos. Do contrrio, faz mais sentido falarmos em universais como beleza, sabedoria e circularidade. Por conta disso, os realistas tiveram que aprimorar um pouco seu modo de falar (para no haver uma multiplicao absurda do nmero de univer-sais existentes) e passaram a afirmar que o que se diz no predicado atravs de um termo geral expressa ou conota um universal; en-

    Isso ocorre nos trs modos de ser dos universais que mencionamos anteriormente: falamos ento em possuir quando o predicado universal uma propriedade; em pertencer quando se trata de um tipo; e em entrar em quando se trata de uma relao.

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    quanto que o sujeito, por sua vez, satisfaz a condio do predicado. No nosso exemplo (1), bonita expressa o universal beleza e Maria o objeto do mundo que satisfaz o predicado bonita. Mas note que ao dizer isso, est dizendo-se algo a mais. Ao dizer que Maria bonita, no se est somente falando que o objeto Maria pertence a um grupo de diversos objetos semelhantes. Realistas pretendem que ao apontar uma caracterstica de um objeto, esteja apontando-se tambm diretamente para o universal que essa caracterstica re-presenta. Isso ficaria visvel ao parafrasearmos as sentenas desse tipo para: Maria exemplifica beleza. O que para eles pode (e deve!) ser feito com qualquer sentena predicativa, colocando-se assim os universais numa relao explcita de referncia, equivalente dos particulares, mostrando a sua fora referencial de forma bas-tante intuitiva.

    Assim eles lidam com o problema das referncias abstratas. Se, como vimos, universais devem poder ocupar o papel de um nome em uma sentena (ao contrrio dos termos gerais como bonita, que no podem), acontece de construirmos sentenas do tipo: (2) A beleza uma bno. Numa sentena como essa, beleza o que se chama termo singular abstrato, seu referente direto um universal, e, de acordo com os realistas, somente quem adota uma ontologia de universais capaz de explicar esse fenmeno de ma-neira satisfatria. Pois necessrio, para verificarmos a veracidade dessa sentena, que ela diga algo a respeito do mundo; ou seja, para sabermos se a beleza de fato uma bno, deve primeiramente existir a beleza, ela deve ter um referente capaz de ser investigado, de outra forma no poderamos sequer fazer asseres ao seu res-peito. Logo, se assumimos que a beleza existe, nos compromete-mos com alguma variao da ontologia universalista dos realistas.

    Vejamos agora algumas objees feitas por aqueles que no aceitam tal ontologia. A primeira delas, j apontada por Plato, o argumento do terceiro homem. No contexto atual esse argu-mento pode ser exposto da seguinte forma: para uma sentena do tipo S P ser verdadeira, o sujeito gramatical S deve exemplificar o universal expresso pelo predicado P. Isso implica uma relao entre S e P, a saber, a relao de exemplificao. Mas vimos que para os realistas tambm existem universais correspondentes s

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    relaes. Desse modo, para essa relao de exemplificao (S P) ser verdadeira, tem de haver uma segunda relao de exemplifi-cao (exemplificao) que relacione a primeira relao com a segunda (S P exemplifica a relao de exemplificao). Mas para verificarmos a veracidade dessa segunda relao, necessita-remos de uma terceira exemplificao (exemplificao), visto que exemplificao tambm um universal. Isso leva a uma regresso infinita que nos impede de atingir o objetivo inicial de atestar a veracidade de S P. Alguns realistas respondem a isso dizendo que a verdade de uma sentena no tem nada a ver com a verdade da outra, e que bastaria a primeira relao de exemplificao para dar conta de S P. O fato que essa regresso infinita incomoda a grande maioria dos realistas, e foi o que os levou a admitir algumas restries na sua ontologia. Uma dessas restries pode ser feita eliminando-se as relaes do quadro ontolgico dos universais. Mas esse seria um corte muito grande em sua ontologia e traria problemas para outras explicaes. Ento, outra sada dizer que a exemplificao no uma relao como as demais. Enquanto as outras relaes aproximam objetos pela mediao da relao de exemplificao, a exemplificao mesma no utiliza mediadores. E isso seria uma caracterstica categorial primitiva do conceito de exemplificao. Por conta disso, realistas falam de exemplificao no como uma relao, mas como um nexo, de modo a no gene-ralizar os conceitos, respeitando essa sua especificao.

    Outra objeo ontologia de universais quanto ao modo como ela lida com propriedades que podem ser definidas por outras pro-priedades em princpio mais simples, como o caso de solteiro. Um objeto que tenha a propriedade solteiro necessariamente tambm ter ser humano, homem e no casado. De acordo com o que tem sido apresentado, deveria haver ento um universal distinto para cada uma dessas propriedades. Mas ser que isso no acaba gerando um nmero enorme de universais redundantes? Precisamos, para compreender nossas asseres acerca do mundo, de um universal para solteiro e outro para no casado? E se j temos um universal casado, precisamos de outro para sua nega-o? Esse tipo de questionamento levou parte dos realistas a faze-rem mais uma restrio em sua ontologia. Admitindo que existam

    It is [exemplification], we are told, an unmediated linker; and this fact is taken to be a primitive categorical feature of the concept of exemplification. (LOUX, 1998, p. 40).

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    algumas propriedades que podem ser definidas a partir de outras mais simples, alguns realistas resolveram alocar em sua ontologia somente as que foram consideradas primitivas, deixando as outras para serem derivadas delas. Mas com isso, ao invs de resolver o problema, criaram um ainda maior, que o de saber quais proprie-dades so as primitivas. Tentativas nesse sentido foram feitas, at que se chegou ao bsico do bsico, como cores, formas simples, sa-bores, aqueles elementos que um empirista prontamente apontaria como os imediatos na experincia cotidiana. Evidentemente, isso s fez gerar ainda mais crticas, pois podemos pensar em proprie-dades como as morais (por exemplo, a justia ou a lealdade) que no se reduzem a esses aspectos empricos, o que mostrou que esse tipo de diferenciao enfraquecia a teoria ao invs de fortalec-la.

    Wittgenstein tambm criticou esse tipo de comprometimento ontolgico com universais a partir da observao dos mltiplos usos que fazemos de um termo geral. Seu exemplo clssico com a palavra jogo. Na tentativa de dar uma definio do que seja jogo, nos encontramos numa difcil situao, pois cada jogo parece ser diferente dos demais. Por mais que alguns aspectos se assemelhem, no h uma caracterstica fundamental que una todos os diferen-tes tipos de jogos numa mesma definio. Sendo assim, como fica o universal para jogo? Ser que devemos pensar em um universal distinto para cada jogo distinto? Esse seria mais um fenmeno que poderia levar a um nmero desmedido de universais desnecess-rios. A melhor resposta dos realistas para esse tipo de objeo foi dizer que no seria adequado, pois, falar em um universal jogo, que teria muitos sentidos, mas sim em ser jogo, o que acomoda-ria toda a variedade dentro de um nico universal.

    Outro grande obstculo que serviu para aumentar as discusses entre os prprios realistas foi a explicao que cada um se props a dar acerca de atributos no exemplificados. Se os universais surgem no cenrio filosfico para resolver a questo das semelhanas entre caractersticas de indivduos, o que dizer daquelas caractersticas que no se encontram em nenhum indivduo? Como lidar com propriedades sem instanciao? Se podemos imaginar uma pro-priedade que seja crculo-quadrangular, devemos supor que ela expressa um universal mesmo sabendo que no h e nem nunca

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    haver um objeto que instancie tal propriedade? Realistas plat-nicos que defendem que os universais existem independentemen-te das nossas ideias ou das coisas mesmas no se encontram em grande dificuldade para responder a essa questo. Para eles, uma vez que os universais no tm nenhum vnculo espao-temporal e existem antes das prprias coisas no h problema algum em falar de universais que nunca sero exemplificados, pois estamos aqui diante de dois reinos de entidades completamente diferentes, e o pelo fato de uma entidade no ser possvel no mundo concreto no tem ligao com o mundo dos universais. A justificativa continua a mesma, a saber: se podemos fazer um pronunciamento acerca de alguma propriedade, se compreendemos o sentido da sentena na qual ela aparece, ela existe enquanto universal. Ou seja, univer-sais existem parte ao valor de verdade das sentenas em que so expressos. A maior dificuldade desses realistas , ento, justificar a ligao que h entre o reino dos universais e o dos particulares, haja vista suas diferenas materiais intrnsecas.

    Quanto aos realistas naturalistas ao modo aristotlico, que de-fendem que os universais existem nas coisas concretas particulares, h um problema em explicar esses atributos impossveis. Como poderamos falar de propriedades tais quais ser crculo-quadran-gular se no pode haver entidade que as exemplifique? De onde tiramos essa ideia se ela no se d nas prprias coisas? Sua defesa segue a linha das abstraes que fazemos no nosso imaginrio a partir das coisas mesmas. Do mesmo modo que vendo um cava-lo, um pssaro e depois um bode, podemos juntar tudo em nossa cabea e criar a ideia de um unicrnio alado, assim podemos ver caractersticas contraditrias em indivduos distintos e falar em coisas como crculos quadrados. Essas abstraes no implicam a existncia efetiva desses entes ou atributos, ao contrrio, elas antes mostram como chegamos a conhecer universais abstratos a partir do mundo concreto. Inclusive pode-se desafiar algum a falar de algo to incrvel que no use elementos de coisas reais existentes (voc consegue?). Mas a fica complicado dizer que os universais existem nas coisas mesmas.

    Apesar de todas essas crticas feitas ontologia de universais, ainda existem realistas dispostos a defender tal posio rebatendo

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    as objees e insistindo no ponto de que com tal teoria poss-vel responder a vrias questes filosficas de maneira simples e intuitiva. Talvez a grande objeo ento seja a dos nominalistas, que asseguram poder resolver os mesmos problemas sem a neces-sidade de apelar para tal ontologia, a qual, segundo eles, no tem nada de simples ou de intuitivo. Se isso for possvel, os universais mostram-se dispensveis e ganhamos uma teoria ontologicamente mais econmica.

    2.2 NominalismoA grande motivao dos nominalistas ento a economia de

    princpios. Enquanto os realistas defendem uma ontologia com duas categorias distintas e irredutveis (particulares e universais), nomi-nalistas esperam resolver os mesmos problemas de seus opositores com uma ontologia de uma nica categoria, a de entidades parti-culares. Isso veio como herana de William de Occam. No entanto, nominalistas discordam entre si a respeito do que so particulares. Alguns aceitam todos os objetos concretos e os indivduos do nos-so senso comum pr-filosfico, tais como pessoas, animais, plan-tas e coisas materiais. Outros, por defenderem um reducionismo fisicalista, diro que os particulares fundamentais so as partculas subatmicas da fsica quntica e o resto do que vemos e conhece-mos pode ser reduzido a elas. Outros ainda defendero que s exis-tem tropos, ou particulares abstratos. Mais uma vez, a despeito de suas diferenas internas, trataremos os nominalistas genericamente como antirrealistas, analisando suas teorias a partir da recusa que fazem da ontologia de universais. Vejamos ento como eles lidam com a questo da predicao e da semelhana de atributos.

    Uma resposta dada ao assumir a semelhana de atributos en-tre diferentes particulares como uma caracterstica fundamental e no analisvel do mundo. Nominalistas que tomam isso como ponto de partida dizem que toda teoria (cientfica ou ontolgica) parte de algum aspecto primitivo de onde se pode construir todo o resto, e que o ponto deles ser justamente esse, que alguns particu-lares so de tal forma que possuem determinados atributos e no h fato mais bsico a ser usado para explicar esse fato primitivo. O primeiro apontamento feito teoria dos realistas a partir da que

    Willian Occam (1285-1347). Filsofo nominalista medieval de onde se originou a expresso navalha de Occam, que significava exatamente isto: eliminar da metafsica a proliferao de entidades desnecessrias. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:William_of_Ockham.png

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    ela no foge muito dessa obviedade, pois ao dizer que um cachorro branco e uma camisa branca compartilham o universal brancura, ou que ambos exemplificam a brancura, diz-se somente que eles so brancos porque existe a brancura, mas no se est explicando o que a brancura nem por que eles so brancos. Realistas tomam a exemplificao do universal como fato primitivo e explicam as semelhanas a partir da; o que os nominalistas dizem que isso no explica nada, e que se para tomar algo como bsico, ento prefervel parar um passo atrs, e assumir que ser de tal forma ou ter determinada caracterstica bsico, sem com isso apelar para esse reino de universais parte aos indivduos particulares. Isso aparece em Quine da seguinte maneira:

    Algum pode admitir que haja casas, rosas e ocasos vermelhos, mas

    negar, exceto como uma maneira de dizer vulgar e traioeira, que eles

    tenham algo em comum. As palavras casas, rosas e ocasos so verda-

    deiras de diversas entidades individuais que so casas e rosas e ocasos,

    e a palavra vermelho, ou objeto vermelho, verdadeira de cada uma

    das diversas entidades individuais que so casas vermelhas, rosas ver-

    melhas e ocasos vermelhos; mas no h, alm disso, qualquer entidade,

    individual ou no, nomeada pela palavra vermelhido nem, do mesmo

    modo, pela palavra casidade, rosidade, ocasidade. Que casas, rosas e

    ocasos sejam todos eles vermelhos pode ser considerado algo funda-

    mental e irredutvel, e pode-se sustentar que McX [representante dos

    realistas] no ganha nada, em termos de poder explicativo efetivo, com

    todas as entidades ocultas que ele pe sob nomes tais como vermelhi-

    do. (QUINE, 1980, p. 223).

    A crtica de Quine nessa passagem se dirige ao poder explicativo dos realistas, que, ao estipularem um universal que represente uma propriedade com o objetivo de explic-la, acabam no explicando nada novo. como se eles dissessem que casas, rosas e ocasos so vermelhos porque compartilham algo, a saber, a vermelhido, mas nosso acesso a essa vermelhido obscuro e s interagimos dire-tamente com particulares vermelhos. Logo, o que sabemos sobre esses universais se confunde com os aspectos das coisas mesmas numa espcie de circularidade. Como dissemos acima, se no h ganho na teoria, ento mantemos aquela que se compromete com o menor nmero de entidades.

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    Mas os realistas contra-argumentam dizendo que se compre-endemos um enunciado predicativo ou relacional, se ele signifi-cativo para ns, porque deve haver uma relao de equivalncia entre a sentena e algum aspecto no mundo. E essa correspondn-cia se d justamente atravs do referencial de seus elementos. Se a referncia funciona bem para sentenas predicativas como Maria bonita, deve funcionar igualmente para A beleza uma bno ou Elfos no existem. Mas nessas duas ltimas o sujeito referido deve ser um universal, seno o esquema no funciona. Nomina-listas vo defender que o problema apresentado lingustico, de como lidamos com nomes (por isso nominalistas), e vo tentar mostrar que os nomes so arbitrrios nas sentenas e que pode-mos tranquilamente passar sem eles.

    Quine, entre outros, usa a teoria das descries definidas, de Rus-sell, para eliminar nomes singulares das sentenas de nossos discur-sos e acabar com o que ele chama de fardo da referncia objetiva.

    S para relembrar o que j foi estudado na disciplina de Ontolo-gia II, a teoria de Russell nos diz que para analisar adequadamen-te o significado de uma sentena predicativa devemos substituir o nome singular por uma descrio definida desse nome. Assim, segundo o exemplo clssico do prprio Russell, ao dizermos que A cpula redonda e quadrada do Berkeley College rosa esta-mos dizendo que algo redondo e quadrado e uma cpula do Berkeley College e rosa, e nada mais redondo e quadrado e uma cpula do Berkeley College. (QUINE, 1980, p. 220).

    Com essa descrio o nome parafraseado no seu contexto, mostrando-se um smbolo incompleto. Ao substituirmos o que se-ria o nome da referncia objetiva por um termo geral, vemos que a significatividade da sentena no depende da coisa mesma referi-da (no precisamos que exista de fato o referente para compreen-der uma sentena), mas que ela vem a partir do termo geral, que os lgicos chamam de variveis ligadas ou de quantificao, tais como algo, tudo ou nada. Desse modo, os nominalistas analisam as sentenas predicativas sem o compromisso com a existncia de coisas como cpulas redondas e quadradas. Mas o que aconteceria

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    com nomes singulares que em princpio no teriam uma tradu-o via descrio definida? Quine vai argumentar que nesse caso poderia ser usado um estratagema artificial, no analisvel e irre-dutvel, que transformaria o nome, por exemplo, Pgaso (apesar de Pgaso ser passvel de descrio) em um atributo ser-Pgaso, adotando o verbo Pegasear para exprimi-lo (QUINE, 1980, p. 221). Assim, falaramos em coisas que pegaseiam. O fato que no importa tanto como se faz a parfrase, o que se quer mostrar que a maneira como falamos das coisas relativamente arbitrria e por isso no devemos inferir do discurso um compromisso com a existncia dessas entidades, sejam elas concretas ou abstratas.

    Importante ressaltar que a estratgia da parfrase est sendo utilizada de um modo inverso ao que fizeram os realistas. Enquan-to estes buscavam parafrasear termos gerais em nomes singulares para evidenciar seu carter referencial, nominalistas pretendem que todo termo singular seja parafraseado em um termo geral, de modo a eliminar a necessidade da referncia objetiva. Isso pode funcionar muito bem com algumas sentenas, mas talvez no fun-cione to bem com outras. Como nos mostra Loux (1998, p. 62-69) em dois exemplos:

    1. Triangularidade uma forma.

    2. Coragem uma virtude moral.

    Com relao a (1), poderamos ter uma parfrase bem-suce-dida em (1a): Objetos triangulares so objetos com formas. Mas ao tentar fazer o mesmo com (2) encontramos problemas. Uma tentativa feita foi (2a): Pessoas corajosas so moralmente virtu-osas. Mas essa segunda sentena no parece dizer a mesma coisa que a primeira. Podemos imaginar pessoas que apesar de cora-josas no renem outras qualidades que as tornem dignas de se-rem chamadas de virtuosas e para as quais a coragem por si s seria insuficiente para tal. preciso ressaltar que as pretendidas parfrases precisam manter a significao e o valor de verdade da sentena original, seno no faz sentido tal empreitada. Para ten-tar responder a isso, pode-se dizer que (2a) no uma parfrase adequada para tal sentena e tentar encontrar outra melhor, mas o

  • Realismo, Nominalismo e Conceptualismo 39

    problema de fato que esse tipo de parfrase implicitamente indi-ca que ao utilizar um termo singular abstrato em uma sentena, ao invs de falarmos diretamente de universais, estamos antes falan-do de particulares. Ou seja, o problema continuar supondo que as sentenas contendo termos singulares abstratos falam de algo extralingustico.

    Carnap (1980) percebeu esse problema e props uma resposta diferente para essa questo. Para ele, sentenas em que aparecem termos singulares abstratos dizem respeito ao termo geral corres-pondente daquele termo abstrato e no a um indivduo externo linguagem. De modo que o que aparenta ser um discurso sobre a propriedade (ou universal) coragem, do exemplo acima, antes um discurso sobre o termo geral corajoso. Assim, uma parfrase adequada para (2) seria (2b): Corajoso um predicado de virtu-de; e para (1), (1b): Triangular um predicado de forma. Com essa mudana na abordagem do assunto, Carnap (1980) pretende eliminar a referncia a universais mantendo a discusso no plano lingustico, falando apenas do significado das palavras, das suas relaes internas e das funes sintticas que elas exercem. Com Carnap (1980), a discusso ontolgica que envolve particulares e universais intensifica-se numa discusso metalingustica sobre os termos proposicionais e suas funes.

    Outra maneira de compreender o antirrealismo atravs da te-oria dos tropos. Quando apresentamos a disputa entre realistas e antirrealistas, falamos da maneira como eles compreendem par-ticulares e universais levando em conta principalmente a questo da predicao e da semelhana de atributos entre diferentes indi-vduos. Mas devemos considerar que um dos fatores em disputa o tratamento ou o entendimento dessas duas posies com relao ao que so entidades concretas e o que so entidades abstratas. Os realistas consideram propriedades como entidades universais e abstratas, enquanto antirrealistas as consideram nomes de qua-lidades de entidades concretas. Como veremos agora, autores que defendem a teoria dos tropos falam de propriedades como parti-culares abstratos.

    Um tropo um atributo de um ser concreto, como forma, cor, sabor, cheiro, qualidade moral, defeito, mas fundamen-

  • 40 Ontologia III

    talmente algo nico, que s aquele ser concreto possui. Nessa viso, o azul de uma blusa nico e exclusivo daquela blusa e o sorriso de uma pessoa somente aquela pessoa o possui. Por mais que falemos de diversos sorrisos ou que faamos vrias blusas do mesmo rolo de fio azul, ainda assim essas qualidades so exclusivas dos diferentes particulares que as possuem. Isso porque um tropo por definio um particular abstrato: particular na medida em que ele nico para cada indivduo, negando com isso a proprie-dade dos universais de ser multiexemplificvel; abstrato porque incompleto nas palavras de Donald Williams: na sua extenso o verdadeiro significado de abstrato parcial, incompleto, ou frag-mentrio, o trao do que menos do que sua totalidade inclusiva (WILLIAMS, 1999, p. 122). O que o autor deseja com essa definio desfazer a ideia de que algo abstrato seja algo mstico, transcen-dente, independente do espao e do tempo, confuso (termo muitas vezes utilizado por outros autores). Assim, um sorriso abstrato porque no ocorre independente, solto por a no mundo, ele preci-sa de uma boca, de um rosto para acontecer; mas um particular porque sua ocorrncia distinta em cada pessoa distinta.

    A ontologia da teoria dos tropos continua sendo uma ontolo-gia de uma categoria s, contrria a dos realistas, mas ao invs de defender que s existem particulares concretos, eles defende-ro que o que existe so particulares abstratos e que os particu-lares concretos podem ser derivados destes.

    Assim, diz Williams (1999, p. 122):

    Eu proponho agora que entidades tais quais nossas partes puras ou

    componentes abstratos so os constituintes primeiros desse ou de

    qualquer mundo possvel, o grande alfabeto do ser. Elas no so apenas

    atuais, mas as nicas atualidades. Nesse sentido, considerando que en-

    tidades de todas as outras categorias so igualmente compostas delas,

    elas no so, em geral, compostas de nenhuma outra sorte de entida-

    des. [...] Uma descrio disso em boa velha fraseologia tem uma ligao

    paradoxal: nossas partes tnues so particulares abstratos.

    Como ento, a partir dessa nova abordagem, resolver os proble-mas que vnhamos discutindo at agora? Como a teoria dos tropos lida com termos singulares abstratos? No contexto atual dessa te-oria, termos singulares abstratos so nomes que, ao invs de no-

  • Realismo, Nominalismo e Conceptualismo 41

    mearem universais, nomeiam conjuntos de tropos semelhantes. O ganho terico que h em falar de conjuntos ao invs de universais que conjuntos tm um critrio de identidade bem definido, en-quanto universais distintos podem ser exemplificados exatamen-te pelos mesmos objetos, gerando confuso. Um exemplo disso considerarmos a propriedade possuir corao e a propriedade possuir rim.Dentro do esquema realista de universais, esses dois grupos sero exemplificados exatamente pelos mesmos indivdu-os, uma vez que todo animal que tem corao tem rim. Assim, simplesmente separando um grupo qualquer de animais como instanciadores exemplares das propriedades, no teramos como distinguir o que ter um corao do que ter um rim, o que pode-ria levar a uma concluso falsa de que ter um corao a mesma coisa que ter um rim. Na teoria dos tropos, ter corao um tipo de tropo diferente do tropo ter rim, de modo que o conjunto formado por todos os tropos ter corao diferente do conjunto formado pelos tropos ter rim. E como em teoria dos conjuntos se define a identidade de dois conjuntos pelos elementos que o for-mam, no ocorreria aqui a mesma concluso errnea que poderia ter ocorrido no caso dos universais, pois os tropos que compem os dois conjuntos so distintos. uma vantagem poder usar a teo-ria dos conjuntos como suporte, uma vez que ela uma teoria bem estabelecida e comportada dentro da matemtica.

    Com essa abordagem, os tericos de tropos escapam da ontolo-gia dbia e desconcertante dos realistas que tm de lidar com enti-dades fora do espao e do tempo, repetveis e multiexemplificveis e com o modo (mgico!) com que essas entidades se relacionam com nosso conhecimento e entendimento; e ao mesmo tempo no caem no absurdo dos outros nominalistas de negar que existem cores, formas, qualidades morais, afirmando que quando falamos dessas coisas estamos apenas falando de nomes, mantendo-nos dentro do universo da linguagem apenas. Note-se: o tropo que ca-racteriza a cor da laranja diferente do tropo que d cor ao carro laranja, apenas o nome igual; tropos no so nomes, mas parti-culares abstratos, isto , componentes das prprias coisas.

    Exemplo retirado de Loux (1998, p. 83).

  • 42 Ontologia III

    2.3 ConceptualismoUma posio alternativa entre o realismo e o nominalismo foi

    introduzida na Antiguidade pelas escolas ditas helensticas (Epicu-rismo e Estoicismo), em geral associadas ao atomismo materialista. Segundo essa concepo, os nomes comuns expressam conceitos ou noes (ennoia), os quais so estados da mente (pathematas tes psyques). Para essas escolas, o que h so corpos, indivduos parti-culares. Os nomes comuns no nomeiam corpos, mas indicam as impresses mentais provocadas pela percepo dos corpos. Uma vez que a mente era concebida por eles como sendo tambm cor-prea, mantinha-se assim a coerncia da tese de que s h corpos e nada mais.

    Essa posio foi retomada e desenvolvida na modernidade, so-bretudo pelos empiristas. Em geral, a posio moderna de fundo nominalista, como mostra Hobbes (1588-1679) quando afirma que fora os nomes, nada no mundo universal, pois cada coisa existente individual e singular (HOBBES, 1979, p. 39), no que seguido por Locke (1632-1704). Todavia, o primado da conscin-cia e da mente, caracterstico das filosofias desse perodo, restaria assim sem explicao. O prprio Locke levanta a questo: Visto que todas as coisas que existem so apenas particulares, como for-mamos os nomes comuns, ou onde encontramos estas naturezas gerais que eles supostamente significam? (LOCKE, 1980). A res-posta de Locke clara e inequvoca:

    As palavras tornam-se gerais por serem estabelecidas como os sinais

    das ideias gerais; e as ideias tornam-se gerais separando-se delas as cir-

    cunstncias de tempo e lugar, e quaisquer outras ideias que possam

    determin-las para esta ou aquela existncia particular. Por este meio de

    abstrao elas tornam-se capazes de representar mais do que um indi-

    vduo, cada um dos quais tendo nisto uma conformidade com esta ideia

    abstrata, (como o denominado) desta espcie. (LOCKE, 1980).

    Nessa resposta recusa-se a posio realista, mas tambm recu-sada a posio nominalista. Os nomes comuns, os termos gerais, no so meros nomes coletivos, antes so nomes comuns por ex-pressarem ideias abstratas, as quais, elas sim, por abstrarem tudo o que particular, apreendem diferentes particulares. As palavras

  • Realismo, Nominalismo e Conceptualismo 43

    so significativas na medida em que expressam ideias: Palavras, em seu significado primrio e imediato, nada significam seno as ideias na mente de quem as usa (LOCKE, 1980, p. 2). As ideias, por sua vez, a mente as tem na medida em que recebe e trabalha com impresses provenientes dos sentidos.

    A verso contempornea dessa posio abandona a teoria em-piricista das ideias e passa a sustentar a tese de que os nomes co-muns expressam conceitos, os quais so capacidades cognitivas de classificao e organizao de uma mente. Em outras palavras, os universais seriam formas (regras) de aparncia das coisas para uma mente ou intelecto; ou ainda, estruturas lgico-formais a priori do pensamento ou juzo.

    Portanto, quando falamos em predicao, na associao de uma qualidade a um objeto, do ponto de vista dos conceptualistas, es-tamos falando de uma operao de uma mente capaz de pensar e formar conceitos, como base para a expresso lingustica e a co-municao, que permite a predicao e a assero, resultado de uma evoluo histrica, social e cultural dos seres humanos no meio em que vivem.

    Uma frase predicativa, como A bola azul, seria a manifes-tao dessas operaes e capacidades mentais. De acordo com o filsofo Nino B. Cocchiarella (1986, p. 7), h dois tipos de ca-pacidade cognitiva que caracterizam a predicao dentro do conceptualismo: a capacidade referencial, que quando exerci-tada d ao discurso seu elemento intencional-referencial, isto , o carter de estar direcionado a algo; e a capacidade predi-cativa, que quando exercitada fornece os elementos relacionais e predicativos (inferenciais) do discurso. Note-se que nessa ca-racterizao conceitos no so objetos ou entidades mentais, no so imagens ou ideias que esto de alguma forma alocadas na mente humana a partir de um esforo de abstrao do pensamen-to. Aqui prefervel falar em uma capacidade cognitiva concebida intersubjetivamente, de atos e operaes mentais, que possibilita o entendimento comum e a comunicao entre as pessoas.

    Nessa concepo, pode haver conceitos nunca exercitados, ou seja, a capacidade estrutural do pensamento pode no ser pratica-

  • 44 Ontologia III

    da em toda sua potencialidade. Conceitos em geral (isto , capacidades de discriminao) e conceitos predicveis em especial no so enti-dades individuais, mas, antes, estruturas e ope-raes cognitivas insaturadas cuja realizao ou preenchimento fornece o contedo para os atos mentais e lingusticos. Desse modo, pode haver conceitos exercitados por pessoas diferentes ao mesmo tempo, ou em tempos di-ferentes pelas mesmas pessoas; essa possibili-dade o que est pressuposto quando falamos em intersubjetividade. Mas a caracterstica fundamental que Cocchiarella levanta a da complementaridade que h entre as estruturas conceituais referenciais e predicativas ou infe-renciais. Afirma ele: essa complementarida-de que reala a qumica mental entre lingua-gem e pensamento (COCCHIARELLA, 2007, p. 71). Ou seja, quando so exercitadas juntas, essas duas estruturas completam-se mutuamente no discurso ou em atos mentais, o que faz com que tenhamos uma expresso pre-dicativa coerente e compreensiva.

    Vejamos um exemplo. Na sentena Todo jogo de copa do mun-do bom temos a frase nominal Todo jogo de copa do mundo no papel de indicador daquilo de que se fala, o conceito referen-cial, e a frase bom no papel do conceito predicativo ou classifi-cador. A complementaridade mencionada entre as duas opera-es mentais de referir e classificar, articuladas linguisticamente nessas duas estruturas frasais, cujo sentido uma articulao entre conceitos que d sentido para a assero, pois sozinhas nenhuma delas nos diz nada.

    Assero (julgamento)Ato referencial ... Ato predicativo

    Nexo da predicao(mtua saturao, ou complementaridade)

    Atos Mentais e LingusticosConceptual Realism and the Nexus of Predication. Conceptualism is a sociobiologically based theory of the human capacity for thought and concept- formation, and, more to the point, systematic con-cept-formation. Concepts themselves are types of cognitive capacities, and it is their exercise as such that underlies the speech and mental acts that constitutes our thoughts and communications with one another. But thought and communication exist only as coordinated activities that are syste-matically related to one another through the logi-cal operations of thought; and it is with respect to the idealized closure of these operations that con-cept-formation is said to be systematic. It is only as a result of this closure, moreover, that the unity of thought as a field of internal cognitive activity is possible. (COCCHIARELLA, 2007, p. 87)

  • Realismo, Nominalismo e Conceptualismo 45

    No exemplo acima vimos uma expresso referencial, um ter-mo geral (jogos de copa do mundo), mas se a referncia fosse a um particular singular (com um termo singular, como Scrates), no haveria grandes mudanas no esquema. Primeiro porque os atos referenciais so capacidades cognitivas e no particulares no mundo; segundo porque no conceptualismo s existe uma cate-goria geral de nomes, que tem como subcategorias os nomes co-muns e os particulares, de modo que indiferente fazermos uso de um nome prprio ou de um nome comum ocupando o papel referencial ou designador na sentena, embora sejam formadas ex-presses gramaticalmente distintas (na frase eles exercem a mesma funo).

    Desse modo, o conceptualismo dissolve o problema que deu origem questo dos universais, implcito na suposio de que a predicao dizer algo de algo, ao explicar tanto a objetivida-de ou referencialidade (dizer de algo) quanto predicao (di-zer algo de) discursiva em termos de capacidades e operaes. A questo acerca do que que h, e acerca do que isso de que se fala, no assim respondida, mas tambm no confundida com a explicao da estrutura do pensamento e da linguagem.

    Em relao ao nominalismo, o conceptualismo rejeita a tese de que h apenas particulares individuais, pois o sentido em que h particulares no o sentido em que h conceitos. Mais espe-cificamente, rejeita-se a tese nominalista de que no h univer-sais alm dos predicados (nomes comuns), pois o conceptualismo compromete-se com a existncia de universais no sentido de con-ceitos, para os quais possvel estabelecer condies de aplicao correta (COCCHIARELLA, 2007, p. 8). A habilidade de aplicar um conceito est associada habilidade de usar certas expresses lingusticas e de se comportar de um modo especfico. A tese con-ceptualista, porm, no identifica o conceito com essas habilida-des e atividades, mas as vincula com a sua posse, indicando assim que os conceitos so realidades dependentes. Justamente esse fator faz a diferena em relao ao realismo, pois o conceptualismo no atribui aos conceitos uma realidade independente das atividades conscientes e lingusticas.

  • 46 Ontologia III

    Leituras sugeridas O livro organizado por Guido Imaguire, Metafsica contempo-

    rnea, fornece um panorama atualizado das discusses ontolgi-cas atuais. J o livro de Thomas M. Simpson, Linguagem, realidade e significado, apresenta os principais conceitos e problemas da on-tologia relacionados lgica e anlise da linguagem. Nesse livro, assim como no livro de Paul F. Strawson, Anlise e Metafsica: uma introduo Filosofia, abordam-se o problema de como compre-ender o sentido das frases e o problema do comprometimento com a existncia de entidades.

    Reflita sobreO que h de comum entre as coisas de que falamos e o que fala-

    mos das coisas?

    O que h de comum entre o sentido de azul, existente e pesado?

  • Captulo 3 O quadrado ontolgico e as formas de predicao

    Neste texto, discutimos as distines entre particular e universal, e concreto e abstrato, en-quanto noes em que se articulam conceitos lgicos, semnticos e ontolgicos. O objetivo refletirmos sobre as implicaes ontolgicas e categoriais dessas distines e suas conexes com as teorias da predicao.

  • O quadrado ontolgico e as formas de predicao 49

    3. O quadrado ontolgico e as formas de predicao

    As palavras tem, h e existe so de uso corrente em dife-rentes contextos de nossas interaes comunicativas, e esto em geral associadas a diferentes substantivos. Na vida cotidiana usam-se essas palavras sem maiores problemas, e quando ocorre algu-ma dvida, ela facilmente sanada. Se vamos feira, as questes ... tomates?, ... frutas vermelhas hoje?, ... dinheiro suficiente? e assemelhadas, nas quais se usa, no lugar dos trs pontos, uma daquelas palavras, so rapidamente respondidas com uma breve investigao. Em geral, o sentido dessas expresses, o de existncia de objetos, idntico ao da pergunta existe uma pedra no meio do caminho?. Agora, alm desse uso, fala-se seguidamente em existe um modo de fazer caipirinha, no h nada como uma paixo, tem uma relao entre o sabor e a cor, h um nmero primo par, h um conceito de consistncia, etc. Diante desses usos, uma pergunta ento pode ser posta: h um nico sentido de existncia codificado nessas diferentes expresses, ou no? E se no, quantos h? Perguntado de outro modo: sempre se trata a da existncia de objetos e entidades? Ser que esses usos prejulgam o tipo de objeto ou entidade?

    Uma maneira de explicar esses usos consiste na introduo de diferentes tipos de seres, aos quais se pode atribuir existncia, e na afirmao de que as diferenas de significao se devem aos diferentes modos de ser/existir. A diferena entre universais e par-

  • 50 Ontologia III

    ticulares s vezes assim explanada. A diferena entre uma pedra e uma relao seria a de que a pedra um particular e que a relao um universal. Os particulares so concretos e os universais so abstratos. Para alguns, apenas os particulares existem propriamen-te; para outros, os particulares so apenas exemplificaes efme-ras dos verdadeiramente existentes, os universais. Outra aborda-gem diz que ambos existem segundo seu prprio modo, e mantm uma relao extrnseca; para outros, a relao intrnseca, no sen-tido de que no existiriam particulares e universais separados uns dos outros. Outra corrente de pensamento faz colapsar a distino abstrato/concreto e admite a existncia de universais concretos e particulares abstratos.

    Agora, no obstante os pares de expresses particular e univer-sal e concreto e abstrato serem de uso corrente, e expressarem duas oposies incorporadas no nosso linguajar cotidiano, no claro em que sentido elas so empregadas. Por um lado, diz-se que uma pedra uma entidade particular, em contraste com uma ideia, que seria um universal. O que se quer dizer que a ideia, seja ela a ideia de redondeza, se aplica a muitas entidades diferentes sem deixar de ser uma e a mesma ideia; enfim, que ela pode se repetir. Em termos espaotemporais, uma mesma ideia se aplica a dife-rentes entidades em diferentes regies do espao-tempo. J uma entidade particular, ao contrrio, somente o que uma nica vez, no podendo ser diferente ou estar simultaneamente em diferentes regies espaotemporais, enfim, algo irrepetvel. Por outro lado, diz-se que uma pedra uma entidade concreta, em contraste com uma qualidade da pedra, que seria um abstrato. O que se quer di-zer que a qualidade, seja ela a sua forma redonda, no existe em separado, e apenas pode ser apreendida na pedra, no sentido de que a temos ao abstrairmos (deixarmos de lado) a massa, o peso, a localizao espaotemporal, etc. da pedra. A pedra, porm, existe e o que , d-se independentemente de qualquer processo de abs-trao. Em geral se diz que um objeto abstrato no est localizado no espao-tempo e que a pedra no entra em relaes causais, no sentido de no ser atual ou efetiva.

    Uma maneira de compreender essas distines tom-las como formas de contribuio semntica de expresses para o

  • O quadrado ontolgico e as formas de predicao 51

    contedo de nossas enunciaes. Admitido o campo de doao da enunciabilidade, trata-se de explicitar diferenas naquilo que dito por uma frase. Considerem-se as seguintes afirmaes e a contribuio semntica das expresses em negrito para o que enunciado por essas frases:

    1. Joo cortou a rvore plantada por Airton.

    2. O verde dessa rvore mais escuro do que o daquela.

    3. O corte de rvores nem sempre um crime.

    4. A igualdade um caso de identidade.

    A partir da distino acima, podemos dizer que as expresses em negrito referem-se respectivamente a um particular concreto (1), um universal concreto (2), um particular abstrato (3) e um uni-versal abstrato (4). Note-se, porm, que as expresses a rvore e o verde dessa rvore indicam um contedo coisal que ocorre efe-tivamente e de maneira nica, localizvel espao-temporalmente e possuidor de relaes causais energticas. J as expresses o corte de rvores e identidade indicam um contedo conceitual que pode ser dito de diferentes ocorrncias e cujas determinaes inde-pendem de haver ou no ocorrncias efetivas. Ora, essas explicaes so claramente insuficientes. Primeiro, por causa do uso frouxo das noes de entidade, contedo, qualidade, localizao espaotem-poral, etc. Segundo, por causa da suposio geral de que se podem usar exemplos cotidianos, tais como pedras, formas, propriedades e relaes, para ilustrar conceitos e distines terico-filosficos. Terceiro, pela suposio de que h realmente definies coerentes para esses quatro termos. Faamos ento um desvio pela histria da filosofia e vejamos se essas distines ficam mais claras.

    3.1 O quadrado aristotlicoNo Livro 2 das Categorias, Aristteles introduziu uma distino

    ontolgica pr-categorial que ainda hoje tem seus efeitos. Trata-se

  • 52 Ontologia III

    da distino entre ser afirmado de um sujeito e ser em um su-jeito (ARISTTELES, 1985). O ponto de partida de Aristteles semntico, pois diz respeito ao significar e ao significado das ex-presses em posio de predicado: o predicado sempre o signo do que se afirma de outro, isto , de coisas inerentes a um sujeito, ou contidas em um sujeito (ARISTTELES, 1985). Da a distin-o entre quatro casos: (1) predicar algo de um sujeito, ainda que no se ache presente em nenhum sujeito; (2) ser em um sujeito, e no predicvel de qualquer sujeito; (3) simultaneamente, pre-dicvel de um sujeito e ser em um sujeito; (4) no ser, nem em um sujeito, nem predicvel de qualquer sujeito. A distino diz respeito ao significar dos signos em posio predicativa, e refere-se ao significado das expresses predicveis; mas, em funo do con-ceito mesmo de significar, fundado, para Aristteles, no conceito de serem determinadas (ARISTTELES, 2006), tais distines se refletem nas distines ontolgicas mais bsicas.

    Essa distino lhe permitiu introduzir quatro classes de termos de entidades: (1) o que tanto afirmado quanto est em um sujeito; (2) o que afirmado de um sujeito sem estar num sujeito; (3) o que est num sujeito sem ser afirmado de um sujeito; e, por fim, (4) o que no afirmado de um sujeito nem em um sujeito. Essa qua-dripartio ontolgica est claramente assentada na suposio da forma de enunciao bsica do tipo sujeitopredicado (S P) e nas ideias de que o tanto pode significar ser-em algo quanto ser-afirmado de algo. Nesse sentido, ela entrecruza o plano semntico (e lgico) com o plano do ser (ntico). A partir de Bocio, fixou-se assim a designao dessas distines, respectivamente: (1) subs-tncia particular, (2) substncia universal, (3) acidente universal e (4) acidente particular, que pode ser ilustrada pela diferenciao, respectivamente, entre Scrates ou aquele homem particular, o humano ou humanidade genrica, a cincia exercida por Scrates, e o branco do cabelo de Scrates.

    No livro Isagoge, Introduo s categorias de Aristteles, de Por-frio, escrito no final do sculo III d.C., encontramos novamente o entrecruzamento de noes semnticas com noes ontolgicas na explicao de predicveis ou categorias. Com efeito, Porfrio afirma que: Porfrio (232-305). Fonte:

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Porfirio.JPG

    Categorias Aristotelis commentaria, PL 64, 170BC.

  • O quadrado ontolgico e as formas de predicao 53

    em cada categoria, h certos termos que so os gneros mais gerais, ou-

    tros que so as espcies mais especiais, outros ainda que so interm-

    dios entre os gneros mais gerais e as espcies mais nfimas. mais geral

    o termo acima do qual no pudesse haver outro gnero superior; mais

    especial o termo do qual no pudesse haver outra espcie subordinada;

    so intermedirios entre o mais geral e o mais especial outros termos

    que so ao mesmo tempo gneros e espcies, entendidos, verdade,

    relativamente a termos diferentes. Procuremos esclarecer quanto dize-

    mos tomando apenas uma categoria. A substncia em si mesmo um

    gnero; abaixo dela acha-se o corpo; abaixo do corpo, o corpo animado;

    abaixo do corpo animado, o animal; abaixo do animal, o animal racional;

    abaixo do animal racional, o homem; abaixo do homem, enfim, Scrates

    e Plato, e os homens particulares. (PORFRIO, 1994, p. 60).

    Desse modo, o significado das expresses em posio predicativa se distribui em cinco diferentes modos: gnero, espcie, diferena, prprio e acidente. A distino entre ser-em e ser-afirmado de agora pode ser explicitada por meio de uma relao hierrquica de dependncia quanto existncia: as nicas entidades propriamen-te existentes seriam as concretas, ou indivduos particulares, como Scrates, aquele que conversou com Plato e Antstenes no dia tal e em tal lugar de Atenas. As espcies (eidos), bem como os gneros (genos), as diferenas (diaphora), os prprios (idion) e os acidentes (symbebekos), teriam um modo distinto de existncia, pois eles so realidades universais. Porfrio deixou em aberto em relao aos universais a questo de saber se elas so realidades em si mesmas, ou apenas simples concepes do intelecto, e, admi-tindo que sejam realidades substanciais, se so corpreas ou in-corpreas, se, enfim, so separadas ou se ape