Uibitu Smetak Dissertação a Trilha Sonora No Teatro de Animação Completo e Ok
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO / ESCOLA DE DANA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS
UIBITU SMETAK
A TRILHA SONORA NO TEATRO DE ANIMAO: O CASO DO ESPETCULO O PSSARO DO SOL DO GRUPO A RODA
DE TEATRO DE BONECOS
Salvador 2013
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UIBITU SMETAK
A TRILHA SONORA NO TEATRO DE ANIMAO: O CASO DO ESPETCULO O PSSARO DO SOL DO GRUPO A RODA
DE TEATRO DE BONECOS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas PPGAC, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Artes Cnicas. Orientao: Prof Dr Clida Salume
Salvador 2013
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Escola de Teatro - UFBA
Smetak, Uibitu.
A trilha sonora no teatro de animao: o caso do espetculo O Pssaro do
Sol do Grupo A Roda de Teatro de Bonecos / Uibitu Smetak. - 2013.
190 f. il.
Orientadora: Prof. Dr. Clida Salume.
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de
Teatro, 2013.
1. Msica nos teatros. 2. Teatro musical. 3. Dramaturgia - Msica.
4. Teatro de fantoches. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de
Teatro. II. Ttulo.
CDD 781.17
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AGRADECIMENTOS
A Deus que me deu o dom da vida e a graa de poder fazer msica com as mos, os ouvidos, os olhos, o corao e um violino.
Aos meus queridos pais Walter Smetak e Julieta Esmerin Rodrigues.
Ao Professor Armindo Bio (in memoriam), meu primeiro orientador, por sua
generosidade e confiana em me acolher.
Ao Professor Srgio Farias, meu segundo orientador.
A minha querida e definitiva orientadora, Professora Clida Salume Mendona.
A Lvio Tragtenberg, artista inspirador, exemplo que procurarei sempre seguir.
Professora Deolinda Vilhena, pelos textos do Thtre du Soleil.
A Jean-Jacques Lemtre, pote, musicien, magicien.
querida Olga Gomez e a Amanda Smetak, nossa filha, presente de Deus, alegria de nossas vidas.
A minha irm e amiga Brbara Smetak, pelo dedicado amor maternal.
A Raimundo quila, querido amigo, irmo e conselheiro de todas as horas.
A Joo Omar, carssimo amigo, irmo na arte da msica e no pensamento.
A Marcus Sampaio e Stella Carrozzo, companheiros dA Roda que se tornaram
companheiros na vida.
A Anthony Bergamin, por toda uma floresta feita com sua voz.
A Fbio Pinheiro, por sua gentil colaborao.
Ao GRUPO A RODA que me deu a oportunidade de realizar este trabalho.
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SMETAK, Uibitu. A Trilha Sonora no Teatro de Animao: o espetculo O Pssaro do Sol do GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS. 2013. Dissertao (Mestrado em Artes Cnicas) Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
RESUMO A presente dissertao buscou efetuar uma anlise reflexiva sobre os processos criativos da trilha sonora do espetculo de teatro de animao O Pssaro do Sol, do GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS, tendo por foco principal a sua funo dramatrgica, em oposio sua funo ornamental. Este trabalho tambm visou contribuir para o desenvolvimento das artes do espetculo na Bahia no domnio da criao de msica de cena para teatro de bonecos e/ou sombras especificamente, ainda pouco explorado e carente de trabalhos acadmicos. As reflexes esto apoiadas nas teorias de Lvio Tragtenberg, Roberto Gill e Jean-Jacques Lemtre, entre outros autores, e no prprio relato da diretora do espetculo e de um dos atores-animadores. Alm da confirmao da funo dramatrgica da trilha sonora, esta pesquisa ofereceu a descoberta da dinmica de um processo e mtodo pessoal, de elaborao, construo e escrita musical para teatro de animao. Palavras-chave: Msica, Teatro de Animao, Dramaturgia Sonora, Compositor.
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ABSTRACT
This dissertation intended to make a reflective analysis about the creative processes related to the soundtrack of the animation theater play O Pssaro do Sol by the company GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS, especially focusing its dramaturgical function, as opposed to its ornamental function. This work also aimed to contribute to the development of the performing arts in Bahia in the music creation field for puppet or shadow theater specifically, not very explored and lacking in academic papers. The reflections are supported by the theories of Lvio Tragtenberg, Robert Gill and Jean-Jacques Lemtre, among other authors, and by the director's own account of the show and one of the actors (animators). Besides the confirmation of dramaturgical function of the soundtrack, this research offered the discovery of the dynamics of a process and personal method of design, construction, and writing music for animation theater. Keywords: Music, Animation Theater, Sound Dramaturgy, Composer.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Trecho de partitura: Preldio de abertura da pera Carmen, de
Georges Bizet............................................................................................................... 27
Figura 2 Trecho de partitura: Habanera da pera Carmen, de Bizet. .................. 27
Figura 3 Trecho de partitura: Melodia do Pssaro do Sol, de Uibitu Smetak.......... 35
Figura 4 Trecho de partitura: Melodia do Tema da Natureza, de Uibitu Smetak.... 35
Figura 5 Trecho de partitura: Tema da Tribo............................................................ 35
Figura 6 Trecho de partitura: Paj, de Uibitu Smetak............................................... 38
Figura 7 Foto: Sombra em couro do paj com a serpente, vista por trs da tela....... 39
Figura 8 Trecho de partitura: Melodia e acompanhamento de Voadora Pluma, de
Uibitu Smetak................................................................................................................ 42
Figura 9 Foto: Sombra de uma das atrizes-manipuladoras na cena da pluma cadente 42
Observao: As figuras a partir do n 10 encontram-se nos Apndices (B e C). E nos Anexos (Anexo A).
LISTA DE QUADRO
Quadro 1 Correspondncias entre as tonalidades e os afetos........................................ 30
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SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................. 06
1 A FUNO DRAMATRGICA DA MSICA........................................................ 18
1.1 A MSICA QUE PARTICIPA DA CENA.................................................................. 18
1.2 A MSICA QUE PRODUZ A EMOO................................................................... 26
1.2.1 Som, Msica e Imaginrio......................................................................................... 34
1.2.2 A Arte do Compositor................................................................................................ 40
2 O FAZER DA MSICA PARA A CENA................................................................... 46
2.1 A COMPOSIO DA TRILHA SONORA PARA O ESPETCULO....................... 46
2.1.1 Descrio das Msicas (CD do Espetculo)............................................................... 56
2.2 A LENDA...................................................................................................................... 62
2.3 AS SOMBRAS.............................................................................................................. 67
3 A RECEPO DA MSICA NA COMPOSIO DE O PSSARO DO SOL .... 73
3.1. A VISO DA DIRETORA...................................................................................... 73
3.1.1 A VISO DO ATOR-ANIMADOR........................................................................ 85
CONSIDERAES FINAIS............................................................................................95
REFERNCIAS ..............................................................................................................99
GLOSSRIO....................................................................................................................104
APNDICES ....................................................................................................................122
ANEXOS .......................................................................................................................... 157
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INTRODUO
O uso de trilhas sonoras em espetculos teatrais fato registrado desde a Antiguidade,
como expe Livio Tragtenberg (1999, p.17):
importante ter em mente que hoje a chamada msica aplicada ou trilha sonora, que designo genericamente como msica de cena, o resultado de uma tradio que remonta aos primrdios da expresso artstica humana. Ela se insere numa tradio que no ocidente, j mesmo antes dos dramas gregos, dramatizava temas retirados do Antigo Testamento.
H relatos de que as mais remotas manifestaes teatrais j utilizavam som e efeitos
sonoros. Reunies tribais ritualsticas (e que podem ser consideradas parte do domnio da
etnocenologia), como festas de colheita, ritos da primavera e funerais, eram acompanhadas,
na maioria das vezes, por instrumentos membranofones1. O drama da Idade Mdia, em uma
evoluo que durou aproximadamente quatro sculos, experimentou muitas convenes que
se tornaram lugar comum no teatro renascentista italiano e ingls. Na Commedia dellarte a
msica colaborava com a ao e havia interferncia musical antes e depois da pea, e o teatro
elisabetano j inclua msica ao vivo, acompanhando canes ou acentuando a atmosfera de
uma cena.
Atualmente, a explorao das mltiplas possibilidades da trilha sonora pode ser
considerada uma forte tendncia no panorama internacional das artes do espetculo no mundo
contemporneo. Por exemplo, espetculos de circo que, com mais que uma orquestra
tradicional, experimentam outras formaes musicais e tecnolgicas, em estreita associao
com diversos usos da iluminao e da virtuose musical, seja com o uso de trilha sonora
executada ao vivo, como no caso do Cirque du Soleil, seja com trilha sonora gravada, como
no caso do Circo Tihany. Do mesmo modo, artes do espetculo mais associadas diretamente
msica ao vivo em espaos especiais, como a dana e a pera, tm explorado seu repertrio
musical, sempre revisto e renovado, sobretudo pelos concertos musicais. Mas talvez seja no
teatro (com destaque para o teatro de animao), arte do espetculo menos explicitamente
associada msica, que se tenha revelado essa tendncia de explorao da trilha sonora,
inclusive tambm musical.
1 Categoria de instrumentos que produzem o som atravs da vibrao de membranas distendidas, como os tambores.
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Os profissionais da msica de concerto, da pera e da dana tm produzido farto
material de pesquisa, gerado a partir dos corpora de partituras, dramaturgias e coreografias
consolidados historicamente. Mesmo sobre o novo circo, comeam a aparecer registros e
estudos, mas, sobre o teatro, que j tem at motivado investigaes acadmicas, h pouca
produo. J, particularmente sobre o de animao, at o presente, no encontrei nenhuma
pesquisa especfica nos bancos de tese da CAPES e da ABRACE2.
Assim nasceu a presente pesquisa, que teve por objeto um espetculo de teatro de
animao de personagens antropomrficos e zoomrficos, do GRUPO A RODA DE
TEATRO DE BONECOS, do qual tenho feito parte j h 13 anos, como msico convidado e,
depois, integrante permanente, em Salvador, Bahia, Brasil. O grupo tem-se destacado pela boa
receptividade de pblico e crtica, com diversas premiaes em nvel local e nacional, alm de
excurso internacional, e representa bem a tendncia contempornea de explorao e
experimentao expressiva da trilha sonora.
Considerei que a anlise reflexiva sobre o processo de criao da trilha sonora que
compus para um dos nossos espetculos, mais exatamente O Pssaro do Sol (vencedor do
Prmio Braskem de Teatro 2010, na categoria Melhor Espetculo Infanto-Juvenil, tendo
tambm recebido a indicao de Melhor Direo Musical, na Categoria Especial), poderia
constituir uma contribuio para o desenvolvimento das artes do espetculo na Bahia, onde o
grupo tem mantido constante produo, reconhecida e premiada. O meu envolvimento com o
GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS me permitiu o exerccio da competncia
nica de j dispor de acesso a importante conjunto de informaes, que puderam se constituir
em corpus desta pesquisa na rea das artes cnicas.
O desejo, por outro lado, de ampliar minhas vivncias de criao de trilhas sonoras
com outros grupos teatrais, que motivou, em parte, o presente trabalho, se beneficiou,
portanto, da compreenso de uma experincia j realizada, ainda que apenas no mbito do
teatro de animao.
A trilha sonora est presente em espetculos de sombras ou bonecos no Oriente. Em
Bali, a cena acompanhada pelo quarteto de metalofones gendr3. Na tradio bunraku
japonesa, o shamisen que marca o ritmo da narrativa. Com bonecos inspirados no bunraku e
2 Por exemplo, nas publicaes de trabalhos apresentados na ABRACE, a expresso trilha sonora aparece apenas associada a outros tipos de espetculo, de teatro e de dana (trs ocorrncias mais explcitas, dentre as quais a dissertao de mestrado Trilha sonora ou no: eis a questo, de Marcos Chaves, no Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas UFRGS). No banco de teses da CAPES, foram exibidos 89 resultados, nenhum especfico para teatro de animao. 3 Gendr significa metalofone e gendr wayang a expresso completa para nomear o conjunto que acompanha o teatro de sombras balins. Wayang quer dizer boneco. Logo, gendr wayang metalofones para bonecos.
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sombras inspiradas no teatro balins, o GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS
segue a linha de cena/narrativa intimamente interligada msica, o que espelha os modelos
orientais mencionados, tanto pela presena quase contnua do elemento sonoro/musical,
quanto pela natureza preponderantemente acstica dos instrumentos musicais utilizados,
como violino, flautas, percusso, apitos, chocalhos e sinos, alm do canto. Com frequncia, o
texto muito reduzido na cena e justamente a que a msica se metamorfoseia na voz e
esprito dos personagens ou traduz a ambientao emocional da situao dramtica. Nos anos
em que trabalhei como compositor para o GRUPO, aprendi a explorar e adaptar esse modelo
de construo musical s necessidades deste, e, nesta pesquisa, analisei e descrevi esse
dilogo. As seguintes questes nortearam a minha anlise reflexiva:
Como se deu o processo criativo da trilha sonora para o espetculo de teatro de
animao O Pssaro do Sol, do GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS?
Qual foi o impacto da incluso da trilha sonora no processo de representao do
espetculo?
Lvio Tragtenberg (1999, p.21) afirma:
A msica de cena um poderoso meio de narrativa, resultado de um repertrio especfico desenvolvido a partir de interaes entre o verbal, o sonoro e o gestual. De incio, podemos reconhecer a sua dupla identidade como veculo de smbolos abstratos e referenciais, ao que encontra na abstrao e na associao os seus espaos de imaginao sensorial.
Essa explicao sugere que a msica de cena s se estrutura plenamente no contato do
elemento musical com o texto dramatrgico (o verbal) e a interpretao dos atores-
animadores (o gestual). com a interao desses componentes, no fazer musical para o teatro,
que surge esse repertrio especfico de som vinculado imagem e ao, visto que h a
necessidade de significar a msica a partir do que pedem o texto e a cena, cabendo ao
compositor investigar materiais sonoros (como instrumentos, timbres e efeitos), criar
melodias, harmonias e ritmos, referenciando-os com o imaginrio do espectador que ter a sua
leitura individual da proposta cnica. A msica pode determinar o gesto, a manipulao,
assim como o que acontece na manipulao pode levar o compositor a adaptar uma frase
meldica ou um ritmo ao contedo e significado da cena. Do contrrio, tratar-se-ia de msica
para escuta, desprovida da preocupao com essas inter-relaes.
Roberto Gill Camargo (2001, p.101) diz que [...] no teatro, o som no apenas um
elemento que traz informaes sobre tempo, espao e ao, mas tambm um elemento
expressivo. um fato em que, muitas vezes, a trilha sonora usada de maneira ornamental,
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9
ora como paisagem sonora, ora como atmosfera e tambm como disparador emocional4 como
quando, por exemplo, se quer aumentar a carga dramtica da cena, elevando o volume da
msica ou introduzindo um acorde dissonante que incomoda ou angustia o espectador ( o
que acontece na famosa cena da ducha do filme Psicose de Alfred Hitchcock, de 1960, se
transpusermos essas afirmaes para o universo do cinema). Outras vezes, ela conta a histria
junto com a cena, quando simboliza um personagem ou uma situao atravs de um
Leitmotif5, como acontece na pera, ou seja, quando a sua construo se baseia na prpria
construo dos personagens e momentos-chave de um espetculo. Procurei, justamente,
explorar a funo dramatrgica da trilha sonora, ao no consider-la apenas como elemento
ornamental de uma realidade cnica, pois a msica, por si, tem a capacidade de convencer e
narrar, alm de servir de adorno ou fio condutor de emoes.
Uma msica pode nos trazer tristeza ou alegria, independentemente de estar associada
ao teatro, porm, na cena, ela potencializa a ao dramatrgica, na medida em que participa
da histria, como, por exemplo, ao utilizar sons harmnicos de um violino para criar uma
atmosfera de sonho, fantasia ou devaneio ou mesmo simbolizar o mundo psicolgico de um
personagem mentalmente transtornado. Mesmo na ausncia do personagem que encarna essa
msica assim tecnicamente (no sentido de que criada propositadamente para atingir um
objetivo, no caso, aqui, dramtico) pensada, quando ela entra no contexto cnico, representa e
personifica esse personagem, e isso pode ser considerado como o que proponho ser uma
dramaturgia musical. Em O Pssaro do Sol, o som, no caso a trilha sonora, no apenas
decorou a cena, mas tambm participou ativamente na criao da dramaturgia ao intensificar,
compactar, contrastar ou comentar musicalmente a trama e/ou as aes cnicas do espetculo.
Tambm tencionei, com esta pesquisa, alm de afirmar a funo dramatrgica da trilha
sonora e desloc-la do seu lugar supostamente ornamental num espetculo, confrontar o meu
conceito de funo e uso da msica no teatro de animao com o conceito formulado pela
diretora do espetculo, Olga Gomez, e de um dos atores-animadores, Fbio Pinheiro, eleito
pela sua experincia e maior tempo no grupo. Ademais, minha opo de trabalhar com essa
temtica tambm refletiu a necessidade que senti em contribuir com a produo de
conhecimento sobre o processo de criao de dramaturgia sonora para teatro de animao,
mais especificamente.
4 Em ingls, o substantivo underscoring: destaque (traduo minha) ou o verbo underline: sublinhar (traduo minha) definem essa situao mais precisamente que em portugus. 5 As palavras em negrito so termos musicais, explicados no Glossrio que se encontra no final da dissertao.
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10
O GRUPO A RODA DE TEATRO DE BONECOS ou A RODA TEATRO DE
BONECOS foi criado em 1997, pela iniciativa de quatro artistas: Olga Gmez, Marcus
Sampaio, Stella Carrozzo e Fbio Pinheiro. Sua trajetria inclui viagens de pesquisa e
participao em diversos festivais internacionais, como o Festival Internacional de Teatro de
Bonecos de Olinda (1999), o 5th Toy Theater Festival em Nova Iorque (2000) e o XI Festival
de Teatro de Bonecos (2001) em Curitiba, Paran. O grupo detentor de vrias premiaes,
de 2000 a 2012, como, entre outros, o Prmio Copene de Teatro 1999, o Prmio Funarte de
Teatro Myriam Muniz, recebido por quatro anos: 2006, 2007, 2009 e 2012, e o Prmio
Braskem de Teatro 2010, na categoria de melhor espetculo infanto-juvenil, pela pea O
Pssaro do Sol, de bonecos e sombras.
Um momento lembrado com muito carinho pelo grupo foi o contato estabelecido com
a doutora e professora da Universidade de So Paulo (USP), Ana Maria Amaral, durante um
curso por ela ministrado na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Esse
encontro de cinco pessoas com interesses e aspiraes artsticas comuns pode ser considerado
um marco na trajetria do A RODA TEATRO DE BONECOS, e Olga comentou que o
contato com Ana Maria Amaral permitiu entender que h um lugar de saber e estudo dentro
do teatro de animao, toda teoria permite que seja aceita ou no, mas um antes e depois
(Salvador, entrevista em 3/7/2013).
Em 2008, a troupe participou do projeto Palco Giratrio, percorrendo 15 Estados
numa turn nacional com a montagem Amor & Loucura, a convite de Ana Paolilo, gestora do
Teatro SESC Pelourinho, em Salvador, Bahia.
A RODA tambm tem promovido atividades didticas como a Oficina de Animao
(2007) e o Laboratrio de Teatro de Sombras (2010), ambos atravs do Prmio Funarte de
Teatro Myriam Muniz, compartilhando, assim, a experincia adquirida em sua pesquisa,
laboratrios, ensaios e apresentaes ao longo dos anos. O repertrio do A RODA TEATRO
DE BONECOS se constitui de cinco montagens: Histrias da Caixa (1998), A Cobra Morde
o Rabo (1999), O Combate (2000), Amor & Loucura (2006) e O Pssaro do Sol (2010). Os
primeiros quatro espetculos utilizam a tcnica da manipulao direta e o ltimo, a linguagem
do teatro de sombras. Atualmente Olga Gmez e Marcus Sampaio esto frente da
companhia na organizao das oficinas e produo dos espetculos.
A msica de cena sempre esteve presente na minha vida, antes mesmo de iniciar
oficialmente os meus estudos musicais. Quando criana, costumava assistir pela televiso, no
antigo programa Concertos para a Juventude, exibido somente aos domingos, montagem do
bal O Lago dos Cisnes com solistas e corpo de baile do Teatro Bolshoi, e me encantava com
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11
a perfeita simetria entre a msica de Tchaikovsky e a dana. Creio que nesse momento, sem
ter conscincia do fato, se iniciou o meu caminho na criao de trilhas sonoras, cuja
concretizao se daria muitos anos mais tarde, quando fui convidado pelo GRUPO A RODA6
para tocar no espetculo A Cobra Morde o Rabo, em 2000. Nessa poca, j era violinista
profissional e msico efetivo da Orquestra Sinfnica da Bahia (OSBA), que me proporcionou
tocar em vrios espetculos de cena com msica, como peras e at mesmo, quem diria, com
o Bal Kirov e o Bal Bolshoi!
Atravs do Maestro Joo Omar7, autor da trilha sonora de A Cobra Morde o Rabo
(1999) para violino e percusso, fui introduzido no GRUPO A RODA para substituir o
violinista ento em exerccio. De Joo Omar executei tambm, um ano depois, a trilha do
espetculo O Combate (2000), para violino solo. Amor & Loucura (2006) j teve a msica
composta por mim e, em 2010, escrevi a trilha sonora (gravada em estdio para ser utilizada
no espetculo) de O Pssaro do Sol, que me despertou o desejo de empreender a presente
pesquisa. A experincia adquirida como compositor de msica de cena contribui imensamente
para minha carreira como msico, pois me brinda com uma percepo global, no somente
aural8 a respeito de uma manifestao sonora, seja ela musical ou apenas acstica.
Hoje, alm de perceber e poder analisar as vrias nuances em msica, sinto dispor de
habilidades a mais: a de traduzir em sons as imagens de uma cena e, em sentido inverso,
tambm estimular o espectador a criar imagens mentais a partir da msica, quando escrevo
uma trilha. Alm disso, o trabalho em equipe, mais intenso no teatro, me proporcionou uma
nova compreenso acerca do processo criativo, porque, no GRUPO A RODA, as decises so
tomadas em conjunto, o que confere aos artistas um maior exerccio da tolerncia e uma mais
acurada capacidade de anlise dos problemas que podem surgir durante a preparao de uma
montagem. Assim, a curva que me desviou do caminho da msica me levou a um destino
feliz: graas experincia com o teatro de animao do GRUPO A RODA, transformei-me
em um novo artista, um artista mais verstil, mais atento e com maior conscincia esttica.
Sou, dos cinco filhos de Walter Smetak9, o caula e o nico a ter trilhado o caminho
da msica profissionalmente. Muitas vezes, escutei-o discorrer sobre o poder mstico do som
6 A partir daqui, para maior fluidez da escrita, utilizarei GRUPO A RODA ou simplesmente A RODA quando me referir a essa companhia. 7 Joo Omar filho do msico e pesquisador Elomar. 8 Verbete que passou para o ingls do latim auris, que pertence aos ouvidos. Apesar de j ser muito utilizado por ns na acepo de auditivo, ainda no consta nos dicionrios de lngua portuguesa. 9 Anton Walter Smetak (1913-1984): violoncelista, compositor e pesquisador suo, naturalizado brasileiro. Smetak explorava a relao do som com a espiritualidade. Criou mais de cem instrumentos musicais no tradicionais. Escreveu livros, peas de teatro e coreografias.
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e como, com os seus alunos, explorava a transformao espiritual que a experincia sonora
poderia efetuar no homem. O entendimento musical, para Smetak, era metafsico e
transcendia a anlise tcnica e estrutural da msica. Suas prticas, mais voltadas para o
fenmeno do som em si, com os novos instrumentos que criou (inclusive alguns coletivos e
performticos, como A Grande Virgem, uma flauta para ser tocada por 22 pessoas) e a extensa
utilizao do sistema de microtons, propunham um despertar, a construo de uma nova
viso do fazer musical. Analogamente, a msica de cena tambm prope uma nova
aproximao, na medida em que pode suscitar emoes a partir de estmulos sonoros, frases
ou perodos musicais aliados imagem, pois sem ela no se completa, e essa foi a razo pela
qual escolhi o Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas (PPGAC) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) para elaborar esta dissertao, pois a msica do Pssaro do Sol foi
concebida para a cena e lhe cabe a possibilidade de ser apenas escutada, mas lhe faltaria sua
contraparte, seu alter ego, a imagem. Jean-Jacques Lemtre reitera essa opinio quando fala
sobre a msica que compe para o Thtre du Soleil:
H uma verdadeira presso do pblico, que compra o disco em parte para poder lembrar-se do espetculo, mas acho que, no disco, falta algo fundamental, falta o solista. Falta o ator. como se a gente escutasse a 5 de Beethoven sem a parte superior dos violinos. (apud PICON-VALLIN, 1995, p. 9, traduo minha).10
No teatro de animao do GRUPO A RODA acontece o mesmo, msica e imagem
trabalham em duo, como se a imagem fosse a primeira voz e a msica a segunda, mas ambos
movimentam-se em contraponto, complementando-se e invertendo os papis, em um dilogo
mais dinmico que a simples relao melodia/acompanhamento.
A busca de materiais que servissem como guia para a minha pesquisa me levou a
autores que descrevem o processo de criao de trilha sonora para teatro e audiovisual, mas
no encontrei trabalhos especficos para trilha em teatro de animao. Assim, constatei certa
carncia de referncias nesse mbito. Felizmente, no universo da msica para cena com
atores, deparei-me com trs autores que se revelaram fundamentais para a minha pesquisa.
So eles: Livio Tragtenberg, Roberto Gill Camargo e Jean-Jacques Lemtre.
Livio Tragtenberg um compositor experimental e saxofonista brasileiro, nascido em
So Paulo. Escreve msica para teatro, vdeo, cinema e instalaes sonoras. Seu catlogo
10 Il y a une vraie pression du public qui achte le disque em partie pour pouvoir se rappeler le spectacle, mais je pense que dans le disque, il manque quelque chose de fondamental, il manque le soliste. Il manque lacteur. Cest comme si on coutait la Cinquime de Beethoven sans la partie suprieure des violons.
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13
inclui vrias obras instrumentais, sinfnicas, eletroacsticas e tambm pera. autor dos
livros Artigos Musicais e Msica de cena (Editora Perspectiva) e Contraponto, publicado
pela EDUSP. Foi professor de composio musical no Departamento de Msica da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), na Universidade Livre de Msica (ULM) e
na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)11. Em seu livro Msica de Cena
(1999), Tragtenberg discorre sobre a msica como instrumento de dramaturgia, o que nega a
suposta neutralidade da interveno do compositor ao criar msica para espetculos teatrais,
ou mesmo diversas outras linguagens, como cinema, televiso, vdeo e mdias eletrnicas.
Atravs de exemplos tirados de sua prpria experincia e aliando, de modo inseparvel, teoria
e prtica, aborda o conjunto de elementos que possibilitam uma ressignificao do material
musical ou de sonoplastia em favor de um novo produto, a msica de cena, que age no
espetculo de maneira global, utilizando como referncia alm dos contedos do texto, outras
dimenses, como explica:
No basta msica de cena ilustrar uma situao dramtica a partir dos elementos fornecidos pela narrativa verbal. preciso que ela explore os diferentes ngulos e que interfira com suas qualidades especficas na encenao como um todo, operando basicamente com os parmetros de espao e tempo, densidade e velocidade da cena e, finalmente, na curva dramtica. De forma que sejam identificadas e exploradas de maneira diagonal as diversas camadas que compem o fenmeno cnico. (TRAGTENBERG, 1999, p.22).
Tragtenberg (1999) tambm aborda o aspecto multifuncional que comeou a se
infiltrar no trabalho do compositor a partir do ponto em que direciona a sua criao para a
cena, transformando a sua linguagem criativa e desempenhando novos papis como os de
intrprete ao executar sua prpria trilha, produtor musical ao prover o material (tcnico e
humano) necessrio para a realizao de sua msica, dramaturgo sonoro quando cria msica
direcionada para a cena em colaborao e cooperao com o diretor teatral, numa concepo
outra que a msica para deleite dos ouvidos e sound designer12, funo que se mescla com a
de operador de som quando, alm de criar a dramaturgia sonora, tambm opera o som durante
a produo e apresentaes do espetculo. Para mim, esse aspecto muito significativo, uma
vez que, durante o processo de criao da trilha sonora do Pssaro do Sol, me encontrei em
semelhante situao.
11 Disponvel em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Livio_tragtenberg >. Acesso em: 23 maio 2012 s 22h10min. 12 Desenhista de som (traduo minha).
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14
Roberto Gill Camargo professor da Universidade de Sorocaba, diretor teatral e
dramaturgo. Publicou os livros Sonoplastia no Teatro (1986), A Funo Esttica da Luz
(2000) e Som e Cena (2001). Apaixonado pelo cinema, Camargo conta em seu livro Som e
Cena (2001) como as imagens e as trilhas sonoras dos filmes a que assistiu, principalmente na
dcada de 60, fazem parte do seu histrico e, quando comeou trabalhar com teatro, por volta
de 1967, manteve a influncia do cinema nas suas produes, sobretudo na iluminao e na
sonoplastia. Som e Cena, alm de fazer uma abordagem histrica do uso do som no teatro e
examinar como acontece a percepo do elemento sonoro na cena, oferece amplo material de
reflexo e anlise no que concerne utilizao do som e da msica em um espetculo, seja
como referncia, seja como expresso, e d vrias amostras desse emprego de msica e
sonoplastia, muitas delas oriundas da prpria experincia prtica do autor.
Jean-Jacques Lemtre multi-instrumentista e cria a msica para o Thtre Du Soleil:
Ainda criana, Jean-Jacques Lemtre aprendeu a tocar, sozinho, vrios instrumentos. Aos 12 anos de idade se apresentava com bandas parisienses de rock, cantava e tocava saxofone e clarinete. Ele aborda perodos e estilos da msica atravs do contato direto com certos instrumentos tpicos no intuito de alcanar um entendimento profundo, vindo de dentro, pode-se dizer. Paralelamente, comeou um vasto e abrangente treinamento acadmico, englobando canto gregoriano na Academia de Loretto, clarinete, saxofone, composio e construo de instrumentos musicais no Conservatrio de Paris, e graduou-se com muitas honras. (LEMTRE, 201313).
Em 1979, uniu-se a Ariane Mnouchkine14 no Thtre du Soleil, com a tarefa de
compor a msica para a montagem Mphisto, daquela companhia. Essa parceria tem durado
at os dias de hoje e impossvel dissociar o nome de Jean Jacques Lemtre do Thtre Du
Soleil. Foi nesse ambiente que Lemtre encontrou o campo para dar o melhor de si no tocante
inveno e experimentao musical. Seu processo de composio para a msica do Thtre
Du Soleil nico. Jean-Jacques Lemtre no procura copiar estilos e tradies, antes, sim,
inspira-se neles e os transpe, colecionando instrumentos do mundo inteiro e criando outros
tantos inspirados na Antiguidade ou mesmo modernos, e revela a sua percepo sem a
preocupao de estabelecer moldes ou definies. Para Lemtre, o que vale a essncia, a
origem.
13 Jean-Jacques. Biography. In: JEAN JACQUES LEMETRE: Les Mille et... Instruments. Disponvel em: < www.artworksberlin.de/englisch/Lem%EAtre/index.html >. Acesso em: 14 fev. 2013 s 12h39min. Traduo minha. 14 Ariane Mnouchkine fundadora do Thtre Du Soleil.
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Pela sua grande importncia no mbito do teatro de animao, seja como
pesquisadores, seja como encenadores, cito ainda dois nomes: Ana Maria Amaral e Valmor
Beltrame, pois, ainda que a trilha sonora seja o foco deste trabalho, a construo e idealizao
de espetculos de animao, como as experienciadas e exploradas por esses autores,
apresentam-se como contraparte cnica, indissocivel do processo de criao musical.
Ana Maria Amaral referncia em teatro de animao no Brasil. Professora titular da
Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA/USP), orienta pesquisas
ligadas ao teatro de bonecos, teatro de animao, teatro de objetos e teatro de imagens,
domnios nos quais tem contribudo solidamente, sobretudo como difusora das novas
tendncias no teatro de formas animadas. Sua tese de doutoramento considerada como um
dos maiores levantamentos em lngua portuguesa sobre a interconexo das formas animadas.
Por volta de 1970, fundou o grupo O CASULO BonecObjeto (do qual permanece como
diretora at hoje), detentor de vrios prmios pela excelncia de seus espetculos: Fantoches e
Fantolixos (Trofu Mambembinho), Palomares (Prmios Mambembe e Governador do
Estado), Z da Vaca (Prmio da Associao Paulista de Crticos de Arte, APCA) e
Dicotomias-Fragmentos Skizofr (Prmio no Festival Internacional de Praga), entre outros.
Seus livros Teatro de Formas Animadas (So Paulo, Edusp, 1993), Teatro de Animao (So
Caetano do Sul SP, Ateli Editorial, 1997) e O Ator e seus Duplos (So Paulo, Edusp,
2002) so referncias fundamentais para todos os que se dedicam ao teatro de formas
animadas, seja com objetos, seja com imagens.
Valmor Nini Beltrame professor e pesquisador no Programa de Ps-Graduao da
Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), no Mestrado e Doutorado em Teatro,
desde 2002. Professor de Teatro de Animao daquela universidade h mais de vinte anos,
tambm o organizador do Seminrio de Pesquisa sobre Teatro de Formas Animadas em
Jaragu do Sul, Santa Catarina, desde 2004. Beltrame tem formao em Filosofia pela
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e Mestre e Doutor em Teatro pela Escola de
Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA/USP), com especializao no
Institut International de la Marionnette, na Frana, em 1982. tambm editor da Min-Min:
Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, criada em 2005. Organizou livros
importantes para o teatro de animao como: Teatro de Bonecos: Distintos Olhares Sobre
Teoria e Prtica (Florianpolis: Udesc, 2007) e Teatro de Sombras: Tcnica e Linguagem
(Florianpolis: Udesc, 2005). Entre suas publicaes, constam: Poticas Teatrais: Territrios
de Passagem (Florianpolis: Desing Editora/Fapesc, 2008) e O Ator no Boi-de-Mamo:
Reflexes sobre Tradio e Tcnica (artigo em Min-Min, n.3 Jaragu do Sul, Scar/Udesc,
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2007), alm de inmeros outros artigos. Sua pesquisa aborda as diversas formas de teatro de
animao e sublinha a figura do ator-animador no teatro de hoje. Beltrame contribui para a
divulgao e compilao histrica sobre teatro de marionetes popular no Brasil como o Boi-
de-Mamo, Mamulengo, entre outras tradies. Tambm investiga as transformaes que os
espetculos de teatro de animao no Sul do Brasil sofreram nos ltimos anos, quais aspectos
e procedimentos permaneceram e quais foram deixados de lado.
Outros autores contriburam significativamente para esta pesquisa, como: Jos Miguel
Wisnik na histria da msica, Robert Jourdain no domnio da psicoacstica, Daniel
Barenboim e Patrice Chreau na pera wagneriana. Batrice Picon-Vallin com suas
entrevistas trupe do Thtre du Soleil e escritos no mbito da teatrologia.
Tambm encontrei trabalhos acadmicos significativos no domnio da msica para a
cena, entre os quais as dissertaes de mestrado de Davi de Oliveira Pinto e Marcos Chaves e
a tese de doutorado de Jacyan Castilho.
Com base nas teorias de Livio Tragtenberg, Roberto Gill Camargo e Jean Jacques
Lemtre quis demonstrar paralelos entre as concepes/criaes de msica para cena desses
artistas e minha prpria dramaturgia sonora, analisando as solues musicais ou de
sonoplastia que julguei mais adequadas utilizao para a cena de teatro de animao durante
o perodo de criao da trilha do espetculo O Pssaro do Sol, do GRUPO A RODA.
Adicionalmente, apoiado no pensamento de Jos Miguel Wisnik, Robert Jourdain, Daniel
Barenboim e Patrice Chreau, tentei reafirmar a importncia da msica como elemento de
dramaturgia e de catalisador de emoes, dando exemplos de vrios de seus recursos tcnicos
e, s vezes, ressaltando tambm aspectos histricos.
As entrevistas me permitiram colher impresses da diretora do espetculo, Olga
Gmez e do ator-animador Fbio Pinheiro15, de como foi, na sua percepo, o processo de
criao da msica para O Pssaro do Sol, ou seja, como cada um recebeu e interagiu com a
informao musical proposta pelo diretor musical, qual foi o papel da trilha na dramaturgia.
Alm disso, as entrevistas serviram como ferramenta indispensvel para rememorar a feitura
no apenas da trilha, mas tambm do espetculo e estabelecer uma sequncia cronolgica das
aes empreendidas para se atingir um resultado global meritrio.
Organizao:
No Captulo 1, demonstro paralelos do meu processo de criao com os conceitos
elaborados por Livio Tragtenberg, Roberto Gill Camargo e Jean Jacques Lemtre. Tambm
15 Fbio Pinheiro ator-animador e trabalhou, anteriormente, em outras montagens dA RODA, com bonecos.
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argumento acerca do poder da msica sobre o espectador, como ela induz a um sentimento,
um estado de esprito.
No Captulo 2, examino os elementos tcnicos musicais para a construo da
dramaturgia sonora de O Pssaro do Sol, ou seja, como se deu o processo criativo, o fazer a
trilha. Dialogo com Mircea Eliade ao abordar o contedo mtico da lenda. Com Ana Maria
Amaral, tento relacionar a lenda e a conscincia histrica do brasileiro com relao ao
indgena. No tocante s sombras, procuro estabelecer correspondncias entre a Indonsia, sua
religio e cultura, com o sincretismo e a cultura afro-baianos.
No Captulo 3, a partir das respostas obtidas com o questionrio, relato a viso da
diretora e de um ator-animador acerca da incluso da trilha sonora no espetculo O Pssaro
do Sol, como e em que sentido a msica transformou o espetculo. Abordo, ainda, o impacto
ao receber a trilha.
Nas Concluses, verifico a funo dramatrgica da trilha sonora do espetculo O
Pssaro do Sol, ao confrontar as teorias encontradas no dilogo com os autores e as respostas
obtidas no questionrio, ou seja, com a viso da diretora e de um dos atores-manipuladores.
Tambm reflito sobre a possibilidade de futuros desdobramentos, propondo a continuidade da
pesquisa num futuro doutoramento, alm de registrar a importncia da pesquisa em descobrir
a metodologia do meu prprio processo criativo
Consta, ainda, desta dissertao, um pequeno Glossrio de termos tcnicos utilizados
na trilha sonora do espetculo O Pssaro do Sol, mencionados na pesquisa. Tais termos
aparecem destacados em negrito no texto deste trabalho.
Nos Apndices, encontram-se: o Memorial descritivo do curso; fotografias dos
instrumentos utilizados; partituras (esboos) e CD da trilha sonora.
Nos Anexos, esto: fotografias do espetculo; o DVD do espetculo O Pssaro do Sol;
o livro produzido no projeto.
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1 A FUNO DRAMATRGICA DA MSICA
1.1 A MSICA QUE PARTICIPA DA CENA
No contexto das artes do espetculo, msica e cena dialogam em diferentes formas: no
bal clssico, a msica traa o caminho da dana, contnua e indissociavelmente, tanto que, ao
mencionarmos O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, muitas vezes pensamos de imediato na
msica e, em seguida, no bailado. No circo, a msica anuncia as entradas e sublinha
momentos de tenso e perigo, como no nmero do atirador de facas, onde o ratapl do tambor
faz o nosso corao palpitar com o mesmo furor. Numa pea, a trilha sonora, alm de criar
climas ou servir de terreno sonoro sobre o qual a ao decorrer, participa do drama, contando
a histria junto com a cena. Trilha sonora um termo que tende a qualificar diferentes
processos: pode designar pesquisa sonora, sonoplastia, composio musical, repertrio,
ambientao, desenho de som, paisagem sonora, textura sonora e at mesmo coletnea de
materiais musicais e/ou de sonoplastia para utilizao em um espetculo. H, em todos esses
termos, certo distanciamento da funo dramatrgica da msica para a cena. O termo msica
de cena, utilizado por Livio Tragtenberg (1999), se aproxima mais de uma definio de
msica relacionada com o teatro. Neste trabalho, apesar de utilizar a palavra trilha ou a
expresso trilha sonora, tenho uma preferncia pelo termo dramaturgia sonora, j
mencionado por Camargo (2001), ao discorrer sobre a inter-relao, no palco, da msica com
os diferentes elementos que compem um contexto cnico, sobretudo quando me refiro ao
meu prprio processo de criao da trilha para O Pssaro do Sol. Tragtenberg (1999) tambm
define o compositor de cena como o dramaturgo do som, o que reforou a minha inclinao
para o conceito adotado. Em O Pssaro do Sol, apesar da sonoplastia ter sido utilizada em
menor grau com relao msica, pela prpria linha esttica e preferncias do GRUPO A
RODA, ela esteve presente em momentos importantes e, por isso, julguei que o termo
dramaturgia sonora revela-se mais apropriado quando se abordam os processos de criao
da trilha para esse espetculo, pois engloba a msica e os eventuais efeitos ou interferncias
de carter extramusical utilizados na montagem.
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Assim como o conceito de trilha sonora adquiriu inmeras significncias, num
processo semelhante, o trabalho do compositor tambm se atualizou, e ele passou, ao longo
dos anos, a acumular funes como as de tcnico de som, intrprete, produtor musical e
desenhista de som, entre outras, como explicado na pgina 13 deste trabalho. Tragtenberg
(1999, p.38) aborda essa multiplicidade ao explicar que [...] no ato da composio j so
levados em conta elementos como o desenho no espao acstico, o tipo de equipamento para
a sonorizao desse espao e as funes desejadas, e ainda um planejamento da produo
musical [...]. Contudo, deve-se ter em mente que a responsabilidade primordial do
compositor de uma dramaturgia sonora seria tomar decises artsticas que construam a base
da atmosfera aural de toda a produo, atmosfera esta que possa dialogar com a cena de
maneira convincente. Para isso, msica, silncio e sonoplastia devem obedecer a critrios
estticos especficos como, entre outros, a escolha dos instrumentos musicais que sero
utilizados, uma linha meldica que se relacione com a temtica da montagem, uma dimenso
sonora apropriada ao espao cnico, onde se deve colocar msica, onde deve haver o silncio.
Tragtenberg (1999, p.26) sugere que [...] preciso ento, desde o incio, localizar e
conceituar tempo, espao e funo que o som e a msica iro desempenhar na encenao
[...]. Isso significa que de suma importncia considerar o contexto histrico, geogrfico e
tnico da montagem, assim como que finalidade ter a msica, se representar diretamente os
personagens (associando-se com eles sempre que aparecem) ou no e, se representam
diretamente, quais os instrumentos mais adequados para isso. Consciente desses aspectos,
para O Pssaro do Sol, cujo texto de Myriam Fraga conta uma lenda indgena brasileira,
escolhi instrumentos musicais que fizessem recordar o mundo amaznico: apitos, chocalhos e
guizos provenientes do Norte do Brasil, flautas doces soprano e contralto (pelo seu timbre
suave) e percusso de pequenas dimenses como pau de chuva e alguns brinquedos sonoros,
alm das palmas e batidas dos ps no cho. O ambiente sonoro assim idealizado reafirmou o
contexto de brasilidade, e o tnus da msica, de natureza predominantemente atemporal, sem
referncias estilsticas definidas, combinou com o tempo mtico da lenda, mais voltado para
uma genealogia primordial dos acontecimentos que a uma cronologia deles.
H diversas maneiras de abordar a criao de uma dramaturgia sonora. No que diz
respeito msica, ela pode ser moldada em um padro reconhecvel ou totalmente inventada
pelo compositor. Diz-se que toda msica derivante. Isto significa que uma obra musical,
produzida anteriormente, fonte de inspirao para outra msica, concebida em outro
momento da histria. Por exemplo: na produo musical de Heitor Villa-Lobos h muito do
pensamento e arquitetura musical de Johann Sebastian Bach. Intencionalmente ou no,
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possvel criar uma dramaturgia sonora no estilo de Mozart, Vivaldi ou Debussy. O que a far
nica no apenas a sensibilidade artstica do compositor como tambm a preciso com que
se encaixa no momento cnico. imprescindvel determinar que msica ou elementos
sonoros representam a realidade que se deseja atingir na cena (sobretudo na imagem, no caso
do teatro de animao). Msica em excesso ou com muitos elementos distrai o pblico e
interfere na compreenso do momento dramtico, onde sua funo seria justamente auxiliar o
entendimento do humor, ambiente, poca, lugar ou situao em questo, sem perturbar o
espectador. Camargo (1999) observa que a emoo da msica no deve superar a cena,
enfraquecendo o drama e incorrendo na pieguice melodramtica. Por outro lado, uma msica
pobremente concebida causaria sensao de incompletude. O que enriquece uma dramaturgia
sonora o quanto ela est, artstica e esteticamente, pensada para os padres da montagem
que ir acompanhar. Com relao msica de cena, Lvio Tragtenberg (1999, p.22-23)
afirma:
No basta msica de cena ilustrar uma situao dramtica a partir dos elementos fornecidos pela narrativa verbal. preciso que ela explore os diferentes ngulos e que interfira com suas qualidades especficas na encenao como um todo, operando basicamente com os parmetros de espao e tempo, densidade e velocidade da cena e, finalmente, na curva dramtica. De forma que sejam identificadas e exploradas de maneira diagonal as diversas camadas que compem o fenmeno cnico.
Cabe aqui ressaltar que uma dramaturgia sonora no tem por objetivo ornamentar um
espetculo, mas sim integr-lo e pr em valor suas qualidades, dialogando com seus
elementos cnicos que, por outro lado, tambm complementam o sentido musical e sonoro
constituindo uma experincia de enriquecimento e influncia recprocos. Como um figurino, a
msica veste o espetculo de uma carga emocional que ele no teria se fosse feito sem
recursos sonoros, seja de sonoplastia, seja de msica composta para cena ou de ambos. A
experincia teatral global: o texto, a interpretao (no caso aqui, a manipulao), o cenrio,
a luz, o figurino e a msica unem-se e ressignificam-se de modo a construir um todo cujos
diversos elementos, em sintonia, criam um novo produto que vem a ser a cena completa.
Sobre essa inter-relao de elementos Camargo (2001, p.19) relata:
O que se sabe, de fato, que o teatro uma arte que utiliza vrios recursos para se expressar e, que todos esses recursos, tanto os sonoros quanto os visuais (estes tambm advindos de outras artes, como a pintura, escultura e arquitetura) adquirem em cena uma outra configurao e requerem, do espectador, um novo olhar e uma nova escuta, no de quem v a pintura, l
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poesias ou ouve msica numa sala de concerto, mas de quem v e ouve teatro.
E Tragtenberg confirma na mesma direo:
O mesmo pode-se dizer da representao sonora, uma vez que nela o elemento sonoro um composto de diversas camadas qualitativas, cujo jogo de foras transcende as suas prprias naturezas como fenmenos acsticos, uma vez que agora est inserida num contexto narrativo para onde fluem signos de diferentes ordens. O elemento sonoro se v envolvido com uma funo referencial e com uma funo performativa. (TRAGTENBERG, 1999, p. 22).
Pode-se concluir da que a msica tambm adquire uma nova amplitude ao se
transformar em dramaturgia sonora, pois ela perde, em parte, o seu teor enquanto msica para
ser apenas escutada, ela tambm precisa ser vista, uma vez que se relaciona com a temtica
da montagem, as cores do cenrio e aqui, tratando-se de um espetculo de animao, com a
prpria esttica dos bonecos, forma das sombras e dimenso espacial do espetculo que a
trilha sonora espelha e pontua, quando considerados o tamanho dos bonecos ou sombras e o
espao cnico onde atuam. Isso pode significar que uma trilha para teatro de animao deve
ter uma massa sonora menor, a fim de contribuir com a encenao e no de interferir com
momentos de amplitude sonora alm do necessrio para essa modalidade de espetculo, com
bonecos e/ou sombras. Tragtenberg enfatiza a funo da localizao espacial da cena ao
compor a trilha para Hamlet, de Shakespeare:
[...] a msica de cena busca em seu prprio texto os meios expressivos que contemplem os diferentes registros presentes nas texturas dramticas da cena. [...] a marcha orquestral do exemplo 1 contemplou o requisito de localizao espacial, atravs de uma instrumentao em escala com a dimenso monumental do salo palaciano [...]. (TRAGTENBERG, 1999, p.33).
Encontro a um paralelo com a minha forma de conceber a dramaturgia sonora. No
Pssaro do Sol, considerei a dimenso dos bonecos e sombras para escolher a instrumentao
adequada, enquanto Tragtenberg levou em conta a dimenso da cena, no caso, a ambientao
palaciana e utilizou o ritmo de marcha e trompas (de sonoridade potente) para traduzir a
pompa da realeza.
A instrumentao da msica feita para O Pssaro do Sol foi essencialmente acstica e
delicada, produzida, como j disse, com instrumentos de timbre suave, como o violino, a
viola, flautas doces, apitos, pequena percusso (chocalhos, guizos, tambor pequeno) e poucas
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intervenes eletrnicas, com o propsito de acompanhar a esttica do grupo que utiliza
bonecos de madeira e sombras em couro, tambm delicados e, como os instrumentos,
construdos com matrias-primas orgnicas. Os elementos musicais devem dialogar com as
suas contrapartes cnicas, de modo a dar maior unidade e significado ao discurso cnico e, no
caso do teatro de animao, imagem que se apresenta na tela de projeo. No universo do
Teatro de Sombras, expresso artstica em que a visualidade o principal elemento de
composio, utilizo a palavra imagem para traduzir o que visto na cena (imagem visual),
em oposio ao que nela ouvido. Podemos tambm considerar que, fenomenologicamente, a
msica de cena aparece16 como imagem auditiva que completa a imagem visual, mas, ao
mesmo tempo, mantm significao prpria e independente. Jean-Paul Sartre (1985, p.46)
expe:
[...] a imagem um ato que visa na sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente atravs de um contedo fsico ou psquico que no ocorre propriamente, mas como representante analgico do objeto visado. (Grifo do autor, traduo minha).17
A trilha sonora como imagem auditiva proporciona a criao de imagens visuais a
partir de estmulos sonoros, numa dinmica ainda mais subjetiva, pois, por sua natureza
intctil, metafrica e onrica a msica no trabalha obrigatoriamente com correspondncias ou
analogias entre o objeto real e o que se elaborou como caracterizao posterior e mediada a
partir desse mesmo objeto (ausente), como no caso da imagem visual. A imagem mental
subjetiva criada a partir do estmulo sonoro imediata e, no raro, pessoal. O espectador
ouve, tem um sentimento ou sensao, e cria uma viso interna a partir da msica. Ao mesmo
tempo, o ouvido tambm solicita uma confirmao visual do que absorve em som, o que
revela, na imagem auditiva, um mago de visualidade. Contudo, por razes de praticidade,
utilizo, nesta dissertao, os termos imagem e msica/trilha ou dramaturgia sonora referindo-
me, respectivamente, a imagem visual e imagem auditiva.
Tambm procurei empregar o mximo de msica e o mnimo de sonoplastia. Poderia
ter usado o canto de uma verdadeira ave para simbolizar o pssaro do sol, ou um apito
indgena, mas preferi faz-lo com msica, atravs de uma pequena escala modal, seguida de
16 O verbo grego [phinesthai], aparecer, originou o substantivo [phainmenon], algo do mundo fsico ou psquico que se apresenta nossa mente, consciente ou inconsciente. 17 [...] limage est un acte qui vise dans sa corporit un objet absent ou inexistant, travers un contenu physique ou psychique qui ne se donne pas en propre, mais titre de reprsentant analogique de lobjet vis.
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notas curtas em staccato, no violino. Foi uma opo pessoal. Pr alguns recursos tcnicos de
msica, por exemplo, no acompanhamento, significa no deixar a inteno sonora to bvia,
na superfcie da msica, o que talvez acontecesse se o mesmo recurso fosse utilizado
diretamente na melodia. A inteno um apelo ao subconsciente do espectador j que as
imagens vm em primeiro plano. A msica intensifica a emoo oferecida pela imagem. A
sonoplastia est presente em alguns momentos, sim, quando a msica seria imprecisa demais
ou quando a sua utilizao no incorre no risco de tornar-se um clich, excessivamente bvio.
Neste trabalho, a nfase dada, sobretudo, funo dramatrgica da trilha sonora, por
ser mais significativa num espetculo. Contudo, seria interessante, tambm, fazer referncia a
algumas outras funes da trilha sonora, a meu ver menos expressivas, mas muito presentes
nas montagens de modo geral, como a funo ornamental e a funo emotiva, disparadora.
Daniel Barenboim comenta acerca da msica de Wagner:
Em Wagner, atravs dos meios sonoros, existe uma descrio dos objetos (a natureza, o rio ou a floresta), dos acontecimentos e dos personagens (a descrio de um estado de esprito). So trs meios diferentes, que ele utiliza a fundo, de modo premeditado. Acho que existem momentos em que a msica a expresso mais ntima, mais profunda dos sentimentos. Mas tambm h momentos em que a msica puramente descritiva. (BARENBOIM, 2010, p. 101).
A cada uma dessas descries, justamente, corresponde uma funo da trilha sonora: a
descrio dos objetos (natureza, rio, floresta) seria a funo ornamental, funcionando como
paisagem sonora, refora a imagem, mas no necessariamente conduz a um estado emocional.
A funo emocional ou disparadora englobaria a descrio dos acontecimentos, pois j tem
o artifcio de induzir um sentimento como, por exemplo, quando, para provocar tenso, se tem
como fundo musical de uma cena uma msica com harmonia de acorde diminuto, que cria
suspense. Para Camargo, o som pode criar dramaticidade, clima ou atmosfera dependendo da
maneira como sero utilizados os recursos sonoros ou musicais: Enquanto a dramaticidade
sonora se obtm atravs de mudanas bruscas e oposies, o clima ou atmosfera sonora se
consegue atravs do equilbrio e da permanncia (CAMARGO, 2001, p. 122). As oposies
se operam atravs de elementos musicais como timbre, aggica e figurao rtmica. J a
permanncia seria conseguida com a escolha de um ambiente sonoro mais neutro, de carter
mais atmosfrico, como a msica impressionista de Debussy. A funo dramatrgica surge
quando a msica representa o personagem, seu aspecto psicolgico, o que ele significa na
cena, o Leitmotif. na funo dramatrgica que a msica fala pelo personagem, onde os dois
so a mesma coisa. Seria impreciso dizer que a trilha do Pssaro do Sol foi exclusivamente
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dramatrgica. Obviamente encontramos nela tambm a paisagem sonora que funciona como
recurso ornamental (CD18, faixa 1) e a funo disparadora que confere a nfase emocional
(CD, faixa 9). Essa alternncia de funes benfica para o espectador, pois descansa os
ouvidos e a mente. Uma trilha puramente dramatrgica seria excessiva, pela preocupao em
delinear continuamente a imagem, tornando-se fatigante para o pblico. Contudo, pude
observar que as funes so permeveis e pode haver um pouco da funo ornamental na
funo disparadora e vice-versa, ou da funo dramatrgica nas outras duas, pois o processo
criativo em msica no acontece de modo limitativo ou restritivo. A trilha vai tomando a
forma do espetculo e, s vezes, um tema musical menos importante ganha fora por causa da
cena que ele emoldura, passando do ornamental ao dramatrgico em poucos segundos.
Jourdain (1998, p.397) diz que [...] de uma forma ou de outra, todos buscam prazer
em algum tipo de msica e rejeitam a msica que no o proporciona, o que me faz acreditar
que a msica de cena tem de ser bela. importante que ela conquiste os ouvidos do pblico,
agindo no resultado global do espetculo. O componente aural merece tanta ateno quanto o
visual e deve haver esmero na construo de sua forma e estrutura. Contudo, para que tenha
fora dramatrgica, a msica deve existir sempre em funo da cena, como expe
Tragtenberg (1999, p.28):
A falta de uma operao crtica na concepo da msica de cena pode resultar numa concepo geral sonora meramente decorativa (associativa), que no estabelece um jogo contrapontstico com os demais elementos cnicos, graas a um sistema fechado de signos referenciados. Dessa forma, a msica retirada de seu suporte original, a audio pura no alcana o novo ambiente criativo em que se insere, tornando-se um espectro de si mesma.
Esse pensamento nos confirma que uma dramaturgia sonora no existe sem uma
relao profunda com os outros elementos do espetculo, sobretudo na medida em que deve
estabelecer um intercmbio com os atores-animadores (que transferiro sua elaborao da
msica para os personagens) e, finalmente, com o pblico que a recebe e transforma as
informaes sonoras em emoo, uma vez que a msica potencializa a ao das imagens das
sombras projetadas na grande tela (e no caso dos bonecos, no palco) e a percepo na plateia,
ao agir contrapontisticamente com a cena. Robert Jourdain (1998, p.376) diz:
importante reconhecer que a msica representa muitos tipos de sentimentos interiores, no apenas os abertamente emocionais. [...]. Ela pode imitar no apenas a fria da pantera, mas tambm o que a pantera sente, ao
18 Trata-se do CD (no comercializado) da trilha do espetculo, anexado a esta dissertao.
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caminhar, pular ou galgar. Isso feito atravs da duplicao dos ritmos desses movimentos, mudando a harmonia para reproduzir as tenses e liberaes do corpo e fazendo a melodia seguir a geometria das aes fsicas.
Essa representao de sentimentos atravs do recurso musical faz brotar uma emoo
no espectador, pois a msica nos impulsiona, naturalmente, a uma sinestesia quando
associamos um som ou melodia a uma imagem transmitida no prprio espetculo ou mesmo
oriunda do inconsciente de cada um, como se essas vibraes ecoassem em nossa psique do
mesmo modo que uma corda de um instrumento faz vibrar outra mais prxima, por simpatia.
O modo como concebi a dramaturgia de O Pssaro do Sol foi mais voltado para a
estilizao, ou seja, criei representaes sonoras ou musicais que no fossem bvias ou diretas
para representar personagens e situaes. A msica, nessa concepo mais alusiva (e por isso
mesmo mais permissiva no tocante fantasia do compositor), no tem um carter to
incidental ou representativo como, por exemplo, na msica para cinema. Ela no inserida
em todas as situaes ou tenta personificar cada momento. Diria que se trata de uma viso
mais potica, pois a inteno de dar pistas ao ouvinte, permitir que ele prprio elabore a
mensagem musical que remete imagem. Na cena em que Japu iniciado nos mistrios da
floresta (CD, faixa 18), mantive apenas alguns sons de animais, produzidos com voz humana.
No achei necessrio pr o som de cada fera que aparecia nesta cena, pois, alm de
redundante, poderia tornar-se caricato. Em outro momento, uma nica pluma que cai (CD,
faixa 29) representa o Pssaro do Sol e foi musicado com tremolo no acompanhamento da
viola, para simbolizar o farfalhar de asas da ave. desnecessrio que a msica da trilha seja
fidedigna ao que ela remete, numa equivalncia exata. Ela deve simplesmente evocar o objeto
a que se refere, e a realidade expressa atravs do conceito do compositor, muitas vezes
numa estilizao. Por vezes, a alegoria do real, a msica que utiliza elementos que
simbolizam, sem tentar descrever com exatido, um personagem ou imagem, mais
interessante e eficiente que o real, como uma pintura pode ser mais sugestiva que uma
fotografia, pela prpria fantasia com que produzida (sem querer aqui dizer que a fotografia
desprovida de inveno). Essa representao sonora do real num espetculo deve, atravs de
criatividade e conhecimento tcnico do compositor, ultrapassar o aspecto apenas qualitativo,
como explica Camargo (2001, p.103):
O teatro no se contenta com o uso do som com funo apenas referencial, do tipo isto um trem e aquilo um trovo. Em geral, h uma interferncia direta sobre o som com a finalidade de fazer com que ele expresse o referente de modo no to emblemtico e neutro, como se no tivesse a menor importncia dentro da pea, mas sim como um elemento fortemente dramtico e expressivo.
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Creio que isso vale no s para o som, mas para a msica tambm. Quando na
dramaturgia sonora optei pela utilizao de alguns instrumentos indgenas, no me vinculei o
tempo todo a uma melodia indgena de fato, pois o som dos instrumentos indgenas j alude
ao mundo amaznico, a referncia j estava presente. Fazia-se necessrio um deslocamento,
uma fuga do bvio, justamente para escapar da monotonia e adicionar uma gota de magia. Foi
ento que me senti livre para me aventurar em linhas meldicas de diferentes tradies. Por
outro lado, para dar unidade ao conjunto e levando em considerao a etimologia da palavra
indgena19, esforcei-me por costurar essas diversas linhas meldicas num todo que chamei
de pan-indgena, pois continha msicas de vrios lugares, muitas delas autctones.
Consequentemente, na trilha do Pssaro do Sol, encontramos elementos amaznicos, dos
ndios norte-americanos ou dos andinos e at um trecho de msica irlandesa, pois h uma
estreita ligao da msica daquele pas com os seus habitantes, h a identificao da msica
como cultura sua, num sentimento de apropriao do elemento autctone, reforando tambm
assim a temtica indgena da lenda do Pssaro do Sol.
1.2 A MSICA QUE PRODUZ A EMOO
A msica dispe de muitos recursos: meldicos, harmnicos, rtmicos e timbrsticos
que lhe conferem o poder de dramatizar e, consequentemente, emocionar. Na pera Carmen,
de Georges Bizet, por exemplo, a melodia da segunda parte do preldio de abertura (r, d
sustenido, si bemol, d sustenido, l) reaparece, tambm, nos momentos finais: ela simboliza
a Espanha (pelo intervalo meldico e campo harmnico das notas d sustenido que desce
para o si bemol, que chamamos de segunda aumentada, presente na msica espanhola por
influncia rabe), a intensa paixo e a prpria Carmen:
19 Relativo a ou populao autctone de um pas ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador. (HOUAISS Dicionrio da Lngua Portuguesa. Disponvel em: < http://200.241.192.6/cgi-bin/ houaissnetb.dll/frame>. Acesso em: 22 mar. 2013 s 19h53min).
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Figura 1 Trecho de partitura: Preldio de abertura da pera Carmen, de Georges Bizet.
Esse tema retomado na famosa habanera, acrescentando apenas trs notas (o d
natural e o si natural, na primeira frase e sol natural na segunda frase) melodia, distraindo
o ouvinte da estrutura original, ao mesmo tempo em que a mantm em seu subconsciente:
Figura 2 Trecho de partitura: Habanera da pera Carmen, de Bizet.
No Pssaro do Sol, lancei mo de um recurso que o de sempre utilizar os dois temas
musicais mais significativos como Leitmotif no corpo da trilha, quase hipnoticamente, com a
inteno, sobretudo, de dar uma maior homogeneidade s idias da composio e no me
afastar da temtica da pea, ao mesmo tempo em que impregnasse o espectador do contedo
da narrativa do espetculo atravs do elemento sonoro tambm. Jos Miguel Wisnik (1999,
p.28) argumenta:
A msica, sendo uma ordem que se constri de sons, em perptua apario e desapario, escapa esfera tangvel e se presta identificao com uma outra ordem do real: isso faz com que se tenha atribudo a ela, nas mais diferentes culturas, as prprias propriedades do esprito. O som tem um poder mediador, hermtico: o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisvel. O seu valor de uso mgico reside exatamente nisto: os sons organizados nos informam sobre a estrutura oculta da matria no que ela tem de animado.
Um espetculo de animao como O Pssaro do Sol nos prope justamente essa
transferncia de mundos, esse sair do exterior e mergulhar no interior, no esprito, atravs de
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sua narrativa mitolgica, da ancestralidade indgena da lenda que recria. nesse ponto
exatamente que a msica contribui muito na cena, pois, sendo tambm parte do imaginrio
social, ela alia o sonoro ao visual e aumenta a sua carga emotiva, muitas vezes pela
identificao do espectador com elementos armazenados no seu inconsciente. Tragtenberg
(1999, p.34) explica muito bem essa relao:
O gnero musical como expresso cultural rene aspectos do imaginrio social, emocional e poltico da sociedade. Reflete desde valores mais ou menos abstratos desse imaginrio at aspectos bem determinados do seu universo simblico e utilitrio. Dessa forma, certos gneros e estilos musicais inclua-se a desde seus elementos bsicos formais (melodia, harmonia e ritmo), at a instrumentao e a forma de tocar relacionam-se a classes sociais, grupos raciais e prticas sociais.
Quando, para o Pssaro do Sol, escrevi a melodia de um samba para uma animada
cena com animais na selva e apresentei a proposta musical num ensaio, no havia colocado
ainda o elemento rtmico. A diretora Olga Gomez, nascida em Buenos Aires e h 25 anos
morando em Salvador da Bahia, rejeitou a proposta com o argumento de ter achado o tema
europeu demais, que na verdade parecia um vira portugus. No ensaio seguinte, tinha
adicionado o ritmo com um pau de chuva e a msica foi aceita. Tornara-se ento brasileira,
tanto pelo ritmo quanto pelo timbre do instrumento indgena. Na verdade, entendo que, no
primeiro momento, no houve uma identificao com o tema musical, pelo fato de soar
demasiadamente ibrico. O que se fazia necessrio era uma composio que se vinculasse
brasilidade indgena. Com a adio da percusso atravs do pau de chuva, foi evocado o
universo tupiniquim e nasceu a emoo, o reconhecimento da msica como sua, inclusive por
Olga, rio-platense-baiana. O arsenal meldico, rtmico e harmnico (no esto as harmonias
da bossa nova enraizadas em nosso subconsciente?) da dramaturgia sonora desperta o
imaginrio do ouvinte, nascendo a a significao. Jourdain (1998, p.23) assim expe:
As molculas vibrantes que transmitem a msica de uma orquestra para os nossos ouvidos no contm sensao, apenas padres. Quando um crebro capaz de modelar um padro, surge a sensao significativa.
Transpondo essa afirmao para o universo da msica de cena, poderamos dizer que
todos ns temos padres internos que associam msica, imagem e sensao. As notas
musicais isoladas no tm carga emotiva, mas a adquirem quando formam uma frase musical
que remete a esses padres internos construdos conscientemente ou no. O compositor
tambm leva para a sua msica todo o seu histrico sonoro, seus padres compartilhando-os
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com o pblico. Do dilogo de todos esses elementos, partes e contrapartes, surge a emoo da
dramaturgia sonora, uma emoo produzida em conjunto. O maestro e pianista Daniel
Barenboim, ao discorrer acerca de seu trabalho com a pera Tristo e Isolda de Wagner, diz:
Quem tem sensibilidade para msica frequentemente encontra nela um reflexo do prprio estado de esprito. Por isso quando se fala de msica, na verdade estamos falando do modo como cada um a recebe. Ainda que, muitas vezes, seja a msica que produza um estado de esprito. (BARENBOIM, 2010, p. 139).
Essas palavras remetem s ragas indianas. Uma raga muito mais que uma escala ou
um modo em msica ocidental. Joep Bor, pesquisador e professor do Conservatrio de
Msica de Roterd, explica:
[...] as ragas tm uma escala particular e movimentos meldicos especficos; seu som caracterstico deve causar deleite e ser agradvel aos ouvidos (ou mentes dos homens, como diz Matanga em outra obra). (BOR, 1999, p. 1, traduo minha).20
No Oriente, as ragas so um exemplo preciso da associao da msica a um estado de
esprito, a um humor ou a um sentimento. Elas tambm evocam uma estao do ano ou um
perodo do dia: h ragas para serem tocadas pela manh, ao crepsculo ou noite, assim
como h ragas que se tocam apenas em dias de significado especial na religio hindu.
Associam-se com as divindades hindus e com o que elas representam, como a raga hindol
que alude a Kama, o deus indiano do amor sensual, equivalente ao Eros helnico na cultura
ocidental. Bor (1999) ainda observa que a raga supera em riqueza e preciso a escala ou o
modo, tendo maior mobilidade que uma linha meldica definida. Tecnicamente, ragas so
padres sonoros organizados dentro do espectro de uma oitava, associados a padres
rtmicos, tocados pela tabla. As ragas fazem parte de um grande repertrio de canes
escritas por grandes mestres do passado e so at hoje fonte de inspirao para os
compositores da msica indiana da atualidade, constituindo a base da sua improvisao. No
Ocidente, a doutrina dos afetos remonta Antiguidade grega e pretendia que a msica poderia
influenciar os homens de tal modo que, se ouvissem determinados modos musicais, teriam
seu carter transformado. Por exemplo: a exposio ao modo Drico tornava o homem sereno
e o modo Frgio nutria as qualidades blicas e da valentia. J o modo Ldio no era
20 [...] ragas have a particular scale and specific melodic movements; their characteristic sound should bring delight and be pleasing to the ear (or the minds of men, as Matanga puts it elsewhere).
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recomendado por tornar o homem efeminado (GATTI, 1997, p.16). Contudo, o musiclogo
Thodore Reinach (2011, p. 63) observa:
Os crticos antigos, depois de Damon, argumentaram, e mesmo contra-argumentaram muitas vezes, sobre o que eles chamam o ethos dos modos, isto , sua marca expressiva e sua ao sobre o moral. Tais especulaes, j ridicularizadas pelo sofista Hpias, devem ser acolhidas com bastante reserva.
Reinach (2011) explica que, na msica da Antiguidade Grega, nos seria difcil discernir
que atributos teriam sido trazidos pelo ethos e que atributos teriam tido sua origem no prprio
estilo tradicional da composio que usou aquele mesmo ethos. Ademais, um ethos poderia
apresentar-se originalmente como rude e austero e depois tornar-se langoroso e embriagante,
como observou o filsofo e astrnomo grego Herclides do Ponto (ca. 390 a.C. ca. 310 a.C.)
(apud Reinach 2011, p.64). No obstante estas afirmaes, muitos outros textos confirmam a
influncia dos ethos no carter e expresso da msica, mas esta controvrsia foge ao escopo
desta dissertao.
Na Renascena, com o ideal humanista, houve uma revalorizao da cultura greco-
romana, e a teoria dos afetos tambm influenciou a produo musical da poca: os
compositores passaram a considerar a importncia da representao do texto na msica. A
retrica, ou arte do bem falar, a disciplina que estuda a produo e a anlise do discurso. No
Barroco, a retrica musical pregava que se poderia transmitir um pensamento, ideia ou
sensao to bem em msica quanto num discurso verbal e explorou amplamente esse
paralelismo, o que levou os compositores a relacionar a msica com sentimentos e estados de
esprito como felicidade, tristeza, dio, dor ou serenidade, atravs de recursos musicais como
tonalidade, intervalos e padres de ritmo. H inmeros tratados de execuo musical que
exemplificam a relao entre a interpretao da msica e os afetos, como Der Vollkommene
Capellmeister (1739) de Johann Mattheson (1681-1764). Nesse estudo, o terico, compositor
e instrumentista alemo ressalta quo importante para o compositor conhecer a teoria dos
afetos, para melhor metaforizar atravs da msica os sentimentos que transpassaro a sua
obra. O quadro abaixo mostra algumas correspondncias, estabelecidas por Mattheson, entre
as tonalidades e os afetos:
Quadro 1 Correspondncias entre as tonalidades e os afetos
R menor Calmo, grandioso, Sol maior Falante, divertido,
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Fonte: Elaborao prpria.
provvel que os compositores tenham-se distanciado pouco a pouco da prtica
consciente de escrever suas obras sob as leis dos afetos. Alm disso, a interpretao desses
afetos em msica poderia ser pessoal, variando de um autor para outro. No entanto, esse
esprito, como se tivesse possudo os compositores lentamente ao longo dos anos, permeia at
hoje toda a msica tonal e no por mera coincidncia que uma sonata em d menor nos
parea profunda e melanclica e um rond em sol maior alegre e vibrante. Pelo uso e prtica,
perpetuamos essas relaes, s vezes com total conscincia do fato, s vezes, no. Quando
concebi a msica para a cena do palcio do sol (CD, faixa 30), pensei que deveria soar
majestosa, de sonoridade brilhante e clara. Na tabela de Mattheson, a sol maior corresponde
um afeto divertido e apaixonado. Divertido como dias de infncia, de brincadeiras sob o sol.
Apaixonado, caloroso, quente como o sol... As cores luminosas da cenografia deste momento
da pea, o amarelo e o laranja, tambm me influenciaram na escolha da tonalidade da
msica. A cena do Palcio do Sol acabou sendo embalada por uma melodia em sol maior,
no por coincidncia, e sim depois de alguma reflexo.
O conhecimento da filosofia que se esconde por trs das notas das ragas e que vai
muito mais alm do espectro tcnico-musical, alm de certa familiaridade com a doutrina dos
fluente, satisfeito apaixonado
Sol menor Srio, encantador,
amvel
D menor Amvel, triste, suave
L menor Lamentoso, sereno F menor Profundo,
desesperado
Mi menor Aflito, triste Si bemol maior Exuberante
D maior Atrevido, alegre Mi bemol maior Pattico, srio
F maior Gracioso, belo,
generoso
L maior Lamentoso e triste
R maior Teimoso, penetrante Mi maior Penetrante,
desesperado
Si menor Melanclico, mal-
humorado
F sustenido menor Aflito, apaixonado
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afetos, so ferramentas valiosas para o compositor de trilhas sonoras, pois auxiliam na
elaborao de uma msica que evolui em paralelo com as emoes da cena. Uma raga, assim
como o afeto de uma tonalidade so cnicos, desde que podem transmitir dramaticidade para
um momento da pea ou contribuir para a construo do carter de um personagem. Em O
Pssaro do Sol, busquei trazer para a msica a inteno da raga, no intuito de que o
espectador fosse tocado no seu prprio estado de esprito pelo que propunha a dramaturgia
sonora, num processo duplo: de identificao com a msica por parte do espectador e de
influncia por parte dos elementos sonoros (musicais e de sonoplastia) apresentados. Claro,
cada indivduo recebe e interpreta a msica a seu modo, de acordo com as suas prprias
referncias e histrico musical e sociocultural. Assim, a prpria msica que aciona esse
processo de absoro e consequente ressignificao.
A msica traduz o estado de esprito e o carter de um personagem, como observa o
maestro e pianista Barenboim (2010, p.138):
Em Wagner a msica descreve no apenas quem o personagem ou o que est prestes a dizer, como tambm os sentimentos que est experimentando. A msica d uma ideia muito clara do seu estado de esprito. [...] a orquestra transmite o estado de esprito do personagem antes que ele comece a falar, ainda que depois diga o contrrio.
Quando no Pssaro do Sol, Japu se sente completamente abandonado pelos seus, uma
msica em andamento um pouco lento, tendo como base harmnica um intervalo de 7
maior (CD, faixa 34) foi o campo sonoro para a cena e transmitiu, atravs desses recursos,
toda a melancolia e desalento do personagem. Na pea, o nico texto era o do narrador, o que
tornou a msica um forte meio de expresso de sentimentos dos personagens, como se fosse
uma voz.
O crebro (atravs da memria) e o ouvido esto intimamente ligados. Na construo
de uma dramaturgia musical, a repetio dos temas fundamental porque faz o espectador
associar a msica aos personagens e partes da histria que est sendo contada na pea. Mesmo
que se faam alteraes nesses temas, quem os ouve certamente os reconhece. Barenboim
(2010, p.154) explica:
Acredito muito na memria do ouvido. isso que, em msica, determina toda a extenso, a acumulao, a repetio. Da msica mais clssica msica mais moderna, frequentemente se faz uso da repetio. O ouvido um rgo da memria; estou convencido de que, mais ou menos conscientemente, quem ouve se d conta de que naquela passagem a msica a mesma, mas foi modulada e passada para um semitom mais alto. Ainda que ela seja ouvida muito tempo depois, tem-se a impresso de que a
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mesma, mas, agora, ligeiramente diferente. Como quando se diz a mesma coisa, usando as mesmas palavras, mas com outra intensidade de voz.
Na trilha do Pssaro do Sol, muitas vezes modifiquei, mais ou menos intensamente, a
instrumentao ou estrutura de um tema musical que correspondia a um personagem ou
evento da histria. A inteno de usar temas recorrentes justamente fazer com que o
espectador se familiarize com eles e os identifique, ainda que de modo inconsciente,
associando-os ao curso da pea. O resultado disso uma narrativa musical paralela narrativa
do texto, o que d mais coerncia e homogeneidade ao espetculo, no fazendo da msica
apenas um conjunto de recortes meramente ilustrativos.
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1.2.1 Som, Msica e Imaginrio
Entende-se que a criao musical o resultado de um processo imaginrio, e podemos
consider-la como fruto do mundo interior do compositor, da interpretao que ele dar sua
obra ao conceb-la e execut-la e da sua capacidade de adicionar a sua prpria fantasia21
materialidade dessa obra. O pblico, por sua vez, recebe a msica e forma suas prprias imagens
mentais que podem, ou no, corresponder ideia primordial do compositor. Dialogando com
Daniel Baremboim sobre a pera Tristo e Isolda, de Richard Wagner, Patrice Chreau comenta:
A msica consegue fazer a gente imaginar muitas coisas. O preldio do terceiro ato uma surpresa: ouvi-lo provoca em ns uma sensao intensa, a sensao psicolgica de estar em outro lugar, longe, muito alm. O tempo passou, as pessoas mudaram. quase um sentimento intransponvel, que passa a sensao de transcurso do tempo. (apud BARENBOIM, 2010, p. 112).
O som das trompas pode nos fazer pensar no fundo do mar, o ritmo em compasso 6/8 de
uma barcarolle pode nos dar a sensao de estar em um barco, o simples toque de castanholas
pode nos trazer ao pensamento a Espanha ou um toureiro. Escutamos uma melodia, um ritmo, um
som... E logo o ouvido nos faz criar uma imagem mental. No espetculo de animao, o sonoro
refora, complementa e enriquece a imagem, como se lhe desse a anima, a centelha que faltava.
Muitas vezes, o personagem que a msica descreve ainda no est em cena. E quando a msica
entra como se ela fosse o prprio personagem. Scheherazade, de Rymsky-Korsakov, um
poema sinfnico com carter de msica programtica e poderia muito bem ser uma
dramaturgia sonora (talvez at j tenha sido utilizado como tal). Nele, a voz de Scheherazade que
narra as histrias das Mil e Uma Noites encarnada pelo solo de violino, numa melodia de estilo
oriental. Cada vez que essa melodia solo aparece, significa que Sheherazade est comeando a
contar um episdio das noites rabes. um Leitmotif, ponto de referncia, uma curta frase
musical que, na maioria das vezes, evoca o protagonista da trama. Quando Patrice Chreau
questiona sobre a razo da repetio, inmeras vezes, de um motivo musical por Wagner,
Barenboim (2010, p.131) explica que essa estratgia serve [...] para criar nos ouvidos do ouvinte
a expectativa de voltar a ouvi-lo. Baseando-me na ideia do Leitmotif, criei como tema do
21 Em msica, o termo fantasia designa justamente uma pea musical de escrita mais livre, que no segue os rgidos padres formais de, por exemplo, uma sinfonia.
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pssaro uma melodia simples, no violino, que evocasse o canto misterioso de uma ave (CD, faixa
38):
Figura 3 Trecho de partitura: Melodia do Pssaro do Sol, de Uibitu Smetak.
Esse tema principal do Pssaro posteriormente foi mesclado com outros temas que foram
surgindo, como o Tema da Natureza (CD, faixa 4):
Figura 4 Trecho de partitura: Melodia do Tema da Natureza, de Uibitu Smetak.
E o tema da tribo (CD, faixa 7):
Figura 5 Trecho de partitura: Tema da Tribo.
A minha inteno foi de consolidar, nos ouvidos e na mente do espectador, a ideia musical
do personagem principal tambm nas outras melodias da pea. Curiosamente, o tema do pssaro
s aparece como melodia principal no violino no final do espetculo, mas em vrios momentos
foi parte de outras msicas da pea, intencionalmente. A minha ideia era de, como num quebra-
cabea, dar as peas antes, como pequenas pistas musicais e apresentar a melodia do pssaro no
final, numa espcie de caminho inverso, Leitmotif ao contrrio, evitando desvendar de imediato
o mistrio da melodia do canto da ave maravilhosa. J o Leitmotif da tribo foi apresentado
imediatamente, e para mim foi uma alegria ouvir as crianas cantando-o e batendo palmas no
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final do espetculo, na estreia: sinal de que ele tinha cumprido a sua funo. Ernst Toch (1977, p.
106) classifica a melodia, de acordo com suas caractersticas, como masculina ou feminina:
A marca psicolgica da melodia harmnica a franqueza, a objetividade, a simplicidade, a naturalidade, a virilidade, a fora masculina. A marca psicolgica da melodia no-harmnica o mistrio, o refinamento, o suspense, a conteno, a ternura feminina, a suavidade, o toque ertico que vai do terno anseio inflamada paixo. (Traduo minha).22
A melodia escrita dentro de uma tonalidade que indica uma escala e uma harmonia
imediatamente reconhecvel seria a melodia harmnica, masculina. A melodia suspensiva,
apoiada em tons no harmnicos, porm acentuados, seria a melodia no harmnica, feminina.
Transferindo este conceito para a msica do Pssaro do Sol, podemos dar como exemplo de
melodia masculina o Tema da Tribo (Figura 5, CD, faixa 7) e de melodia feminina o Tema da
Natureza (Figura 4, CD, faixa 4).
Um Leitmotif a encarnao musical do personagem (que pode ser coletivo, como a
tribo) e perambula na melodia principal, no acompanhamento e, no Pssaro do Sol, ora na flauta
doce, ora no violino, ora no piano. Essa troca de lugares benfica para a msica de cena para
evitar a repetio excessiva do Leitmotif num mesmo padro de timbre ou instrumentao. E
sua estrutura deve ter consistncia e carga emocional, pois, quando o pblico o ouve, o grava na
mente e espera inconsciente, o seu retorno. Barenboim (2010, p.129) ressalta que [...] nunca se
deve esquecer que a primeira nota de uma pea de msica no tem passado, o passado apenas o
silncio, ao passo que a segunda nota tem um presente e um futuro, mas tambm um passado.
como se apenas o abismo e as trevas genesacas existissem no silncio antes da primeira nota. A
partir dela, comea a criao musical que no se desenvolver aleatoriamente: o que acontecer
mais adiante na msica estar relacionado com o que ouvimos na introduo, abertura ou
preldio, pois a msica precisa seguir uma lgica, ser coerente dentro de sua prpria arquitetura
interna, exatamente como um texto ou enredo de uma pea. Assim estruturada, a organizao da