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Devocionário - Um ano com C. S. Lewis Editora Ultimato pág. 60 [...] poderão então explorar a natureza fixa da matéria para se machucarem mutuamente. A natureza permanente da madeira [p. ex.], que nos permite usá-la como um anteparo, também nos permite usá-la para bater na cabeça do nosso vizinho. A natureza permanente da matéria significa, de uma maneira mais geral, que, quando os seres humanos lutam entre si, a vitória costuma ser daqueles que possuem armas, habilidades e que estão em número superior, mesmo se a causa deles for injusta. AS LEIS FIXAS DA NATUREZA E O LIVRE-ARBÍTRIO PODERÍAMOS muito bem conceber um mundo em que, quem sabe, Deus corrigisse, o tempo todo, os resultados do abuso do libre-arbítrio por parte das suas criaturas. Desse modo, o bastão de madeira se tornaria tão macio quanto a grama caso fosse usado como arma e o ar se recusaria a me obedecer se eu tentasse produzir ondas sonoras que carregassem mentiras e insultos. Contudo, um mundo assim seria um lugar em que atitudes erradas seriam impossíveis, e em que o livre-arbítrio seria inútil. Se esse princípio fosse levado às conclusões lógicas, os maus pensamentos seriam impossíveis, já que a massa cerebral que usamos para pensar boicotaria a nossa tarefa de tentar direcioná-las. Toda a matéria que se encontrasse perto de um homem fraco estaria propensa a passar por alterações imprevisíveis. O fato de Deus poder modificar o comportamento da matéria, produzindo oque chamamos de milagres, faz parte da fé cristã. Porém, a própria concepção de um mundo comum e, portanto, estável, requer que ocasiões com essas sejam extremamente raras. Num jogo de xadrez, você pode até fazer algumas concessões ao seu adversário. Estas concessões estão para as regras normais do jogo como os milagres estão para as leis da natureza. Você pode até sacrificar uma torre ou permitir que outra pessoa desfaça um lance feito por descuido. Porém, se você lhe conceder tudo o que ela pede para lhe beneficiar se todos os seus movimentos fossem revogáveis e todas as suas peças desaparecessem sempre que a posição delas no tabuleiro não fosse do agrado dessa pessoa, então não haveria jogo algum. O mesmo acontece com a vida das almas no mundo: as leis fixas, as consequências se desdobrando por necessidade casual, e toda a ordem natural são limites imediatos dentro dos quais as suas vidas comuns estão confinadas e a única condição sob a qual uma vida assim é possível. Tente excluir a possibilidade de sofrimento que a ordem da natureza e a existência do livre-arbítrio envolvem e você acabará descobrindo que excluiu a própria vida.

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Devocionário - Um ano com C. S. Lewis – Editora Ultimato

pág. 60

[...] poderão então explorar a natureza fixa da matéria para se machucarem mutuamente.

A natureza permanente da madeira [p. ex.], que nos permite usá-la como um anteparo,

também nos permite usá-la para bater na cabeça do nosso vizinho. A natureza

permanente da matéria significa, de uma maneira mais geral, que, quando os seres

humanos lutam entre si, a vitória costuma ser daqueles que possuem armas, habilidades

e que estão em número superior, mesmo se a causa deles for injusta.

AS LEIS FIXAS DA NATUREZA E O LIVRE-ARBÍTRIO

PODERÍAMOS muito bem conceber um mundo em que, quem sabe, Deus corrigisse, o

tempo todo, os resultados do abuso do libre-arbítrio por parte das suas criaturas. Desse

modo, o bastão de madeira se tornaria tão macio quanto a grama caso fosse usado como

arma e o ar se recusaria a me obedecer se eu tentasse produzir ondas sonoras que

carregassem mentiras e insultos. Contudo, um mundo assim seria um lugar em que

atitudes erradas seriam impossíveis, e em que o livre-arbítrio seria inútil. Se esse

princípio fosse levado às conclusões lógicas, os maus pensamentos seriam impossíveis,

já que a massa cerebral que usamos para pensar boicotaria a nossa tarefa de tentar

direcioná-las. Toda a matéria que se encontrasse perto de um homem fraco estaria

propensa a passar por alterações imprevisíveis. O fato de Deus poder modificar o

comportamento da matéria, produzindo oque chamamos de milagres, faz parte da fé

cristã. Porém, a própria concepção de um mundo comum e, portanto, estável, requer

que ocasiões com essas sejam extremamente raras. Num jogo de xadrez, você pode até

fazer algumas concessões ao seu adversário. Estas concessões estão para as regras

normais do jogo como os milagres estão para as leis da natureza. Você pode até

sacrificar uma torre ou permitir que outra pessoa desfaça um lance feito por descuido.

Porém, se você lhe conceder tudo o que ela pede para lhe beneficiar – se todos os seus

movimentos fossem revogáveis e todas as suas peças desaparecessem sempre que a

posição delas no tabuleiro não fosse do agrado dessa pessoa, então não haveria jogo

algum. O mesmo acontece com a vida das almas no mundo: as leis fixas, as

consequências se desdobrando por necessidade casual, e toda a ordem natural são

limites imediatos dentro dos quais as suas vidas comuns estão confinadas e a única

condição sob a qual uma vida assim é possível. Tente excluir a possibilidade de

sofrimento que a ordem da natureza e a existência do livre-arbítrio envolvem e você

acabará descobrindo que excluiu a própria vida.

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O REMOVEDOR SANTO

NÃO há dúvida de que seria possível para Deus ter removido os efeitos do primeiro

pecado cometido pelo ser humano. Porém, isso não teria valor se Deus também não

estivesse pronto para remover o resultado do segundo pecado, do terceiro, e assim por

diante. Se os milagres cessassem, então, mais cedo ou mais tarde, alcançaríamos a nossa

atual lamentável situação. Se os milagres não parassem, teríamos um mundo

continuamente superprotegido e corrigido pela interferência divina; teríamos um mundo

em que nada de realmente importante dependeria da escolha humana e em que o próprio

livre-arbítrio em breve cessaria – a partir da certeza de que uma das alternativas

aparentes que se abrissem diante de você não levaria a resultado algum, e, portanto, não

seria uma alternativa de fato. Como vimos anteriormente, a liberdade do jogador de

xadrez depende da firmeza do tabuleiro e dos movimentos.

- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

VOLUNTARIAMENTE UNIDOS

TUDO o que Deus criou é dotado de livre-arbítrio. Isso significa que a criação pode agir

bem ou mal. Algumas pessoas se acham capazes de imaginar alguém que fosse livre,

mas sem qualquer possibilidade de se tornar mau; eu não consigo. Se uma pessoa é livre

para ser boa, também é livre para ser má. Foi o livre-arbítrio que tornou o mal possível.

Por que, então, Deus lhes deu essa liberdade? Porque o livre-arbítrio, embora tenha

possibilitado o mal, é a única coisa que possibilita qualquer amor, bondade ou alegria

dignos. Um mundo cheio de autômatos – criaturas que trabalhassem feito máquinas –

dificilmente valeria a pena ser criado. A felicidade que Deus designa para suas criaturas

superiores é a felicidade de serem unidas a ele e umas às outras, de forma livre e

voluntária, num êxtase de amor e prazer. Comparado a isso, o amor mais arrebatador

entre um homem e uma mulher é café pequeno. Mas para que isso aconteça, as criaturas

têm de ser livres.

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A SABEDORIA DE DEUS

É CLARO que Deus sabia o que aconteceria se elas, as criaturas dotadas de livre-

arbítrio, usassem a sua liberdade da forma errada: aparentemente ele achou que valeria a

pena correr o risco. Talvez nos sintamos inclinados a discordar dele. Porém, há um

problema quando discordamos de Deus. Ele é a fonte da qual extraímos todo o nosso

poder de raciocínio: você não poderia estar certo e ele, errado, da mesma forma que um

córrego não pode elevar-se acima do nível da sua nascente. Quando você está discutindo

com Deus, está tentando argumentar com o próprio poder que o capacita a argumentar:

é como se você cortasse o galho em que se encontra assentado. Se Deus pensa que esse

estado de guerra no universo é um preço que vale a pena pagar pelo livre-arbítrio – isto

é, por ter feito um mundo vivo em que as criaturas são capazes de fazer o bem ou

praticar o mal de verdade, um mundo em que algo de real importância pode acontecer,

não sendo apenas um mundo de brinquedo que só reagisse quando ele apertasse os

botões – então, temos de supor que vale a pena pagar o preço.

- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

CONTEXTO: 1944 (fim da II Grande Guerra) – Lewis dá a primeira de uma série de

sete palestras de rádio intitulada “Beyond Personality” [Além da Personalidade] na

BBC de Londres. Essas palestras formariam mais tarde o livro 4 de Mere Christianity

[Cristianismo Puro e Simples].