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Relatório Final apresentado à Fapesp da pesquisa:
Uma análise discursiva-ideológica da UNCTAD e UNCHR
Faculdade de Direito, História e Serviço Social – Campus
de Franca da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” para a obtenção do título de Bacharel em
Relações Internacionais.
Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Elizabete Sanches Rocha
Bolsista: Fernando Réveilleau Teixeira
Franca
2008
Lista de Siglas
BM – Banco Mundial
BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
FMI – Fundo Monetário Internacional
GATT – General Agreement on Tariffs and Trade
Noei – Nova Ordem Econômica Internacional
ONU – Organização das Nações Unidas
UNCHR – United Nations Commission on Human Rights
UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development
UNDP – United Nations Development Programme
ECOSOC – Economic and Social Council of the United Nations
2
Sumário páginas
Resumo do Plano Inicial e Resumo das Atividades........................................................ 4
Capítulo 1 Liberalismo.....................................................................................................5
1.1 Considerações históricas sobre o pensamento liberal.................................................5
1.2 Um breve histórico do Neoliberalismo......................................................................10
1.3 Neoliberalismo como projeto....................................................................................17
Capítulo 2 A Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas(UNCHR)...............24
2.1 Considerações Históricas...........................................................................................24
2.2 A questão dos direitos humanos: um retrospecto de sua afirmação internacional....28
2.3 Uma análise discursivo-ideológica da Declaração de Viena.....................................34
2.4 50th session da UN Conference on Human Rights – Uma breve contextualização..53
2.5 Análise do “Report on the 50th session da UN Conference on Human Rights”......55
Capítulo 3 United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD)...........61
3.1 Surgimento e Atuação da Conferência......................................................................61
3.2 Análise do documento “Resolutions Adopted Without Reference to a Committee”
da “NINETEENTH SESSION OF THE GENERAL ASSEMBLY”………………….69
3.3 Antecedentes à Declaração de Midrand....................................................................71
3.4 Análise da "MIDRAND DECLARATION and A PARTNERSHIP FOR GROWTH
AND DEVELOPMENT"................................................................................................74
Análise dos Resultados e Conclusão.................................................................................87
Referências Bibliográficas………………………………………………………………91
Anexo I Declaração de Viena
Anexo II Report on the 50th session da UN Conference on Human Rights
Anexo III Resolutions Adopted Without Reference to a Committee of the NINETEENTH
SESSION OF THE GENERAL ASSEMBLY
Anexo IV MIDRAND DECLARATION and A PARTNERSHIP FOR GROWTH AND
DEVELOPMENT
3
Resumo do plano inicial
Essa pesquisa visa analisar a cultura política Liberal, como pensamento
dominante no sistema internacional. Este ganha status de hegemônico através da sua
reformulação no período pós Guerra-Fria influenciando inclusive as organizações
internacionais. Os objetos de análise dessa pesquisa serão os organismos da
Organização das Nações Unidas, UNCTAD (United Nations on Trade and
Development) e UNCHR (United Nations Commission on Human Rights), sendo
observado principalmente como as idéias liberais foram institucionalizadas nesse
organismos através da análise de documentos constitutivos e deliberativos do início da
década de 90 através da análise do discurso e de uma revisão bibliográfica sobre o
assunto como complemento. Os resultados obtidos serão analisados considerando os
dados em perspectiva histórica e servirão de base para a conclusão deste trabalho.
Resumo das atividades realizadas
Observando o cronograma inicial as seguintes atividades foram realizadas:
1)Compreensão do Liberalismo em perspectiva histórica(itens 1, 2 e 3 o relatório);
2)Coleta de fontes bibliográficas e estudos recentes sobre a UNCHR e compreensão da
história desse organismo(item 4 e 5); 3)Análise dos documentos selecionados da
UNCHR, pelo método da Análise do Discurso (item 6). ; 4)Compreensão da história da
UNCTAD e coleta de fontes bibliográficas e estudos recentes sobre este organismo; 5)
Análise dos documentos selecionados da UNCTAD, pelo método da Análise do
Discurso; 6) Análise dos Resultados e Conclusão.
4
Detalhamento das Atividades:
1.1 - Considerações históricas sobre o pensamento liberal
O liberalismo, para Andrew Vincent, é a mais complexa das ideologias devido à
maneira como se infiltrou na cultura ocidental. A utilização mais antiga do termo, feita
na Idade Média, remete a um tipo de educação abrangente pertencente à cavalheiros e
homens livres. Atualmente a sua relação com a educação tem dois sentidos, um positivo
referente à largueza de espírito e tolerância, e o outro associado à libertinagem a partir
do século XVI, sendo visto como a falta de respeito a leis morais. Um terceiro sentido
que ganha corpo teórico a partir do século XIX com os trabalhos de John Locke
Montesquieu, sugere certos tipos de valores morais (tolerância, progresso, liberdade e
individualismo).
Neste terceiro sentido a palavra ganhou seu uso político, sendo usado pela
primeira vez explicitamente para se referir a um grupo contrário a monarquia da
Espanha no início do século XIX. Este grupo, baseado na experiência francesa, defendia
a instituição de uma constituição secular e a liberdade de imprensa. Na Inglaterra o
termo passou a se referir a alguns membros do Partido Whig considerados radicais e
republicanos. Além dos valores já mencionados alguns pensadores consideravam que a
política deveria representar convicções otimistas sobre a natureza humana e pautada em
uma democracia de caráter limitado, permitindo assim a melhoria da humanidade. No
entanto o Liberalismo não se associa especificamente a uma afiliação partidária,
podendo estar presente em facções conservadoras ou socialistas, e nem pode ser fechado
num corpo doutrinário específico ou originário, mas pode fornecer um mapa ideológico
5
de fatos históricos ocorridos na Grã-Bretanha e em outros lugares a partir do século
XVII.
As origens do liberalismo podem ser abordadas de diferentes maneiras, podendo
associá-las a história dos Estados-Nações (unificação da Itália e Alemanha, efeitos da
Revolução Francesa e isolamento da Grã-Bretanha). Outra abordagem seria a
diferenciação de tradições ideológicas, como por exemplo a distinção entre o
liberalismo britânico mais ligado ao empirismo e ao pensamento econômico e o
liberalismo continental mais ligado ao Iluminismo. Uma terceira abordagem mais ligada
ao pensamento marxista, seria colocá-lo como parte do desenvolvimento de um tipo
específico de economia (a capitalista), sendo o liberalismo a ideologia desta, e a questão
da propriedade enfatizada nos valores liberais.
Vincent por sua vez prefere relacionar as origens do Liberalismo à tradição
constitucionalista do pensamento europeu, que remonta ao direito romano obtendo
influências do pensamento de resistência à monarquia da Reforma e da Contra-Reforma.
No entanto como este ideário se desenvolveu está intimamente ligado com a história
européia, com o Iluminismo e o surgimento da escola de economia política escocesa que
teve como principal representante Adam Smith, e com a Revolução Americana.
Documentos constitucionais e de direitos humanos começam a surgir na Europa e o
pensamento liberal se divide na Revolução Francesa entre uma facção mais social e
outra mais individualista, tendo predominado esta última.
A contribuição do materialismo histórico também se dá para se estabelecer um
histórico do Liberalismo, já que o apogeu de suas idéias se deu ao mesmo tempo em que
a industrialização e expansão dos mercados. Remontar a história do Liberalismo ao
constitucionalismo europeu tem no entanto um trunfo bem particular, a percepção de
que as influências sobre essa doutrina, desde os primórdios do pensamento liberal, são
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variadas e provenientes de fontes não-liberais. Isso é particularmente interessante para o
desenvolvimento dessa pesquisa pois mostra como esse pensamento é permeável, o que
permitiu sua reconstrução sob faces diferenciadas em contextos históricos e políticos
diversos. Ao mesmo tempo facções mais conservadoras desse pensamento permitiram
com que esse pensamento fosse circunscrito, de maneira maleável, dentro da teoria
política e econômica, possibilitando a retomada de idéias em períodos e contextos bem
diferenciados.
Como a ênfase dessa pesquisa é no que ficou convencionado como
“neoliberalismo”, maiores considerações históricas serão feitas conforme a necessidade
das análises. Sendo, no entanto, importante a definição de duas “escolas de pensamento
liberal”, a do liberalismo clássico e a do social-liberalismo, e como estas se interligam
na cultura política ocidental moderna. O neoliberalismo é visto aqui como uma versão
revisitada do liberalismo clássico, se encaixando na mesma escola de pensamento. O
liberalismo clássico, na corrente da Grã-Bretanha a partir de 1688 (Revolução Gloriosa
e conseqüente estabelecimento da Bill of Rights em 1689) era associado à defesa da
supremacia parlamentar sobre a monarquia, sustentando a legislação e propriedade
fundiária. A partir da Revolução Francesa, facções mais modernas começaram a se
identificar com a fartura comercial, o esclarecimento e o progresso, dentre esses se
incluíam desde Adam Smith até David Hume. Novas formas de discurso se
desenvolveram: idéias comerciais de Adam Smith, o utilitarismo de Jeremy Bentham, e
utilização de conceitos sobre a soberania popular desenvolvidos por Locke.
O liberalismo clássico se mostra como a mistura de idéias e estratégias sobre
como conquistar e defender melhor a liberdade (freedom), estando essas idéias imbuídas
da doutrina do individualismo e da defesa da igualdade de direitos dos indivíduos. A
liberdade era principalmente buscada na economia sendo que uma economia livre
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implicava um governo com funções mínimas de manutenção da lei e da ordem interna, a
defesa da propriedade privada e a segurança. O individualismo se mostra como o cerne
metafísico e ontológico do pensamento liberal, o indivíduo precede a sociedade, é mais
real do que ela. O individualismo tende para uma forma de igualitarismo, onde cada
pessoa é vista como de igual valor, sendo essa o melhor juiz de seus próprios interesses.
Tentar unir o liberalismo em volta de uma crença na liberdade não é correto pois
a liberdade pode ser interpretada positiva ou negativamente, sendo a posição negativa a
associada ao liberalismo clássico e ao neoliberalismo. A liberdade negativa seria a
liberdade alcançada pela ausência de coação e repressão, geralmente associada ao
Estado. A liberdade se constituiu nessa forma devido ao medo real da ação arbitrária do
Estado monárquico, sendo a liberdade econômica uma forma de se livrar dos privilégios
políticos de uma classe aristocrática dos proprietários de terra que através desse
monopólio controlava os preços dos gêneros alimentícios.
Outro conceito fundamental para entender o liberalismo clássico é o de justiça,
visto como a conservação de normas e procedimentos formais materializados em uma
legislação, ou seja, a manutenção da “égide do direito”(rule of law). Pobreza e
desigualdades nessa perspectiva não constituem questões de justiça. A interpretação
formal da igualdade dada por essa corrente vê portanto a desigualdade como um fato
natural, a busca da igualdade econômica abala o mercado e destrói a liberdade por
conduzir a coerção estatal.
O Social-liberalismo tem suas origens no final do século XIX, influenciado pelo
utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que não deixava de apoiar a
economia de livre-mercado mas que consentia em uma atuação cada vez maior do
Estado, preocupados assim com um Estado ético que deveria proporcionar mais
oportunidades iguais para o desenvolvimento, que calcularia a satisfação geral da nação.
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A individualidade seria produto desse Estado ético. A expressão mais técnico-
econômica dessa vertente se encontra em John Maynard Keynes a partir da década de
1930 cujos trabalhos visavam a melhora da eficiência do mercado através da influência
estatal.
Essa vertente liberal estava comprometida com um “individualismo social”,
onde o bem do indivíduo é ligado ao bem da comunidade, e que o indivíduo nem
sempre sabe o que é melhor para si. A responsabilidade comunal em áreas específicas
da atividade humana, portanto, conduziriam ao melhor desenvolvimento dos indivíduos.
A liberdade nessa perspectiva era de caráter positiva, ou seja, implicava a ação do
Estado, sendo que essa liberdade social frequentemente implicava uma extensão das
regras do Estado. Tratava-se portanto, de retirar as repressões injustificáveis como a
pobreza, a doença e a velhice através da repressão justificável do Estado, opinião esta
sustentada por personalidades como Winston Churchill. Na perspectiva social-liberal
portanto inclui um conceito mais amplo de justiça, visando aplacar o sofrimento
causado pelas desigualdades.
Friedrich August Von Hayek, um dos proponente do neoliberalismo, distingue o
individualismo entre uma versão racionalista inexeqüível (associada a John Stuart Mill)
e uma versão “verdadeira” (mais de acordo com as tradições e convenções de uma
sociedade de mercado). J. S. Mill queria libertar o indivíduo das convenções enquanto
que para Hayek são as tradições morais e sociais que constituem a individualidade. Uma
versão mais radical do individualismo presente no neoliberalismo via o altruísmo como
um “canibalismo moral”, sendo o capitalismo a organização que melhor possibilita esse
tipo de vida, e portanto, deveria ser defendido como uma questão moral e não só
econômica. O declínio do liberalismo clássico para Hayek foi justamente devido a essa
reinterpretação da liberdade feita pelo social-liberalismo. Esta liberdade não deve ser
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confundida com um sentido abstrato do que significa se sentir livre, mas está
personificada na propriedade privada, sendo que a noção de repressão para Hayek não
pode abarcar coisas como a pobreza e o desemprego, a repressão é somente aquela que é
intencional.
A obra de Hayek The Road to Serfdom retoma o conceito liberal clássico de
justiça onde a práticas distributivas geram injustiças devido à arbitrariedade do
distribuidor, fazendo com que o indivíduo pague por uma sociedade ineficiente. Na
mesma corrente de Hayek, outros afirmam que os incapazes, os ociosos, e os fracos
devem ser eliminados, tentar poupá-los através da redistribuição é um paternalismo que
inverte o processo evolucionista. A desigualdade portanto, é vista nos mesmos moldes
clássicos, ou seja, como parte de um processo natural.
Como essa pesquisa é focada nas expressões mais contemporâneas do
liberalismo uma contextualização da política internacional a partir da década de 1970
será o tema da próxima parte desse trabalho.
1.2 - Um breve histórico
A década de 1970 foi caracterizada por Saraiva como a das “Ilusões
igualitaristas” – quando Sul busca projetar-se no cenário internacional, afirmação do
conceito de Terceiro Mundo. Nas primeiras sessões da Unctad (1964) emerge o tema de
acumulação de riqueza na mão de poucos – Grupo dos 77 é criado. Formulação de
agenda própria para incluir países em desenvolvimento – percepção de dependência
estrutural em relação aos centros econômicos – o sonho de uma “nova ordem
internacional”, econômica e politicamente mais justa foi projetado na década de 70.
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Não só uma postura política de não alinhamento, o movimento de Terceiro
mundo tinha interesses concretos como a reforma das regras de comércio, transferência
de recursos e tecnologias, eliminação de barreiras alfandegárias no Norte, valorização
dos produtos exportados pelo Sul, criação de preferências comerciais sem contrapartida,
a desideologização das relações internacionais, e o reforço da cooperação internacional
passaram a ser objetivos da política externa de vários países do Sul. O não alinhamento
alcançou maior projeção política graças as condições criadas pelo clima de détente1.
José Flávio Sombra Saraiva resume bem o auge dessa postura do Terceiro
Mundo: “Em 1974 a ONU adota a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos
Estados, sendo um marco das reivindicações dos países do Sul por uma “ordem
econômica internacional” mais justa e equitável. A proposta, declaração e o programa
de ação sobre o estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica internacional (Noei)
foram convertidos em Resolução da Onu em 1979.” (SARAIVA, p.83). No entanto as
frustrações decorrentes das dificuldades de diálogo na Unctad e as parcas conquistas das
chamadas Décadas das Nações Unidas para o Desenvolvimento (1960 e 1970)
culminaram em 1981 na Conferência de Cancun que representou o auge e a queda desta
postura. Nessa conferência Reagan faz uma declaração sobre supremacia do mercado
livre, onde a diplomacia econômica deveria se limitar a liberar o acesso aos mercados
de bens e serviços, facilitar o fluxo de capitais privados, desregulamentar atividades e
proteger a propriedade intelectual.
O texto da Noei buscava diminuir a dependência em relação aos centros
hegemônicos. Resoluções e recomendações aprovadas na ONU elevaram o sentido de
justiça. Ocorreu uma ampliação de conceitos fundamentais, havendo alguns ganhos
1 Período da Guerra-Fria entre finais da década de 1960 até inícios de 1980, em que as tensões entre Estados Unidos e União Soviética diminuíram através de uma série de medidas diplomáticas tomadas por ambos no intuito de aumento de confiança entre as duas super-potências. Isso se deve à uma percepção dos prejuízos dos crescentes gastos militares, mas também da consciência da mutually assured destruction, a destruição mútua garantida pelos armamentos nucleares.
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morais e jurídicos por parte dos não alinhados, não podendo ser estes subestimados
ocorrendo reformas no Gatt (General Agreement on Tariffs and Trade) para a proteção
de indústrias nascentes. No entanto os resultados práticos e as recomendações de foros
como a Unctad tiveram aplicabilidade mínima.
Período também de intranqüilidade econômica, a década de 1970 que para
Saraiva , as matrizes da economia política da globalização dos anos 90 se encontram
naquela época (Idem p. 85). Crises econômicas (1973 a 79) tornaram o sistema
internacional da détente vulnerável. Tensões Norte sul recrudescem para uma nova
forma de antagonismo no final de 70 e início dos 80 com elevação dos juros
internacionais (aumento da dívida externa de países que tomaram empréstimos para se
desenvolver tornando insustentáveis os programas nacionais nesse sentido). Durante os
choques do petróleo (1973-79), os países periféricos produtores de petróleo se
apresentam em bloco devido ao enriquecimento obtido graças aos choques. Reação das
empresas levou a novos desenvolvimentos tecnológicos (“3ªRevolução Industrial” para
alguns) e formas descentralizadas de produção.
O sistema regulatório de Bretton Woods sofreu uma erosão contínua partir da
suspensão da convertibilidade do dólar em 1971, decisão tomada unilateralmente pelos
EUA. Novas tentativas de coordenação de políticas cambiais foram feitas mas não
produziram resultados disciplinadores como o objetivado, havendo a expansão dos
mercados financeiros de maneira anárquica durante toda a década. Isso caracterizou o
que Ernst Labrousse alcunhou de “conjuntura histórica de transformação”.
Na passagem da década de 1980 para 1990 há o surgimento de múltiplas
polaridades, e os eixos Leste-Oeste (Capitalismo e Socialismo) e Norte-Sul
(Desenvolvidos e Subdesenvolvidos) deixam de organizar exclusivamente a política
mundial. A Organização Mundial do Comércio surge como instância multilateral, dando
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resposta a essa múltipla polaridade. Autores da época, como observa Saraiva, marcaram
a este período um sentido de ruptura sendo para os propósitos dessa pesquisa
interessante a observação de considerações como a de Richard Rosencrance, que afirma
o fim do estado territorial e a ascensão do Estado Comercial, e Nigel Harris que postula
o fim do Terceiro Mundo, questões essas melhor discutidas posteriormente. O Terceiro
mundo se erodiu pela crise das dívidas externas e fragmentação devido ao rápido
crescimento econômico na Ásia Oriental e desempenhos sofríveis (América Latina),
medíocres(Ásia do Sul e Oriente Médio) e catastrófico(África), sucessos econômicos
coincidiram com sucessos políticos.
Países do Terceiro Mundo que não possuíam capacidade produtiva para
contrabalancear a sua balança comercial frente os países produtores de petróleo tiveram
que se endividar para sustentar sua demanda por petróleo. Os desequilíbrios nas
balanças de transações correntes dos países causaram o enorme crescimento das taxas
de juros sobre empréstimos, com graves conseqüências para países desenvolvidos e em
desenvolvimento, tendo a crise fiscal do Estado se instalado em ambos, e com isso um
tremendo impacto nos movimentos transnacionais de capital. No entanto os mais
afetados foram os países subdesenvolvidos, que se tornaram “exportadores de capital”
para os países mais ricos, ou seja, grandes transferências líquidas de capital na forma de
amortizações de capital por empréstimos anteriores e pagamentos de juros pelo uso de
capital estrangeiro eram feitos. Eventualmente com a abertura da crise da dívida
externa, ou seja, a incapacidade da continuidade dos pagamentos, entre 1983 e 1984
houve uma queda de 40 bilhões de dólares nos pagamentos, e com isso o término de
empréstimos para a América Latina.
Essa inadimplência colocou o sistema bancário internacional sob o risco de uma
quebra generalizada, o que gerou o movimento de recursos por parte dos países
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desenvolvidos e das instituições multilaterais, tentando assim manter as aparências de
normalidade e de socializar os prejuízos dos banqueiros privados, evitando a quebra do
sistema bancário. A manutenção das aparências de normalidade foi produto de um medo
de que houvesse uma outra Grande Depressão como a da década de 1930, evitava-se
portanto usar o termo “depressão” pois este havia se tornado tabu e o uso dele poderia
“conjurar a coisa” (HOBSBAWM, p. 394), ou seja, admitida a crise, esta poderia se
tornar pior por uma possível histeria dos mercados financeiros.
Só no final da década, com o reconhecimento da incapacidade dos países em
desenvolvimento de realizar os pagamentos, houve alguns descontos sobre o valor
nominal. Somente na década de 1990 se reconheceu também que os “problemas do
presente eram de fato piores que os da década de 1930.” (idem). Sendo assim, os países
desenvolvidos buscam coordenação de políticas macroeconômicas e cambiais através de
encontros de ministros de finanças, cooperação de bancos centrais, e da criação de
instâncias de regulação para solucionar os problemas causados pelos choques do
petróleo e pela crise da dívida, havendo também a promoção do diálogo “Norte-Sul”.
Na década de 80, o que se nota é a fragmentação do Sul, com países asiáticos se
sobressaindo enquanto a América Latina estagna com alguns prejuízos sociais e vários
países africanos declinam. O que acontece portanto é a reversão da agenda política
internacional que reivindicava uma “nova ordem internacional”. A “nova ordem”
deveria ser implementada pela ONU e suas agências especializadas como a Unctad a
fim de corrigir as deficiências dos países menos desenvolvidos, no entanto com a
mudança de foco da agenda onde figura a nova ideologia liberal, que juntamente com a
crise da dívida diminuiu a capacidade de barganha dos porta-vozes do
desenvolvimentismo, o discurso terceiro mundista perde sua relevância na coordenação
de posições entre países.
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Almeida contextualiza de forma sucinta o caráter das políticas econômicas
adotadas a partir da década de 1980 no intuito de solucionar a crise: “As relações
internacionais nos anos 80 e 90 são caracterizadas pela irupção de diversos mecanismos
desestabilizadores em vários setores da vida econômica das nações tornada cada vez
mais interdependente: os movimentos são particularmente bruscos, traumáticos ou
inovadores nos campos financeiro e monetário (flutuação desordenada das moedas e
volatilidade dos capitais de curto prazo), dos mercados de capitais e das balanças de
pagamentos (alta dramática das taxas de juros e crise da dívida externa dos países em
desenvolvimento), bem como no sistema internacional de comércio (expansão do
neoprotecionismo e introdução de uma vasta agenda negociadora do Gatt, absorvido
pela Organização Mundial do Comércio, OMC).” (ALMEIDA in SARAIVA, p.115).
Vale destacar aqui que apesar da nova ideologia liberal que sustenta as políticas
econômicas mencionadas acima, os países asiáticos que obtiveram o crescimento de
suas economias adotaram políticas pragmáticas de industrialização e desenvolvimento
tecnológico dirigidas pelo Estado, combinando com isso uma certa ortodoxia fiscal e
monetária, não seguindo portanto as receitas liberais estritamente.
O dinamismo das economias orientais forçou muitos países a adotarem políticas
concorrenciais e geoeconômicas. Na América Latina isso se caracterizou pela
liberalização do comércio e liberalização das inversões diretas estrangeiras e dos
regimes de pagamento da dívida. Com a adoção dos cânones neoliberais as economias
se voltam para o exterior, liberalizam seu comércio através de quedas tarifárias, buscam
o ajuste estrutural e a estabilidade das moedas e retiram o Estado empreendedor por
meio de privatizações.
Em meados da década de 90, as esperanças na nova fase do crescimento, com
destaque para as economias asiáticas, se desfazem devido às crises financeiras e
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cambiais da segunda metade da década, com a insolvência do México (1994-95)
considerada a primeira crise financeira do séc.XXI tanto pelo “tecnocrata” cristão
Michael Candessusm, ex-diretor gerente do FMI, como pelo historiador Eric J.
Hobbsbawn .(SARAIVA, p.85)
O comércio internacional desde os anos 60 foi considerado pelo Sul como o
caminho para o desenvolvimento havendo crescido no período (1970-90) de maneira
superior ao crescimento da produção, com a evolução diferenciada desse intercâmbio.
Os países asiáticos dobravam sua participação no comércio global enquanto na América
Latina este diminuía e na África caía pela metade. Normativa e institucionalmente no
entanto o comércio cresceu de forma contraditória com o surgimento de novas barreiras
não-tarifárias ao mesmo tempo em que negociações comerciais de acesso a mercados no
âmbito do Gatt crescem, abordando de forma inédita categorias como serviços, bens
imateriais (investimentos, patentes e tecnologia proprietária) e alguns produtos
agrícolas. A Rodada de Tóquio, concluída em 1979, reduziu ainda mais as tarifas sobre
produtos industrializados ao mesmo tempo em que foram excluídas da liberalização
áreas em que os países menos desenvolvidos tinham capacidade competitiva, como os
têxteis e bens agrícolas. Os resultados mais consistentes foram no terreno conceitual e
político, onde se reconheceu a necessidade de tratamento diferencial para os países
menos desenvolvidos.
Os sucessos nessa área, no entanto, foram de curta duração com a ascensão da
nova ortodoxia liberal (Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados
Unidos), que trouxe novamente “as duras regras do mercado ao terreno das relações
econômicas internacionais: acordos de matérias-primas, preferências para acesso a
mercados, continuidade de políticas intervencionistas, sustentação a setores industriais
incipientes, inexistência de legislações adequadas de proteção à propriedade intelectual,
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desrespeito a normas sociais e ambientais estabelecidas com base em critérios
estritamente unilaterais, todos esses elementos supostos ou efetivos das deficiências das
regras do intercâmbio tal como regido pelas normas do Gatt foram esgrimidos pelos
países desenvolvidos para exigir não mais o free trade, mas o fair trade, o comércio
julgado justo e leal segundo seus próprios argumentos.” (ALMEIDA in SARAIVA
p.121). Nesse intuito os países desenvolvidos reivindicam o lançamento da Rodada
Uruguai do Gatt, possuindo objetivos ambiciosos ao incluir áreas de investimentos,
propriedade intelectual e agricultura. Tendo durado mais do que o planejado, conseguiu
resultados fracos comercialmente mas institucionalmente sucedeu em criar a
Organização Mundial do Comércio, que era o objetivo desde o início da instituição do
Gatt que foi criado como um acordo provisório.
O Gatt concebido como o terceiro pilar do sistema econômico pós-guerra, apesar
de possuir a responsabilidade de organização e regulamentação do comércio
internacional segundo uma concepção liberal da economia, não impunha o livre-
comércio, buscando apenas discipliná-lo, admitindo o protecionismo transparente. No
entanto o que se observou na dinâmica entre países foi a pressão por uma liberalização
progressiva das economias em desenvolvimento enquanto um protecionismo velado
(barreiras não-tarifárias muitas vezes injustificáveis) crescia nas economias centrais.
1.3 - Neoliberalismo como projeto
Durante a década de 1970 a flexibilização da produção permitia uma maior
adaptabilidade às demandas do mercado, isso ocasionou a modificação das relações de
força e de poder entre empresas individuais e o mercado. As unidades produtivas se
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tornaram menores e muito mais dependentes do mercado e da demanda dos clientes.
Outra característica da época foi a enorme expansão dos mercados financeiros
internacionais, que começou com o déficit público dos Estados Unidos financiando a
guerra do Vietnã. Os Estados nacionais passaram a depender da confiança dos mercados
financeiros para implementar grande parte das políticas estatais. Estes mercados podem
gerar muito mais capital que os Estados, sendo esta uma das influências a favor das
privatizações. As relações de força entre os Estados e os mercados também mudaram.
(THERBORN, A Crise e o Futuro do Capitalismo in SADER)
“As Décadas de Crise foram a era em que os Estados nacionais perderam seus
poderes econômicos.”(HOBSBAWM, p.398) Isso fica mais claro com a análise de
Stephen Gill sobre o crescimento do poder do Capital (no sentido dos mercados
financeiros) exercendo poder sobre os Estados, de certa forma os coagindo a adequarem
suas políticas às demandas do mercado financeiro, ao perigo de se tornarem irrelevantes
se não o fizessem. Os Estados passaram a buscar tornar suas economias mais atraentes
do que a dos outros para atrair fluxos de investimentos. Os Estados se viam a mercê de
um “mercado mundial”, não podendo revitalizar suas economias unilateralmente devido
a interdependência das economias e mercados.(GILL e LAW, Hegemonia global e
poder estrutural do capital in GILL)
Continuando sobre essa perda de autonomia estatal por parte dos países menos
desenvolvidos Hobsbawm coloca que: “A autoridade dos organismos financeiros
internacionais estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial [são um instrumento de ação internacional
protegido contra Estados-nações e democracias]. Apoiados pela oligarquia dos grandes
países capitalistas, que, sob o vago rótulo de “Grupo dos Sete”, se tornaram cada vez
mais institucionalizados a partir da década de 1970, eles adquiriram crescente
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autoridade durante as Décadas de Crise, à medida que as incontroláveis incertezas das
trocas globais, a crise da dívida do Terceiro Mundo e, após 1989, o colapso das
economias do bloco soviético tornaram um número cada vez maior de países
dependentes da disposição dos países ricos de conceder-lhes empréstimos. Esses
empréstimos eram cada vez mais condicionados à busca local de políticas agradáveis às
autoridades bancárias globais.”(HOBSAWM, p. 420)
O aumento de autoridade no entanto não foi frente a todos tendo especial
impacto na América do Sul e na África, cujas economias se encontravam fragilizadas
pela crise da dívida combinada com a recessão, enquanto nos países asiáticos a
influência foi mínima e frente os países desenvolvidos a influência era nula. Exemplo
disso foi a existência de déficits públicos altos nas nações desenvolvidas no início da
década de 1990, que não sofriam pressões mesmo assim, enquanto déficits muitas vezes
menores geravam “missões” do FMI e Banco Mundial na América Latina. Essa
influência se caracterizou pelo que ficou conhecido como a cartilha do “Consenso de
Washington”, definindo as políticas econômicas a serem adotadas pela América Latina.
A adoção dos cânones neoliberais foi o produto das crises da década de 1970
quando a única alternativa oferecida era a propagada pelos ultraliberais, a valorização
destes foi reforçado pelo fracasso das políticas convencionais se refletiu na premiação
do Nobel em 1974 à Friedrich Von Hayek e em 1976 à Milton Friedman. A propagação
dessa ideologia que remete à criação da Sociedade de Mont Pèlerin só desembocou no
domínio das políticas de governo na década de 1980 (HOBSBAWM, p. 398-99). O
marco do pensamento denominado ‘neoliberal’ está na obra de Hayek “O caminho da
servidão” de 1944, que logo após a publicação de sua obra organizou a reunião de Mont
Pèlerin na Suíça, onde se encontravam intelectuais simpáticos a essa corrente como
Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ledwig Von Mises, Walter Eupkan,
19
Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, dentre outros, fundando
assim a Sociedade de Mont Pèlerin, cujo pensamento só ganhou força com as crises que
começaram em 1973.
Contextualizando os conflitos ideológicos da época Hobsbawm coloca: “A
batalha entre keynesianos e neoliberais não era nem um confronto puramente técnico
entre economistas profissionais, nem uma busca de caminhos para tratar de novos e
perturbadores problemas econômicos. (...) Era uma guerra de ideologias incompatíveis.
Os dois lados apresentavam argumentos econômicos. Os keynesianos afirmavam que
altos salários, pleno emprego e o Estado de Bem Estar haviam criado a demanda de
consumo que alimentara a expansão, que bombear mais demanda na economia era a
melhor maneira de lidar com depressões econômicas. Os neoliberais afirmavam que a
economia e a política da Era de Ouro impediam o controle da inflação e o corte de
custos tanto no governo quanto nas empresas privadas, assim permitindo que os lucros,
verdadeiro motor do crescimento econômico numa economia capitalista, aumentassem.”
(HOBSBAWM, p.399)
Os neoliberais iam mais longe, declaravam abertamente a necessidade da
desarticulação de sindicatos pois estes elevaram os salários, que ao destruir os níveis
necessários de lucros das empresas, desencadearam processos inflacionários causadores
das crises. Com a restauração da taxa “natural” de desemprego, criando assim um
exército de reserva de trabalhadores que pela regra de oferta e procura diminuiria os
salários. Os Estados deveriam almejar principalmente a estabilidade monetária, e isso só
seria obtido segundo estes teóricos através da diminuição dos gastos sociais dos Estados
que também deveriam fazer reformas fiscais para incentivar os agentes econômicos
reduzindo os impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre rendas, o aumento da
desigualdade, portanto, dinamizaria as economias avançadas.
20
Não havia no entanto uma receita única do neoliberalismo. Nos EUA onde o
conservadorismo fiscal e o “monetarismo” de Milton Friedman eram regra, o governo
Reagan utilizou remédios keynesianos para sair da crise de 1979-82 adquirindo um
déficit gigantesco devido ao aumento exponencial dos armamentos. Esse
“keynesianismo militar disfarçado” foi fundamental para a recuperação das economias
da Europa Ocidental e da América do Norte. (ANDERSON, Balanço do neoliberaismo
in SADER) Deve-se ressaltar aqui que a prioridade dada à competição militar no
governo de Reagan fazia parte do ideário neoliberal, que sempre incluiu o
anticomunismo mais intransigente. No continente europeu as práticas foram mais
cautelosas, no Sul do continente Europeu as tendências contrárias a esse ideário
acabaram cedendo à ortodoxia eventualmente, como por exemplo a França. Governos
“de esquerda” ou “trabalhistas” adotaram políticas favoráveis ao capital financeiro e às
privatizações (p.ex. a Espanha) ou adotaram agendas tão ou mais radicais que Thatcher
(p.ex. a Nova Zelândia).
Ao final da década de 1980, com exceções feitas à Suécia, Áustria e Japão, nos
demais países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico) idéias do Neoliberalismo triunfaram. Isso resultou numa taxa de
desemprego duplicada, queda na inflação, aumento do lucro das empresas e aumento da
desigualdade com a redução de 20% na tributação dos salários mais altos. Ao contrário
do previsto, a recuperação dos lucros não levou a um aumento nos investimentos, pois a
desregulamentação financeira criou elementos mais propícios para a inversão
especulativa do que para a produtiva. Durante essa década houve a explosão dos
mercados financeiros com a conseqüente queda do comércio mundial, este, por sua vez,
passou a crescer novamente com a ascensão do “tigres asiáticos”.
21
A derrota do comunismo na Europa Oriental e União Soviética deu novo alento
ao projeto neoliberal que já estava desgastado economicamente. Em 1991 a Suécia fez
concessões ao avanço neoliberal diminuindo parte dos benefícios sociais. Em 1992
Major sucede Thatcher na Inglaterra mantendo as mesmas políticas. Em 1993
Berlusconi se elege na Itália e o socialismo sai derrotado nas eleições francesas. Os
novos arquitetos das economias pós comunistas no Leste Europeu por sua vez eram
seguidores convictos de Hayek e Friedman, adotando um projeto neoliberal mais radical
do que no Ocidente, aceitando prejuízos sociais e econômicos muito maiores.
Na América Latina, o Chile antecipou a todos adotando quase uma década antes
que Thatcher uma política econômica neoliberal projetada por economistas norte-
americanos. A adoção dessas políticas foi facilitada pela presença de uma ditadura
militar no país que impossibilitava qualquer oposição. Vale comentar, para efeitos de
esclarecimento que para o ideário neoliberal a ausência de democracia não é
contraditória pois, um governo totalitário que respeite a liberdade econômica seria
preferível “se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais
de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse.”
(ANDERSON in SADER) A liberdade e a democracia poderiam se tornar
imcompatíveis, segundo Hayek. No resto do continente as oposições políticas só
permitiram em finais da década de 1980, devido à crise de 1987, uma guinada neoliberal
no continente. Sendo assim em 1988 Salinas assume no México, em 1989, Menem na
Argentina e Carlos Andrés Perez na Venezuela e em 1990 Fujimori no Peru.
Das quatro experiências citadas houve três ‘sucessos’ e um ‘fracasso’
(Venezuela). O sucesso foi condicionado à concentração de poder no Executivo que no
México já existia e que no Peru e Argentina inovações legislativas foram feitas
(legislações de emergência e reformas constitucionais). Na Bolívia a hiperinflação
22
fragilizou a população induzindo-a aceitar o programa neoliberal, fato similar ocorre no
Brasil posteriormente. Chile, Argentina, México e Bolívia são considerados por
Anderson campos privilegiados de experimentação do Neoliberalismo.
O Neoliberalismo foi mais bem sucedido política e ideologicamente que social e
economicamente, “(...) a agudeza maior da crise econômica – especialmente da crise
fiscal do Estado, refletida na inflação, como resultado de um forte conflito distributivo –
propiciou um sucesso maior ao controle da inflação, produzindo efeitos ideológicos e
políticos mais fortes a partir da diminuição brusca e espetacular de processos
hiperinflacionários desatados ou em curso.” (SADER, Hegemonia Neoliberal na
América latina in SADER, p.36). Depois desse sucesso perde-se o impulso: “os déficits
nas balanças de comerciais, nas balanças de pagamentos, a desindustrialização, os
desequilíbrios sociais, com taxas altas de desemprego, as clivagens sociais
aprofundadas, as instabilidades provenientes da profunda abertura ao mercado
internacional foram refletindo esse novo período”.(idem, p.36-7) A sociedade fica
dividida entre aqueles que podem se defender minimamente dos processos
hiperinflacionários e aqueles que não o podem. As elites provocadoras dos processos
inflacionários com suas dinâmicas especulativas fazem “com que as classe subalternas
paguem o preço das políticas antiinflacionárias.” (ibid)
23
2 - A Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas – 2.1 Considerações
Históricas
A Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas (UNCHR na sigla em
inglês ou simplesmente CDH) foi criada em 10 de dezembro de 1946 na primeira
reunião do ECOSOC (Conselho Econômico e Social das Nações Unidas) segundo
disposições previstas na Carta das Nações Unidas (artigo 68) de se criar um órgão de
direitos humanos dentro do sistema da ONU. A Comissão é composta por 53 Estados
membros, sendo auxiliada pela Subcomissão de Promoção e Proteção aos Direitos
Humanos, mas também por especialistas em direitos humanos, representantes e
Relatores Especiais. A CDH realiza reuniões regulares a cada ano por seis semanas
entre março e abril em Genebra, podendo se reunir excepcionalmente em uma sessão
especial contanto que a maioria dos Estados concorde. A literatura existente sobre a
Comissão divide sua história em três partes: de 1947 a 1954 com a redação de normas
gerais, tendo como resultado a Declaração Universal de Direitos Humanos; a de 1955 a
1966, quando se focou na promoção de direitos humanos, tendo organizado os Pactos
Internacionais de 1966 (sobre direitos civis e políticos e sobre direitos econômicos,
sociais e culturais), e a partir de 1967, quando foram tomadas iniciativas para proteger
os direitos humanos. As primeiras duas partes são costumeiramente definidas como
partes de um período “abstencionista”, onde a Comissão admitia não possuir poderes
para tomar medidas contra violações dos direitos humanos, e a última parte como o
início do período “intervencionista”, período em que mecanismos de observância dos
direitos humanos foram criados.(ALVES, 1994, p.6-7).
A divisão da história da Comissão na verdade coincide com o próprio mandato
definido pelo ECOSOC que dividia as atividades em três partes: a criação de uma
declaração de caráter abrangente, a criação de mecanismos que vinculassem mais os
24
Estados à obrigação de proteção dos direitos humanos e, por último, o monitoramento
da situação dos direitos humanos no mundo. Nas duas primeiras atividades, a Comissão
foi considerada mais bem sucedida, apesar do pequeno número de países que adotaram
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (votação de 48 a zero, havendo 8
abstenções). No segundo período, que culminou na criação dos dois Pactos
Internacionais, os julgamentos quanto aos trabalhos da Comissão são ambígüos, por um
lado conseguiu estabelecer mais especificamente os direitos humanos abarcando um
número maior de Estados, mas por outro teve que dividir os direitos humanos em dois
pactos para conseguir a conciliação das posturas Ocidental e Oriental. O terceiro
período é o mais criticado da história da Comissão, com acusações de ter se tornado
enviesada (por parte de ambos os lados), ou mesmo de ter se tornado um joguete
político dos Estados.
O período considerado intervencionista se iniciou em 1967 com o recebimento
pela Comissão de petições do Comitê da Descolonização sobre as violações de direitos
humanos na África do Sul relativas ao apartheid que ocorria. A adoção do ECOSOC da
Resolução 1235 deu à CDH e a seu órgão subsidiário, a Subcomissão para a Prevenção
de Discriminação e Proteção de Minorias, competências de investigar e produzir
relatórios sobre violações flagrantes de direitos humanos. Esse aumento do escopo de
ação da CDH dividiu os Estados ocidentais e socialistas; os países ocidentais agora
buscavam uma maior atuação da Comissão enquanto os socialistas eram contrários a
qualquer tipo de monitoramento internacional de atividades relativas à soberania
nacional. A discussão perdurou até 1970 quando o ECOSOC adotou a Resolução 1503
intitulada “Procedimentos para lidar com comunicações relativas a violações dos
direitos humanos e liberdades fundamentais”. Nesta resolução, os procedimentos, na
forma em que foram regulamentados, permitiam a consideração confidencial dos casos
25
sendo selecionados ao longo de diversas etapas; a seleção dos casos e a lentidão dos
trabalhos foram alvos de críticas ao longo dos anos.
Apesar das resoluções adotadas, as atividades da Comissão se mantiveram
limitadas aos casos de quatro Estados: África do Sul (apartheid), Chile (ditadura de
Pinochet), Israel (violações ocorridas nos territórios ocupados após a Guerra de Seis
Dias), e Rhodesia (ex-colônia britânica e atual Zimbábue). As atividades eram
caracterizadas pela criação de Grupo de Peritos, que realizavam visitas de investigação
e inspeção in situ e de Grupos de Trabalho que examinam os testemunhos recebidos. A
partir de 1980, a Comissão estabeleceu Relatores Especiais, Representantes e Enviados
Especiais para vários outros países. A partir de 1980 outros mecanismos foram criados
com o estabelecimento do Grupo de Trabalhos sobre Desaparecimentos Forçados ou
Involuntários, servindo de modelo para a criação de outros mecanismos similares na
supervisão temática dos direitos humanos.
Apesar dos diversos avanços observados pela Comissão na obtenção de
reconhecimento dos seus trabalhos, assim como no aumento do escopo de sua ação, as
críticas à CDH foram contínuas ao longo dos anos desgastando a sua legitimidade até o
ponto em que esta foi extinta em 2006. Para entender melhor esse fato, algumas
considerações mais pormenorizadas sobre a história da Comissão devem ser feitas. Jack
Donnely (DONNELY, 1988) desenvolveu um estudo quantitativo sobre a Comissão
procurando esclarecer as acusações de que a Comissão seria enviesada. Seu estudo
consistiu em estabelecer o número de reuniões da Comissão e tempo gasto com cada
área (Donnely divide em 7) concernente aos direitos humanos. Segundo esse autor,
durante todo o período analisado (1955-1985), 20% do tempo da Comissão foi gasto
com questões relativas aos direitos civis e políticos (sendo metade do tempo gasto com
26
questões de discriminação racial); em contraste, apenas 5.5% do tempo da comissão foi
gasto com questões relativas aos direitos econômicos, sociais e culturais.
No período de 1955-1965, Donnely observa que os direitos econômicos e sociais
nem eram discutidos, pois o ocidente era quem determinava as discussões nesse
período. Posteriormente com a obtenção de maioria pelo Terceiro Mundo, o enfoque
passou a ser a discriminação racial e o direito de autodeterminação, em menor ênfase.
Outra característica interessante é que, enquanto os direitos civis e políticos eram
discutidos separadamente, os direitos econômicos e sociais eram quase exclusivamente
considerados como um grupo. Donnely explica isso afirmando que provavelmente esse
tipo de agrupamento é feito porque os países do Terceiro Mundo têm muito a esconder
quanto à realização dos direitos econômicos e sociais, sendo que aqueles no poder
desses governos são justamente os beneficiários das políticas que violam esses direitos,
assim como da má distribuição da riqueza. Concluindo que a CDH é mesmo enviesada,
o autor aponta como um dos principais problemas da Comissão a questão da política de
poder existente, onde Estados Unidos e União Soviética, as duas grandes potências do
período, se encontravam entre os países mais enviesados no que tange aos direitos
humanos, enquanto os Países Baixos e a Anistia Internacional, conhecidos pelo seu
prestígio nessa área, possuíam pouco ou nenhum poder.
Com o aumento de poder da Comissão a partir de 1980 “targeted resolutions”
passaram a ser expedidas; essas resoluções apontavam Estados especificamente,
tratando das violações de direitos humanos que ocorriam ao redor do mundo. No
entanto, assim como aponta Ron Wheler (WHELER,1999), que analisou essas
resoluções no período de 1982 a 1997, apenas 22 governos foram apontados, sendo que
vários casos foram ignorados onde os países acusados conseguiam apoio de outros
Estados, evitando assim serem apontados. Regionalmente essas resoluções se focaram
27
na Ásia, África e América Latina. A completa ausência de capacidade da Comissão de
passar sequer uma avaliação sobre as condições dos direitos humanos nos países
ocidentais tira boa parte de sua credibilidade. Muitos países do bloco socialista e do
Terceiro Mundo também conseguiram evitar em sua maioria serem alvos das
resoluções. Wheler vai mais longe e afirma que a ausência de universalidade da
aplicação dos padrões internacionais e a tendência da Comissão de passar resoluções
cada vez mais “suaves” têm enfraquecido os julgamentos da Comissão e seu impacto
público.
2.2 - A questão dos direitos humanos: um retrospecto de sua afirmação
internacional
Antes de iniciar a análise propriamente dita do documento, algumas
considerações históricas para melhor expor a intertextualidade inerente à Declaração de
Viena e Programa de Ação são necessárias. Além destas, questões relativas à
espacialização (dinâmica do espaço utilizado) e actancialização (definição dos sujeitos)
precisam ser brevemente delineadas inicialmente no intuito de evitar repetições
desnecessárias.
As primeiras declarações sobre os direitos humanos remontam às Revoluções
Americana e Francesa que reconhecem todos os homens como igualmente vocacionados
na sua “busca da felicidade” (Declaração de Independência dos Estados Unidos) e na
sua igualdade em direitos e liberdades logo ao nascer (Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, art. 1º). Fábio Konder coloca sobre isso:
“A partir das declarações de direito do final do século XVIII, porém, estabeleceu-se a distinção entre a liberdade pública, com o sentido político de autogoverno, e as liberdades privadas, como instrumento de defesa do cidadão contra as interferências governamentais. Benjamin Constant, expressando a visão burguesa do mundo, chegou a contrapor estas a aquela, mostrando que, enquanto os antigos só se preocupavam com a participação política do cidadão e desconheciam a autonomia privada, os modernos estão sempre prontos a abrir
28
mão da participação política, contanto que lhes sejam preservadas as liberdades individuais.” (KONDER, 2001, p.62-3).
Benjamin Constant era um dos principais representantes da facção
constitucionalista mais moderada da Revolução Francesa, que entrou em forte
desacordo com os sans culotes que reivindicavam uma democracia participativa direta,
ao invés de representativa, e ocasionalmente defendiam teorias comunistas de
propriedade. Constant responsabilizou Jean Jaques Rousseau pelas reivindicações “mais
radicais” dos sans culotes (VINCENT, 1986, p.37), sendo Rousseau uma das principais
inspirações pela elaboração futura de direitos econômicos e sociais dentro da tradição
liberal e dos direitos humanos. O constitucionalismo moderno se apoiou no Estado
Liberal, atribuindo somente funções de manutenção da ordem e da segurança para que
as liberdades civis pudessem ser realizadas.
A formação discursiva mais “social” da tradição liberal foi nos seus primórdios
apagada, preterida frente às liberdades individuais, sendo gradativamente retomada ao
longo dos anos devido a pressões das populações pauperizadas pelo capitalismo
(somente em 1848 se reconheceram algumas proteções para os trabalhadores na
constituição francesa). Devido à crise de 1929 e à nova reestruturação do capitalismo,
na época muito dessa perspectiva foi retomada com a ascensão do New Deal dos
Estados Unidos e do “Estado de Bem-Estar Social” na Europa. O Neoliberalismo, a
partir da década de 70 se propõe então a uma retomada do liberalismo clássico sob
novas faces e isso tem uma influência na própria aplicação dos direitos humanos, sendo
portanto fundamental a observação do desenvolvimento do liberalismo para uma melhor
compreensão de como o discurso dos direitos humanos se afirmou historicamente.
A Carta das Nações Unidas, assinada por 51 países em 26 de junho de 1945,
concebe os direitos humanos como somente as liberdades individuais, no entanto esta
afirma a intenção de promover o progresso econômico e social mundialmente, criando
29
assim o ECOSOC (Conselho Econômico e Social das Nações Unidas) que em 1946
criou a Comissão de Direitos Humanos (CDH), responsável pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos e pelos dois Pactos Internacionais de 1966. A Carta afirmava a
ordem e a égide do direito (rule of law) como pré-requisitos para a manutenção e
observância da paz e dos Direitos Humanos. Na Carta também se afirmava já o direito
de autodeterminação dos povos, mas este se limitava somente a questões relativas ao
fim do jugo colonial sobre alguns povos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigida logo após o fim da 2ª
Guerra Mundial, tendo se omitido quanto à União Soviética e aos abusos cometidos
pelas potências ocidentais na intenção de se apaziguarem as diferenças, sendo um texto
recheado de recursos discursivos homogeneizantes, ou seja, cheio de generalidades e
repetições, evitando, ao máximo, especificidades, buscando assim obter a aceitação de
todos os países signatários. No entanto, apesar da aprovação unânime, se abstiveram de
votar os países comunistas, a Arábia Saudita e a África do Sul. A declaração,
tecnicamente, não passa de uma recomendação, sendo incluída total ou parcialmente
nos âmbitos jurídicos de vários países. Konder afirma que “A doutrina jurídica
contemporânea (...) distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, na medida
em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como
regras constitucionais escritas.” (KONDER, 2001, p.224). Dessa afirmação se
depreendem duas coisas, primeiro há de se definir quais são os direitos definidos como
fundamentais, ou seja, que possuem força vinculante nacionalmente e maior
reconhecimento internacionalmente. Segundo, como inexiste um poder internacional
que aplique os direitos humanos, a observância destes depende das preferências e
interesses estatais, ou seja, aqueles que cada Estado define como fundamentais.
30
A Declaração resgata os três princípios da Revolução Francesa (liberdade,
igualdade e fraternidade), princípios estes que só foram consagrados oficialmente no
ordenamento jurídico futuramente, tendo a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão francesa e a Bill of Rights norte americana (1776) se referido somente à
liberdade e à igualdade. A fraternidade, valor mais ligado à tradição de Rosseau, só foi
oficialmente adotada em 1848 na França.
A partir dos dispositivos fornecidos pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos foram adotadas três convenções internacionais: sobre os direitos políticos das
mulheres (1952); sobre o consentimento para o casamento (1962); e sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação racial (1965). Estendendo o sistema de proteção
universal a populações antes não contempladas, a Declaração também afirma o direito
de asilo político a vítimas de perseguição e o direito de todos a ter uma nacionalidade.
Isso remete a uma demanda histórica após a política de supressão de nacionalidade
alemã aplicada pelo Estado nazista, que retirou todos os direitos de minorias e pessoas
consideradas de origem judaica, dando assim a brecha legal para o Holocausto. Os
direitos humanos, portanto, não são protegidos independentemente da nacionalidade e
da cidadania.
Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Comissão sobre os
Direitos Humanos foi incumbida de criar mecanismos juridicamente mais vinculantes
do que uma declaração, elaborando em 1966 o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos, e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que
pormenorizam o conteúdo dos direitos humanos. A realização de dois tratados foi feita
dentro de uma necessidade diplomática, pois as potências ocidentais buscavam o
reconhecimento somente das liberdades individuais clássicas enquanto o bloco
comunista e países africanos destacavam os direitos econômicos e sociais. Declarou-se
31
então que a fiscalização seria feita somente sobre os direitos civis e políticos enquanto
os econômicos e sociais seriam realizados progressivamente conforme os recursos de
cada Estado.
O Protocolo Facultativo, anexo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, que atribui
a CDH a competência de receber e processar denúncias de violações aos direitos
humanos, no entanto, é dependente do reconhecimento do Estado acusado de violar os
direitos humanos, e foi, por isso, objeto de discórdia na adoção dos Pactos de 1966. A
aprovação do Protocolo teve dois votos contrários e trinta e oito abstenções,
provenientes não só de países comunistas, mas também de países do Terceiro Mundo e
da Europa Ocidental. Os primeiros suspeitavam de ingerência internacional nos
assuntos internos do Estado enquanto a Europa se julgava já vinculada pelos órgãos
criados pela Convenção Européia de Direitos Humanos. A ausência de um mecanismo
fiscalizador quanto aos direitos econômicos e sociais foi vista como uma falha, sendo
somente suprimida vinte anos depois quando se criou, contra o voto solitário dos
Estados Unidos, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Em 1993 a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, requisitada pela
Assembléia Geral da ONU ao Secretário Geral em 1989 para que questionasse
organizações e países sobre o desejo de realizar tal conferência, teve número sem
precedentes de participantes (por volta de 7.000) sendo que 171 Estados estavam
representados, também número recorde na época de participação. Essa Conferência
produziu a Declaração de Viena, que surge como uma afirmação da indivisibilidade dos
direitos humanos procurando unir a formação discursiva dos direitos civis e políticos
com a dos direitos econômicos, sociais e culturais, somando a esta também o direito ao
desenvolvimento adotado na Assembléia Geral da ONU em 1986.
32
A Declaração do Direito ao Desenvolvimento de 1986 já reconhecia este direito
como parte dos direitos humanos, no entanto, na votação da Assembléia Geral, os
Estados Unidos votaram contra e alguns países ocidentais se abstiveram (Dinamarca,
Finlândia, República Federal da Alemanha, Islândia, Israel, Japão, Suécia e Reino
Unido) tendo essa Declaração se mostrado uma reivindicação primordialmente do
Terceiro Mundo. Ela afirmava como primordiais a cooperação e o desarmamento
internacional, este último visto como essencial tanto pelo contexto de Guerra Fria como
pelos crescentes gastos militares e o peso que isto tinha sobre os orçamentos nacionais.
O fato de esse direito ser admitido na Declaração de Viena como indivisível e
inalienável se mostrou uma vitória para os países em desenvolvimento. No entanto, essa
concessão por parte dos opositores do passado tem duas razões. Primeiramente, o fato
de a Declaração de Viena especificar que a ausência do desenvolvimento não pode ser
invocada para justificar limitações aos outros direitos humanos. O outro motivo é o
próprio objetivo da Conferência Mundial para os Direitos Humanos: a afirmação da
universalidade dos direitos humanos frente ao colapso da União Soviética.
A universalidade intencionada implicou em concessões diplomáticas por parte
dos países em uma busca por unificar os discursos. Boutros-Gali, Secretário Geral da
ONU à época, afirmou na abertura da Conferência: “Two months earlier, the Berlin
Wall had fallen, carrying away with it a certain vision of the world, and thereby opening
up new perspectives.” 2 Boutros-Gali foi além, ao clamar aos países participantes que
deixassem de lado as políticas de poder para que fosse possível a obtenção do consenso.
Apesar da crença de que essa “visão de mundo” deixara de existir e, portanto, as novas
perspectivas abertas facilitariam a obtenção de consenso, o ambiente multilateral
implica negociações, concessões diplomáticas, relações de poder, alinhamentos
2 http://193.194.138.190/html/menu5/d/statemnt/secgen.htm- visitado em 1 de julho de 2008 às 22:00h – O secretário geral da ONU se referia ao momento em que lhe haviam requisitado a observância das vontades sobre a realização de uma conferência mundial sobre direitos humanos.
33
estratégicos de países. Quanto à natureza da escrita do documento: “A redação confusa,
repetitiva e, às vezes, ambígua de muitos parágrafos, típica da linguagem multilateral, é
decorrência de múltiplos aportes e objeções, cujo reflexo no texto foi imprescindível”
(ALVES, 1994, p.149). Trata-se de uma característica discursiva típica da linguagem
multilateral, pois as organizações envolvidas buscam abarcar sempre os interesses de
todos os Estados envolvidos, através de um convencimento pela repetição (isotopia) e
legitimação pelos documentos produzidos no passado (discursos/argumentos de
autoridade). Uma outra questão que merece atenção, e que também é típica da
linguagem multilateral, é a constante observância da soberania estatal, um dos
principais valores (senão o principal) da teoria Realista das Relações Internacionais, que
prima pela defesa dos interesses estatais. Essa perspectiva se complementa com a
perspectiva Liberal, teórica e ideologicamente, na definição do comportamento estatal
como será observado ao longo da análise do documento a seguir.
2.3 - Uma análise discursivo-ideológica da Declaração de Viena
Primeiramente nessa análise é importante ressaltar a utilização do conceito de
liberdades fundamentais, já utilizado no preâmbulo da Declaração de Viena, sendo
constantemente retomado ao longo de todo o documento. Este conceito, no entanto, já
se encontra presente na definição dos direitos humanos da Declaração Universal de
Direitos Humanos. A ênfase no conceito de liberdades fundamentais se iniciou na
Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms (Council Of
Europe) separando três artigos específicos para as liberdades (freedom), definindo a
liberdade de pensamento, consciência, religião, expressão, assembléia e associação.
Historicamente isso foi introduzido em um ambiente de Guerra Fria (4 de novembro de
34
1950), sendo o discurso das liberdades (freedoms) uma forma de afirmar o caráter
democrático das sociedades liberais, em oposição aos malefícios do comunismo, sendo esse
discurso reiterado no ambiente da (re)construção dos Estados do Leste Europeu, antes
partes da União Soviética. A ênfase reiterada na Declaração de Viena indica quais atores
provavelmente eram os principais articuladores dessa declaração (países europeus). A
construção gradativa e isotópica do conceito de liberdades fundamentais admite a existência
de outras formas de liberdade, como a liberdade da miséria (freedom from want) por
exemplo, no entanto somente as enunciadas acima são fundamentais. É importante observar
a distinção entre ‘liberty’ e ‘freedom’, pois a primeira tem um sentido mais relativo à
sociedade e à regulamentação de suas liberdades, enquanto a segunda se refere à realização
da livre vontade dos indivíduos, à ausência de restrições. O conceito de “freedom” é muito
mais recorrente nas discussões de direitos humanos, no entanto, ao ser traduzido, não se
distingue de “liberty”, sendo importante ressaltar essa significação para as subseqüentes
considerações.
Outra questão colocada no preâmbulo da Declaração de Viena refere-se à fé,
“faith in fundamental human rights”, que é indissociável da questão de direitos
humanos, pois estes derivam dos “direitos naturais” com origens em Platão e
Aristóteles, mas são incorporados à doutrina cristã, apesar de serem proclamados como
laicos e universais. Se estes assim o fossem, a fé a eles atribuída não seria necessária,
somente a observação de seu cumprimento seria imprescindível, ou mesmo nem esta,
pois já seriam reconhecidos e defendidos por todos mundialmente. A teoria dos direitos
naturais influenciou a filosofia de John Locke, um dos ideólogos do Liberalismo,
portanto a interdiscursividade desses direitos com o Liberalismo se encontra na sua
gênese, quando Locke afirma os três direitos naturais: vida, liberdade e propriedade
(bens acumulados).
35
Ainda no preâmbulo da Declaração se reafirma o compromisso, “(...) to establish
conditions under which justice and respect for obligations arising from treaties and
other sources of international law can be maintained, to promote social progress and
better standards of life in larger freedom, to practice tolerance and good
neighbourliness(…)”.3 O conceito de justiça é constantemente evocado, no entanto a
ausência de uma definição (inclusive na Carta das Nações Unidas) do que seria essa
justiça, por omissão presume uma formação discursiva única, predominante sobre esse
conceito, dando a entender que se trata somente de uma questão legalista, pois tratados,
obrigações e Direito Internacional são evocados logo em seguida. Liberdade maior ou
mais ampla não define também os âmbitos de sua expansão; a ausência de uma
definição presume uma definição anterior, nesse caso nos fazendo remeter à formação
discursiva das liberdades (“freedom”) fundamentais presentes em declarações
anteriores. Quanto à tolerância dentro dos direitos humanos esta “(...)não exige um
envolvimento ativo com os “outros” e reforça o sentimento de superioridade de quem
fala de um autodesignado lugar de universalidade.”, como apontado por Boaventura de
Souza Santos (SANTOS, 2003, p.31), ou seja não leva necessariamente a um maior
entendimento e paz como almejados.
A Declaração “enfatiza” que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
constitui um “(...) common standard of achievement for all peoples and all
nations(…)”4, interessante observar a escolha discursiva ao enunciar esse “padrão
comum”, pois presume, embasado nesse discurso de autoridade da Declaração de 1948,
que o estabelecimento de um padrão universal é possível. Toda sociedade tem seus
padrões e não se pode afirmar a existência de uma cultura mundial (ORTIZ, 2000).
3 (...) para estabelecer condições sob as quais a justiça e respeito às obrigações provenientes de tratados e outras formas de direito internacional possam ser mantidas, para promover progresso social e melhores padrões de vida em liberdade mais ampla, para praticar tolerância e boa vizinhança (...)” (tradução nossa)4(...) padrão comum de realização para todos os povos e todas as nações (...) (tradução nossa)
36
Ortiz coloca que apesar da ausência de uma cultura universal, o que ocorre é uma
“estandardização” de modos de vida, definidos principalmente pelo consumo. A
evocação de padrões universais dialoga com a perspectiva liberal de relações
internacionais que prevê uma sociedade internacional. Comum para a perspectiva liberal
em latto sensu é “o pressuposto da racionalidade como característica básica da
humanidade que abre as portas para o potencial de transformar as relações sociais e
realizar o progresso (lembrando que a racionalidade está, em última instância,
depositada nos indivíduos). A crença no progresso indica que é possível transcender a
política do poder ou o caráter endêmico da guerra.” (ALVES, 1994, p.51). O
estabelecimento desses padrões universais remete à racionalidade de Kant, que seria
capaz, por sua natureza auto-legisladora, de definir leis universais. A questão da crença
no poder da racionalidade para eliminar o caráter endêmico da guerra ocorre no
contexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi o do fim de duas
guerras de proporções nunca vistas antes.
Outro conceito de constante referência ao longo da Declaração de Viena é o da
“rule of law”5. A constante menção à “égide do direito” dialoga com a tradição
constitucionalista européia que se encontra nas raízes do liberalismo, para o qual esta
convergiu, apesar de algumas contradições, no período das Revoluções Francesa e
Americana. “Os diversos documentos constitucionais e leis de direitos humanos
começaram a se disseminar pela Europa [nessa época]. O ímpeto desse movimento
persiste até hoje. Não podemos nos esquecer de que apenas 20 anos depois da
Revolução Francesa a palavra “liberal” foi cunhada para uma facção precisa, os
liberales espanhóis, muito influenciada pelos acontecimentos na França.”(VINCENT,
1986, p. 36).
5 Tradução adotada aqui é a da “égide do direito” por ser uma tradução mais literal, apesar de J.A. Lindgreen Alves se referir ao “Estado de Direito”, adequando à linguagem jurídica brasileira.
37
Ao se referir às populações indígenas a Declaração reafirma “commitment of the
international community to ensure their enjoyment of all human rights and fundamental
freedoms and to respect the value and diversity of their cultures and identities”. Nessa
passagem percebe-se que o discurso universalista não prevê conflitos entre esses
direitos humanos e liberdades fundamentais com a diversidade das culturas indígenas. A
dificuldade posta por esse conflito já foi observada inclusive no Brasil. Sociedades onde
a definição de “cultura” ou a própria divisão entre a cultura, a política, o social e a
economia não é relevante, revela um problema na tentativa de convergir direitos
humanos e liberdades fundamentais com essas culturas. “A criação dos Estados
nacionais latino-americanos, seguindo o modelo europeu, se deu com a redação de uma
Constituição que estabelecia um rol de direitos e garantias individuais. Isso significou o
esquecimento de seus índios (...) aos índios sobrou como direito a possibilidade de
integração como indivíduo, como cidadão ou, juridicamente falando, como sujeito
individual de direitos. Se ganhava os direitos individuais, perdia o direito de ser povo.”
(SOUZA FILHO, Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, 2003, p.78).
Apesar do reconhecimento de alguns direitos como grupo por parte dos índios, a
observação destes direitos e liberdades pode ter um efeito análogo ao da formação dos
Estados nacionais ao conflitar com concepções mais coletivistas da dignidade humana
por parte desses grupos.
Ao invocar “o espírito de nossa era” a Declaração utiliza uma expressão
generalizante e, portanto, incapaz de revelar diretamente e com clareza sua natureza, sua
constituição ideológica, como se o conjunto de experiências históricas fosse algo único
para todo o mundo. Afirma-se, assim, uma “verdade” (a da necessidade dos direitos
humanos) que é legitimada por esse conjunto de experiências que é considerado
“único”. Trata-se de um discurso que busca produzir a homogeneidade da História
38
legitimando assim o conteúdo do que seria esse “espírito de nossa era”, a ser enunciado
de forma vaga posteriormente como algo em consonância com os direitos humanos.
No primeiro parágrafo da Declaração de Viena e Programa de Ação, a
Conferência Mundial dos Direitos Humanos afirma “The universal nature of these
rights and freedoms is beyond question”.6 O texto é redigido em grande parte na terceira
pessoa (buscando, assim, um caráter de objetividade e imparcialidade) com a exceção
de alguns parágrafos onde A Conferência Mundial dos Direitos Humanos figura,
representando uma entidade coletiva, uma primeira pessoa que uniria as subjetividades
individuais afirmando, assim, seu caráter universal /imparcial. Esse caráter universal é
colocado como “além de questionamentos”, ou seja, pleno em seus ideais. Esse discurso
tende ao autoritarismo, pois não admite contestação. No entanto, a história das
discussões sobre os direitos humanos e as diversas reservas feitas pelos países aos
tratados anteriores (número de reservas particularmente grande no que tange aos direitos
da mulher) revelam que estes não são inquestionáveis. Curiosamente as reservas feitas a
pactos anteriores de natureza mais vinculante não se circunscreve a um grupo específico
de Estados (ocidentais, bloco socialista ou terceiro mundo) tendo países de todos os
grupos recorrido a estes. Trata-se de um discurso de legitimação que visa atender ao
politicamente correto ato de publicação de uma lei universal para os povos e, por outro
lado, permite seu conseqüente não cumprimento velado. O recurso a reservas contesta
assim a universalidade desses direitos. A preocupação para que não haja reservas é
repetida diversas vezes ao longo do documento (parágrafo 26 p.ex.), preocupação esta
que não deveria existir se estes fossem reconhecidamente universais. Duas formações
discursivas competem ao longo do texto, a da universalidade e a da particularidade. O
texto se afirma repetidamente como universal, sendo os direitos incontestes, no entanto,
6 A natureza universal desses direitos e liberdades está além de questionamentos/ não admite dúvidas. (tradução nossa).
39
as particularidades se revelam constantemente, no “recurso a reservas” e na não clareza
do documento quanto a certos pontos, deixando para que estes direitos sejam
interpretados particularmente por cada Estado conforme seus interesses.
Ainda nesse primeiro parágrafo a Declaração afirma que “Human rights and
fundamental freedoms are the birthright of all human beings”. A questão dos direitos de
todos os seres humanos ao nascer é evocada, resgatando, mais uma vez, a tradição dos
direitos naturais. Esse processo isotópico elabora argumentos, figuras e temas,
recorrendo a esses mesmos traços semânticos, na busca de uma coerência interna ao
texto. Tal coerência caracteriza um processo argumentativo pela repetição que busca
persuadir o enunciatário quanto à idéia central do direito como algo natural e não
histórico-cultural. Por se tratar de um efeito de sentido de essencialidade, não estariam
passíveis, estas idéias, de contestação de qualquer tipo.
No segundo parágrafo se afirma “Taking into account the particular situation of
peoples under colonial or other forms of alien domination or foreign occupation, the
World Conference on Human Rights recognizes the right of peoples to take any
legitimate action (…) this shall not be construed as authorizing or encouraging any
action which would dismember or impair, totally or in part, the territorial integrity or
political unity of sovereign and independent States conducting themselves in compliance
with the principle of equal rights and self-determination of peoples and thus possessed
of a Government representing the whole people belonging to the territory without
distinction of any kind.”7 Novamente a reiteração de discursos já legitimados por outras
conferências e pela própria ONU criando assim um argumento de autoridade. Essa
7 Levando em conta a particular situação dos povos sob jugo colonial ou outras formas de dominação estrangeira ou ocupação por outros países, a Conferência Mundial reconhece o direito dos povos de tomar quaisquer ações legítimas, (...) isso não deve ser interpretado como uma autorização ou encorajamento de qualquer ação que procure desmembrar ou prejudicar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou unidade política de Estados soberanos e independentes, que estão conduzindo a si mesmos em conformidade com o princípio de direitos iguais e autodeterminação dos povos e, portanto, são possuidores de um governo representando toda a população pertencente ao território sem distinção de qualquer tipo. (tradução nossa).
40
argumentação se constrói através do resgate de uma formação discursiva (a da Carta da
ONU) que autoriza “ações legítimas” contra o jugo colonial e outras formas de
dominação estrangeira/ estranha, em um período quando a quase totalidade das colônias
já se encontra independente. Sendo assim, a ausência de clareza no texto visa satisfazer
o desejo de países emergentes por autodeterminação econômica sem ferir os interesses
dos Estados já estabelecidos ao resgatar outra formação discursiva que põe limitações a
esse direito de autodeterminação. Identidades de grupos internos a Estados podem,
portanto, ter formalmente seu reconhecimento, mas não o direito de autodeterminação
factual, pois a representatividade democrática não é estipulada, e nem cumprida com
clareza e de forma plena, sendo observada internacionalmente somente pelo critério de
“existência de eleições regulares”. Isso é particularmente problemático uma vez que a
existência de identidades locais que buscam autonomia dentro dos seus Estados é cada
vez maior. “(...) múltiplas identidades submetem ao Estado-Nação as reivindicações,
exigências e desafios da sociedade civil. (...) [O]s governos locais e regionais podem
tomar iniciativas em nome de suas respectivas populações, e até mesmo elaborar
estratégias de desenvolvimento distintas do sistema global, o que faz com que
concorram diretamente com os seus próprios Estados centrais. Aparentemente essa é a
tendência dos anos 90 em todo o mundo” (CASTELLS, 1999, p.317). No entanto a real
preocupação desse documento é a existência de identidades étnicas, culturais e
religiosas emergentes que transpõem as fronteiras estatais, em particular aquelas
provenientes das antigas repúblicas soviéticas, ou aquelas destituídas de Estado, como é
o caso da Palestina ou da Catalunha, esta última analisada por Castells na obra já citada
(pp60-9).
Posteriormente, no parágrafo 8 da Declaração, democracia, desenvolvimento e
respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais são apresentados como
41
interdependentes e que se reforçam mutuamente, no entanto não é apresentada uma
clara correlação de como o desenvolvimento se liga aos dois outros conceitos, havendo
somente uma breve descrição de como a democracia é essencial para a realização dos
direitos humanos e como o desenvolvimento deve se realizar com essas duas pré-
condições. A relação entre os conceitos não é construída, somente colocada
valorativamente. A ausência de interdependência fica clara quando o desenvolvimento,
tratado na sua vertente puramente econômica, na maior parte das vezes, nas relações
internacionais, não leva necessariamente a um desenvolvimento humano, ao respeito
pelos direitos humanos e à democracia. Isso se observa na queda do IDH e aumento de
desigualdades em países com PIB crescente e, além disso, não são poucos os exemplos
de autoritarismo por parte de ditaduras ou mesmo de ‘democracias’ (concentração do
poder executivo) em nome de um desenvolvimento nacional. O desenvolvimento visto
como uma característica principalmente econômica dialoga com a perspectiva
neoliberal no sentido em que a liberdade econômica é vista como a principal das
liberdades, sendo esta preferível a uma democracia que, pela vontade da maioria, limite
essa liberdade. Curiosamente essa construção discursiva se coloca em oposição ao
desenvolvimento dos governos socialistas, como a extinta União Soviética, no entanto a
ausência de interdependência entre desenvolvimento, democracia e direitos humanos se
dá inclusive nos países que adotam uma orientação neoliberal8, como foi o caso das ex-
repúblicas soviéticas, grande parte da América Latina, mas também em países
‘centrais’.
No parágrafo 10 da Declaração de Viena, a Declaração do Direito ao
Desenvolvimento de 1986 é retomada ressaltando o fato de que a pessoa humana é o
sujeito central do desenvolvimento. A Declaração do Direito ao Desenvolvimento
8 O Neoliberalismo é localizado historicamente, como explanado nas partes anteriores desse trabalho, mas retoma muito do liberalismo clássico.
42
acontece na época da defesa dos países do Terceiro Mundo por uma Nova Ordem
Econômica Internacional, sendo esta mencionada na Declaração, no entanto os
resultados dessa reivindicação não foram positivos, como apontado anteriormente no
histórico do Neoliberalismo. A asserção da pessoa humana como sujeito central do
desenvolvimento é um recurso argumentativo buscando satisfazer as reivindicações dos
países centrais, individualizando esses direitos, justificando assim uma série de políticas
e programas assistencialistas que ‘aliviam’ a pobreza e a ausência de desenvolvimento
(ponto este levantado no parágrafo 14 da Declaração, que também ressalta a
necessidade da eventual eliminação da pobreza), enquanto políticas estruturais de
caráter estatal e/ou coletivo são postas em segundo plano. Essa ênfase no indivíduo vai
ao encontro com a “doutrina das necessidades básicas” associada a economistas liberais
do ocidente, como bem explanado por R.J Vincent na sua obra Human Rights and
International Relations, onde direitos devem ser tratados como objetivos que podem se
sujeitar à análise econômica e aos custos e benefícios associados a eles. O
desenvolvimento, nessa perspectiva, é visto com uma particular ênfase nos seus custos;
dar acesso à educação nos níveis superiores para todos pode criar não só um custo
financeiro como pode criar uma classe insatisfeita que não consegue encontrar
empregos.
Apesar das contradições presentes nessa doutrina com os modelos de mercados,
esta pode funcionar como uma forma de imperialismo, pois as necessidades básicas na
visão ocidental, que informa instituições como o Banco Mundial, ligam essas
necessidades a indivíduos, evitando o caminho do desenvolvimento de populações em
países do Terceiro Mundo. Vincent afirma que “(...) basic needs doctrine issues a
general license for western meddling in internal affairs of Third World countries, that it
allows First World countries to expand their markets in Third World countries while
43
slowing down competitive development by them, and that it legitimizes a reduction in
aid putting forward a bogus notion of self reliance.” (VINCENT, 1986, p.87).
Uma ressalva ao direito ao desenvolvimento é feita na Declaração, que afirma
que a falta de desenvolvimento não pode servir como justificativa para o preterimento
de direitos humanos reconhecidos internacionalmente. No entanto, a pobreza extrema
pode ser um impedimento grave à democracia e a outros direitos humanos (como
apontado anteriormente e, curiosamente, na própria Declaração). Este dado pode ser
analisado diversas vezes ao longo da História, quando governos totalitários e ditatoriais
se estabeleceram em situações de crise. A contradição entre essas formações discursivas
revela que a interdependência (mútua dependência) afirmada entre desenvolvimento,
democracia e direitos humanos na verdade se constrói nesse discurso como uma
dependência unilateral do desenvolvimento em relação aos direitos civis e políticos.
Logo em seguida, no parágrafo 11 da Declaração, o direito ao desenvolvimento
recebe mais uma ressalva ao ser afirmado que este deve ser realizado indo ao encontro
das necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras. Ao
longo do documento se percebe uma tendência de serem enfatizados os limites para o
desenvolvimento em âmbito nacional mais do que estabelecer condições para que este
seja alcançado pelos países. Pode-se argumentar que isso se deve ao enfraquecimento
do “discurso desenvolvimentista” defendido pelo movimento dos não-alinhados
(Terceiro Mundo) que ocorreu concomitantemente à divisão dos interesses
terceiromundistas e à ascensão do discurso neoliberal durante a década de 1980. Essa
tática discursivo-ideológica de ênfase em alguns pontos (condições ao
desenvolvimento) em detrimento de outros (condições para o desenvolvimento) faz a
defesa do desenvolvimento na Declaração de Viena ser centrada no indivíduo e,
portanto, mais alinhada com o discurso neoliberal. As limitações postas ao
44
desenvolvimento, por mais louváveis que sejam, não existiam para os países não-
periféricos no passado e também não são reconhecidas para a manutenção do
desenvolvimento já existente em alguns países centrais. Essa limitação acontece ao
mesmo tempo em que ocorre uma transferência massiva da produção (muitas vezes
poluidora) de empresas multinacionais para países subdesenvolvidos com legislações
ambientais e laborais mais frouxas, empresas estas que são recebidas de braços abertos
por muitos governos na ânsia pelo crescimento econômico e pelos lucros.
A Declaração faz, no entanto, uma recomendação à comunidade internacional
para que esta alivie o peso da dívida externa para os países em desenvolvimento. A
preocupação com a dívida externa reflete em grande parte as reivindicações dos países
em desenvolvimento. No entanto, a escolha discursiva de condicionar a ajuda (‘alívio’)
dessas dívidas e não de ajudar a eliminá-las, apazigua os ânimos dos países mais pobres
sem comprometer os interesses dos mais ricos. Há de se notar que na segunda parte da
Declaração de Viena, intitulada Programa de Ação, ocorre a completa omissão dessa
questão, deixando em aberto e ao arbítrio de cada país como a ajuda seria feita. Tal
preocupação surgiu com a crise da dívida externa que ameaçou o sistema bancário
internacional na década de 1980, como explanado anteriormente. Apesar da boa vontade
expressa, a não interferência negativa dos Estados nas instituições bancárias privadas,
donatárias de boa parte das dívidas externas dos países mais pobres, traz o perigo de tal
evocação ser meramente retórica.
No parágrafo 15, a Declaração clama pela rápida e compreensiva eliminação do
racismo, xenofobia e intolerâncias relacionadas. A questão da tolerância, como
explicado anteriormente, é retomada aqui e em outras partes do texto, pois esta não
implica em nenhum comprometimento ativo estatal em construir algo mais do que
meramente a tolerância. No Programa de Ação as medidas sugeridas quanto a essa
45
questão são de conteúdo legalista principalmente no sentido de apelar aos países pela
construção de legislações e punir os indivíduos que violam esses direitos humanos, a
manutenção da ordem e da lei como forma de ação do Estado, outras formas de ação
estatal, como a educação, devem promover a tolerância, a paz e as relações amigáveis
entre nações, grupos raciais e religiosos (Parágrafo 33 da Declaração). Quanto ao
racismo, a preocupação gira em torno da questão da “limpeza étnica” e do apartheid
ocorridos, que, devido à gravidade das violações e à pressão da opinião pública
internacional, tornaram-se temas da agenda política internacional, no entanto pouca ou
nenhuma disposição foi feita sobre violações menores. Com relação à xenofobia, apesar
desse “consenso” internacional, o surgimento de políticas imigratórias cada vez mais
restritivas por parte dos países recipientes como os Estados Unidos ou países europeus
vai de ao encontro das reivindicações de grupos nacionais de caráter xenófobo e racista.
As justificativas dadas pelos respectivos governos são geralmente de caráter econômico
por mais que esse argumento não seja inconteste.
A Declaração dispõe sobre o terrorismo da seguinte forma “The acts, methods
and practices of terrorism in all its forms and manifestations as well as linkage in some
countries to drug trafficking are activities aimed at the destruction of human rights,
fundamental freedoms and democracy, threatening territorial integrity, security of
States and destabilizing legitimately constituted Governments”.9 A construção feita
sobre o terrorismo o define nesse parágrafo como aquilo que ameaça a integridade
territorial, a segurança dos Estados e desestabiliza governos legitimamente constituídos.
Sendo ele caracterizado, indistintamente, em todas as suas formas e manifestações,
desse modo, atribui-se uma definição única, monofônica, do terrorismo, sem contar com
9 Os atos, métodos e práticas do terrorismo em todas as suas formas e manifestações assim como a ligação em alguns países com o tráfico de drogas são atividades miradas na destruição dos direitos humano, liberdades fundamentais e democracia, ameaçando a integridade territorial, segurança dos Estados e desestabilizando governos legitimamente constituídos.
46
uma avaliação histórica ao fundo. O Terrorismo é visto de maneira maniqueísta, através
de um discurso que tende ao monofônico, enquadrando toda forma de terrorismo como
objetivada à destruição dos direitos humanos, apagando as reivindicações de grupos que
estão lutando em consonância com a busca da auto-determinação em moldes não
“autorizados” pelo discurso dos direitos humanos e, portanto, vistos como ilegítimos,
muitas vezes por conta de interesses políticos e estratégicos. Colocam-se no mesmo
bojo grupos de ideologias, métodos e objetivos diferenciados como as Farc (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia), o IRA (Irish Republican Army), o ETA
(Euskadi Ta Azkatasuna, que significa Pátria Basca e Liberdade), somente para
mencionar grupos que contestam a integridade e legitimidade estatal, o que não
necessariamente significa que eles têm como objetivo a destruição dos direitos
humanos, mas que não julgam seus governos legítimos, não guardam um sentimento de
pertencimento, pois não se sentem representados por estes. Como se vê, trata-se de
matéria extremamente complexa e há de se considerarem todos os ângulos da história,
da formação ideológica e dos objetivos de cada grupo para se compreender
minimamente suas razões e, é claro, atribuir-lhes o título de terroristas ou não. O que
chama a atenção é o fato de a Declaração omitir esta complexidade, procurando
generalizar e universalizar os sentidos, em consonância, é claro, com os interesses dos
Estados legitimados e centrais.
Além disso, alguns grupos são controversamente considerados terroristas por
alguns países e não por outros, não havendo consenso sobre a própria definição do que é
“terrorismo”. Com os atentados de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos, a
questão do terrorismo se tornou mais contundente no cenário internacional e a
classificação feita pelos EUA de quais grupos são terroristas se tornou mais abrangente.
47
Sendo assim, discursos monofônicos como este da Declaração abre um precedente para
a repressão a qualquer grupo que for tachado de terrorista.
No parágrafo 31, o caráter enviesado da Declaração fica mais claro, sendo a
idéia do livre comércio defendida: “The World Conference on Human Rights calls upon
States to refrain from any unilateral measure not in accordance with international law
and the Charter of the United Nations that creates obstacles to trade relations among
States and impedes the full realization of the human rights”.10 Trata-se de uma
reprovação às restrições unilaterais ao comércio, ou seja, uma afirmação contra o
discurso protecionista. Este último por sua vez pode ser utilizado como mecanismo de
proteção da economia nacional de um país visando o seu desenvolvimento econômico,
portanto este não pode ser determinado de forma autônoma. O livre-comércio é
afirmado como mecanismo promotor do desenvolvimento, não sendo contemplada
nesse discurso a possibilidade do livre-comércio poder ser prejudicial às economias
menos competitivas e à autodeterminação dos povos. Nesse parágrafo novamente se
observa a perspectiva individualista que se dá ao direito ao desenvolvimento, que
remete à idéia clássica de Adam Smith da “Mão Invisível” do mercado, onde os
indivíduos competindo livremente levariam ao melhor desenvolvimento de todos. Além
disso, nesse parágrafo cria-se uma relação direta entre o comércio sem restrições e a
questão da realização dos direitos humanos. Perspectiva esta comum nos países
ocidentais onde o livre-comércio não é somente a realização das liberdades, mas
também é visto como algo fundamentalmente bom. Argumenta-se que o comércio entre
uma nação que respeita os direitos humanos com outra que viola esses direitos pode
acarretar uma influência da primeira sobre a segunda. Este foi o argumento do governo
10 A Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos chama os Estados a absterem-se de qualquer medida unilateral em desacordo com o direito internacional e com a Carta das Nações Unidas que crie obstáculos às relações de comércio entre Estados e impeça a plena realização dos direitos humanos. (tradução nossa).
48
dos Estados Unidos para não impor sanções comerciais ao governo da África do Sul no
período do apartheid sul-africano, como apontado por R.J. Vincent.(VINCENT, 1986)
Ao longo da declaração, em particular no parágrafo 34 e no Programa de Ação
principalmente, mais de uma referência é feita à necessidade de aumento das
contribuições para a promoção dos direitos humanos (incluindo o de desenvolvimento)
por parte dos Governos e do sistema das Nações Unidas, mostrando um possível não
comprometimento real da comunidade internacional com os direitos humanos. O
constante reforço da necessidade de maiores aportes financeiros para as organizações
relativas aos direitos humanos serve como uma forma argumentativa, pela repetição,
dando o efeito de sentido de um sistema dos direitos humanos falido. Faz-se o apelo à
“comunidade internacional” de tal forma que a universalidade só poderia ser cumprida
com esse compromisso financeiro. Curiosamente a mesma forma de apelo não é feita,
não com a mesma ênfase e repetição, quanto às dificuldades financeiras dos países mais
pobres (dívida externa p.ex.) que dificultam ou mesmo impedem que estes países
tornem os direitos humanos efetivos para suas populações.
Posteriormente, na Declaração se faz referência aos arranjos regionais, que são
vistos como fundamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos. Os
acordos regionais possuem um papel fundamental na promoção e proteção dos direitos
humanos, na tentativa de legitimar e aumentar a eficácia da implementação desses
direitos conforme as realidades regionais. A criação desses mecanismos visa legitimar o
caráter universal da declaração ao repetir em diferentes âmbitos as suas idéias, a
universalização é buscada pela afirmação e reafirmação dessas idéias e pela
institucionalização cada vez maior das mesmas, buscando assim a construção de um
consenso e influenciar o comportamento político, construção do consenso pela
institucionalização observada por Keohane e Goldstein (1993). No entanto, ao não
49
legislar especificamente sobre esses acordos regionais, a Declaração deixa uma brecha
para que sejam definidas as prioridades de cada região, que acabam por não respeitar
estritamente a indivisibilidade dos direitos humanos dando ênfase ao que melhor
convém aos governos de cada região, onde as influências individuais de cada Estado são
maiores. O que acontece então são acordos regionais que priorizam alguns direitos
humanos e esquecem outros, caso da Europa que aplica uma clara ênfase nos direitos
humanos civis e políticos. Outro exemplo é o caso dos Estados Unidos que também
“selecionou” os direitos humanos no acordo interamericano, optando por assiná-lo
somente em um momento.
Na segunda parte do documento, intitulada Programa de Ação, as considerações
discursivas são menos relevantes por se tratarem ou de questões burocráticas e
procedimentais ou por repetirem muito do que já foi exposto na primeira parte do
documento. No entanto, alguns trechos merecem ser analisados. No parágrafo 4 do
Programa de Ação, a Conferência recomenda que um “(...) concerted effort be made to
encourage and facilitate the ratification of and accession or succession to international
human rights treaties and protocols adopted within the framework of the United
Nations system with the aim of universal acceptance.”.11 Reconhecidamente os direitos
humanos “universais” precisam contraditoriamente da adesão por parte dos Estados para
se tornarem universais, ou seja, necessitam não só do reconhecimento nacional como
também da estrutura legal interna dos países. Percebe-se, nesse discurso feito ao longo
da declaração, que os direitos tornam-se universais por serem enunciados como tais. A
enunciação se dá em duas bases, primeiramente remonta à idéia dos direitos naturais
ressonante no pensamento liberal, pois o que é natural ao ser humano é
conseqüentemente universal (comum a toda) a humanidade. A outra base desse discurso
11 (...) esforço concertado seja feito para encorajar e facilitar a ratificação da acessão ou sucessão de tratados de direitos humanos e protocolos adotados dentro da estrutura das Nações Unidas objetivando a sua aceitação universal. (tradução nossa).
50
se encontra na racionalidade kantiana que determina ser possível a criação de uma
legislação universal através da razão individual. Sendo assim, esses direitos por serem
enunciados por indivíduos/Estados que se enxergam como racionais, são, portanto,
auto-intitulados universais por si só. Esse discurso pressupõe a necessidade da aceitação
por parte dos “irracionais”, ou seja, daqueles que não se auto-legislaram conforme a
racionalidade liberal. Constrói-se assim uma alteridade em um estado de disjunção
(FIORIN, 1989), em termos simples em um estado de valor negativo, que deve passar
para o estado de conjunção, estado valorado positivamente, ao aceitar esses direitos, se
tornando, portanto, “racional” ao fazê-lo.
No parágrafo 27 do Programa de Ação a generalidade como forma de persuasão
se revela no discurso mais uma vez ao definir que medidas “quando apropriadas” devem
ser tomadas para a inclusão sociocultural e econômica das minorias presentes no
Estado. Afirmações como esta, presentes ao longo do documento, buscam justamente a
abrangência e a universalidade dos direitos e ações a serem tomadas. A generalização é
utilizada como estratégia discursiva ao longo de todo o texto buscando abarcar essa
universalidade intencionada, ou seja, buscando se direcionar a todos os Estados. No
entanto, as medidas a serem tomadas “onde adequadas” deixam livre a interpretação
sobre quais medidas e onde elas devem ser aplicadas pelos Estados nacionais, podendo
estas minorias ser objeto de desrespeito ou indiferença por não se julgar apropriada a
sua inclusão. A declaração usa a generalização como estratégia discursiva, com a
intenção de abarcar o universal, tendo na prática um efeito duplo, pois ao afirmar uma
identidade universal esse discurso atende diretamente aos interesses dos Estados
compreendidos como um conjunto, uma coletividade, mas pela ausência de clareza no
texto permite que os interesses dos Estados compreendidos como indivíduos sejam
protegidos. Os Estados como coletividade visa criar a legislação universal por esta ser
51
vantajosa politicamente (mesmo que somente na retórica estatal) e o segundo busca ser
incluso sem fazer concessões nas suas particularidades e na defesa dos seus interesses
específicos.
Duas últimas questões merecem atenção nessa análise: a questão da democracia
e a dos direitos sindicais. A democracia é constantemente evocada ao longo do texto, no
entanto, na intenção de abarcar a generalidade dos países, a observância e praticamente
únicos critérios desta é a existência de eleições e a manutenção da égide do direito
(parágrafo 67 do Programa de Ação). Como apontado acima, a questão da importância
da democracia é apresentada como sinônimo da existência de eleições. A particular
importância dada a esse direito na forma como ele é apresentado remonta novamente à
tradição constitucionalista liberal, que é acompanhada da égide do direito,
administração da justiça e liberdade de expressão, questões estas já discutidas
anteriormente. A ênfase aos direitos civis e políticos, mais ligados à tradição liberal
clássica, é construída ao longo do texto.
Quanto aos direitos sindicais, estes são mencionados pela primeira vez no
parágrafo 77 do Programa de Ação, enquanto outras questões são constantemente
repetidas ao longo do documento. Omissão esta de valor discursivo-ideológico, uma vez
que esses direitos foram sistematicamente desrespeitados e/ou a legislação trabalhista
tornada mais fraca em diversos países, a partir das décadas de 1970 até recentemente,
através de uma série de medidas adotadas por governos e empresas visando à
desmobilização dos trabalhadores para, em uma tentativa de controle da inflação e
aumento de lucros das empresas, diminuírem os salários. A busca pela maior
competitividade faz parte do discurso neoliberal, e a influência deste na Declaração de
Viena parece indicar o principal motivo desse tipo de omissão textual.
52
2.4 50th session da UN Conference on Human Rights – Uma breve
contextualização
A quinquagésima sessão da UNCHR foi a primeira seguida da Conferência Mundial,
tendo durado seis semanas e adotado 109 resoluções e decisões, a maioria por consenso.
Além disso a sessão analisou violações de direitos humanos em 30 países e criou
"special rapporteurs" sobre violência contra as mulheres e sobre independência do
judiciário.
A sessão foi marcada por difíceis negociações onde se produziu numerosos textos
politicamente dissonates e emendas, muitos dos quais produzidos por CUba. Em
diversos momentos uma divisão de interesses se produziu entre Norte e Sul. Estavam
presentes 53 delegações de membros e 81 países observadores, junto a estes mais de
150 organizações não governamentais se encontravam presentes.
Poucas análises sobre a sessão foram feitas sendo que para o propósito dessa pesquisa a
análise de John R. Crook servirá de base para uma breve contextualização do relatório
analisado subsequentemente. Crook foca seu artigo no que este considera como alguns
avanços para a universalização dos direitos humanos. A começar pela diminuição da
"rigidez política" com o fim do conflito Leste-Oeste, havendo também
desenvolvimentos no debate do Oriente Médio, em resoluções sobre a África do Sul e
no combate contra o anti-semitismo.
Em muitos sentidos as resoluções passadas apenas repetem textos passados sobre as
variadas temáticas dentro dos direitos humanos. No entanto alguns avanços foram feitos
na institucionalização dos direitos humanos, como por exemplo projetos de definição de
padrões para futuras sessões nas áreas de tortura, iniciativas privadas na defesa dos
53
direitos humanos, proteção dos direitos das crianças e defesa dos direitos de populções
indígenas.
Para Crook:
"The Human Rights Commission legislates pragmatically and piecemeal. Countries propose and seek support on resolutions on matters of concern to them. Drafters may make little effort to harmonize their resolution withothers on similar topics, or to ensure consistency with existing instruments or generally held doctrine. The demands of conscience and the pressures of the external world can override doctrine.So it was with the 1994 Commission"(CROOK, 1994, p.813)
Exemplo disso foi o desafio, segundo Crook, do paradigma da primazia dos
indivíduos sobre o Estado em que o Estado deve servir o primeiro, pois diversas
resoluções foram passadas acusando ações de indivíduos que desafiam a autoridade do
Estado como uma forma de desrespeito aos direitos humanos. Um caso disso seria a
criação de um "special rapporteur" na questão de violência contra as mulheres, uma
questão antes vista como cultural e fora do escopo da proteção internacional dos direitos
humanos. Outro caso foi o do terrorismo, em que alguns se colocaram contrários à
condenação como violação dos direitos humanos por se tratarem de grupos não-estatais.
Essas resoluções adotadas legislam sobre a conduta privada, antes considerada fora do
escopo dos direitos humanos.
No que tange os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Direito ao
Desenvolvimento, apesar dos avanços obtidos na Conferência Mundial, a Comissão
produziu poucos resultados. Nessa área foram aprovadas uma resolução proposta pelos
Estados Unidos sobre o direito de possuir propriedade, uma resolução proposta pela
Austrália legislando sobre direitos dos sindicatos, uma resolução forte de CUba sobre
dívida externa que obteve vários votos contrários (revelando uma divisão entre Norte e
Sul) e uma resolução proposta pela França sobre direitoshumanos e extrema pobreza.
Além disso, tentou-se transformar o Grupo de Trabalho sobre o Direito ao
54
Desenvolvimento em um mecanismo permanete de avalliação, essa prposta não pode ser
adotado por consenso, havendo a oposição dos Estados Unidos, Reino Unido, Japão e
mais oito países que se abstiveram.
2.5 Análise do “Report on the 50th session da UN Conference on Human Rights”
O documento produto dessa reunião uniu diversas resoluções e recomendações de
Grupos de Trabalho sendo um documento extenso onde boa parte se reduz na
reafirmação de compromissos anteriores e na descrição dos procedimentos como o
processo de votação das resoluções. O documento versa sobre diversas questões, mas
para efeito de análise procurou-se aqui abordar algumas questões chaves e questões que
geraram contendas ideológicas. A começar pela resolução 1994/11 sobre o efeito das
políticas de ajuste econômico provenientes de dívidas externas no pleno exercício dos
direitos humanos, em particular do Direito ao Desenvolvimento. A resolução inicia por
retomar documentos anteriores versando sobre o assunto e por ter em mente os países
indicados pela publicação do Banco Mundial sobre dívidas externas. Afirma-se a
questão da dívida externa como um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento, e como
os programas de ajuste estrutural repercutiram negativamente na realização dos direitos
econômicos e sociais. Essa resolução sugere algumas medidas a serem tomadas como o
alívio das dívidas, a necessidade de novos fluxos financeiros, pede aos aos países
credores que continuem a conceder assistência financeira para que os países em
desenvolvimento continuem a implementar seus programas de reforma econômica.
Além disso, no seu quarto parágrafo operativo a resolução afirma que o pagamento de
dívidas não deve ter precedência sobre os direitos básicos das populações dos países
endividados.
55
A resolução em si indica uma vitória das demandas dos países em desenvolvimento, no
entanto esta não foi livre de oposição. Essa resolução foi proposta pelo governo de Cuba
tendo o apoio de vários países, no entanto algumas mudanças foram feitas sobre o
rascunho inicial satisfazendo interesses de países desenvolvidos. No sexto parágrafo
preambular do rascunho as palavras "ao sel humano" forma substituídas por "à pessoa
humana", um detalhe aparentemente inocente, mas que revela uma intenção discursiva
de individualizar as questões pertinentes aos direitos humansoNo quinto parágrafo as
palavras "that the policies being imposed to ensure debt payment by developing
countries have and how they hinder the effective enjoyment of all human rights by the
people of those countries" foram substituidas por "of the policies adopted to face
situations of external debt on the effective enjoyment of economic, social and cultural
rights". É retirado do documento portanto o caráter acusatório inicial indicando os
programas de ajuste estrutural condicionais para o recebimento de ajuda financeira do
FMI e do BM. O sexto parágrafo que pede para o Secretário Geral requerer aos países
credores para que estes forneçam informações detalhadas sobre as ações tomadas para
aliviar o peso das dívidas sobre os países em desenvolvimento, foi deletado
completamente. Mesmo com essas alterações a resolução foi aprovada com 31 votos a
favor, 12 contra e 8 abstenções.
Já a resolução 1994/13, proposta pelos Estados Unidos, versa sobre o direito de possuir
propriedade por indivíduos ou grupos. Essa questão particularmente dialoga diretamente
com o discurso liberal que remonta à Locke, não reconhecendo formas de organização
social avessas à propriedade privada primando por questões de caráter social/público,
motivo pelo qual o governo de Cuba fez ressalvas à essa resolução, que foi adotada sem
votação. A resolução reconhece que existem diferentes formas de propriedade, mas que
essa contribui diretamente para o pleno exercício das liberdades fundamentais (que
56
também remontam a ideais liberais como já apontado anteriormente). No segundo
parágrafo operativo da resolução apoia-se as conclusões do "especialista independente"
em que este afirma que a propriedade é a base de qualquer sistema econômico de
qualquer sociedade e que a prorpriedade intelectual também deve ser defendida. O
próprio conceito de especialista independente já remonta à uma racionalidade ocidental
moderna (cujas origens se entrelaçam com as raízes do pensamento liberal) que acredita
na possibilidade de imparcialidade. Além dessa questão, as conclusões apontadas se
utilizam de uma técnica discursiva universalizante, tendendo ao monofônico, pois
afirma uma "verdade absoluta" que apaga os discursos e realidades contrárias. Exemplo
disso é a existência de sociedades indígenas que negam (ou sequer conhecem) o
conceito de propriedade, outro exemplo são as formações discursivas e experiêncais
históricas que buscam a construção de sociedades e sistemas econômicos não baseados
na propriedade. A afirmação da propriedade como conceito absoluto e basal das
sociedades foi utilizado nesse documento também para legitimar a propriedade
intelectual, de caráter menos comum e menos consesnsual, e de validação histórica mais
questionável.
A resolução 1994/15 por sua vez versa sobre a situação dos Pactos Internacionais de
Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esta começa
por afirmar a importância desses pactos pelo seu caráter legalmente obrigatório, e a
pedir a ratificação de todos os países, pedindo inclusive que o Secretário Geral
intensifique seus esforços nesse sentido. No nono parágrafo operativo a resolução dá as
boas vindas aos esforços do Comitê de Direitos Humanos na criação de padrões
universais para a implementação das provisões do Pacto de Direitos Civis e Políticos.
Com relação ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o mesmo Comitê
prepara comentários gerais, também bem vindos pela resolução. O que se observa é uma
57
interpretação mais estrita dos Direitos Civis e Políticos a serem observados
internacionalmente, indo ao encontro de formações discursivas de cunho liberal, dando
uma interpretação mais autoritária a estes. Já no que tange os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, estes são relativizados, sujeitos à comentários. O que pareceria em
um primeiro momento como um respeito maior às diferentes realidades e aos diferentes
interesses nacionais acaba por mostrar um compromisso menor com esses direitos,
sendo aceitável que estes sejam cumpridos de forma menos estrita, legitimando assim a
existência de diferenças socio-econômicas.
Quanto a questão da realização dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do
estudo das dificuldades específicas de países em desenvolvimento na realização desses
direitos, presente na resolução 1994/20, poucos avanços são feitos, no entanto, algumas
causas são delineadas. No terceiro parágrafo operativo a resolução retoma duas
discussões do Comitê sobre o papel das redes de seguridade social e o papel destas na
proteção desses direitos com particular atenção a situações envolvendo programas de
ajuste estrutural e/ou transição para economias de livre-mercado. No intuito de
solucionar esse problema, no décimo quinto parágrafo operativo sugere-se a cooperação
entre as instituições financeiras e os órgãos de direitos humanos, encorajando inclusive
a participação de representantes dessas instituições em reuniões de órgãos de direitos
humanos. Curiosamente nessa resolução poucas mudanças foram sugeridas sobre o
rascunho inicial proposto por Portugal, de certa forma a ausência de inovação sobre
declarações e documentos anteriores a causa das poucas objeções, tendo essa sido
aprovada com 42 votos a favor, 3 contra (Estados Unidos, Reino Unido e Japão) e 8
abstenções. No entanto uma objeção é digna de nota que foi a da Malásia que buscou
em mais de uma resolução excluir de um dos parágrafos as palavras "and that the
promotion and protection of one category of rights should never exempt or excuse
58
States from the promotion and protection of the other rights". Em toda declaração ou
resolução tratando de direitos econômicos e sociais está presente essa ressalva
afirmando que o cumprimento desses direitos não deve em nenhum momento desculpa
um Estado a não cumprir os Direitos Civis e Políticos, preocupação que não ocorre no
sentido inverso diga-se de passagem. Esse recurso discursivo é de longa data dentro da
discussão de Direitos Humanso resquício da dinâmica de Guerra-Fria reflexo dos
interesses dos países desenvolvidos em condenar países socialistas que falhavam
justmamente no cumprimento dos Direitos Civis e Políticos. Atualmente essas ressalvas
servem como forma de preservar a preeminência dos interesses das democracias liberais
sobre países de governos autoritários (como é o caso do governo Malaio) e/ou que
enfatizam o cumprimento de questões de distribuição equitativa de riquezas.
Com relação a questão do terrorismo, a resolução 1994/46 adotada sem votação,
condena atos de terrorismo como "atos aleatórios e indiscriminados de violência que
não podem ser justificados em nenhuma circunstância", o caráter monofônico dessa
declaração já foi exposto em momentos anteriores dessa pesquisa. No entanto o
acréscimo da caracterização do terrorismo como "acts of aggression aimed at the
destruction of human rights, fundamental freedoms and democracy, threatening the
territorial integrity and security of States, destabilizing legitimately constituted
Governments, undermining pluralistic civil society and having adverse consequences on
the economic and social development of States" acrescenta a lista de acusações contra o
terrorismo até o desenvolvimento econômico e social dos Estados, essa caracterização
de caráter maniqueísta apaga o caráter político de muitos desses atos, alguns grupos
questionam governos considerados "legítimos" e as democracias que não permitem voz
para suas demandas.
59
Quanto aos direitos dos sindicatos a resolução 1994/63 prposta pela Austrália, coloca a
realização desses direitos como capazes de contribuir para a realização de efetiva
participação popular. Na discussão dessa resolução algumas mudanças dignas de nota
foram feitas no rascunho inicial. A começar pela demanda do Reino Unido de pelo
acréscimo do termo "universal" no primeiro parágrafo preambular referente aos direitos
humanos e liberdades fundamentais, essa mudança aparentemente de pouca relevância
demonstra a importâncai dada à propagação desses direitos humanos como universais, e
portanto inquestionáveis e iguais para todos os países, não aceitando concepções
diferentes. Outra mudança feita ocorreu em parte do nono parágrafo preambular que
afirma que a violação dos direitos dos sindicatos são obstáculos para o
desenvolvimento, foi deletada. Isso é reflexo do discurso neoliberal predominante, pois
este afirma os sindicatos como obstáculos ao desenvolvimento. Já no primeiro parágrafo
operativo as palavras "trade union rights freely and in full" foram substituídas por "right
to organize and to form and join trade unions for the protection of their interests". Uma
curiosa mudança onde a re4alização plena e livre dos direitos sindicais não é
considerada válida, apenas o direito de formar e se unir a sindicatos para a defesa de
seus interesses. Dá-se o direito de voz sem garantir a realização dos outros direito
sindicais já reconhecidos por outras convenções internacionais. Não permite-se assim
que a legitimidade que o discurso sobre direitos humanos possui seja estendida para o
discurso sobre direitos sindicais.
Uma última resolução merece atenção nessa análise, a resolução 1994/95, que se refere
à Conferência Mundial sobre Direitos Humanos ocorrida no ano anterior. Nenhuma
nova consideração foi feita, no entanto vale ressaltar a consonância do quarto parágrafo
operativo que afirma o papel da Comissão como fórum para o diálogo entre governos e
organizações não-governamentais, esse reconhecimento dialoga com o discurso que
60
valida o papel dessas organizações, e em alguns casos, diminui o papel do Estado. isso é
reflexo em parte da liberalização política onde questões antes de responsabilidade quase
que unicamente estatal, são cada vez mais transferidas para o âmbito privado, isso se dá
particularmente com muita força durante a década de 1990.
UNCTAD - Surgimento e Atuação da Conferência
Estabelecida em 1964, a UNCTAD se define como uma organização que visa o
desenvolvimento ajudando a dar forma aos debates e políticas voltadas para o mesmo. A
UNCTAD afirma-se como um fórum de deliberações inter-governamentais direcionada na
construção de consensos, tomando como atividades a pesquisa e análise de políticas e
coleção de dados para os debates provendo assistência técnica moldada para as necessidades
específicas dos países em desenvolvimento e economias em transição. 12 No entanto, para
melhor compreender essa organização, um breve histórico deve ser feito com a ajuda de
análises de autores que se dedicaram à temática das organizações internacionais.
Nos finas da década de 1950 e início de 1960 os países menos desenvolvidos tiveram
suas esperanças de crescimento econômico frustradas. A queda dos preços de “comodities”
primárias que estes exportavam juntamente com o não crescimento significativo de ajuda
externa, sendo esta consumida muitas vezes pelos pagamentos de dívidas (e juros) obtidas no
passado, impediu qualquer desenvolvimento significativo por parte das economias
emergentes. A insatisfação dos países subdesenvolvidos com a incapacidade de crescimento
se refletiu no descrédito dos fóruns econômicos da ONU; estes se ocupavam com debates
entre o Leste e o Oeste, irrelevantes para os países pobres. A não representação proporcional
dos países do Sul com relação aos países desenvolvidos no ECOSOC no início da década de
1960, característica similar presente em instituições como o FMI e o GATT, era produto do
período da 2ª Guerra Mundial e do pós-guerra.
12 http://www.unctad.org/Templates/Page.asp?intItemID=1530&lang=1 – acesso dia 09/10/2008.
61
Essa insatisfação dos países mais pobres levou ao surgimento da UNCTAD, e obteve
apoio dos países do Leste, que após a morte de Stalin, passaram a participar mais dos fóruns
econômicos, antes boicotados pela URSS, no intuito de questionar o controle ocidental do
comércio com os países comunistas. No entanto o fator decisivo que levou à criação da
UNCTAD foi a entrada de vários países africanos e asiáticos, incluindo alguns do Leste
Europeu, na ONU, o que minou a posição do ocidente na Assembléia Geral, pois este já não
conseguia a maioria dos votos.
A Resolução da Assembléia 1707 (XVI) de 19 de dezembro de 1961 intitulada
“International trade as the primary instrument for economic development” possuía uma
emenda que pedia ao Secretário Geral para que pesquisasse sobre o desejo de se chamar uma
Conferência internacional sobre comércio no âmbito da ONU. Os votos favoráveis obtiveram
maioria (sendo composta pelos países mais pobres e pelos países do Leste). Na conferência
denominada UNCTAD, o desejo original dos países comunistas e de alguns países do Sul era
o estabelecimento de uma Organização Internacional do Comércio, no entanto as disputas
com o ocidente, que sugeriam a realização de conferências periódicas, levaram a uma espécie
de meio termo proposto por Raúl Prebisch colocando a UNCTAD como órgão fixo da ONU
a partir de 1964 subordinado ao ECOSOC, possuindo mais poderes do que a maioria dos
países ocidentais queria, mas menos do que a OIC, proposta pelos países comunistas, teria.
Os países comunistas, assim como os países menos desenvolvidos, eram excluídos da
maior parte do comércio internacional segundo Robert M. Cutler, e mesmo que os países da
CMEA (Council for Mutual Economic Assistance), constituído por países do leste europeu,
tenham priorizado o comércio com o Ocidente durante a década de 1950, a “reaproximação
dos países [do Leste Europeu com os países do Terceiro Mundo] era não só lógica como
natural” (CUTLER, 1983, p.123). A criação da UNCTAD surge como uma resposta aos
62
anseios desses dois grupos, tendo os países comunistas aceitado esta ao invés da OIC,
segundo Cutler, pois:
Soviet specialists on foreign trade regarded the results of the Geneva Conference favorably. Several months after the end of the Geneva Conference, one such analyst [V. V. Fomin] concluded a monograph on UNCTAD (…) According to this author the institutionalized UNCTAD, including its Council, was an organ "of a transitional type"[…].(idem, p.125)A década de 1960 foi divulgada como a “Década de Desenvolvimento das Nações
Unidas” tendo como objetivo que os países menos desenvolvidos obtivessem até 1970 um
crescimento mínimo anual de 5% tendo como mecanismo para tal a ajuda direta externa dos
países desenvolvidos, que se comprometeram a transferir 1% de seus produtos internos
brutos para os países mais pobres. No entanto o volume da ajuda externa não atingiu o
patamar de 1% nem de longe tendo constantemente se tornado menor ainda. Antes mesmo da
criação da UNCTAD, e de forma mais premente após, o comércio externo era visto como a
ferramenta fundamental, para o desenvolvimento dos países mais pobres, devendo se tornar
mais forte particularmente através do aumento das exportações desses países, principalmente
constituídas de produtos primários. Já em 1962 o ECOSOC pedia, de forma pouco enfática, a
diminuição do protecionismo dos países desenvolvidos sobre os produtos primários, o
comércio internacional.
Em 1964, logo antes da conferência da UNCTAD I, muitas das medidas comerciais
em prol do desenvolvimento a serem tomadas já eram delineadas por Raúl Prebisch, sendo
que as principais propostas de medidas comerciais da conferência foram: Acordos de
Comodities; Compensações Financeiras; Preferências; e Arranjos Regionais. Historicamente
acordos sobre comodities se provaram difíceis de serem feitos devido às disputas entre os
países produtores e países consumidores, já que estes acordos constituem na definição dos
preços dos produtos, sendo que no caso dos produtos primários exportados pelos países em
desenvolvimento sugeriu-se o aumento dos preços no intuito de promover o
desenvolvimento. No entanto esse aumento de preços só seria efetivo se feito para comodities
63
produzidas principalmente ou unicamente por países em desenvolvimento não sujeitas à
competição por substitutos. Sendo assim, o escopo de efetividade da fixação de preços, como
meio para se aumentarem as exportações dos países em desenvolvimento, se torna bem
limitado.
Tendo observado as limitações das comodities o que se sugeriu foi a idéia de que
aportes financeiros fossem dados aos países em desenvolvimento para compensar as
flutuações de preços dos produtos primários. Essa idéia ganhou força na UNCTAD, pois não
interfere com as forças “normais” do mercado, deixando que este se auto-regule, evitando
assim os efeitos potencialmente nocivos de se interferir no livre-comércio. Desde o início da
década de 1960 o FMI declarou que os países que estão tomando os “passos apropriados”
para preservar a estabilidade financeira interna e mantendo suas balanças de pagamentos em
equilíbrio podem contar com o fato de que financiamento estará disponível para compensar
dificuldades nas balanças de pagamentos causadas pelas flutuações nos preços. Em 1966 o
FMI aumentou a porcentagem dos direitos de empréstimos direcionados a compensações
financeiras de 25% para 50% (METZGER, 1967, 766), no entanto isso não exauriu as
possibilidades desse mecanismo tendo a UNCTAD sugerido ao BIRD que construísse um
mecanismo similar.
O sistema sugerido de preferências de acesso aos mercados dos países desenvolvidos
pelos países em desenvolvimento provavelmente foi o tema mais debatido na UNCTAD
justamente por ir contra o princípio do livre-comércio defendido pelo GATT afetando
inclusive os lucros das exportações dos países desenvolvidos para outros países
desenvolvidos. Acordos regionais para Metzger, apesar de estimularem o comércio, no curto
prazo, principalmente na América Latina, se provaram de menor importância para os países
em desenvolvimento do que o comércio com os países desenvolvidos. Além disso, os países
maiores e mais industrializados como a Argentina, o Brasil e o México, julgam que seus
64
mercados internos são grandes o suficiente para ditarem as regras para os países menores.
Metzger argumenta que as negociações coletivas associadas com acordos regionais de países
em desenvolvimento frente aos desenvolvidos podem se provar mais efetivas para conseguir
ajuda direta do que a integração econômica obtida de tais regionalismos. O autor termina seu
artigo afirmando que as chamadas “soluções comerciais” são, na melhor das hipóteses,
marginais, carregando efeitos colaterais adversos, sendo que deveriam ser enfatizadas nas
barganhas coletivas frente ao protecionismo dos países desenvolvidos. De fato isso foi feito
principalmente na primeira década de existência da UNCTAD.
Afirma-se que a UNCTAD foi muito influenciada pelo seu Secretário Geral, Raúl
Prebisch, que ocupou esse cargo por dois mandatos, tendo este se mostrado mais favorável
aos países em desenvolvimento lançando um relatório intitulado “Towards a New Trade
Policy for development”, onde argumenta sobre a lacuna comercial “trade gap” entre a
exportação dos produtos primários pelos países em desenvolvimento e as necessidades de
importações desses países para que pudessem se desenvolver; portanto, a queda dos preços
dos produtos primários tornava essa situação insustentável. O relatório não só focava na
deterioração dos termos de troca, mas também na necessidade da redução das barreiras
comerciais dos países ricos para os países menos desenvolvidos, propondo preferências
tarifárias dos países ricos para os pobres. Essa iniciativa vai na contramão do preceito do
GATT de “most-favored-nation”, que prega o tratamento igualitário para todos os países no
que tange ao comércio.
A liderança de Prebisch e a sua “pragmatic group bargaining” (BHATTACHARYA,
1976, p.90) influenciou a forma das políticas adotadas conduzindo ao acordo do GSP
(Generalized System of Preferences), que dava tratamento tarifário preferencial para os
países em desenvolvimento. O secretariado da UNCTAD defendeu a inaplicabilidade da
liberalização indiscriminada do comércio argumentando no sentido de uma definição de
65
preferências, tendo unificado as demandas dos países em desenvolvimento incluindo uma
América Latina antes dissonante através do sistema de grupos institucionalizado13 da
UNCTAD que:
[…] facilitated the achievement of concrete agreements on a series of functionally specific issues by means of an incremental and pragmatic pattern of bargaining in which intra-group and inter-group conflicts of interest were brought into convergence by "splitting the difference" between polar positions. (idem)
Relativo a essa questão das barganhas coletivas, o artigo de Robert S. Waters, que
discorre sobre o uso da UNCTAD por países menos desenvolvidos, monta um panorama
diferenciado sobre a questão das organizações internacionais, oferecendo um ponto de vista
analítico de certa forma otimista sem deixar de ser produtivo. Waters sugere uma análise que
não se limita às realizações palpáveis dessas organizações sendo no caso da UNCTAD a
análise não do seu caráter legislativo, mas sim no seu funcionamento como uma
“articuladora, agregadora e comunicadora de interesses”(WATERS, 1971, p.819). A
UNCTAD surge então como uma organização adaptada aos esforços dos países menos
desenvolvidos para estruturar comunicações políticas entre eles e os países desenvolvidos. A
UNCTAD como uma articuladora de interesses se mostra mais claramente no abandono do
conceito tradicional de um secretariado “neutro”. Isso ocorre pelo fato de Prebisch acreditar
que são os obstáculos políticos e não técnicos que impedem a formação de relações
econômicas mais condizentes com o desenvolvimento dos países menos desenvolvidos. O
eixo Leste-Oeste das relações internacionais é preterido pelo eixo Norte-Sul.
O papel agregador da organização se mostra na combinação das diversas demandas dos
países do Sul mantendo a coesão dos interesses do Grupo dos 77, mantendo uma posição
comum entre eles e votando em bloco. Essa coesão do Sul forçou os países do Norte a
buscarem a mesma articulação de interesses muitas vezes através da OCDE. Waters
13 Dividido em quatro grupos mas que funcionava com um sistema de três partidos: Grupo B que engloba os países industrializados membros da OCDE; o Grupo dos 77 que é uma fusão dos Grupos A e C que compreendem países em desenvolvimento de diferentes regiões; e o Grupo D, cujos membros são os países socialistas do Leste Europeu. Existindo também membros independentes como China e Israel que se posicionam de forma variável.
66
argumenta que esse tipo de coesão de ambos os lados combate o imobilismo característico de
organizações internacionais, aumentando sua eficácia e eficiência.
No que tange ao caráter comunicador de interesses da organização, Waters afirma que
esta oferece uma alternativa ideológica à clássica teoria liberal embasada em grande parte
pelos dados estatísticos e analíticos fornecidos pela CEPAL. No entanto o autor adverte que
o cerne dos trabalhos reais em termos operacionais do desenvolvimento multilateral ainda se
encontra nas organizações internacionais anteriores à UNCTAD, nas quais os países em
desenvolvimento têm menor poder de voz como, por exemplo, o BIRD, GATT, FMI e o
UNDP. Como conseqüência, ou coincidência, da criação da UNCTAD várias organizações
passaram a ser mais sensíveis às demandas dos países menos desenvolvidos, tendo a
UNCTAD sido provavelmente em grande parte responsável por mudanças nas posições
adotadas pelos Estados Unidos quanto a reformas comerciais requeridas pelo Sul.
No final de seu artigo Waters deixa o tom otimista e afirma que o sistema de grupos se
mostra mais condutivo ao confronto do que a sérias negociações, pois a oposição de
interesses generalizados de ambos os lados acaba por não levar a resultados concretos.
Robert Ramsay desenvolve uma crítica mais contundente sobre o sistema de grupos:
Unlike most national political parties, these international parties lack any coherent political philosophy. Logically, the Group of 77 might be expected to produce a body of proposals, but interests within the group are so divergent that the member countries can usually reach a uniform position only by phrasing their proposals in terms so general that they could not be used as a basis for serious negotiations. In fact, it is no secret that many of the 77 speakers who made "demands" at UNCTAD VI were aiming to produce press reports for domestic consumption rather than to provoke international discussion. (RAMSAY, 1984, p.388)
Em termos gerais, segundo Ramsay, a filosofia adotada pelo secretariado é a de
“mudança na estrutura da economia” no sentido do desenvolvimento, a “Nova Ordem
Internacional”, no entanto as estratégias propostas são geralmente vagas, abarcando coisas
demais sem discutir as vantagens e desvantagens de diferentes ações. Além disso, muito
dinheiro é desperdiçado em “trabalhos desnecessários” e pouco dinheiro é direcionado onde
este é imprescindível. Muitos relatórios são produzidos, sendo estes de baixa qualidade e
67
obscuros, por isso Ramsay chega ao ponto de sugerir que a falta de clareza dos relatórios
pode ser intencional, pois assim não se sabe exatamente o que se quer dizer ficando mais
difícil de afirmar que os resultados apresentados estão errados. O tamanho dos documentos e
os atrasos na entrega destes para os delegados tornam também improváveis que estes os
leiam e critiquem seus autores ou que se preparem devidamente antes das reuniões e
conferências.
Fora das conferências, países do grupo B são conhecidos por enviar reclamações para
os delegados mais ativos do grupo dos 77, sendo que os países em desenvolvimento muitas
vezes evitam ser mais militantes, especialmente os maiores que realmente têm algum poder
de barganha, para evitar conflitos com os mais ricos na esperança de conseguirem, ou pelo
menos não prejudicarem, negociações com os países desenvolvidos, passando a tomar
atitudes unilaterais. Para Ramsay nenhum dos países, inclusive os ricos, gostaria de ver a
UNCTAD extinta, pois isso significaria que a pressão feita pelos mais pobres na UNCTAD
seria realizada em outras organizações, onde essa pressão poderia ser efetiva. Pressão esta
também presente no âmbito doméstico; nos países ricos os líderes satisfazem parte da pressão
de grupos “de esquerda”, e nos países pobres os líderes satisfazem a pressão da população
empobrecida afirmando que estão lutando por uma maior parcela da riqueza mundial.
Um último fato levantado por Ramsay que define sua conclusão é o de que quando se
levanta a questão das pessoas ricas e pobres presentes em todos os países, ela é
automaticamente rejeitada sob o argumento de que interfere, injustificavelmente, demais na
soberania doméstica dos países. Um questionamento não feito pelo autor, pelo menos não
diretamente, mas válido de ser levantado aqui é o seguinte: até que ponto o argumento da
soberania não serve como uma defesa externa aos interesses individuais presente
internamente nos países? Outro fato que pode substanciar essa argumentação é a esparsa e até
mesmo completa ausência de regulamentação internacional na área de investimentos diretos
68
e indiretos privados (incluindo o estabelecimento de empresas multinacionais) e práticas de
negócios. Walter Krause inclusive questiona o porquê da inexistência de uma agência
internacional com funções específicas nessa área (KRAUSE, 1973, 52).
3.2 - Análise do documento “Resolutions Adopted Without a Reference to a
Committee” da “NINETEENTH SESSION OF THE GENERAL ASSEMBLY”
No documento emitido pela Assembléia Geral onde se decide pela transformação da
UNCTAD em um órgão permanente da ONU, se afirma na sua introdução uma preocupação
com o padrão de vida em todos os países, preocupação esta que não se refletiu em ações
práticas, pois o padrão de vida de um país não se limita à quantidade de riqueza que ele
produz ou quanto ele comercia. O comércio é visto como um instrumento fundamental para o
desenvolvimento, sendo a UNCTAD criada no intuito de acelerar o crescimento econômico
dos países em desenvolvimento. A Conferência, por omissão a outras estratégias de
desenvolvimento além das comerciais, afirma o caráter privado que esse desenvolvimento
deve tomar. Questões como a redistribuição da riqueza ou mesmo da transformação de
grandes grupos populacionais miseráveis em populações minimante auto-sustentáveis não
são discutidas em momento algum. A Formação Discursiva desse documento prima mais
pela omissão do que pela afirmação, pois apaga a possibilidade de outras formas de
desenvolvimento que não através do comércio ao não menciona-las.
O discurso do desenvolvimento através do comércio é legitimado por sua
“preocupação” com o padrão de vida de todos os países, e ao afirmar logo em seguida a
importância do comércio como instrumento de desenvolvimento, aponta como única
alternativa para a melhora do padrão de vida o aumento do comércio mundial. Cria-se
discursivamente uma relação direta entre o comércio e o padrão de vida das populações como
uma verdade, sem, no entanto sequer fornecer evidências empíricas nesse sentido.
69
Nesse documento afirma-se que a operação das instituições internacionais existentes
naquele momento foi examinada pela Conferência observando tanto suas contribuições
quanto suas limitações em lidar com problemas do comércio e problemas de
desenvolvimento relacionados, sendo necessária uma revisão mais profunda dos arranjos
institucionais presentes e das propostas existentes (p.1). A afirmação do reconhecimento dos
aspectos negativos e positivos das instituições existentes cria uma construção discursiva de
aparente imparcialidade do exame da UNCTAD. No entanto, logo em seguida se afirma que
os países devem fazer o melhor uso das instituições que eles são ou serão membros. Além
disso, mesmo observando essas “limitações”, a Assembléia Geral se preocupa em afirmar
posteriormente a necessidade de se observar para que a UNCTAD não interfira ou replique
funções de outras organizações. A crítica, portanto legitima a não-ação, pois dá à UNCTAD
uma aparência de imparcialidade ao mesmo tempo que prega a não interferência.
A motivação para a criação da UNCTAD, segundo o documento, surge justamente de
um desejo por parte dos países em desenvolvimento de que existisse uma “organização
comercial compreensiva”. Esse desejo, compartilhado pelos países socialistas, se dá
justamente porque as organizações existentes não abrangiam os interesses dos países em
desenvolvimento tendo historicamente privilegiado os interesses dos países desenvolvidos,
como é o caso do FMI, cujo poder de voto é definido pela renda dos países, e foi o caso do
GATT, com o histórico de rodadas que fracassaram em combater o protecionismo dos países
desenvolvidos, mas que afirmava sua busca pelo livre-comércio. A UNCTAD se propõe a
incumbência de promover o comércio entre países em diferentes estágios de
desenvolvimento, e entre países de sistemas econômicos e de organização social diferentes,
no entanto, sempre levando em conta as instituições já existentes. A ressalva feita sugere a
reivindicação dos Estados mais beneficiados pelas outras instituições existentes, como por
exemplo o Gatt cujo histórico de negociações mais beneficiou os países desenvolvidos.
70
O tom generalizante do documento aponta uma série de atribuições para a UNCTAD,
como: a promoção do comércio internacional; formulação de princípios e políticas e
propostas para sua efetivação; coordenação das atividades de outras instituições nas áreas de
comércio e desenvolvimento; tomada de ação quando apropriado; harmonização de políticas
nacionais com acordos regionais; e lidar com outras questões dentro do escopo de sua
competência. A tomada de ação quando apropriado com o devido cuidado com a adequação
com os órgãos de negociação já existentes demonstra uma formação discursiva mais
preocupada com a possível interferência nas organizações já existentes do que a proposição
de ações para alcançar a mudança proposta, no caso a do padrão de vida dos países. Todas
essas funções atribuídas à UNCTAD falham em clareza sobre suas atividades e, na tentativa
de abranger tudo, acaba-se por não ser definida nenhuma atividade real. O risco de ausência
de deliberações reais depreendido desse documento é confirmado pelos autores apresentados
anteriormente.
Posteriormente no documento são feitas considerações meramente procedimentais,
tornando esse documento de pouca riqueza para a análise. No entanto dentre os princípios
definidos pela organização se encontram questões prementes entre os países em
desenvolvimento, mas como observado nesse documento pela definição de suas funções,
estas questões ganham pouco poder pragmático. Ao incluir dentro das discussões
multilaterais a crítica às instituições existentes, o saldo político acabou por ser a legitimação
do trabalho dessas (GATT, FMI, BM), pois satisfaz as pressões dos países em
desenvolvimento sem procurar combater as limitações presentes nessas instituições, sendo
que estas possuem competências de caráter mais pragmático ao tempo que a UNCTAD
funciona como um fórum intergovernamental de parcas negociações.
3.3 Antecedentes à Declaração de Midrand
71
Uma interessante e críticas análise dos desenvolvimentos ocorridos na
UNCTAD foi feita por Boutros Boutros-Ghali, ex-Secretário Geral das Nações Unidas,
que submeteu ao “Panel of Eminent Persons on Enhancing UNCTAD’s Impact” de
2006 um relatório em que analisa o declínio da UNCTAD nas últimas décadas, em
particular o efeito das conferências UNCTAD VIII em Cartagena e UNCTAD IX em
Midrand. Segundo ele, um esforço orquestrado foi feito a partir da década de 1980, que
teve como resultado uma mudança nas funções, agenda e discurso dentro do sistema
ONU e muitas competências dos secretariados foram eliminadas, sendo a UNCTAD o
principal alvo desse ataque.
Nas conferências de Cartagena e Midrand o mandato e funções da UNCTAD
foram drasticamente podados. Boutros-Ghali aponta sete principais aspectos da
transformação da UNCTAD: perda do poder de negociação tendo seu papel se reduzido
na tentativa de construção de consenso; erosão de sua capacidade de pesquisa e análise
“(...) research has to be carried out with drastically reduced resources and within a pre-
determined ideological framework and orientation.” (BOUTROS-GALI, p.5, 2006),
sendo seus projetos principais meramente tolerados; não se permite mais apresentar uma
abordagem compreensiva e integrada sobre o desenvolvimento; requer-se a
conformidade com as visões adotadas pelo FMI e pelo BM sobre a globalização,
liberalização e desenvolvimento, no intuito de se manter coerência com visão
predominante; o papel da UNCTAD se reduziu a ajudar os países em desenvolvimento a
se integrarem com a economia mundial. Um corolário sobre a globalização,
liberalização e desenvolvimento se concentra em prescrições para políticas domésticas
de países em desenvolvimento. A Assistência Técnica adquiriu função proeminente,
pois é orientada para satisfazerem os países doadores, sendo usada como forma dos
países desenvolvidos manterem controle sobre as políticas adotadas pelos países em
72
desenvolvimento; a UNCTAD retirou sua função de oferecer direto apoio ao Grupo dos
77, que mantinha sua unidade e coesão.
Boutros-Gali aponta, como uma das causas dessa mudança, as conferências de
Cartagena e Midrand da seguinte forma:
UNCTAD VIII in Cartagena opened the door to the ideological and organizational transformation of UNCTAD.(...) Its work of analysis and research was refocused to emphasize national polices and domestic issues. Its subsidiary bodies were given new mandates to move away from criticising the existing order and suggesting new paradigms, towards assisting developing countries in integrating into the international economic system. The ideological shift was taken to its logical conclusion in Midrand. Here, UNCTADentirely gave up its opposition to the international system and redefined its objectives in the context of liberalization and globalization. The argument given in favour of this shift which several developing countries must have found attractive in the short-term view of their interest, was that UNCTAD should give up its ideological stance and remodel itself as an action-oriented and pragmatic institution and that it was very much in the interest of developing countries if UNCTAD rendered them practical assistance to develop capacity to take advantage of the existing economic order, rather than indulging in the seemingly futile exercise of contesting this order. (Idem, p.6)
Uma inovação dessas conferências foi o conceito de “Partnership for
Development”, que para Boutros-Gali, de uma maneira insidiosa tirou a ênfase no papel
dos governos e deu ênfase nos atores não estatais ou organizações da sociedade civil, e
sob essa nomenclatura a primazia foi dada para o setor privado, em particular, as
organizações transnacionais. Vários conclaves da “Partnership for Development” foram
organizados pela UNCTAD onde foi feita uma seleção de setores como comércio de
eletrônicos, biotecnologia de alimentos, microfinanças, movimento global de bens e
administração de riscos, nos quais os parceiros privados provavelmente se interessariam
e fariam contribuições.
Pela primeira vez é trazido para a agenda da UNCTAD pela Declaração de
Midrand o papel das empresas na promoção do desenvolvimento, estando inclusive no
título de uma das novas comissões criadas.
73
Além dessa virada ideológica, a Conferência reestruturou a UNCTAD mudando
seu funcionamento, reduzindo o número de reuniões e de publicações, diminuindo seu
orçamento e coordenação com as outras organizações (OMC, FMI e BM).
O número de comitês foi reduzido pela metade e estes foram rebatizados de
comissões sendo que O Comitê "Commodities,Manufactures, Financing & Invisibles,
Shipping, and Economic Cooperation among Developing countries" foi abolido, e uma
comissão específica para o comércio criada. Além dessa, uma das comissões criadas foi
a de “Enterprise, Business Facilitation and Development”, direcionada especificamente
para o setor privado. Manufacturing (produção industrial) e shipping (transporte
marinho de mercadorias) foram anuladas do vocabulário da UNCTAD.
O desafio enxergado pelo Grupo dos 77 e pelo secretariado da UNCTAD na
Conferência de Midrand foi o de garantir a sobrevivência da UNCTAD, visto que os
países desenvolvidos ameaçaram sair e retirar seu financiamento caso a UNCTAD não
fosse transformada nas linhas de seus interesses. Boutros-Gali, concluindo sobre o
declínio da UNCTAD, afirma que "The decline of UNCTAD has coincided with and is
a part of the general erosion of the Charter role of the United Nations in the economic
field and the transfer of the responsibility of the UN in this field, to the Bretton Woods
Institutions and WTO.” (idem, p.8)
3.4 Análise da "MIDRAND DECLARATION and A PARTNERSHIP FOR
GROWTH AND DEVELOPMENT"
Na introdução da Declaração de Midrand A UNCTAD IX se posiciona
claramente como uma continuação do “Espírito de Cartagena”, ou seja, o reforço das
iniciativas de reestruturação da UNCTAD e sua adaptação com o novo corolário. “In
1992, UNCTAD VIII heralded The Spirit of Cartagena, a partnership for development.
74
This was a clear recognition of the need for a new approach to assisting development.”.
Esse claro reconhecimento aborda a realidade como já posta, esperando ser reconhecida,
onde a necessidade é clara, óbvia e, portanto, incontestável. Onde as novas abordagens
liberalizantes para o desenvolvimento são necessárias e não opcionais, ao contrário do
cumprimento dos compromissos anteriores pelos países desenvolvidos e das
reivindicações dos países em desenvolvimento. Sendo assim, o discurso, por remeter
aos interesses dos países desenvolvidos, se torna paternalista, autoritário, não
reconhecendo as abordagens propostas no passado como válidas.
Ainda na introdução do documento afirma-se que: “(…) the creation of the
World Trade Organization (WTO) has strengthened the rules-based trading system and
furthered the process of liberalization, opening new opportunities for sustainable
development and growth.” (p.3). Nesse contexto da criação da OMC, coloca-se que o
processo de liberalização se aprofundou, o que em termos estatísticos está correto, no
entanto, este processo é diretamente associado com oportunidades para o
desenvolvimento sustentável e o crescimento. Cria-se uma relação direta entre a
liberalização e o desenvolvimento sustentável, como se fossem causa e efeito
necessariamente, sem nem sequer embasar essa afirmação com algum dado concreto.
Além disso, o número de experiências de liberalização, muitas das quais capitaneadas
pela OMC, se mostraram de extrema desvantagem para os países em desenvolvimento,
sem falar das experiências desastrosas das economias do Leste-Europeu ao adotarem a
cartilha liberalizante no pós Guerra-Fria.
Logo em seguida o documento reconhece que os países entram no sistema a
partir de pontos de partidas bem diferentes, sendo o impacto da globalização e da
liberalização desigual. Sendo que “There are notable developing country successes
where domestic reforms have provided increased dynamism to international trade and
75
investment. Yet there remain problems of access to markets, capital and technology, and
many grapple with the institutional transformation necessary for meaningful integration
into the world economy.” Os notáveis países em desenvolvimento são aqueles que
fizeram reformas domésticas e aumentaram o dinamismo para o comércio internacional
e investimentos, e portanto conseguiram se integrar à economia mundial. Essa
integração à economia mundial através das reformas domésticas liberalizantes é
colocada como uma compensação para esse “ponto de partida” diferente, como se a
liberalização em si apagasse as diferenças entre os níveis de desenvolvimento. Enquanto
isso, os países que restringem o acesso aos seus mercados são colocados como
problemas, necessitando da “transformação institucional” para se integrarem à
economia mundial. O reconhecimento das diferenças entre os países é colocado
justamente no intuito de apagar essas diferenças com uma solução unívoca, monofônica.
A fórmula, mais comércio é igual a mais desenvolvimento, é constantemente afirmada,
por mais que as reformas liberalizantes ocorridas em diversos países nas décadas de
1970 e 1980 tenham aumentado os fluxos de comércio sem aumentar a produtividade na
mesma monta, e até em alguns casos na contramão desta, sendo as taxas de crescimento
do PIB da maioria dos países nessas décadas muito pequena, até mesmo negativa.
Posteriormente, na introdução, é colocada a intenção do Secretário-Geral de se
reunir com atores do desenvolvimento (não especificados quais) que lhe aconselharão
em como aumentar a participação da sociedade civil na UNCTAD para a construção de
parcerias para o desenvolvimento (p.5). Dado o que foi exposto anteriormente e a ênfase
posterior sobre a importância do Investimento Externo Direto, pode-se presumir que
esses atores para o desenvolvimento constituem parcerias do setor privado, em
particular as empresas transnacionais, sendo a sociedade civil apontada no texto
constituída principalmente por esses atores privados. No entanto, devido à amplitude
76
que o termo 'sociedade civil' pode tomar, sem entrar no mérito da discussão
gramisciana, deve-se considerar como parte deste as Organizações Não-Governamentais
que prestam serviços de caráter público. Na década de 1990 ocorreu um aumento no
número de Organizações da Sociedade Civil de forma muito intensa, sendo que muitas
dessas surgiram para compensar o Estado Mínimo pregado pelas reformas "neoliberais"
adotadas nas décadas anteriores. Sendo assim a parceria com a sociedade civil toma um
caráter diferente do que aparenta o discurso da Declaração, pois, ao invés de juntarem
os esforços com os governos, estas organizações tomam para si o encargo de governos,
cada vez mais ausentes nas áreas de educação, saúde, habitação, alimentação dentre
outros serviços públicos.
No primeiro parágrafo da Declaração há a afirmação de que a globalização da
produção e a liberalização do comércio oferecem oportunidades para TODOS os países,
permitindo que aqueles em desenvolvimento tenham um "papel mais ativo na economia
mundial". Supondo que empiricamente seja verdade essa afirmação absoluta de
"oportunidades para todos", a alternativa de não se integrar à economia mundial nem
sequer é considerada como viável, muito menos é analisado se a não integração pode ser
vantajosa em alguns casos, como por exemplo, países cuja capacidade competitiva no
comércio mundial é muito baixa. Esse "papel mais ativo" na economia mundial
possibilitado para os países em desenvolvimento toma uma conotação positiva no
documento, mas não necessariamente condiz com a realidade. A valorização do
aumento do comércio (liberalização) é feita em detrimento do desenvolvimento
doméstico autônomo (de caráter mais protecionista), criando uma dicotomia em que
uma ideologia (neoliberal) se afirma ao antagonizar qualquer alternativa a ela. Logo em
seguida, no mesmo parágrafo, os avanços tecnológicos e a mobilidade dos fatores de
produção, e em alguns casos arranjos comerciais regionais, são ressaltados por terem
77
aberto o caminho para possibilidades de aumento de produtividade e de riqueza. Esse
recurso discursivo de constante reafirmação das possibilidades positivas futuras serve o
intuito de apagar as vozes contrárias, ou seja, para omitir as possibilidades negativas. A
possibilidade do surgimento de novos problemas com essa liberalização só é
considerada no décimo terceiro parágrafo e mesmo assim é diminuída pelo papel crucial
dado para a cooperação internacional e para as parcerias (com a sociedade civil). Dentre
essas possibilidades negativas cabe ressaltar que o aumento da produtividade dos países
em desenvolvimento pode ser acompanhado por um alto endividamento, como foi o
caso dos países da América Latina durante a década de 1990. Além disso, esse aumento
de riqueza realmente ocorreu, eventualmente, em vários casos, no entanto nada se
menciona nesse documento do aumento exponencial da desigualdade na repartição
dessa riqueza com a liberalização da economia, fato este não exclusivo dos países em
desenvolvimento, sendo muito acentuado nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Interessante notar que, somente com relação aos arranjos comerciais regionais, o
discurso deixa de ser absoluto e faz uma ressalva. O caráter dessa ressalva é omitido; no
entanto, considerando a dicotomia criada pelo documento, pode-se deduzir que essa
ressalva se refere a alguns acordos regionais que passaram a funcionar como novas
formas de protecionismo frente à competitividade do mercado mundial, ou seja, países
que se unem para protegerem suas indústrias nacionais. No décimo parágrafo essa
intenção fica explícita quando se afirma que acordos regionais devem ser voltados para
o exterior e consistentes com as regras multilaterais de comércio, ou seja, obedecendo
as regras da OMC.
No quinto parágrafo da Declaração há uma descrição de como o conceito de
desenvolvimento evoluiu ao longo dos anos, deixando de ser apenas centrado nos
aspectos econômicos para acrescentar fatores humanos e sociais além de se preocupar
78
com as gerações futuras, criando assim o conceito de desenvolvimento sustentável. Esse
conceito já foi utilizado no início do documento, no entanto as reformas recomendadas
para alcançar esse desenvolvimento, assim como os resultados prometidos, têm um
caráter primordialmente, para não dizer unicamente, econômico. A idéia de
desenvolvimento humano, social e sustentável parece contraditória com o
desenvolvimento alcançado pelas reformas liberalizantes, considerando que os índices
de pobreza, desigualdade, acesso a serviços públicos e preservação da natureza, em
geral, pioraram até o momento da Declaração. Frente a tais fatos a Declaração toma um
caráter um tanto quanto demagógico, se afirmando os interesses dos países e populações
mais pobres sem na prática defendê-los. No oitavo parágrafo, a Declaração requer a
participação de atores não governamentais para lidar com o desafio do desenvolvimento
sustentável. Companhias pequenas ou grandes, domésticas ou transnacionais,
organizações não-governamentais, universidades e centros de pesquisa, todos têm um
papel promovendo o desenvolvimento sustentável. Essa transferência das
responsabilidades para este setor acaba por funcionar, intencionalmente ou não, como
uma promoção indireta do Estado Mínimo, pois o setor privado deve encarregar-se de
funções antes atribuídas ao Estado.
Já no nono parágrafo a Declaração coloca que, para haver crescimento
sustentado, deve-se criar um "(...) enabling environment for the private/business sector.
To create this environment, countries must ensure the efficient functioning of domestic
markets, facilitate sufficient access to international markets, and create the best possible
conditions for the competitiveness of their firms, particularly the micro, small and
medium-sized enterprises which characterize developing countries. Further necessary
conditions include sound macroeconomic policies; encouragement of entrepreneurship
and competition; and efforts to promote domestic savings and attract foreign capital,
79
technology and know-how, as well as mobilizing capabilities towards sustainable
development". Mais uma vez reitera-se a ênfase no setor privado e como os governos
devem trabalhar em prol deste setor. Além disso, os governos devem fornecer acesso
para os mercados internacionais, direcionando o desenvolvimento doméstico para o
exterior deixando suas economias cada vez mais interdependentes. As sólidas políticas
macroeconômicas, considerando o alinhamento intencional com o FMI, entende-se por
serem as reformas propostas pelo Fundo, como por exemplo, a cartilha do Consenso de
Washington. Quanto a atração de investimento estrangeiro, essa atração é feita da
mesma forma que os países em desenvolvimento fizeram durante os Choques do
Petróleo, diminuição ou eliminação de barreiras e tarifas para esses investimentos.
Nos parágrafos 15 e 16 fazem-se referências aos programas de ajuste estrutural
(P.15) e reformas estruturais acompanhadas de sólidas políticas macroeconômicas,
sendo que estas devem ser condições para que medidas para reduzir o peso das dívidas
sejam tomadas (P.16). Apesar de não haver referência direta ao FMI ou BM, tanto o
vocabulário ("structural adjustment programmes") quanto a condicionalidade para o
alívio das dívidas, remetem aos programas e condições sugeridos/impostos pelo FMI e
BM para boa parte dos países em desenvolvimento.
A Declaração como um todo é bem repetitiva em muitas das suas prescrições e
apoios à globalização e liberalização, com breves, raros e isolados apoios ao alívio da
dívida externa (apontado anteriormente) e à cooperação entre países em
desenvolvimento para fortalecerem suas economias (P.20). No entanto vale a pena
comentar o vigésimo primeiro parágrafo onde se afirma: "Globalization and
liberalization have increased the potential for international trade to become an
unprecedented engine of growth and an important mechanism for integrating countries
into the global economy." Não há nenhuma informação nova nesse parágrafo, mas o
80
comentário referente ao comércio se tornar uma ferramenta "sem precedentes" não só
revela um otimismo ideológico exacerbado como também aponta para uma
reivindicação ahistórica dessa premissa, ou mesmo, da reivindicação da globalização
como um marco histórico de importância única. Dessa forma, em termos discursivo-
ideológicos, essa Declaração toma um tom quase profético, legitimando suas demandas
pela importância desse desenvolvimento histórico e pelas benesses, dadas como certas,
que estariam por vir.
No parágrafo 32 da declaração é colocada a importância da produção de
commodities para fazendeiros (em geral, pobres) e mineradores. Países em
desenvolvimento, por serem particularmente dependentes da exportação de
commodities, enfrentam desafios para a promoção do desenvolvimento através do
comércio. Isso, segundo a declaração, se deve ao declínio dos termos de troca e às
dificuldades de diversificação do setor causadas pela ausência de investimento externo
direto e pelas dificuldades de se adotarem políticas voltadas para o mercado por alguns
países. Esse parágrafo merece particular atenção, pois evoca a imagem de populações
pobres vitimizadas pela desvalorização das commodities (reivindicação do Terceiro
Mundo desde os primeiros anos da UNCTAD) e pela ausência de investimento externo
e políticas para o mercado. Ao evocar uma preocupação com os pobres e dar voz ao
argumento terceiro-mundista, se legitima a adição de uma causa para as dificuldades, de
uma condição para o desenvolvimento dos países pobres. A liberalização, que inclui o
aumento de investimento externo possível, surge então como solução para a pobreza
desses trabalhadores e para o desenvolvimento doméstico. O investimento externo é
enaltecido durante todo o documento, no entanto o mesmo investimento poderia ser
feito pelos governos domésticos, o que constituiria em subsídios que, por irem contra as
regras da OMC, limitam o escopo de opções desses governos, tendo estes que se
81
submeter ao investimento externo. Vale ressaltar que o investimento externo direto
geralmente inclui a eventual transferência de divisas para o exterior, diminuindo assim o
montante que poderia ser reinjetado na economia nacional.
Parágrafos 30 e 34 expressam o receio de que novas políticas ambientais possam
funcionar para objetivos protecionistas impedindo o livre-comércio, o parágrafo 34
especificamente fala sobre as preocupações de países em desenvolvimento sobre
“condicionalidades” ambientais na área de commodities. As limitações ambientais são
colocadas como legítimas, devido, em parte, à Eco-92, no entanto, nesses parágrafos é
deixado claro que elas não podem impedir a liberalização, estando submetidas aos
objetivos comerciais.
O papel governamental só é ressaltado quando se trata de reafirmar a
necessidade de "políticas macroeconômicas sólidas" e na garantia da égide do direito,
em particular na defesa dos direitos de propriedade como apontado no parágrafo 35.
Nesse mesmo parágrafo afirma-se: "the economic importance of the enterprise as one of
the main engines of growth and of development is now universally acknowledged: the
enterprise is the economic unit that organizes production, creates employment, enhances
skills, absorbs and promotes technological change and harnesses it for production, and
invests for the future. In undertaking these functions, enterprises also contribute to
broader social and economic objectives, such as reducing poverty and accelerating
structural adjustment." O setor privado é apresentado como uma solução absoluta,
universal, para todos os problemas desde o econômico até o social. Esse discurso de
caráter monofônico coloca a iniciativa estatal como subordinada diretamente aos
interesses empresariais, devendo o Estado promover uma "cultura empreendedora".
Nesse caso o Estado funcionaria diretamente como um mecanismo legitimador da
82
identidade do setor empresarial, sendo que uma cultura especificamente empresária
deve ser apoiada e divulgada pelo Estado.
Parágrafo 36 mais uma vez reforça a importância do investimento externo direto
como ferramenta para o desenvolvimento e integração na economia mundial. O
aumento da dependência dos países em desenvolvimento quanto a estes investimentos,
além de outros possíveis problemas acarretados, nem sequer são considerados,
seleciona-se os elementos discursivos para que o Discurso (Neo)liberal propagado
aparente uma infalibilidade e univocidade. No parágrafo 37 novamente sua importância
é reforçada enfatizando a necessidade de uma estrutura legal transparente que proteja os
direitos de propriedade intelectual, sendo esta um ambiente condutivo para a criação e
transferência internacional de tecnologia. No entanto, a proteção do direito de
propriedade intelectual muitas vezes causa justamente o contrário, a impossibilidade de
acesso a tecnologias por parte dos países em desenvolvimento. A égide do direito,
ressaltada em vários momentos do texto (e recorrente no discurso intergovernamental),
como valor universal, acaba por legitimar as patentes (muitas vezes obstáculos para o
acesso de novas tecnologias por parte dos países em desenvolvimento).
As privatizações são consideradas de extrema importância e ressaltadas como de
especial relevância para os países em desenvolvimento (P.38-9), esse discurso omite as
experiências sofríveis de privatizações ocorridas nas décadas anteriores que
favoreceram a criação de oligopólios internacionais, corrupção da burocracia estatal e
sub-aproveitamento dos recursos nacionais.
Globalização e liberalização mais uma vez são ressaltadas (P.42), sendo
necessárias políticas nacionais para estabilidade macroeconômica, que inclui o
“monetarismo” neoliberal. Internacionalmente mais uma menção é feita ao
83
favorecimento dos Structural Adjustment Programmes, com a ênfase aqui no
desenvolvimento empresarial.
No parágrafo 45 faz-se menção a um “diálogo” entre o setor governamental e o
privado, provavelmente uma demanda dos países menos desenvolvidos, no entanto, o
caráter desse diálogo é omitido para evitar conflitos com as demandas dos países
desenvolvidos. Esta estratégia discursiva é típica de uma declaração intergovernamental
que faz de generalizações uma regra, na esperança de consenso; não especificando as
ações, dá margem para os países interpretarem como quiserem. Cria-se uma imagem de
consenso quando na verdade os conflitos estão longe de serem resolvidos. Fato esse já
observado na análise da UNCTAD apresentada anteriormente.
Segundo o parágrafo 50, governos devem: ter um sistema macroeconômico
estável, fazer ajustes estruturais, sólidas práticas orçamentárias (diminuição dos gastos
públicos), promover investimentos – Práticas de caráter neoliberal. Além disso, devem
aliviar a pobreza (não eliminá-la) e promover igualdades de oportunidades, canalizar
recursos de forma produtiva e satisfazer as necessidades humanas básicas, e prover para
democracia e transparente administração e governança. Objetivos estes historicamente
negligenciados em função dos ajustes macroeconômicos e balanços orçamentários.
Enunciam-se os objetivos de caráter social dando um encargo excessivo para a maioria
dos Estados em desenvolvimento se estes desejam continuar recebendo ajuda externa e
empréstimos das instituições financeiras.
Uma reivindicação em favor dos países menos desenvolvidos é feita no
parágrafo 53 revelando o contexto de queda da ajuda oficial para o desenvolvimento
após o fim da Guerra-Fria, apontando os interesses geopolíticos na ajuda fornecida
anteriormente. A UNCTAD apela para que os países doadores cumpram seus
compromissos anteriores na área de ajuda para o desenvolvimento; sabe-se que esses
84
compromissos não foram cumpridos mesmo depois desse apelo, o caráter não
vinculante dessa declaração fica claro, assim como o caráter de válvula de escape para
as demandas dos países menos desenvolvidos que a organização possui, sem
comprometer os interesses dos países desenvolvidos.
Parágrafos 62 a 68 dão ênfase na importância dos compromissos adotados na
Rodada do Uruguai e na criação da OMC devendo os países se ajudar para alcançar
esses compromissos, e ajudar novos membros a entrarem. Mais uma vez afirma-se que a
liberalização do comércio deve continuar. Já nos parágrafos 75 a 78 reafirma-se a
importância dos investimentos externos diretos para o desenvolvimento e as medidas a
serem adotadas pelos países em desenvolvimento para facilitar o acesso destes
investimentos a eles. Curiosamente o parágrafo 78 faz uma menção a populações
locais: “An appropriate enabling framework allows firms to utilize their dynamism,
global resources and vast capabilities towards indigenous technological capacity
building in developing countries and for the expansion of export opportunities and
access to competitive structures and tools, such as information and transport networks
and distribution and marketing channels. – O parágrafo refere-se a capacity-building
dessas populações e maior acesso destas ao mercado graças às vastas capacidades das
firmas internacionais. Tal estratégia discursiva é utilizada durante toda a Declaração
onde são colocados apenas benefícios para os países recebedores desses investimentos,
não apontando nenhuma possível desvantagem proveniente destes, como por exemplo
seu impacto na indústria nacional. Não há menção também às vantagens em
comparação e lucros obtidos por essas empresas nos países recipientes em comparação
ao país de origem (vantagens oferecidas pelos países recipientes como forma de
atraírem o investimento externo), dando um caráter quase filantrópico às firmas
internacionais. Legitima-se assim sua inserção em qualquer região.
85
Na declaração se faz menção à necessidade de cumprir os compromissos do
"Programme of Action for the Least Developed Countries for the 1990s", esse programa
no seu início já aponta como causas das dificuldades passadas pelos países em
desenvolvimento durante a década de 1980 as políticas domésticas adotadas durante o
período, que causavam "rigidez" nas suas economias, e que em alguns países os
distúrbios internos foram agravados pelos distúrbios externos. Essa perspectiva não
elimina como causa os choques externos, mas diminui a sua importância ao relegar a
apenas alguns países que já possuíam distúrbios internos, sendo que, na realidade, a
crise afetou a grande maioria dos países, inclusive os países desenvolvidos.
Posteriormente nesse documento os países em desenvolvimento são acusados de
causarem as falhas ocorridas nos Programas de Ajustes Estruturais propostos pelo FMI,
pois não implementaram esses programas corretamente. Dentre os princípios desse
programa de ação vale apontar o reforço das "parcerias para o desenvolvimento" e que
os países pobres têm a principal responsabilidade pela implementação das políticas
apropriadas para seu crescimento. Faz-se menção nesse documento à necessidade de
uma estrutura internacional apropriada para ajudar os países em desenvolvimento, no
entanto o tom inicial do documento é bem similar ao tom da Midrand Declaration,
enfatizando a importância do setor privado e da necessidade dos países emergentes em
adotarem os Programas de Ajuste Estrutural.
No parágrafo 88 reitera-se o compromisso de manter a UNCTAD como um
fórum intergovernamental com a participação de representantes do setor privado nas
áreas de privatizações, fluxos de investimentos, e desenvolvimento empresarial. A
participação deste setor, e o compromisso da UNCTAD de que este vai participar, serve
para mostrar como as Conferências insistem em dar voz aos interesses do setor privado
em áreas importantes da economia dos países emergentes. Este compromisso na
86
participação do setor privado não daria evidências da primazia dos interesses privados
sobre o dos países emergentes, mas unindo esse fato com o teor do documento, as
evidências apontam nessa direção.
No restante do documento apenas delineia-se como se devem constituir as ações
da UNCTAD e de seus programas de Assistência Técnica na realização dos objetivos
expostos anteriormente.
Análise dos Resultados e Conclusão
Os resultados obtidos nessa pesquisa apontam na direção dos resultados esperados, no
entanto, a complexidade da afirmação da construção discursiva Liberal, ou mesmo mais
especificamente do que se convencionou como Neoliberalismo, está longe de ser esgotada. O
que se buscou nesse trabalho foi justamente demonstrar a maneira com que essa afirmação
foi feita em âmbitos pouco analisados. Esses espaços multilaterais muitas vezes foram vistos
como âmbitos em que era possível a busca da afirmação de outros interesses e discursos que
não os das instituiçõeos financeiras e dos países desenvolvido, como por exemplo a tentativa
da formação do conceito e identidade do Terceiro Mundo. A pesquisa nesse sentido se serviu
da análise histórica e discursiva da UNCTAD e da UNCHR conseguindo determinar
conflitos discursivos e a predominância de vários discursos que se incluem na cultura
política liberal. David Harvey coloca que : Nenhum modo de pensamento se torna
predominante sem propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos
instintos, nossos valores e nossos desejos. Se bem sucedido, esse aparato conceitual se
incorpora a tal ponto ao senso comum que passa a ser tido como certo e livre de
questionamentos"(HARVEY, 2008, p.15). O Neoliberalismo para Harvey foi um projeto de
classes dirigentes, tanto nas grandes potências quanto nos países em desenvolvimento. Esse
foi um movimento de caráter econômico e ideológico que remonta ao surgimento da
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Sociedade de Mont Pelerin, que através de experimentações em países em desenvolvimento,
como foi o caso do Chile sob o comando dos Chicago Boys (economistas vinculados a
doutrina de Milton Friedman), conseguiu aos poucos convencer as classes dirigentes dos
países desenvolvidos aproveitando-se das crises durante a década de 1970. Posteriormente,
sob os auspícios de organizações como o FMI e o Banco Mundial, a doutrina neoliberal foi
difundida para os países em desenvolvimento através das condicionalidades presentes nas
negociações de dívidas e na concessão de empréstimos. O movimento intelectual de Mont
Pelerin, que teve financiamento de corporações, se expandiu para a política internacional
através de elites políticas dentro de países, mas também através das organizações
internacionais. Boutros-Gali afirma esse movimento de reestruturação das organizações
internacionais sob a égide do pensamento neoliberal, apontando algumas evidências ao
dissertar sobre a UNCTAD. Os resultados aqui obtidos através da Análise do Discurso, vão
em concordância com essa afirmação. Consegue-se assim dar mais validade a um argumento
pouco valorizado no âmbito da política internacional.
Tratando de temáticas bem diferenciadas ambas as organizações dão um panorama,
longe de ser completo, sobre as questões que têm definido a cultura política internacional nas
últimas décadas. A observação dos princípios norteadores da UNCHR serve como uma
janela para as promessas liberais e para a própria concepção liberal do que é “ser humano”. A
tentativa de criação de uma identidade universal revela um discurso monofônico que remete
a interesses particulares, reflexos de um desenvolvimento histórico ligado ao próprio
surgimento do Liberalismo. No caso dos direitos humanos é interessante observar que este
discurso teve um movimento contrário ao que se observou na UNCTAD. Nos seus
primórdios a definição de direitos humanso era mais estrita e representava mais claramente
os interesses de uma classe, e posteriormente, de um grupo pequeno de nações, sendo uma
consepção mais individualista. Com o passar dos anos o discurso dos direitos humanos
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ganhou maior abrangência e passou inclusive a representar interesses coletivos, no entanto, o
que se observou com a análise dos documentos da década de 1990, é que essas reivindicações
de caráter mais coletivista e de países mais pobres ainda são abafadas pela predominância da
concepção individualista dos direitos humanos. Autores como Boaventura de Souza Santos
apontam a possibilidade da transformação do discurso dos direitos humanos se tornar um
discurso emancipatório que não apague as diferenças culturais sob um discurso
pretensamente universalista. No entanto se observam alguns passos tomados nesse sentido,
mas a dinâmica de interesses presente no âmbito das relações internacionais impede maiores
avanços. A cultura política liberal ainda se encontra marcadamente predominante nessa àrea
no entanto de uma forma mais ampla, ao contrário do que se observou no caso da UNCTAD.
No caso da UNCTAD, seu surgimento e atuação serviram como um contraponto até
certo ponto à tradição liberal. No entanto as relações de poder e circunstâncias que rodearam
a história dessa organização mostram que esta serviu mais como uma válvula de escape à
idéias contra-hegemônicas sem lhes dar uma força real de transformação, permitindo assim a
prevalência dos interesses dos países desenvolvidos, justificados e legitimados no que se
convencionou como “neoliberalismo”. A “alter-ideologia” (para se utilizar de um termo de
Althusser) criada no âmbito da UNCTAD serve para abarcar interesses dissonantes no
sistema internacional contendo o conflito desses interesses com a ideologia predominante.
Consegue-se assim manter o status quo atual das relações de poder inter-estatais mantendo a
hegemonia ideológica de um Liberalimo revisitado e dinâmico. Observando o documento
constitutivo da UNCTAD, sua história, e analisando o documento da Declaração de Midrand,
percebe-se claramente um movimento no sentido de minar as reivindicações dos países em
desenvolvimento sob um discurso de promessas neoliberais de desenvolvimento econômico e
de uma globalização de infinitas oportunidades.
Milton Santos coloca de forma contundente a existência de duas globalizações,
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uma como fábula, e outra como perversidade. Ele discorre sobre o papel da ideologia
neoliberal na disseminação de promessas e omitindo os enormes prejuízos sociais. A
produção da globalização é analisada no segundo capítulo da obra tendo em vista do o
estado das técnicas e o estado da política, importantes para se entender qualquer fase da
história, sendo importante a análise conjunta destes. Essa necessidade se dá pois “a cada
evolução técnica, uma nova etapa histórica é possível” (p.24). A evolução das técnicas
levou a criação de um sistema de informações que funciona como um elo entre os
diferentes sistemas de técnicas dando a estes uma presença global. Esse comércio
permitido entre os diversos sistemas técnicos é acompanhado de uma nova
determinação do uso tempo dando a este uma simultaneidade que acelera o processo
histórico. Esse surgimento de novas técnicas também vem acompanhado de um
elemento de desigualdade, pois, somente os atores hegemônicos têm acesso a estas,
enquanto outros sem condições de possuir estas continuam a utilizar as técnicas antigas,
se tornando menos importantes dentro do sistema. Isso revela um princípio de
hierarquia novo na história segundo Santos. Essa hierarquia no entanto, que se infere
pela análise dos resultados dessa pesquisa, se mostrou não só em termos materiais mas
também em termos discursivo-ideológicos.
Longe de serem resultados definitivos, esse trabalho só reflete parte de uma
indagação maior que busca abordagens analíticas nas Relações Internacionais pouco
exploradas. Essas perspectivas exploram a idéia de um mundo discursivo e ideologicamente
construído, cuja construção legitima as atuais relações de poder e mostra uma realidade de
tão difícil mudança quando interesses e construções discursivas se afirmam como verdades
absolutas.
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