UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A...

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86 Hélade - Volume 2, Número 3 (Dezembro de 2016) Tema Livre UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A MOBILIZAÇÃO PARA A GUERRA NA ATENAS CLÁSSICA E NA PARIS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL * GUILHERME MOERBECK 1 Resumo: Este ensaio definivamente é um pasche, envolve reflexões cruzadas que ve durante o mes- trado, doutorado e por ocasião de um convite para uma mesa redonda no Museu Naval do Rio de Janei- ro, que concernia aos cem anos da Primeira Guerra Mundial. Na primeira parte, discurei aspectos ge- rais sobre os combates bélicos, com ênfase nos pro- cessos de idenficação étnica e como esse elemento se constui como catalizador para as formas de mo- bilização para a guerra. Na segunda parte, focarei os problemas relavos à apropriação, no mundo con- temporâneo, de uma ideologia heroica anga acerca da guerra que foi expressa, sobretudo, em certos cír- culos alemães nos anos que antecederam a Primei- ra Guerra Mundial; foi o que chamei de latência do heroico. Na terceira parte, estabeleço aproximações entre a guerra e as estratégias de idenficação, que ulizam o elemento étnico como fomentador da al- teridade. Palavras-chave: Guerra; Idendade; Grécia Clássica; Primeira Guerra Mundial; Arte; Tragédia Grega. 1 Doutor em História pela UFF e Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University. Pós-doutor em Ensino de História pelo PPHPBC do CPDOC/FGV-Rio. Atualmente, é professor de História da Arte e Arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ e também é pesquisador de pós-doutorado no Laboratório de Estudos Sobre a Cidade Antiga – LABECA/MAE/USP. E-mail: [email protected] A guerra e a humanidade: processos de identificação Para o antropólogo Ernest Gellner (1997, p. 166), é possível dividir a forma como a guerra foi feita pela humanidade em três modelos. No primei- ro, ela seria conngente e opcional – como no caso de sociedades pré-históricas. No segundo, obriga- tória e normava – este diz respeito ao caso das so- ciedades angas. E, no derradeiro modelo, próprio das sociedades contemporâneas define-se um po de guerra opcional, contraproducente e potencial- mente fatal à referida sociedade 2 . A passagem do primeiro para o segundo dá-se quando surge a produção e o armazenamento de alimentos e artefatos de luxo. Concomitantemente, inexiste um programa sistemáco de aprimoramen- to tecnológico. Nestas sociedades, a valorização do guerreiro ocorria devido à riqueza [que] poderia ser 2 Para um debate mais detalhado e da origem do presente tex- to acerca da guerra na Anguidade Clássica, pode-se recorrer a MOERBECK, Guilherme. Guerra, políca e tragédia na Ate- nas Clássica. São Paulo: Paco Editorial, 2014.

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    Tema Livre

    UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A MOBILIZAO PARA A GUERRA NA ATENAS CLSSICA E NA PARIS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL*

    GUILHERME MOERBECK1

    Resumo: Este ensaio definitivamente um pastiche, envolve reflexes cruzadas que tive durante o mes-trado, doutorado e por ocasio de um convite para uma mesa redonda no Museu Naval do Rio de Janei-ro, que concernia aos cem anos da Primeira Guerra Mundial. Na primeira parte, discutirei aspectos ge-rais sobre os combates blicos, com nfase nos pro-cessos de identificao tnica e como esse elemento se constitui como catalizador para as formas de mo-bilizao para a guerra. Na segunda parte, focarei os problemas relativos apropriao, no mundo con-temporneo, de uma ideologia heroica antiga acerca da guerra que foi expressa, sobretudo, em certos cr-culos alemes nos anos que antecederam a Primei-ra Guerra Mundial; foi o que chamei de latncia do heroico. Na terceira parte, estabeleo aproximaes entre a guerra e as estratgias de identificao, que utilizam o elemento tnico como fomentador da al-teridade. Palavras-chave: Guerra; Identidade; Grcia Clssica; Primeira Guerra Mundial; Arte; Tragdia Grega.

    1 Doutor em Histria pela UFF e Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University. Ps-doutor em Ensino de Histria pelo PPHPBC do CPDOC/FGV-Rio. Atualmente, professor de Histria da Arte e Arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ e tambm pesquisador de ps-doutorado no Laboratrio de Estudos Sobre a Cidade Antiga LABECA/MAE/USP. E-mail: [email protected]

    A guerra e a humanidade: processos de identificao

    Para o antroplogo Ernest Gellner (1997, p. 166), possvel dividir a forma como a guerra foi feita pela humanidade em trs modelos. No primei-ro, ela seria contingente e opcional como no caso de sociedades pr-histricas. No segundo, obriga-tria e normativa este diz respeito ao caso das so-ciedades antigas. E, no derradeiro modelo, prprio das sociedades contemporneas define-se um tipo de guerra opcional, contraproducente e potencial-mente fatal referida sociedade2.

    A passagem do primeiro para o segundo d-se quando surge a produo e o armazenamento de alimentos e artefatos de luxo. Concomitantemente, inexiste um programa sistemtico de aprimoramen-to tecnolgico. Nestas sociedades, a valorizao do guerreiro ocorria devido riqueza [que] poderia ser

    2 Para um debate mais detalhado e da origem do presente tex-to acerca da guerra na Antiguidade Clssica, pode-se recorrer a MOERBECK, Guilherme. Guerra, poltica e tragdia na Ate-nas Clssica. So Paulo: Paco Editorial, 2014.

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    adquirida mais rapidamente por meio da atividade predatria do que pela produo (GELLNER, 1997, p. 167). No mundo contemporneo h uma clara mudana de orientao na guerra, sobretudo no que diz respeito amplitude dos segmentos sociais envolvidos nos esforos blicos. Alm disso, a capa-cidade de destruio das grandes guerras mundiais quantidade de vtimas em potencial, a atitude de no apenas de vencer o conjunto de soldados ini-migos, mas de destruio do outro. Como em todo modelo, evidente que o autor em questo props uma forma de orientao geral; assim, apenas ao olhar cada um dos casos, seja em que temporalida-de for, conseguir-se- desvelar os conflitos blicos em todos os seus matizes sociais, culturais e eco-nmicos.

    Processo de mobilizao para a guerra: alguns debates

    Para o antroplogo Ren Gallissot no h uma identidade social ou tnico-cultural que guarde seus significados em si, mas sim, a identidade en-contra-se num processo relacional, numa dinmica em que o outro fundamental; o que o antrop-logo francs prope ser chamado de identifica-o. Gallissot sugere este termo, em substituio ao de identidade, por considerar que este ltimo d a impresso de algo fixo, esttico, acabado, e no de uma operao em constante devir (GALLISSOT, 1987, p. 12-27).

    Outro autor fundamental acerca dessas discus-ses Fredrik Barth. Junto tentativa de estabe-lecer uma identificao tnica mediante processos relacionais, encontramos seu conceito de fronteira tnica. Barth percebeu que o estabelecimento de fronteiras entre as etnias utiliza a cultura, isto , toma como base uma seleo de elementos cul-turais, variveis no tempo. Deste modo, agrupa-mentos sociais determinados podem excluir-se mutuamente no sentido tnico. O aspecto mais interessante no conceito de Barth no lidar com culturas completas que se opem, mas sim, afir-mar que os agrupamentos sociais em processo de constituir-se etnicamente podem escolher determi-nados elementos de sua cultura, construindo uma

    relao de alteridade em contraposio a outros agrupamentos. Na criao das fronteiras tnicas assim constitudas, o que est em jogo so as es-tratgias de identificao e os processos relacionais (BARTH, 1998, p. 185-227).

    Um ltimo elemento terico que deve ser le-vado em considerao em nossa abordagem o conceito de etnicidade embutida (nested ethnici-ty), proposto por Jonathan M. Hall. A partir desta noo, podemos perceber como, em diferentes so-ciedades, nos perodos de que tratamos, as estrat-gias de identificao poderiam ser operadas desde elementos maiores (nao), lingusticos (lngua ou dialeto que se fala); religioso ou regional. Isto , es-sas variveis podem servir de catalizadores para a aglutinao ou, ao contrrio de disseno, segundo interesses polticos e econmicos envolvidos nas decises de se fazer a guerra (HALL, 1997).

    No que se refere ao mundo contemporneo, no so poucos os trabalhos que podem ser aqui citados. Desde os esforos de Eric Hobsbawm em seus Naes e Nacionalismos e tambm em A In-veno das Tradies, mas tambm Benedict Anderson, que fez invulgar anlise acerca das for-mas pelas quais as diferentes Comunidades Imagi-nadas estabeleciam estratgias de pertencimento; at mesmo Anthony Giddens que, em seu Estado--Nao e violncia mostra os processos que levaram ao desenvolvimento capitalista e industrializao da Guerra.

    Todos esses autores, em diferentes matizes te-ricos acabaram por jogar luz ao tema ora discuti-do. Note-se, por enquanto, apenas que, naquilo que podemos afirmar de maneira bastante breve acerca das configuraes dos Estados-nao no pr-guerra, a famosa equao nao=Estado=povo nem sem-pre funciona stricto sensu. Portanto, a ideia poltica de autodeterminao dos povos, to em voga no ps-guerra, de maneira alguma consegue dar conta dos emaranhados culturais, multilingusticos e tni-cos por meio dos quais se configuravam os pases e Imprios de ento.

    Pierre Bourdieu ressalta como, em situaes de conflito, ocorrem choques entre as represen-taes identitrias, e, alm disto, sublinha a fora

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    mobilizadora que constituiria uma oposio do tipo ns versus eles, deveras pertinente para a anlise que faremos. Diz o socilogo:

    [...] os indivduos e os grupos investem nas lu-tas de classificao todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que fazem de si mesmos, todo o impensado pelo qual se constituem como ns por oposio a eles, aos ou-tros, a que se ligam mediante uma adeso quase corporal. Isto explica a fora mobilizado-ra excepcional de tudo aquilo que tem a ver com a identidade3. (BOURDIEU, 1980, p. 69).

    Como bem lembra Pierre Bourdieu, muitas ve-zes as encenaes nas grandes cerimnias coletivas que, sabidamente fazem parte da mobilizao para a guerra em diversas temporalidades, tem

    [...] a inteno sem dvida mais obscura de ordenar os pensamentos e de sugerir os sen-timentos mediante o ordenamento rigoroso das prticas, a disposio regulada dos cor-pos, e especialmente da expresso corporal da afeio, como risos ou lgrimas. (BOURDIEU, 2009, p. 113).

    Considerando os aspectos relativos ao jogo de poder identitrio e a excepcional mobilizao hu-mana que se deve fazer em momentos de guerra, farei a exposio, a seguir, de duas possveis abor-dagens que une, num sentido transcultural de apro-priao seletiva, a cultura helena e aquela da Pri-meira Guerra, na Europa.

    3 Valria Reis mostrou bem o processo em que uma identidade helnica forjada na tragdia Os Persas. Cf. SANTOS, Valria Reis. Entre ser e fazer: A construo de uma identida-de poltica ateniense nas tragdias de squilo. Niteri, 2002. Dissertao. (Mestrado em Histria) - PPGH, Universidade Fe-deral Fluminense, Niteri, 2002, bem como: SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. Atenas e a inveno dos Brbaros. Disserta-o de Mestrado. UFF, 1992. E ainda: MOERBECK, Guilherme. Guerra, poltica e tragdia na Atenas Clssica. Jundia: Paco Editorial, 2004. Recentemente em artigo, cf. FERNANDES, Pierre Romana. squilo e Os Persas: repensando a repre-sentao do brbaro. NEARCO Revista Eletrnica de Anti-guidade, ano VII, n. 1, 2015. Por fim, trabalho clssico: HALL, Edith. Inventing the barbarian: Greek self-definition through tragedy. London: Claredon Press Oxford. 1989.

    A guerra como honra

    Jean-Baptiste Duroselle, definiu a guerra como um valor [o problema tico na guerra] de diversas formas, seriam elas: 1) a guerra como fresca e feliz uma atitude de fanfarronice em relao ao confli-to. 2) A guerra aceitvel considerada como justa, vista como resposta a uma injustia, mesmo que a ideia de que a ns foi causada uma injustia varias-se profundamente segundo os discursos polticos proferidos em cada pas. 3) A guerra condenvel, salvo em caso de defesa um tipo de atitude pa-cifista moderada que considera a guerra como uma doena e que deve ser evitada a todo custo. 4) A guerra como absolutamente condenvel - o caso em que a paz considerado um valor superior e/ou em que h interdies religiosas para faz-la.

    E, por fim, a noo da Guerra como um ele-mento nobre, de honra. Esta concepo est base-ada na noo em que existe um grupo social res-ponsvel por fazer a guerra. Sendo assim, ou ela o mais belo dos ofcios, como o dos nobres cavalei-ros medievais, ou se trata de encontrar no tempo greco-romano, no qual havia uma tica especfica acerca da guerra (DUROSELLE, 1981).

    E que tica essa?

    No mundo homrico [Ilada e Odisseia]: o guerreiro homrico decidia os combates atravs de faanhas individuais como o desafio proposto por Heitor no canto VII da Ilada e o valor se afirma-va sob a forma de superioridade pessoal. Alm dis-so, numa sociedade organizada em torno do oikos 4, a funo do guerreiro buscar a glria, a fama, (klos; kdos, aglas, phaidims) e da bela morte (kals thanats); para isto, a guerra constitui-se na tentativa de destruio do outro, convencendo-o, assim, de sua preeminncia.

    Uma nota importante, at a Guerra do Pelo-poneso, os combates empreendidos pelos hoplitas

    4 Comunidade domstica. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antiguidade. Braslia: UNB, 1994. p. 193-202. e MOSS, Claude. A Grcia Arcaica de Homero a squilo. Lis-boa: Edies 70, 1989, p. 57-75.

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    evitavam a destruio das comunidades, e, como tambm no perodo Homrico, vinculavam-se a as-pectos de cunho religiosos capazes at de sustar a guerra, mesmo que fosse durante um curto pero-do. Havia uma srie de normas de conduta, respei-tadas, sobretudo entre os helenos, no perodo an-terior Guerra do Peloponeso. As referidas regras diziam respeito inviolabilidade dos arautos e dos santurios, assim como aos ritos fnebres e s fes-tas pan-helnicas (ROMILLY, 1994, p. 282).

    No mundo romano republicano, a busca de dig-nitas e auctoritas se fazia por meio da participao na guerra. s primeiras ordens censitrias, a dos Senadores e Equestres se abriam possibilidades de ascenso poltica (no cursus honorum) para a che-gada ao Senado. Foi assim que tantos ascenderam, ou ao menos tentaram apenas para mencionar os mais conhecidos, Caio Mrio, Jlio Csar, Pompeu Magnus, Marco Antnio e Otvio Augusto. Note-se que ao lado da conquista de prestgio por meio da guerra, de capital simblico para a ascenso na car-reira romana, havia grandes recompensas de car-ter econmico, como a conquista de terras5.

    Duroselle enfatizou que:

    O advento do nacionalismo, a partir do sculo XVIII, reanimou a ideia de uma guerra honrada e, at mesmo, sublime. A antiga nobreza conti-nuou amplamente a praticar os ofcios blicos que, socialmente, no aboliram. Ela [a nobre-za], na Alemanha, manteve um papel predomi-nante. H toda uma literatura, da Marselhesa a Paul Droulde, que exalta a morte do soldado [...] a Primeira Guerra Mundial, que, pelas mortes que ela provocou, contribuiu para de-senvolver as dvidas, j existentes aqui e ali, sobre a noo de guerra honrosa (DUROSELLE, 1981, p. 231).

    O que queremos enfatizar, aqui, portanto, que h uma espcie de latncia do heroico no mundo

    5 Cf. MENDES, Norma Musco. Insero e desagregao: Terra e o sistema republicano romano. In: CHEVITARESE, Andr Leo-nardo. (org.) O campesinato na Histria. Rio de Janeiro: Re-lume Dumar, 2002, p 87-96. FLORENZANO, Maria Beatriz. O mundo antigo: economia e sociedade. So Paulo: Brasiliense, 1982. Col. Tudo histria. N 39. JOLY, Fbio Duarte. Escravi-do na Roma antiga: Poltica, economia e cultura. So Paulo: Alameda, 2005.

    moderno, e na ideologia poltica sobre a guerra, sobretudo no discurso germnico, entre os quais a guerra ainda guardava certa aurola sagrada, de [andrea] na forma como os homens enfrentavam a morte. nesse sentido que Immanuel Gueiss escre-veu um artigo em que enfatiza que os polticos ale-mes no apenas consideravam a Guerra inevitvel, mas a viam como desejvel (GUEISS, S.D.).

    Havia uma trilha de vitrias que inspiravam a propaganda poltica da poca. As vitrias contra a Dinamarca em 1864, contra a ustria em 1866 e contra a Frana em 1870 encheram os generais e o Kaiser de confiana quanto ao futuro blico da Alemanha. Assim como na Antiguidade, a guerra na Alemanha era vista como uma maneira de se fazer a poltica, embora nem no mundo antigo nem no mundo contemporneo possamos esquecer os ne-xos de carter econmico que subjaziam os interes-ses das cidades-estados e dos estados-nao. Tanto na Inglaterra quanto na Frana, o que prevalecia era a noo de que guerras pontuais, limitadas, contra potncias de menor porte e nas colnias, eram acei-tveis, mas, sem dvida alguma, a palavra francesa que melhor define o esprito glico em enfrentar uma guerra contra outra potncia era uma merde!

    As vitrias obtidas pela Alemanha, sobretudo na Guerra Franco-prussiana, que resultou em sua unificao e fortalecimento da Grande Prssia, in-flavam os espritos e deixavam as Ernies sedentas por um novo derramamento de sangue. E nesse sentido, aparecem alguns senhores da guerra, como o Gal. Moltke [vencedor de batalhas importantes como as de Sadowa em 1866 e Sedan em 1870]. Para ele, pior do que a guerra era a paz eterna. Por isso mesmo, para o Gal. Moltke, a guerra um ele-mento da divina ordem natural das coisas (GUEISS).

    E nesse sentido que, aps 1890, se fortalece o pangermanismo e o conceito de Weltmanchpoli-tik [poltica de poder global]. Noo essa duramen-te criticada por Max Weber em sua aula inaugural em 1895 na Universidade de Freiburg, que percebia a unificao da Alemanha no como um ponto de chegada; mas, ao contrrio, um ponto de partida para a expanso. Possivelmente, Max Weber pres-sentia os dias de luta do porvir. O impulso pela guerra

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    aparecia tambm nas palavras de historiadores, como Hans Delbruck, historiador e editor que uma vez escreveu na publicao mensal [Preussiche Ja-rhbucher]:

    Ns queremos ser uma potncia no mundo e desenvolver uma poltica colonial de grande porte. Isso certo. Daqui no podemos voltar atrs. O futuro de nosso povo no interior das grandes naes depende disso. Ns podemos pr em prtica essa poltica, com ou sem a Gr--Bretanha. Com ela significa a paz; contra ela, a guerra (GUEISS).

    Foi tambm no universo musical do pr-guer-ra alemo que surgiram vrias obras de carter expressionista, tanto de poetas quanto de msicos que acabavam por exprimir, de diferentes manei-ras, a sensao de uma Guerra iminente. O expres-sionismo teve como caracterstica fundamental uma viso interna e psicolgica do mundo ao invs de focar em eventos e testemunhos externos. Na msica, isso apareceu nas maneiras como se brinca-va com as tonalidades, o que vai levar ao aprofun-damento do atonalismo e, depois, revoluo do-decafnica. Especificamente falando nesse mbito, temos Arnold Schoenberg, que produziu em 1906, duas baladas para voz e piano, a segunda delas era intitulada Der verlorene Haufen [A brigada perdida], com texto de Viktor Klemperer.

    Segue uma traduo dos versos:

    Beba! Vocs embriagaram-se pela ltima vez,Agora a investida est para comear;Ns permanecemos no front por obrigao,Ns somos a brigada perdida.

    Aqueles que no mais querem mais vaguear,Quem tiver os ps cansados,Para quem a luz muito brilhante e o dia muito barulhento,Eles juntam-se a nossas fileiras.

    Beba! O leste est ficando plido,Dentro em pouco os rifles cantaro,E quando o primeiro raio da aurora cintilar,Eu estarei agitando a bandeira.

    E quando o sol anunciar o meio-dia,A brecha ter sido feita;E quando o sol desaparecer,

    A muralha ser posta no cho.

    E quando a noite cair,Deixe-a trazer consigo o seu vu,Ento nenhuma centelha e nela apanhada,Pelas rubras chamas da vitria!

    Agora, a lua completa o seu silencioso curso, No entanto, ns no vimos o seu desaparecer.Uma fresca nova manh aproxima-se,E eles viro para recolher nossos cadveres (KLEMPERER, Der verlorene Haufen)

    H pelo menos duas interpretaes possveis. A primeira a da glorificao da Guerra. Mas, para mim, o que parece mais relevante o problema em torno da honra. De uma morte honrada na guerra. A coragem que se deve ter diante da morte certa, aquela do heri, diante da fria de Hades, que se mantm impvido, pois, da memria de seu povo seu nome ressurgir como um exemplo a ser segui-do. O que est em jogo no a batalha contra o inimigo, mas como os homens se deparam com a morte. Assim, temas como a morte, a ressureio e a importncia de Deus se tornaram temas no ape-nas relevantes no universo Austro-germnico, mas tambm em outros pases. Isto mostrado pelos versos de Rupert Brooke - morto em Galipoli (Now, God be thanked Who has matched us with His hour); Alan Seeger, morto em 1916, servindo na legio es-trangeira da Frana, escreveu: I Have a rendez-vous with death. Sem dvida alguma, para o caso alemo h a latncia do heroico reapropriado: a partir de quais fontes? um trabalho ainda por se fazer.

    A guerra e a caracterizao do outro: identidade e arte em uma abordagem transcultural

    A mobilizao para a guerra no devia apenas render-se conscrio fria e calculada. As formas de utilizao de determinadas formas de lingua-gem, em cerimnias coletivas, eram de suma im-portncia para motivar, levantar o moral, enfim, reunir e operar com smbolos que servissem de ca-talizadores da vontade de defender a sua cidade, de tomar uma regio, de fazer a guerra. E o foi assim,

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    tambm no mundo grego antigo, a partir do qual eu passo a apresentar dois momentos:

    O primeiro deles representa melhor o ano de 480 a.C., com a iminente invaso persa, sob o co-mando do Imperador Xerxes, contra uma associa-o de cidades gregas, dentre elas, as mais notrias, Atenas e Esparta. Vejamos o caso de Os Sete Contra Tebas, tragdia de squilo Encenada em 467 a.C.

    CORO - Ah, deuses todo-poderosos! Ah, deu-ses e deusas tornados guardies das muralhas de Tebas, nossa cidade sucumbe ao esforo das lanas: no a entregueis a um exrcito que fala outra lngua! (ESCHYLE. Les Sept contre Thbes, v. 166-170).

    Num outro momento (v. 169-170), num est-simo6, ocorre uma distino clara entre os dialetos, de um lado o falar argivo, pertencente ao dialeto drio, e do outro o tebano, que pertence ao elio. H neste momento o estabelecimento, neste nvel tnico, de oposio do tipo: ns que falamos o e-lio, contra os outros, que falam o drio. Apesar de, num nvel maior, se tratar de helenos nos dois casos, neste patamar (dialetal) observa-se um prin-cpio de autopercepo tnica, que escolhe um ele-mento cultural funcional de distino, exagerado a ponto de serem os dialetos tratados como se fos-sem lnguas diferentes.

    Ademais, havia a conscincia do estatuto do vencido. Os atenienses sabiam que, em caso de derrota, lhes restaria o fim trgico de se tornarem prisioneiros, sofrer a pena capital ou serem escravi-zados. O desespero das mulheres do coro, que tan-to atormentavam o rei tebano Etocles, em Os Sete contra Tebas de squilo um bom exemplo dos pe-rigos da guerra para os derrotados.

    A tragdia Os Persas, encenada em 472 a.C., em linhas gerais, representa indiretamente a der-rota de Xerxes perante os gregos em Salamina, uma das batalhas decisivas da segunda Guerra Mdica. Se formos recorrer historiografia, veremos que as explicaes acerca da vitria grega sobre os persas

    6 Espcie de ato, no qual h dilogo entre personagens e intercalado pelas entradas do coro (parodos).

    esto fundamentalmente ligadas s estratgias mi-litares (neste caso, navais) e iniciativa de Tems-tocles [general ateniense] de ter aumentado em muito o nmero de trirremes de guerra de Atenas nos anos que antecedem a segunda Guerra M-dica. Posteriormente, o exrcito persa ainda seria batido pelo general espartano Pausnias, em Pla-teia. Entretanto, como veremos na tragdia abaixo, conquanto suas cenas ocorressem na Prsia, o que estava em jogo a viso de um grego, squilo, que se utiliza da linguagem do universo trgico e abor-da, por meio desta perspectiva, a derrota de Xerxes.

    RAINHA ATOSSA [ao coro] - Eu sonhei que duas mulheres de belas vestimentas, uma ata-viada em veste persa, a outra em roupa d-ria, apareceram diante de meus olhos; ambas eram, em estatura, bem mais impressionantes do que as mulheres de nossa poca, em be-leza, perfeitas, irms da mesma linhagem. No tocante ao stio em que moravam, uma havia recebido pela sorte a terra da Hlade, a outra, a dos brbaros. Cada uma, segundo achei, pa-recia provocar a outra a mtua peleja; e meu filho, percebendo isso, tratou de restringi-las e acalm-las, e jungiu-as ambas ao seu carro, colocando os arreios em seus pescoos. Uma delas manteve-se orgulhosamente em tal situ-ao, e sua boca obedeceu s rdeas. A outra se debateu e com suas mos rompeu o varal do carro; e ento, livre do jugo, arrastou-o vio-lentamente consigo, quebrando-o. Meu filho foi derrubado por terra e seu pai Dario, de p ao seu lado, compadeceu-se dele. Mas Xerxes ao v-lo, rasgou suas roupas sobre seus mem-bros (AESCHYLUS. The Persians, v. 181-199).

    Os gregos, no texto em questo, so majoritariamente mencionados pelo nome da cida-de de Atenas (v.78; 234; 236-239; 824; 1011-1012) e tambm como jnios. Numa escala menor, os gre-gos so chamados de drios, ou seja, espartanos (v. 817). H tambm momentos em que a Grcia re-cebe uma aluso em termos genricos, como he-lenos ou Hlade (v. 186-187; 796). Os processos de identificao, nas referncias acima, delimitam, no caso dos persas, sua relao estreita e seu per-tencimento ao territrio da sia, bem como seu do-mnio, l, sobre muitos outros povos.

    Outrossim, uma relao metonmica foi es-tabelecida entre jnios (Atenas), drios (Esparta)

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    e o mundo grego. Isto reflete, provavelmente, a importncia maior das duas pleis em relao s demais no contexto da poca e da prpria guerra contra os persas. A retumbante vitria em Salami-na, ao menos como nos relatada por squilo em Os Persas, sugere a existncia do fortalecimento dos laos identitrios entre os helenos em contraste com os brbaros. Isto, mesmo que tenhamos de le-var em conta que este pan-helenismo era restrito, sobretudo ao mundo espartano-ateniense e, que tambm foi composto por variveis que acabaram construindo uma unio que ressaltava seletivamen-te as diferenas7.

    Consideremos agora, ano e contexto mudados. Estamos em 424 a.C. Digladiam-se no mais gregos e persas, mas os gregos entre si. A terrvel Guerra do Peloponeso, para alguns aquela que teria sido o primeiro exemplo de Guerra Total, opunha Atenien-ses e seus aliados contra Espartanos e seus aliados. E assim, Eurpides exps na tragdia, As Suplicantes, uma viso sobre os espartanos.

    ETRA: Vs? Tua ptria mantm seu olhar feroz e altivo quando imprudentes dela zombam: pois onde se trabalha duro8, cresce o poder. As cidades sombrias agem por meio de segredos e olham temerosamente9. (EURIPIDES, As Su-plicantes, v.321-5).

    A seguir, o rei de Argos, que pede auxlio aos atenienses, se pergunta retoricamente:

    ADRASTO: Por que atravessas o Peloponeso e debrua esta tarefa sobre Atenas? (EURIPIDES, As Suplicantes, v. 184-5).

    7 As diferenas de carter tnico entre os helenos no so uma mera construo; existem elementos como a lngua, a religio e mitos de origem que podem realmente sustentar um pro-cesso de identificao. No entanto, como pode ser visto em algumas tragdias, de acordo com o momento poltico vivido pelas pleis, a nfase dada a certos aspectos ligados etnici-dade variava bastante. 8 ligado labuta, trabalhos manuais que envolvem algum tipo de sofrimento. 9 adjetivo que se refere a noo de cautela, quie-tude; associada aqui aos tebanos e que tambm surge, mais adiante no discurso de Adrasto.

    Adrasto, ento, justifica-se dizendo que, Ate-nas a nica alm de Esparta que poderia levar a cabo este tipo de empreendimento, pois as outras cidades so fracas e pequenas. E por que no pedir ajuda ento Esparta? Adrasto caracteriza esta ci-dade como selvagem e no inspiradora de confian-a10.

    MENSAGEIRO [relatando fala de Teseu]: Jo-vens! Se vs no suportais as fortes lanas de Esparta, os quartos dos lares dos homens de Palas estaro arruinados (EURIPIDES, As Supli-cantes, v. 711-3).

    MENSAGEIRO: Este o tipo de general que se deve escolher, um homem que bravo na hora do perigo e que odeia um povo insolente, aquele que em sua prosperidade tenta galgar o degrau mais alto da escada, e perdem a ben-o que poderiam estar gozando (EURIPIDES, As Suplicantes, v. 726-30).

    Tebas, cidade insolente, vista negativamente em unssono com Esparta na pea, foi marcada pelo smbolo da autocracia de seu governo tirnico que, na viso dos atenienses, altamente nocivo. Destri os jovens valorosos e concentra a justia e decises nas mos de um nico homem. Ao passo que a de-mocracia, sistema em que o povo governa por meio do revezamento de seus magistrados e que tem em sua base jurdica leis escritas que garantem a igualdade, o ambiente da participao popular, da

    10 Tal tipo de ambiente discursivo em relao a Atenas e Espar-ta foi retomado por Tucdides em sua obra, pois, este afirma que, os corntios, ao relatarem as agresses de Atenas con-tra a Potideia e a Crcira, reclamam da postura de Esparta, enquanto elogiam Atenas. Na medida em que esta aparece como inovadora; rpida na concepo e execuo de seus de-sgnios; aventurosa e confiante. Do lado dos atenienses est a prontido, enquanto os espartanos procrastinam para tomar alguma atitude. Ademais, os lacedemnios so caracterizados como conservadores, sem criatividade e sem impetuosidade. Certamente, os Corntios tinham do que reclamar de seus alia-dos espartanos antes do incio da Guerra do Peloponeso; mas a verdade que, como j mostrado anteriormente, havia mo-tivos para que os espartanos evitassem, ao mximo, quebrar a trgua existente entre eles e os atenienses. Cf. TUCDIDES. A Histria da Guerra do Peloponeso, 1.68-9 e, especialmente 1.70.

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    Tema Livre

    isegoria11 e da liberdade. Atenas o smbolo maior da democracia no universo ficcional de Eurpides.

    Atenas, a protetora da justia, dos desafortu-nados, a defensora da virtude dos valorosos mos-tra seu lado audaz queles que desrespeitam as leis imutveis que atingem a todos na Hlade. Teseu, jovem guerreiro, lder nato, audaz sem ser desme-dido, diplomtico sem fraquejar nas decises mais difceis, equilibrado e que luta por causas justas. como todo cidado ateniense deveria ser; um exemplo. Eurpides tece um elogio de Atenas, mas de uma prpria e singular Atenas. Aquela em que Teseu trava as justas guerras e no a cidade em que vivia o cada vez mais pessimista trgico de As Supli-cantes. E como nela o teatro retratou os pensamen-tos da poca.

    Acima, a mobilizao poltica em torno da cida-de de Atenas, em um nvel se d pela caracterizao positiva da mesma, por outro, leva em considera-o o outro o brbaro estrangeiro, ou o grego tornado brbaro (o tebano e espartano) para cons-truir a sua prpria imagem, inclusive como defen-sora do sistema democrtico, o que no foi possvel desenvolver aqui. Outra forma de mobilizao para a guerra apareceu tanto no mundo grego antigo quanto na Primeira Guerra Mundial e nessa, a figu-ra das crianas aparece em plano central. Ainda na tragdia As Suplicantes, em uma fala do Arauto te-bano, tem-se a seguinte afirmao:

    ARAUTO: Todavia, todos os homens que sabem o mais forte dos dois discursos, tanto os auspi-ciosos, quanto os maus, [sabem] tanto quanto, que o tempo de paz melhor para os mortais do que a guerra. Enquanto esta adorada pe-las musas, odiada pelo esprito da vingana, [a paz] o encanto das agradveis crianas, o regozijo para a riqueza. Ns, inteis mortais deixamos essas coisas boas de lado, iniciando guerras e escravizando a parte mais fraca; ho-mens escravizando homens e cidades a cida-des (EURIPIDES, As Suplicantes, v. 486-493).

    Ainda durante a Guerra do Peloponeso, a co-mdia, A Paz, de Aristfanes, apenas um dos exemplos possveis de crticas guerra.

    11 Isegoria direito dos cidados interveno por meio da fala nos tribunais e assembleias atenienses.

    TRIGEU: Ns oraremos aos deuses a dar aos gregos a riqueza, que todos ns possamos co-lher a cevada em montes, vinho e figos para devorar, que nossas mulheres possam dar luz, que ns possamos nos unir de novo, as bnos que ns perdemos, e que a vermelha guerra possa ter fim. (ARISTOPHANES. Peace, v. 1320-1328).

    Durante a Primeira Guerra, no foram peque-nos os esforos de mobilizao que operaram por meio da imagem da criana e da infncia. Note-se que o smbolo da infncia era meio e fim, isto , era utilizado como propaganda para obter recursos para auxiliar os rfos da guerra e para mobiliz-los em torno da prpria guerra.

    Um dos arautos mais importantes nesse senti-do foi Edith Wharton, que organizou em 1915, em Nova Iorque, o Children of Flanders Rescue Commit-tee. No incio de 1916, por meios dos esforos de E. Wharton, foi lanado o Le livre de sansfoyer (The book of homeless), que contou com a participao de inmeros artistas, intelectuais, polticos e milita-res da poca. De alguma maneira, ali estavam com-piladas uma antologia de poemas, msicas, pinturas e outras expresses artsticas que fizeram parte dos esforos de arrecadao de fundos para a guerra.

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    Tanto na poesia, nas artes plsticas, quanto em vrias obras musicais, houve um notrio esfor-o em se caracterizar o alemo como um brbaro impiedoso. Isso no muito diferente daquilo que fizeram squilo em relao aos persas e depois, Eu-rpides em relao aos tebanos e espartanos. Todos eles trabalharam a configurao negativa da ima-gem do outro para ressaltar os aspectos positivos dos atenienses. Tambm foi feito assim, durante a Primeira Guerra, mas com uma significativa nfase nas injustias e abusos cometidos pelos alemes e a mobilizao da imagem da criana. Ser frgil, ge-ralmente associado aos mais belos e ternos senti-mentos humanos aparece relacionado crueldade de uma guerra movida por mquinas cinza, homens impiedosos, ambiciosos por poder e honra. Em con-traposio ao soldado aliado, geralmente mostrado como gentil e fraterno, temos a figura do impiedoso alemo, como em desenho de Edmund J. Sullivan, intitulado: The gentle german e a seguinte Kaiser Garland.

    Nesse mesmo sentido, temos um pster feito pela associao Fatherless Children of France12 em

    12 Fatherless children of france organizao criada em Nova Iorque para ajudar as crianas menores de 16 anos que tive-ram seus pais mortos durante a guerra. Em 1954 havia 54 or-fanatos vinculados. Os fundos eram coletados em comits nos EUA, em 1917 havia 128 deles. A ideia que os norte-ameri-canos adotassem financeiramente essas crianas. Os fundos arrecadados eram enviados Frana pelo banco J-P. Morgan e distribudos s famlias e orfanatos pelo correio francs.

    homenagem aos trabalhos da Cruz Vermelha Ame-ricana, de 1918. Esses foram produzidos por Walter de Maris, que fora cartunista de humor, que publi-cou com frequncia no peridico The Saturday Eve-ning Post, publicado de 1823-1969 e que tem suas razes na The Pennsylvania Gazzete que pertenceu a Benjamin Franklin. A revista publicava contos, po-esia e vrios tipos de cartoons como os do artista em questo.

    A literatura juvenil tambm foi alvo de in-meras obras que, de alguma maneira, ajudavam a inculcar ideias de patriotismo e mostrar o impor-tante papel da guerra. Mostravam que, a mobiliza-o ideolgica da juventude nos esforos de guerra tambm era importante. H exemplos desse tipo de obra em vrios pases, desde a ustria, Alemanha, Inglaterra at a Frana. At mesmo a figura do heri infantil que se sacrifica por seu pas apareceu em algumas obras, dentre elas podemos mencionar as de Charlotte Schallers (En guerre; Histoire dune pe-tit soldat (1915); mas tambm a Petite biblioteque de la Grande Guerre e, especialmente, as de Andr Hell, que fez as ilustraes e figurinos para o lan-amento de obra para piano em 1913, que depois foi transformada em Ballet para crianas 1918: La boite joujoux (a caixa de brinquedos de Claude Debussy).

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    Tema Livre

    Segundo Gleen Watkins, do qual, deve-se fazer justia, veio boa parte das informaes e inspirao para se escrever esse texto, o interesse de Debussy era menos pelo universo ldico infantil, do que pela tentativa de comparar a criana, o brinquedo e o adulto em um mundo que, ao compositor, parecia cada vez mais ameaador (WATKINS, 2003).

    No universo musical, so notrias as relaes com a guerra que encontramos em algumas obras. Otto Maria Carpeaux ressaltou, em livro clssico, que sem dvida alguma, A Sagrao da Primavera, de Igor Stravisnky, pode ser considerada como uma das obras mais significativas do pr-guerra, que an-tecipam os horrores do sacrifcio humano pela sua terra, sobretudo quando o compositor em questo busca em razes eslavas e citas elementos para, ao fim, na Danse Sacrale, a ltima ria do segundo ato do ballet, entregar um sacrifcio humano para que se pudesse animar a Yarilo, o deus-sol da primavera (CARPEAUX , 2001). No entanto, menos de Stra-vinsky e mais de seu amigo, Claude Debussy, do qual quero tratar. Isso porque Debussy criou duas peas no perodo da guerra que se ligam, primeiro a uma crtica ao inimigo alemo e segundo por meio da mobilizao do smbolo da criana/infncia.

    Na primeira delas, na cantata natalina, de 1916, Noel des enfant qui nont plus de Maison- ressalta de maneira significativa o destino de crianas que ficaram sem casa durante a guerra. Segundo Gleen Watkins, A msica foi a mais pessoal proclamao artstica de Debussy no que concerne o devastador impacto do prolongado conflito (WATKINS, 2003, p. 189).

    Ns no temos lar!O inimigo os tomou todos, os tomou todos,At a nossa pequena cama!Eles queimaram a escola e o diretor da escola tambm,Eles queimaram a igreja e o senhor Jesus Cristo,E o pobre ancio que no podia fugir!Ns no temos lar!O inimigo os tomou todos, os tomou todos,At a nossa pequena cama! claro! Papai est longe, na guerra, Pobre mame estava morta!Antes de ver tudo isso.O que ns devemos fazer?Natal, pequeno Natal! No v para eles.

    Puna-os! Vinga os filhos da Frana!Os pequenos belgas, os pequenos srvios,E os pequenos Poloneses tambm!Se esquecermos de algum, perdoai.

    Natal! Natal! Sobretudo sem brinquedos,Tente apenas nos dar o nosso po de cada dia.Ns no temos lar!O inimigo os tomou todos, os tomou todos,At a nossa pequena cama!Eles queimaram a escola e o diretor da escola tambm,Eles queimaram a igreja e o senhor Jesus Cristo,E o pobre ancio que no podia fugir!

    Natal! Escutai,Ns no temos sapatinhos:Mas d a vitria s crianas da Frana. (DEBUSSY, Noel des enfant qui nont plus de Maison).

    O poema acima caracteriza o inimigo como monstro, a anttese da civilizao. O alemo na vi-so da cantata em questo o que destri os lares e escolas das pequenas e indefesas crianas, que no respeita os ancios e que, em sua soberba, os gregos diriam hbris, destri at mesmo os templos sagrados. A destruio da famlia, dos sonhos, do universo onrico e ldico das crianas extravasa ao final no desejo de sangue, de vingana. Assim, dora-vante, as Ernies estaro esperando, por mais alguns milhes de mortos, na Segunda Guerra Mundial.

    A guerra torna mais visvel os processos de au-topercepo tnica. O que se tentou fazer aqui, de diferentes maneiras, foi mostrar as estratgias, que vinculam formas de expresso artstica e ideologias que so enfatizadas em momentos de crise e confli-to, pois, o que est em jogo tambm a produo de um discurso para o porvir, dos heris e viles, enfim de uma memria social. Em Debussy, Stra-vinsky, Schoenberg, squilo, Eurpides, ou ainda nos desenhos de Andr Hell e de Edmund J. Sullivan, a literatura, as artes plsticas e a msica podem abrir possveis leituras do passado, especialmente nas formas simblicas e nas metforas que encon-tramos nas obras brevemente trabalhadas nesse ensaio.

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    Tema Livre

    A TALE OF TWO CITIES: AN ESSAY ABOUT THE MOBILIZATION TO THE WAR IN ANCIENT

    ATHENS AND IN THE PARIS OF THE WORLD WAR ONE

    Abstract: This essay is a pastiche. It is a set of re-flexions that I have been making during my master, PhD, up to a symposium that occurred in the Naval Museum of Rio de Janeiro, 2014. The paper is divi-ded in three parts: During the first part, I shall analy-se broad concerns about the war combats, laying emphasis on the ethnic process of identifications and how these works as a sort of a source power to mobilize people to go to the battlefields. Secon-dly, Ill focus on how, in the contemporary world, es-pecially widespread in the German field in the First World War, was built and share an ideology which concerned a kind of ancient hero ethic. I called it as the latency of the heroic. Then, in the final part, Ill try to argue how the war is a special locus where the strategies of identification are used to differentiate ethnically the actors involved.Keywords: War; Identity; Classical Greece; World War One; Art; Greek Tragedy.

    Documentao textual

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