Um Dia Na Vida Do Senhor A

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Um dia na vida do senhor A. Nesta narrativa o senhor cujo nome se esconde por de trás da inicial seguida de um marcante ponto final é o vilão. Vilão não. Pois vilões vivem nas vilas, donde se os teme. Este personagem vive atrás de uma mesa, de um regulamento, de uma gravata afixada à camisa por um grampo de metal reluzente. O fato é que o senhor A. é um bem-sucedido chefe de repartição do Departamento de Engenharia e Tráfego – DET de São Paulo, talvez a cidade mais caótica das Américas, em se tratando do trânsito de automóveis. Não que o seja por responsabilidade desse quixotesco departamento: não há engenharia possível que resolva uma simples questão matemática que todos dias, especialmente das 6h30 às 10h e das 17h às 20h, assola milhões de paulistanos — e a cada ano essa provação começa mais cedo e termina mais tarde. É — sabemos — clichê falar de trânsito em São Paulo. Mas como na psicanálise, que cultiva vastos campos do falar humano para, ao final, colher uma simples equação, retornaremos a esse assunto batido que é também a vida do senhor A., mas começando direto pelo fim, pelo simples problema que, aqui como para a maioria dos pacientes de psicoterapia, é insolúvel. Ocorre que, segundo dados oficiais da D.E.T., existe por volta da mesma quantidade de carros em São Paulo que de pessoas. E, mais grave, a mesma metragem de automóveis se enfileirados à de ruas e avenidas. Ou seja, o trânsito, a única palavra no léxico pátrio que segundo os usos de São Paulo roubou para si o significado de seu antônimo, acontece espontânea, natural e inexoravelmente toda vez que os paulistanos decidem ir trabalhar. Ocorre, ainda, para desgraça dessa pobre cidade, que o hábito que marca seus habitantes promoveu outra

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Crônica pré-carnavalesca

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Um dia na vida do senhor A.

Nesta narrativa o senhor cujo nome se esconde por de trás da inicial seguida de um marcante ponto final é o vilão. Vilão não. Pois vilões vivem nas vilas, donde se os teme. Este personagem vive atrás de uma mesa, de um regulamento, de uma gravata afixada à camisa por um grampo de metal reluzente.

O fato é que o senhor A. é um bem-sucedido chefe de repartição do Departamento de Engenharia e Tráfego – DET de São Paulo, talvez a cidade mais caótica das Américas, em se tratando do trânsito de automóveis. Não que o seja por responsabilidade desse quixotesco departamento: não há engenharia possível que resolva uma simples questão matemática que todos dias, especialmente das 6h30 às 10h e das 17h às 20h, assola milhões de paulistanos — e a cada ano essa provação começa mais cedo e termina mais tarde. É — sabemos — clichê falar de trânsito em São Paulo. Mas como na psicanálise, que cultiva vastos campos do falar humano para, ao final, colher uma simples equação, retornaremos a esse assunto batido que é também a vida do senhor A., mas começando direto pelo fim, pelo simples problema que, aqui como para a maioria dos pacientes de psicoterapia, é insolúvel.

Ocorre que, segundo dados oficiais da D.E.T., existe por volta da mesma quantidade de carros em São Paulo que de pessoas. E, mais grave, a mesma metragem de automóveis se enfileirados à de ruas e avenidas. Ou seja, o trânsito, a única palavra no léxico pátrio que segundo os usos de São Paulo roubou para si o significado de seu antônimo, acontece espontânea, natural e inexoravelmente toda vez que os paulistanos decidem ir trabalhar.

Ocorre, ainda, para desgraça dessa pobre cidade, que o hábito que marca seus habitantes promoveu outra alteração semântica no léxico nacional: São Paulo virou sinônimo de trabalho.

Logo se vê, portanto, que o problema não é tão simples. Tanto o mais porque essa contradição gera conflitos. Cria formas de perceber o mundo e os indivíduos ao redor. Qualquer presença nas ruas que não seja de carros levando gente ao trabalho é, por óbvio, coisa de vagabundo. E isto não é só força de expressão. Esses desocupados são no fim das contas pessoas que gastam mal nossos impostos com sua mera existência. São por isso mesmo perigosos. Não precisam de muito para atrapalharem tudo. Um prejuízo para nós que, aliados ao despertador, lutamos contra o sono para sairmos quinze minutos mais cedo da garagem de casa e fluirmos um pouco mais no trânsito. Nessas batalhas diárias arrancamos um pequeno lapso de tempo, para poderemos trabalhar mais e melhor. Para render mesmo. Nosso chefe ilumina o rosto num bom dia dirigido aos que vencem suas fraquezas e chegam mais cedo; ele, que já estava lá, parece enxergar em nós um espelho, que lhe reflete o sucesso e sua posição na hierarquia do mérito. Até nosso humor melhora — vejam que coisa. É reconfortante. A vida, então, faz sentido: um dia, continuando assim, seremos promovidos, nossos rendimentos aumentarão. Ouvindo matinalmente no trânsito o programa de

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educação financeira da rádio DBN, e reforçado na volta pelas lições de “comportamento corporativo”, multiplicaremos. Vinte anos depois, teremos bens imóveis, que renderão dividendos seguros ante a irrefreável busca milimétrica por espaço. Seremos vitoriosos nessa luta! Compraremos nossa casa num condomínio com algumas árvores. Ou num apartamento de 125 metros quadrados e quatro garagens, estas que nos acrescentariam, aí, pelo menos, mais 25 metros. E para amenizar as agruras do trânsito entre esse querido refúgio e nosso trabalho, todos os anos trocaremos de carro. Ah! Como a tecnologia vem para suavizar a aventura humana na Terra! Longa vida aos nerds que desenvolvem aplicativos! Glória aos papas da microeletrônica! — e o olho se umedece. É de fato para nós um mistério: como os chips feitos de sílica, ou seja— meu Deus! —, areia, cravados por pontinhos prateados e caminhos metálicos encarnam o espírito da inteligência do software?! Por qualquer celular smart se pode encontrar nas redes sociais aquele colega da 3ª série, compartilhar nosso sucesso através das fotos tiradas no Instagram — esses garotos do Vale do Silício, e dizem que vários deles são brasileiros, põem uns nomes legais nos produtos! É impressionante. E voltando ao assunto, pode-se hoje dirigir sem precisar cambiar as marchas. É tudo automático, eletrônico e inteligente. Todo ser humano deveria ter direito a isso: não sofrer no trânsito por ter de ficar engatando primeira, fazendo a gangorrinha entre a embreagem e o acelerador, ir soltando aos poucos, chegar a talvez engatar a segunda marcha, para, segundos depois... desengrenar e frear. É broxante. Mas a tecnologia emancipa. Pode-se ter hoje, pelas maravilhas do crédito, que não é senão a mesma tecnologia aplicada à economia, um carro S-U-V: ele é mais alto, robusto, largo. Ocupa-se com ele mais espaço na rua. Agiganta-se sobre os outros, o que nos dá segurança. A vida em primeiro lugar. Um sujeito num golzinho ao lado se sente diminuído, inferior. É como se o SUV — essa sigla que ninguém sabe de onde vem mas cujo significado já se impõe — dissesse: meu filho... trabalhe mais, dê duro, vá à luta! um dia chegará aqui. É de dar pena sincera de quem é obrigado pelas duras circunstâncias da vida a dirigir um Uno Mile, com todo o respeito àqueles que dignamente passam por isso. Pois a vida é assim. Já engraxei sapatos. Acordava todos os dias às cinco horas da manhã pra pegar no batente. Engoli muito sapo. E o Silvio Santos que foi vendedor de antenas de televisão no camelô? Antônio Ermírio, operário numa fábrica de cimento em Votorantim até abrir a sua? Abilío Diniz, que foi caixa de supermercado? O que você me diz? São Paulo é uma cidade de vencedores. Aqui tem oportunidade pra todo mundo. Basta trabalhar honestamente. Em qualquer negócio que seja. Mesmo o dos carcamano da FIAT: Foda-se: Isto Agora é Teu! Imagine submeter seu próprio filho a agüentar essa piada dos colegas que o vêem chegar à escola numa dessas caixinhas de fósforo com rodas. É humilhante.

Bem, tudo isto passava na cabeça do senhor A., quando, em fins de janeiro, época de chuvas, ouve-se uma discussão, a três baias — sim, esse é o nome num escritório modernizado das divisórias feitas de MDF, outra sigla mas que significa o inverso do SUV em termos de qualidade — de distância da porta que dá para o setor em que está sua sala, devidamente reservada e protegida por uma ante-sala, guarnecida por um casal de secretários de semblante bem caído.

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Senhor A. não tolera nada que lhe seja estranho, sendo que só conhece atualmente o que está previsto em normas jurídicas, nas regras estritas da Administração e, na falta dessas, no código da moral, nos bons costumes, nos hábitos de vida difundidos pela revista Você S/A, entre outras publicações indispensáveis e, no limite da falta de previsão, nos princípios gerais materializados na etiqueta britânica, gestuário esculpido pelas mãos de ourives do puritanismo no fundo da alma do sujeito, de sorte que ao se ter contato com um desses, se tem a certeza de que são efetivamente governados pela razão. Senhor A. sabe muito bem interpretar a história dos povos e olhar para o futuro.

E eis que esse zum-zum-zum, essa nuvem de chumbo de raios e trovoadas, esse acontecer que vibra e se propaga no ar e que desperta a agressividade por debaixo da amabilidade objetiva do proceder do senhor A., vai nesse dia lhe desafiar a sorte.

Chegou à repartição de eventos do D.E.T. um sujeitinho, com papéis amarrotados mas afixados num pacote uniforme por um robusto clips, requerendo uma autorização para que o bloco de Carnaval do qual faz parte, o insigne “Bloco da Redenção”, possa fazer o curto trajeto pelo qual balançam seu estandarte, suas fantasias e cantam e dançam os redencionistas a cada ano se sentindo menos tímidos nessa cidade de que se falou um pouco.

Chamaremos em referência às circunstâncias de outra história esse sujeitinho de Davi — K. seria enfadonho e batido. Era uma vez, então, que ao chegar ao balcão de atendimento do sexto andar do prédio da D.E.T., situado num local nobre do centro, ao lado esquerdo do majestoso Teatro Municipal, cujas estátuas sobre o telhado Davi viu à altura das janelas do andar em que se encontrava a repartição de eventos, como que flutuando no ar, espalhando graça e ornando por sua cor de chumbo com o gramado verde do vale do Anhangabaú lá embaixo e com a bandeira do Brasil a meio pau. Viu ato contínuo um papel afixado na lateral de uma baia de MDF1 que dava para a porta por onde entrou e ao lado da qual havia contígua uma mesinha tipo carteira de escola ginasial a que se sentava um funcionário com cara de quem tem de analisar pessoas e requerimentos a serem recebidos e, para seu misto diário de suplício e prazer sádico, balançar com a cabeça, soltando tsc-tsc e mal-escondendo o sorrisinho de canto de boca diante das inúmeras irregularidades que os imbecis dos requerentes têm o dom de criar. Ah! Como são estúpidos os cidadãos! Como o brasileiro é ignorante, desorganizado, atrapalhado! E os motoboys que vêm trazer os requerimentos de seus contratantes? Esses, pelo menos, coitados, não têm culpa. “Olha: diga a quem te enviou que não pode isso... que aquilo deve estar em papel timbrado... que é preciso autenticar... que a data da ata de posse é anterior e que não veio o edital de convocação para composição da nova diretoria...”.

Mas nem precisaremos ir tão longe. Pois não é que o papel colado na lateral da baia continha em letras garrafais e em negrito os dizeres: “Desde 01/11/2011 não são aceitos requerimentos preenchidos a caneta. Somente são 1 Cf. supra.

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aceitos requerimentos impressos através do site. www.det.sp.gov.br. Favor não insistir. À Direção.”. Davi, que gostava de devaneios e de viajar na maionese, prazer esse gratuito, íntimo e que já se lhe tornara um verdadeiro vício, uma necessidade fisiológica, talvez por conta de suas circunstâncias de vida e trabalho em São Paulo, do estresse que veio a conhecer, ficou refletindo sobre a função do “a” craseado que se costuma pôr antes da autoria, ao final de textos regulamentares. Ao que se lembrou, em seu condomínio havia esse mesmo hábito. Também em padarias é comum o “não vendemos fiado. Não insista. À gerência.”. Foi quando o funcionário, doravante senhor F., perguntou numa entonação de clara afirmação enfadada:

— Pois não, senhor.

— É um requerimento de evento — disse Davi ao estender seus papéis.

— Hunrr-hunrrm — limpou a garganta senhor F., preparando-se para imediatamente falar o que lhe despertava aquele formulário todo preenchido por uma bela, uniforme, bem marcada caligrafia no papel, que se tornara como que um esculpido em alto relevo de azul, branco, cinza e preto, diante.

— Eu não sabia que não...

— Bem, agora sabe. — interrompeu-o, seguro, o senhor F.

— Mas por que não?

Quem é esse Davi? De onde surgiu esse sujeito que vai por ai em seus intentos e ao menor obstáculo manda um intrépido “por quê?”, esperando uma boa razão que lhe convença ou que — céus! — possa ser debatida e até revista, se o caso. Quantas ilusões! Que trabalho de Sísifo. É como Bethoven na 5ª Sinfonia: o Destino se lhe apresenta sonoramente, descendo uma escadaria aos arroubos rumo ao toque mais grave, para bater-lhe à porta e por três vezes; e nosso malabarista responde, tentando contorná-Lo, pegando uma Sua frase para dela desenvolver uma argumentação humana, que passeia pela beira dos sons mais leves, suavemente agudos, fazendo belos volteios que, todavia, subitamente, sem se saber por que, começam a tomar as feições das palavras Dele, palavras que são sua própria presença do outro lado da porta, suficientemente tenebrosa para penetrar até o fundo da pobre alma que passa a repetir a si mesmo os acordes graves do Destino! Essa sina se repetia em sua vida; um fado interminável; um eterno retorno para Davi.

Entretanto, apesar de suas fraquezas e tolices, em seu modo de perguntar, nosso herói — sim, essa historieta, como a vida, tem dois lados, o leitor que escolha o seu! — conseguiu desta feita maneirar um misto de ingenuidade e reconhecimento ao próximo a quem se dirigia a pergunta, de modo que o interlocutor se sentiu honrado por quererem saber sua opinião. Mas senhor F. não era acostumado a dar opiniões. E temendo responder uma impropriedade técnica na frente dos colegas de trabalho, que igualmente se surpreenderam com a presença desse estranho, recorreu à primeira resposta que lhe veio à veneta:

— Porque não.

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A Administração estatal tem de fato seus mistérios. E Davi prosseguiu ainda mais curioso, como se não tivesse entendido a razão e pedisse ao professor recém constituído à sua frente que gentilmente lhe concedesse uma explicação um pouco mais detalhada em condescendência àqueles alunos que não são tão rápidos no raciocínio.

Já visivelmente embaraçado diante da situação de todo imprevista, respondeu senhor F.:

— Porque desde 2011 não estamos aceitando.

Para David essa resposta foi ótima, pois então indagou tranquilamente acerca dos motivos que os levaram a semelhante decisão em tal data, diante do que, sem mais recursos interpretativos fornecidos pelo conteúdo normativo a seu dispor, teve o senhor F. de recorrer, enfim, ao argumento de “é uma Ordem Superior”. Bem, o acaso faz seu trabalho silenciosamente. Diante de tal argumento, Davi foi subitamente tragado por uma de suas viagens na maionese, provavelmente relacionada ao samba que essa sentença lhe despertara — ele era dado a esse outro hábito, de pegar palavras e frases que as pessoas soltam e jogar na roleta da sua cachola para ver que música ela lhe devolve —, de sorte que seu olhar se tornou aéreo. Pareceu, assim, a senhor F. e aos demais funcionários que o jovem refletia como um filósofo sobre o que acabava de se passar. Para evitar novas e perigosas perguntas, virou-se um outro funcionário e disse a Davi que viria um superior tratar com ele.

E para esperança de todos ali na repartição o superior, doravante senhor S., encontrou mais irregularidades que o preenchimento manuscrito do Formulário Oficial: Davi requeria em nome próprio a autorização para o desfile de um bloco que, se presume, é ou deveria ser uma Pessoa Jurídica, cujos documentos, contudo, faltavam. Diante de uma ou outra indagação davideana, senhor S. explicou que pessoa física não pode requerer Evento.

Pode parecer bobo, mas Davi, como o centroavante que recebe, protege, vira e chuta cruzado no contra-pé do goleiro para o fundo das redes, de modo aparentemente sempre igual, mandou para o senhor S. mais um “por quê?”. Bem, chega de rodeios — pensamos em uníssono todos nós, autor, leitores e personagens. Duas ou três palavras trocadas entre nosso herói e os funcionários da sala principal da repartição de eventos do D.E.T. e se chega ao mesmo beco sem saída do critério de validade de uma norma fundado na validade de outra superior, que a produziu ou lhe concedeu a possibilidade de existir, até que seja, todavia, declarada inválida para um determinado caso concreto, por decisão de uma autoridade constituída para tanto, recrutada pelo mérito, segundo procedimentos previamente postos e após o que se chama “devido processo legal”, ou então declarada em abstrato inválida por contrariar outra disposição normativa superior ou mesmo a que lhe dera validade se se achar que fora criada em desrespeito ao que poderia ter sido, sendo que este ato de invalidação igualmente exige um conjunto de autoridades constituídas para tanto e que se convencionou reunir em número igual a onze e dar a esses homens a sensação de serem deuses.

Senhor F. manda Davi ter com o senhor A.

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Por todo o relatado até aqui pode-se ter uma idéia do que se passou naquela sala. Foi, de fato, um duelo de titãs. E como essa história tem por personagem principal não o Davi, mas o senhor A., sentimos por não haver um final feliz, se o leitor ou a leitora adquiriram nesse breve contato alguma afeição pelo rapaz que pretendia obter uma autorização para o desfile do Bloco da Redenção. Mas a verdade é que a história, não raro, avança pelo lado mau. Pois se deu algo como o seguinte diálogo na sala do senhor A., que desde a aparição à porta de David, pensou que se tratava provavelmente de um usuário de tóxicos, desempregado ou estudante, ou estagiário, ou um filhinho de papai que precisa de boas lições para aprender o que é, afinal, a vida, impressão primeira essa que o levou a adotar o estratagema da máxima polidez e empolação nas palavras para diminuir o adversário.

— Boa tarde, em que posso servi-lo, senhor?

— Boa tarde! Tudo bem?

— Sim, em que posso ajudá-lo?

— Ah.. sim, é um requerimento...

— Deixe-me ver.

O certo é que senhor A. desancou David. Deu-lhe uma bela duma escovada. Atropelou o rapaz. Diriam os bandidos: devorou a sua mente. Senhor A. era vivido. Passara por diversos cargos, sempre ascendendo. Após 1988 fez concursos públicos. Primeiro internos. Depois, um dia, a prova que lhe era decisiva, o divisor de águas: um concurso público externo. Venceu toda a concorrência. Tudo quanto é aventureiro, filhinhos de papais outros que em vez de se meterem a levar bloco de carnaval se enfurnavam, depois de malharem na academia, e estudavam a valer, com técnicas mnemônicas desenvolvidas nos Estados Unidos. Claro eles não tinham a experiência de A., adquirida com a vida, especialmente com a vida interna nas dependências da D.E.T. As questões da prova lhe eram familiares. Tinha sua arma secreta: “é uma Ordem Superior”. Nenhum concurseiro levaria essa alternativa a sério de tanto que se inculcam nas cabeças dos alunos de cursinhos para concursos. Muito menos escreveriam isso na prova de redação. E, acordando quinze minutos mais cedo a cada ano, beirando por anos o limite das cinco da manhã, o que lhe impingia o doloroso dilema entre a última meia-hora da novela e a cama, já que pingava de sono, além, é claro, do natural distanciamento e até, pode-se dizer, com o perdão da palavra, esfriamento perante sua esposa, o que, ora bolas, é normal nessa fase da vida, galgou o senhor A. a chefia da repartição de eventos, que até ontem vivia às moscas, não obstante a vigilância pontualmente kantiana que exercia, até mesmo quanto à postura na cadeira dos funcionários para que não inventem depois LER-DORT ou coisa do tipo, só para se licenciar do trabalho, mas que agora tem se tumultuado, isto que era uma tranqüilidade rotineira e laboriosa, inexplicavelmente, ou talvez por culpa da falsa melhora econômica que esse, que ninguém nos ouça, irresponsável do ex-Presidente vinha alimentando com crédito barato para vagabundo que se sabe de antemão que não vai pagar ou que vai atrasar e se enrolar todo com as prestações, com os juros, a dívida de jogo e de cachaça em boteco e as pensões alimentícias

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para as mulheres solteiras e os filhos, aliás, feitos de caso pensado, de olho na pensão que virá, é ou não difícil lidar com esses que multiplicam assim prodigiosamente sua prole? São bocas para alimentar. Quem sabe a castração...

Toda essa profusão de lições sobre a vida que vinha à mente do senhor A. despertada por ação do desafio que se lhe apresentava, com efeito, funcionou como o tom, a melodia inconsciente que entoava suas sentenças disparadas sobre a face e os ombros já encolhidos de Davi, como uma harmoniosa e devastadora avalanche, conduzida por A. como por um maestro, sentindo prazer e a certeza de realizar plenamente seu talento. Via em Davi a encarnação de tudo aquilo que algum dia se havia aparecido em seu caminho para desviá-lo, amigos de quem logo se afastou, uns arroubos que tinha sua esposa, um gesto estranho, ele próprio em alguns momentos após algo que julgava um conquista e que o deixasse leve e seguro de si, um acontecimento na cidade que levava as pessoas às ruas, aquela vontade fortíssima de não fazer nada, aquela lassidão, mas que, enfim, todos esses perigos soube domar, pôr em seu devido lugar, superar e chegar onde chegou. Sentiu mesmo que fazia um bem ao rapaz. Só se enfureceu mesmo quando a impertinência de Davi bateu às raias do inaceitável de perguntar por que razão era necessário haver uma personalidade jurídica que se declarasse a responsável legal do evento e que se dispusesse a pagar pelo evento no quarteirão do Bixiga, aliás todo irregular, em que pretendia desfilar o tal bloco da Redenção.

Então, senhor A. foi ao fundo. Falou do Erário Público; do Interesse Público; que o Tribunal de Contas do Município, por sua vez fiscalizado pelo do Estado e da União, jamais o perdoariam por ter recebido um requerimento assim, rasurado, manuscrito; que isto equivaleria a uma petição inepta; seria Prevaricação da parte dele, que ele responderia por isso funcionalmente ou mesmo por Improbidade Administrativa no caso de uma Auditoria; que há regras e que a Administração respeita os princípios da Legalidade e da Moralidade, que os documentos são analisados por Funcionários Públicos; que são nossos Impostos que estão em jogo; e que também estão em jogo Impostos quando há uma interrupção organizada do fluxo de veículos nas Vias Públicas; que há que se ter uma Autorização Prévia para tanto, já que existem Custos Operacionais; que a vida em sociedade, afinal, é assim, não existe almoço grátis, mas que, voltando, às normas, não há previsão para o uso sem Autorização e recolhimento prévio por meio de G.R.U. em nome de Pessoa Jurídica, sem pedido de autorização em outros Órgãos como a Polícia Militar e o Ministério Público, menos ainda em se tratando de requerimento pretensamente de pessoas físicas indeterminadas, e, assim por diante, passando das regras gerais às específicas.

Arrasado, Davi que também tem sangue nas veias, engoliu o nervosismo, a revolta que explodia muda na garganta, o vazio de palavras que se fazia substituir em seu peito por uma angústia, uma vontade de sumir, de nunca ir ter batido naquela porta, levantou-se sem conseguir encarar os olhos do senhor A., seguiu olhando para o nada, só para sua tristeza misturada a uma raiva, para o chão, disse com voz miserável, um fio de voz que lhe saía, que aquela discussão já lhe tinha bastado, era suficiente, e saiu cabisbaixo numa só toada rumo ao elevador, à rua e às calçadas do viaduto do Chá. Era janeiro, mas fazia frio em SP.

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***

Davi achava que não ia conseguir dormir. A reunião do bloco da Redenção havida no apartamento de um casal de amigos pareceu-lhe sem sentido. Sua atenção só voltou ao grupo por breves instantes quando um amigo botou para tocar no lap-top o samba-de-enredo concorrente do bloco para o carnaval deste ano, enviado por e-mail da parte dos compositores, artistas entre tantos que freqüentam a informal e precária agremiação, um músico-compositor e uma poetiza-cordeleira. Caiu na cama com a cabeça a mil e o corpo acabado. Achava que iria enfrentar uma daquelas noites de insônia, em que ruminaria a experiência da D.E.T. ao som frenético do samba-enredo tocando na mente. Contudo, em minutos mergulhou num sono profundo e teve o seguinte sonho.

Passeava a pé por uma estrada de terra batida, ladeada por árvores esparsas, campos cultivados e cercados por, pequenas matas atrás de touceiras de bambu e, alguns momentos depois, uma vasta planície de vegetação rasteira, com verdes brilhantes, numa alvorada de cores pastéis atravessadas por traços luminosos. Avistou à sombra de uma árvore na beira do caminho um homem vestido com meias brancas cobrindo as batatas das pernas, rendadas pouco abaixo dos joelhos, sapatos de tamancos, calças cinzas de um material que parecia confortável, um colete cinza-escuro, camisa branca toda enfronhada no que restava descoberto pela sobrecasaca azul-marinho, impecável. Era Jean-Jacques Rousseau, pois assim se apresentou a Davi quanto este lhe chegou com cara de dúvida, olhando para os lados para confirmar a veracidade do que via.

— Sim, meu caro. Sou quem você está pensando que sou. O senhor me acompanha: estou indo a pé a Paris.

Davi pensou: — “bizarro”. Mas ao dar com os olhos de Rousseau, embora se sentisse destruído, com a sensação de estar acordando às três da manhã, mal podendo abrir os seus próprios olhos, viu nos desse Mestre uma brancura inaudita, emoldurando os penetrantes olhos castanhos escuros que faziam das frases espaçadas que dele se ouvia como que raios de luz vindos diretamente da alma, que era algo como uma efusão de sensações boas, em plena harmonia com o mundo natural ao redor. Era como beber água fresca quando se está com sede. Davi afundou mais no sono e aderiu sem hesitação à entrevista com Rousseau em sua caminhada.

Foi-lhe dito que os homens e mulheres não precisam de permissão para serem livres. Que nascem livres para fazerem o que bem entenderem das circunstâncias com que se deparam; que toda atitude, mesmo uma omissão, traz um novo cenário; que estas circunstâncias que se lhe apresentam devem ser tomadas uma a uma como um aprendizado, por menos sentido que possa fazer. As adversas trazem duras lições e permitem grandes saltos. As rotineiras e pacatas cobram seu preço ao final, talvez com maior fúria. Que o ser humano é quem dá sentido às coisas, cria, aprende consigo mesmo. Disse que ninguém ensina

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ninguém, citando Paulo Freire, Sócrates e Quino — sim, aquele da Mafalda. Tampouco a vida ensina. Ela não é uma escola: é uma biblioteca, um laboratório, uma casa e um quintal. Que só o exercício da liberdade pode lhe trazer lições. E para espanto de Davi, deixando bruscamente os céus da argumentação filosófica, Rousseau disse sobre o trânsito de carruagens, charruas e caleças. Que quando ficam enfileiradas nas ruas estão ocupando-as tal como o povo as ocupa como pode, ou seja, andando a pé. E que um construtor que ergue um edifício que vai abrigar mil e tantas famílias burguesas com suas carroças, sabendo que os senhores que lá habitam terão de todas as manhãs botá-las na mesma rua para chegarem aos respectivos trabalhos, que esses construtores organizam um tipo de desordem infinitamente mais grave que os arroubos de felicidade do povo na rua, nas festas, nas feiras, nas cirandas, nas marchas, nas místicas, nos atos, nas caminhadas. Que essa vida não cabe em regulamentos, feitos para proteger os grandes. Que o improviso é parte fundamental da administração da vida em comum. Afinal, se aprende muito errando. Que assim o é com a humanidade. Mas que há erros coletivos que aproveitam a uns poucos poderosos, que servem a interesses mesquinhos, que alimentam vaidades, prazeres sombrios como a inveja, que não é senão a desistência de si próprio; como o medo, que não passa de uma reação irrefletida voltada a proteger algo de fraco; como o preconceito, um falso refúgio; como a ofensa e o mal-dizer, nada além de covardes tentativa de se sentir um degrau acima de outrem. Disse, por fim, que é preciso sim lutar contra o mal coletivo que aprisiona a ferros a comunidade humana. Que essa luta é o desdobramento coletivo do que acabara de dizer sobre a liberdade, o aprendizado e a vida de cada um dos seres humanos individualmente. Ao fim, Rousseau convidou Davi para integrar, não se sabe ainda como, um movimento cujo nome lhe encheu os olhos, pois associou a sua querida agremiação e se sentiu parte desse sopro de vida, desse, em verdade, vento forte que varre terras as mais distantes, onde se ouve as mais diversas línguas. Instantes antes de começar a vir à vigília, ouviu um silêncio relaxante e Rousseau perguntar, terminando, assim enigmático, o encontro:

— Espero você na Abolição. Tirei essas roupas de um meu antigo armário. Gostou?

Thiago Barison, 1º de fevereiro de 2013.