Um Intelectual a serviço do esporte -...
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II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)
INTELECTUAIS E PODER
Simpsio 6 | Intelectuais e poder
Um Intelectual a servio do esporte Renato Lanna Fernandez*
Nos diversos trabalhos que tentam explicar o desenvolvimento dos esportes, em
especial o futebol, na cidade do Rio de Janeiro valoriza-se o carter representativo e
simblico que eles assumem no funcionamento de uma sociedade. No caso especifico
do futebol, este foi alvo de intensos debates entre jornalistas, mdicos e intelectuais
acerca das qualidades e perigos que sua pratica representava1. Dentre aqueles que
defendiam a pratica esportiva do futebol estava Coelho Netto. Amante de vrios
esportes, acreditava que eles eram fundamentais para o desenvolvimento do cidado e
para afirmao nacional, no s nos aspectos fsicos, mas no revigoramento moral,
contribuindo para a formao de um indivduo virtuoso e de boa ndole. O futebol seria
para o autor, um esporte moderno e promotor de um tipo de civilizao adaptado aos
modelos idealizados pela Europa, capaz de levar ao aperfeioamento fsico e cvico do
indivduo. Nosso objetivo neste trabalho discutir as principais ideias desse autor em
relao ao tema.
Henrique Coelho Netto nasceu no municpio de Caxias2, no Estado do
Maranho, em 21 de fevereiro de 1864. Filho de Antnio da Fonseca Coelho,
comerciante, e da ndia Ana Silvestre Coelho, a famlia veio para o Rio de janeiro
* Mestre em Histria poltica e bens culturais CEPDOC/FGV coma dissertao Fluminense Foot-Ball Club: a construo de uma identidade Clubstica (1902 1933) sob a orientao do Prof Dr. Carlos Eduardo Sarmento (CEPDOC/F GV). 1 Sobre os debates acerca dos perigos e vantagens do futebol ver PEREIRA, 2000. 2 Todos os dados biogrficos aqui indicados so da biografia escrita por seu filho Paulo Coelho Netto (1942).
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perseguido por problemas polticos no Maranho. Coelho Netto estava com
seis anos de idade.
Seu primeiro trabalho na imprensa foi no Jornal do Commercio, aos 17 anos,
onde escrevia poesia. Posteriormente passou uma temporada em Campinas para cursar
Direito3. De volta ao Rio, conhece Jos do Patrocnio, que o introduz no movimento
abolicionista e republicano. A amizade com Jos do Patrocnio rendeu-lhe um emprego
no jornal Gazeta da Tarde. A partir da passa a escrever nos principais jornais da
cidade, sendo um sucesso vertiginoso. Nesse perodo, passa a conviver com grandes
nomes do movimento abolicionista como Olavo Bilac, Raul Pompia, Paula Nei e seu
amigo Jos do Patrocnio. A chamada Boemia literria (Candido, 1998:35) se reunia
nos cafs e confeitarias da Rua do Ouvidor, dos quais Coelho Netto era frequentador
assduo.
A Rua do Ouvidor era a principal rua do pas. Nela reuniam-se os principais
nomes das esferas cultural, poltica e econmica do Brasil: polticos, escritores,
jornalistas, comerciantes, madames, junto com pessoas simples como operrios,
vendedores, ambulantes, prostitutas e vagabundos em uma interessante mistura social
(Idem: 39). Nesse ambiente se discutia poltica, arte, economia e todas as questes que
interessassem sociedade carioca do fim do sculo XIX e incio do XX.
Coelho Netto herdeiro da gerao de 1870, caracterizada pelo seu esprito
cientfico e militante que acreditava no poder transformador das ideias cientficas e da
educao para se conquistar uma sociedade moderna civilizada baseada na evoluo e
no progresso. Para esse grupo, a sociedade seria transformada a partir da criao de leis
pedaggicas que a regulariam. Essas leis seriam fruto de uma elite ilustrada e teriam o
papel de reformadores sociais, tutelando e regulando a populao (Idem: 89).
A atividade jornalstica era sua principal fonte de renda, responsvel pelo
sustento de uma famlia com sete filhos. A famlia um fator importante na vida de
Coelho Netto. Maria Gabriela Brando, a D. Gaby, era filha de Alberto Brando,
conhecido educador com boas relaes com as elites fluminenses. Provavelmente o
3 O curso no foi concludo em virtude de suas ideias abolicionistas. Coelho Netto tenta conclu-lo em Recife, mas ocorre o mesmo. Depois passou uma temporada em Campinas (1901-1904), atuando como professor de literatura no Ginsio de Campinas. Foi o pior perodo de sua vida intelectual. As lembranas da Rua do Ouvidor e do burburinho literrio falaram mais alto em seu retorno ao Rio. Essa fase turbulenta no impediu que ele publicasse seu primeiro romance A Capital Federal em 1893. Coelho Netto (1942:23) e Candido (1998:32).
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prestgio do sogro tenha sido responsvel pela nomeao de Coelho Netto para
diversos cargos pblicos4.
Com uma melhor situao financeira, mudou-se para a Rua do Roso e sua casa
tornou-se um verdadeiro salo literrio, ponto de encontro de diversos intelectuais
(Broca, 2004:62-65). Foi graas a esse prestgio que Coelho Netto recebeu o convite de
candidatar-se vaga de deputado federal pelo Estado do Maranho, o que acabou
acontecendo por duas legislaturas seguidas (1909 a 1918). Sua atuao como deputado
se deu basicamente atravs de discursos voltados para a necessidade de fazer do Brasil
uma nao civilizada. Para tal, propunha a criao de smbolos nacionais que
representassem a defesa de valores ligados disciplina e eugenia5. Os mesmos
princpios que regiam sua atuao no campo esportivo.
A obra literria completa de Coelho Netto possui mais de 120 volumes
publicados. Alm disso, produziu mais de 3 mil contos, fbulas, palestras, conferncias,
discursos, mensagens, saudaes, poesias, hinos esportivos e patriticos. Isso tudo sem
deixar de escrever diariamente na imprensa para diversos jornais. Fundou e dirigiu
vrias revistas como: O meio revista social, poltico, literrio e artstico (1889), A
poltica revista combativa e ilustrada (1918) e Atlhtica revista literria, artstica
esportiva6. Coelho Netto apontado como um autor de moda que assume o estilo
impessoal e andino da Belle poque (Sevcenko, 2003:131). Frequentando os sales
burgueses e elegantes, desfrutava de um enorme prestgio social e poltico. Basicamente
escrevia sobre tudo, abordando qualquer tema desde culinria, moda, esporte e poltica.
Entretanto, essa viso no capaz de demonstrar a verdadeira dimenso de suas ideias.
Coelho Netto descrito como um homem baixo, franzino e mope (Coelho
Netto, 1942:25). Com essas caractersticas fsicas, ele seria o avesso do tipo fsico que
caracterizaria um esportista. No se tem notcias de que ele tenha jogado futebol ou
participado de uma competio de natao. Embora tenha sido na juventude um exmio
capoeirista e esgrimista, no foi atravs desses esportes que se tornou um dos maiores
incentivadores e idelogos da cultura fsica.
Foi com a literatura que Coelho Netto, com mais de 50 anos, torna-se um
verdadeiro sportman, entregando-se defesa dos esportes como forma de regenerar uma
4 Em 1890 foi nomeado secretrio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 1891 diretor dos negcios de Estado, da Justia e Legislao do Estado do Rio de Janeiro (Candido, 1998:78-79). 5 Sobra atuao de Coelho Netto como deputado, ver Candido (1998:124-128). 6 A revista foi editada ente 06 de fevereiro de 1920 a 20 de novembro de 1920, teve 41 nmeros, sendo que Coelho Netto foi seu editor ate o n. 32.
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raa e construir o cidado ideal. Em sua concepo, o Brasil deveria ser uma
nao forte de homens robustos, porque s a fora pode assegurar a paz.7 Atravs da
valorizao da cultura fsica e da higiene, seria possvel a defesa do corpo contra
doenas. Da soma desses forma-se o conceito de eugenia8, a cincia do
aperfeioamento fsico e moral do homem (Coelho Netto, 1921:69)..
Aps perder vrios de seus filhos por doenas na infncia, desistiu de mant-los
em ambientes fechados e resolveu exp-los a uma vida mais livre e dinmica.
Incentivando a prtica da educao fsica, fez dos seus filhos grandes desportistas.
Violeta j era, aos 10 anos, uma das maiores nadadoras de nado crown da cidade;
Preguinho (Joo) foi um atleta mltiplo, sendo campeo em vrios esportes, com
destaque para a natao e o futebol; Georges e Paulo jogaram water-polo e Mano
(Emmanuel) foi campeo sulamericano de futebol em 1919.
Desisti do aperreado sistema, to mal sucedido de encerrar e abafar em l
os pequenininhos, decidindo-me pela liberdade, que natural. Abri as
janelas ao sol e ao ar deixando as crianas soltas no jardim, brincando
onde e como lhes parecesse. E medraram. medida que se desenvolviam
ia-as eu levando aos exerccios salutares, comeando por lana-las ao mar,
o sangue verde. Ali trabalhavam todas, desde pequeninas trabalhando na
areia, onde levantavam torres, logo desfeitas, correndo com a espuma,
arrojando-se onda. Um dia afoitamente, l se foram a braadas, ora
tona, ora em mergulho9.
Buscava fazer de sua prpria famlia um exemplo para a sociedade, passando a
imagem de uma famlia harmoniosa, feliz e saudvel. No perdia um jogo em que
atuasse seus filhos, chegando a assistir a quatro partidas em um mesmo dia. Trajava-se
para os eventos quase sempre da mesma forma: terno branco, bengala e chapu de
palha. Coelho Netto tinha a preocupao de anotar em seu dirio os momentos de seus
filhos nas competies esportivas, como fez em 24 de abril de 1921, quando todos eles
se destacaram em diversas modalidades.
7 Anotaes do dirio de Coelho Netto. In: Coelho Netto (1942: 43). 8 O termo eugenia foi criado por Francis Galton (1822-1911), que o definiu como o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras geraes seja fsica ou mentalmente. Galton publicou, em 1865, um livro "Hereditary Talent and Genius" onde defende a idia de que a inteligncia predominantemente herdada e no fruto da ao ambiental. Parte destas concluses ele obteve estudando 177 biografias, muitas de sua prpria famlia. Jos Roberto Goldim (1998). Eugenia. UFRGS www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.. ltima visita em 28 de agosto de 2009. 9 Anotaes do dirio de Coelho Netto. In: Coelho Netto (1942:43).
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Pela manh, Violeta nadou na prova experimental (200 metros) batendo
brilhantemente quatro nadadores adultos. Na piscina do Fluminense,
tarde: Joo venceu, sob delirantes aplausos, o campeonato de natao do
clube, na distncia de 600 metros. Violeta venceu a prova de 30 metros e
Georges e Paulo venceram a prova de estafetas. Joo obteve, ainda vitria
na prova salvamento de um afogado10.
Mesmo com a admirao por vrios esportes, foi o futebol que mais apreciou,
tomou-se de encantos pelo jogo ingls e vive a falar, por d aquela palha, em backs,
forward, goals, teams e scratch 11. Preferia os esportes com contato direto com a
natureza, praticados em espaos abertos, por isso defendia o futebol por ser um esporte
praticado a cu aberto, fonte de energia e regenerao da raa brasileira, deixando para
trs nossa herana colonial. O futebol colocava os interesses pessoais abaixo dos
interesses coletivos, e, controlando os impulsos naturais e adestrando o homem
atravs da disciplina, valores cvicos e morais fundamentais para a construo de uma
nova nao.
Contrrio ao profissionalismo, via os jogadores que atuavam por dinheiro como
mercenrios, que no se aliam aos clubes por amor ao seu pavilho, seno pelo
interesse que deles possam auferir12. O clube para ele deve ser como uma pequena
Ptria onde o atleta se dedique e se sacrifique com corao livre de outro qualquer
interesse que no seja o da gloria13.
Em suas incontveis palestras, discursos e conferncias feitas em favor do
esporte, buscou inspirao na antiguidade clssica. Enamorando-se do esprito grego
como bero da civilizao e da sabedoria, enaltecendo os heris do Olimpo, associava a
cultura eugenia, ensinando que o esprito e o corpo devem crescer juntos em harmonia
para que se realize a simbiose do saber e da fora fsica, no equilbrio orgnico
necessrio para a formao de uma espcie humana perfeita14. O peridico Vida
sportiva referia-se a ele como um intermedirio entre as letras e o sport. Cultiva as
letras ao lado do sport, cultiva o sport dando letra15.
10 Ibidem (1942:44). 11 Texto de Gustavo Barroso reproduzido in: Coelho Netto (1942:45). 12 O Profissionalismo artigo publicado na revista A poltica dirigida por Coelho Netto em setembro de 1918, foi assinado por Alcides e reproduzido em Vida Sportiva, n. 58, 28 de setembro de 1918. 13 Ibidem 14 Anotaes do dirio de Coelho Netto. In: Coelho Netto (1942:47-48). 15 Vida Sportiva, 16 de maro de 1918.
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Ao assistir jogos do Fluminense com mais de 30 mil pessoas, faz uma
relao entre o futebol, uma espcie de festa agonstica, e as olimpadas helnicas,
verdadeiros certames pela paz, um combate harmonioso capaz de unir a todos em um
ideal de revigoramento cvico. Um esporte civilizatrio:
Acudindo ao reclamo deixam os seus lares sorrindo e ei-los em marcha, ao
som de hinos para combate harmonioso, cujo prmio uma taa e de prata.
E assim, pouco a pouco, ir-se-o estreitando os laos de amizade,
travando-se a indissocivel aliana no superficialmente, pelo contato das
folhas, mas pelo convvio das prprias razes. Esses sim so os
embaixadores do povo, que trazem entusiasmo. Essa centelha que se
transmite de alma, fazendo-as vibrar alegres, explodir em aclamaes
(Coelho Netto, 1922:77-78).
Outra atividade muito destacada pelo intelectual Coelho o escotismo, em
especial a ateno que d para a seo de escotismo do Fluminense que ele ajudou a
criar em 191616. Para o autor, o escotismo uma instituio de energia baseada na fora
da inteligncia governada pela disciplina.
O escoteiro, assim como robustece nos exerccios ao ar livre, apura os
sentidos, desenvolve as faculdades e aprimora os sentimentos, torna-se
socivel.
De tal escola saem os infantes que sero os homens de amanh, seres de
tempera viril, to teis na paz pelo que aprenderam brincando, como seres
bravos na guerra pela resistncia que adquiriram no corpo, com os
exerccios, na alma com a perseverana na disciplina, que a cadncia da
ordem. (Coelho Netto, 1921: 107-109)
Os escoteiros do Fluminense recebiam instruo militar, aulas de educao
fsica, boxe, ginstica e natao, assistiam a palestras sobre cdigos e compromisso
patritico. Compareciam a solenidades cvicas, faziam cursos de primeiro socorros,
estudavam mapas, ajudavam em competies de atletismo como mensageiros, visitavam
pontos histricos da cidade, ajudavam nas festividades do clube angariando brinquedos
para o natal da criana pobre. Entusiasmado com a prtica do escotismo, Coelho Netto
prestigiava pessoalmente as solenidades desse grupo, proferindo discursos em
16 A seo de escotismo foi criada em 1916, mas s comea a funcionar em 1920 sob a direo do capito Paes Brasil, em 1921. Coelho Netto (2002: 84) e Vida Sportiva, n. 126, 24 de janeiro de 1920.
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cerimnias de juramento bandeira, alm de escrever a introduo do livro do
escoteiro de Olavo Bilac em 1922.
Aprendam a conhecer praticamente as plantas, as rvores: os animais; a
correr, a nadar, a construir jangadas e choupanas; a seguir uma trilha, a
orientar-se pelas estrelas e pelo sol; a socorrer os feridos, a apagar
incndios; aprendem em fim, a resolver inmeros problemas, que
indubitavelmente, conduzem ao aperfeioamento de sua educao moral,
fsica e cvica17.
Para Coelho Netto, o escotismo servia para preencher a lacuna deixada pela
educao moderna, mais preocupada em desenvolver os valores da intelectualidade,
deixando de lado o desenvolvimento do carter, a energia e a disciplina. Era uma escola
para a construo do novo cidado idealizado pelo escritor (Coelho Netto, 1921:106).
Entre as diversas funes que assumiu no Fluminense estavam a de presidir as
reunies que tratavam da construo do novo estdio e a de participar do conselho
deliberativo, chegando, em 1921, a assumir o cargo de diretor de artes.
Alm disso, era quase o orador oficial do Fluminense em cerimnias e festas
realizadas pela instituio. Foi ele que fez o discurso de abertura do torneio
sulamericano de 191918 e comps o primeiro hino do clube em 1915.
Fora do Fluminense, foi representante da Associao Paulista de Sports Atlticos
(APEA), negociando a paz entre a associao paulista e a CBD. Tudo comeou quando
trs jogadores paulistas, Friedenreich, Amlcar e Neto, convocados para defender a
seleo brasileira no campeonato sulamericano que seria realizado em 1918, receberam
uma ajuda de custo da CBD para suas despesas no Rio de Janeiro. Com a epidemia de
gripe espanhola que se espalhou pela cidade, o campeonato foi transferido para o ano
seguinte. A CBD decidiu ento exigir a devoluo da ajuda de custo dos jogadores.
Estes, alegando j ter gasto o dinheiro com os preparativos da viagem, recusaram-se a
devolv-lo. A CBD resolveu punir os jogadores, enquanto a APEA os defendeu.
Alimentada pela velha rixa entre Rio e So Paulo, a CBD, apoiada pelos cariocas,
eliminou a APEA das competies, privando o Brasil dos jogadores paulistas. Com a
aproximao dos jogos sulamericanos e a necessidade de contar com os jogadores
paulistas, a APEA solicitou a Coelho Netto que fosse seu representante junto s
17 Livro do escoteiro In: Coelho Netto (2002: 84). 18 poca Sportiva, 10 de maio de 1919.
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negociaes com a CBD19. Sua reputao e prestgio foram usados para a
pacificar o futebol atravs de apelos unidade nacional: necessrio que todos pensem
com um s crebro e sintam como um s corao20. Sua atuao acabou sendo eficaz,
permitindo a participao do selecionado brasileiro no campeonato com seus melhores
jogadores21. Entre as muitas homenagens recebidas pela sua interferncia estava a de
amigo do esporte, cedida pela revista Vida sportiva22.
No campo literrio, entre as diversas revistas que editou est a revista A
Athletica, criada em 1920, especializada em esportes, que pregava a defesa da eugenia e
as vantagens morais e cvicas da prtica desportiva. Sua funo como diretor era a de
decidir os temas tratados na revista.
A revista tinha como objetivo promover o desenvolvimento dos esportes como
parte do desenvolvimento do cidado23. Transcendendo o fsico e o corporal, buscava o
revigoramento moral, lapidando o indivduo de boa ndole, virtuoso, para tornar-se um
modelo de cidado.
No queremos apenas o atleta de possana monstruosa que ridiculamente,
se ufana da fora bruta, laia dos Hercules de feira, exibindo ao pasmo
das multides basbaques o bceps ampolado e lanando vozes de desafio
com engodo vil de apostas. Queremos sim, o mancebo enrgico e sadio, rijo
de corpo e de alma, que, assim como, subjugue um antagonista arrogante,
redima da humilhao e acolha sua sombra generosa um fraco, ampare e
guie um ancio, defenda uma criana, d prestgio virtude de uma mulher
e, tendo sempre vivo, como uma f acesa no corao, o amor da ptria,
corra a um certame de idias com o mesmo garbo com que surge na arena
dos combatentes24.
No primeiro nmero da revista, publicada uma palestra do Dr. Fernando de
Azevedo, membro da Sociedade Eugnica de So Paulo, sobre os benefcios da eugenia
associada ao atletismo para a sade mental dos povos. A defesa da eugenia ser uma
constante em todo o tempo de circulao da revista. Para Coelho Netto, a concepo de
uma vida esportiva estava diretamente ligada eugenia, a cincia do aperfeioamento 19 O Imparcial, 26 de maro de 1919. 20 Discurso de Coelho Netto para selar a paz entre a APEA e a CBD. Coelho Netto (2002:69) 21 Ibidem e poca Sportiva, 05 de abril de 1919. 22 Vida Sportiva, n. 103, 26 de julho de 1919. 23 Os principais esportes abordados pela revista eram o waterpolo, tiro, tnis, boxe, natao, automobilismo, hipismo e futebol. 24 Athletica, 06 de fevereiro de 1920.
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do homem25. Seu papel era fortalecer o corpo evitando qualquer enfermidade:
um corpo enfermo inibe a integridade, torna a memria fraca e faz do homem um
parasita, sem energia e utilidade para o corpo social (Candido, 1998:115).
No vim propugnar a fora, mas tambm e principalmente pregar a
eugenia, fazer a propaganda necessria da cultura integral do homem.
Para que nele se realize, com glria para o Brasil, fora e beleza para os
seus filhos, o ideal esttico das raas: mens sana in corpore sano26.
A revista no trata s de esportes, mas aborda temas ligados a literatura e teatro,
publicando poemas e romances. Associando as prticas desportivas ao conhecimento de
outras reas, faz com que o esporte seja elevado a uma categoria de maior importncia.
O esporte uma forma de se alcanar objetivos maiores, criticando aqueles que
acreditam que a prtica esportiva est dissociada do intelecto27.
Durante os dez meses de circulao, a revista procurava associar, atravs de
fotografias e textos, as prticas desportivas com beleza esttica, sade, felicidade, bem
estar e harmonia. Suas ideias articulavam questes de sade e de educao s polticas
governamentais. Em nome de um projeto racional, cientfico e educativo, a revista
justificava iniciativas higienizadoras: saneamento dos corpos, cidades e instituies.
Ao contrrio de muitos sportmen, via na popularizao do futebol um grande
aliado no processo de melhoria da raa brasileira28, disciplinando e controlando os
indivduos para que estes no se entregassem a vcios e outras formas de degenerao
fsicas e morais. Alm desses atributos, os esportes em geral, e especialmente o futebol,
seriam um canal emocional-afetivo de construo de um slido sentimento nacional em
virtude da paixo que suscita uma espcie de espao perfeito para a construo da nao
ideal. Se aproveitssemos todas as idias que ambiciosamente recolhemos,
cultivando-as na prtica com inteligncia, mtodo e tenacidade, seriamos
no a primeira potncia da Amrica do Sul, mas o tipo local de uma nao
perfeita: a mais forte, a mais rica, a mais culta e polida, [...] e de melhor
25 NETTO, Henrique Coelho, Introduo. In: BILAC, Olavo. Livro do escoteiro, 1922 (Coelho Netto, 2002:64) 26 Athletica, 06 de fevereiro de 1920. 27 Sobre o debate acerca dos intelectuais sobre as vantagens e desvantagens da prtica esportiva ver: Pereira (2000: 204-229). 28 Athletica 05 de junho de 1920, artigo intitulado males incurveis.
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governo, a mais bela e sadia, a mais confortvel nao por
excelncia, como ainda no passou no sonho do mais cerebrino esportista29.
Sua atuao em favor da atividade esportiva levou a receber diversas
homenagens. Foi scio e membro honorrio de diversos clubes, como o Clube de
Regatas Guanabara, Clube de Natao e Regatas, Clube de Regatas Vasco da Gama,
Club Internacional de Regatas, Clube de Regatas Boqueiro do Passeio, Clube de
Buenos Aires, Palestra Itlia Foot-ball Club de So Paulo. Nestes e em outros clubes era
tratado como expoente mximo de nossa cultura esportiva, maior conquista do Foot-
Ball brasileiro30, constantemente requisitado para participar de eventos em clubes de
todas as origens sociais, chegando a ser criado um clube com o seu nome Coelho Netto
A C.31 Dificilmente ele recusava a oportunidade de discursar em prol do esporte. Com
tantas homenagens, o escritor tornava-se uma referncia para aqueles que defendiam o
esporte como forma de regenerao social preparando as geraes futuras sadias e
viris em lugar de uma raa enfezada dos pigmeus32.
Nem sempre os esportes e a literatura deram alegria a Coelho Netto. O ano de
1922 foi marcante na vida do escritor tanto no aspecto profissional como no pessoal.
Durante a realizao da Semana de Arte Moderna, ele ser bastante criticado por seu
estilo literrio considerado ultrapassado. As crticas aumentaram mais ainda quando se
tornou, em 1926, presidente da Academia Brasileira de Letras, considerada uma
instituio caduca incapaz de dar novos rumos a literatura nacional (Candido, 1998:
190). Mas pior do que as crticas foi a morte de seu filho mais velho Emmanuel Coelho
Netto, o Mano, consagrado tricampeo pelo Fluminense e campeo sulamericano de
1919, aps um acidente na partida de futebol entre o Fluminense e o So Cristvo, com
apenas 24 anos33.
O cortejo fnebre de Mano at o cemitrio So Joo Batista foi acompanhado
por cerca de 500 scios em mais de 200 automveis. Estavam presentes membros das
diretorias do Fluminense, Amrica, Guanabara e Botafogo. Os escoteiros do Fluminense
29 Atlhletica 13 de fevereiro de 1920. 30 Discurso proferido por Fellipe Felix Fernando, Coelho Netto e o futebol poca Sportiva ano 1 n. 3, 19 de abril de 1919. 31 O Paiz, 03 de fevereiro de 1920. 32 poca Sportiva, ano 1 n 1, 05 de abril de 1919. 33 Aps um choque com o adversrio, Mano foi atingido na cabea. Apesar das dores, continuou no jogo. Mais tarde constatou-se uma hemorragia interna que levou ao seu falecimento em 30 de setembro de 1922 (Coelho Netto, 1975:23).
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cobriram o caixo com a bandeira do clube34. No jogo entre Brasil e Uruguai,
pelo sulamericano de 1922, os jogadores atuaram de luto35. O fato foi relato em um
melanclico livro, todo dedicado memria de Mano. Em um dos poemas narra seu
velrio ocorrido ao mesmo tempo em que o Brasil jogava uma partida pelo
sulamericano no vizinho estdio das Laranjeiras, onde seu filho tinha vivido dias de
glrias (Coelho Netto, 1924:61-64).
A morte de Mano no afastou o escritor do clube, onde continuou a promover
espetculos artsticos e a incentivar o escotismo. Em 1923, chefiou a delegao tricolor
de tnis e futebol Bahia. Coelho Netto teve seu maior momento de glria como
desportista ao ser recebido pelas mais altas autoridades locais com honras de estadista,
desfilando em cortejo de automveis pela cidade36.
Apesar do sucesso, a defesa do futebol, feita por Coelho Netto, no atingiu a
totalidade dos intelectuais. Lima Barreto, opositor ferrenho das concepes de Coelho
Netto, era um combatente do futebol, que para ele no passava de um passatempo de
ricaos, importao odiosa que no deveria ser levada a srio, chegando a fundar em
1919 a Liga contra o foot-ball37.
Mesmo com todas as homenagens recebidas, sua carreira declinou
vertiginosamente nos anos 20, criticado pelo seu estilo literrio pela Semana de arte
moderna, cada vez menos o escritor aparecia em pblica, com sua sade abalada pouca
saia de casa, principalmente aps a morte de sua esposa, dona Gaby em 1931, vindo a
falecer em clima de total recluso em 1934.
Coelho Netto refletia o pensamento de diversos segmentos urbanos identificados
e preocupados em viabilizar as condies para a emergncia de uma nova nao38. Uma
das questes centrais para estes segmentos era o debate sobre a identidade cultural e seu
papel na transformao das condies de existncia da populao no Brasil. Atribuindo-
se como portadores de uma misso patritica e cientfica, buscavam atravs da educao
higinica, formular normas sobre lazer, educao e famlia que possibilitassem a
construo de uma nao moderna, justa e pacfica.
Em toda a sua obra revela-se uma inquietao com a questo nacional. Para
Coelho Netto, o conceito de nao precisava ser construdo. Em sua concepo, o Brasil
34 O paiz, 02 de outubro de 1922. 35 O Fluminense fechou suas portas por 24 horas Rio-Jornal, 04 de outubro de 1922. 36 O Imparcial, 01 de abril de 1923. 37 O Paiz, 13 de maro de 1919. 38 Entre eles o mdico Afrnio Peixoto e o educador e sanitarista Belisrio Penna.
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possua um povo, mas no uma nacionalidade. Era preciso desvencilhar-se dos
estrangeirismos que impediam o desenvolvimento de uma identidade nacional. No se
tratava de uma negao da cultura europeia. Sua estratgia consistia em construir uma
srie de smbolos nacionais que pudessem criar uma identificao afetiva com sua
Ptria. Cada cidado deveria desenvolver um sentimento de pertencimento a partir de
um iderio nacional. Esse iderio nacional deveria ser elaborado por uma elite
intelectual que permitisse que o Brasil se revelasse como uma nao civilizada
(Candido, 1998: 88). Essas elites deveriam ser formadas por homens de larga cultura e
preparo para criar o ideal de cidado brasileiro. Dentro desse esprito, ele participou
ativamente da Liga de Defesa Nacional fundada em 1916 por Olavo Bilac. Os
objetivos da Liga seriam o aprimoramento da raa e da nacionalidade atravs do
patriotismo, do civismo e do respeito, rompendo com os complexos de inferioridade
racial, social e mental em relao Europa, tida como civilizada, e com isso construir
uma Ptria grande, forte e respeitada (Idem :104-106).
Patriotismo o sentimento radical pelo qual o homem prendeu- se para
todo o sempre a terra em que nasceu.
Civismo a atitude moral, o procedimento honesto do verdadeiro patriota e
consiste no s no cumprimento exato dos deveres que a lei impe e a
sociedade exige na cortesia recproca entre homens, como tambm de
prestigiar a Ptria no seu nome augusto e nos smbolos que a representam
(Coelho Netto,1921:11-12).
A nacionalidade seria construda a partir de trs alicerces: a educao, a poltica
e o esporte. A educao deveria ser voltada para os ensinamentos cvicos e a
valorizao da histria associada a um tipo de ao poltica que valorizasse os smbolos
nacionais e seus heris e, por fim, o esporte, cuja principal qualidade seria proporcionar
a rigidez moral e a disciplina necessria para construo de uma nao.
Percebemos que hoje, mais de um sculo depois, o projeto de regenerao da
cidade e da sociedade brasileira no modelo europeu no existe mais. A rpida difuso e
popularizao do futebol puseram fim ao ideal de sportmen cultuados por Coelho Netto.
Entretanto a defesa feita do futebol pelo autor contribuiu para que esse esporte ganhasse
legitimidade na sociedade brasileira e se tornasse um dos mais fortes elementos na
construo da identidade nacional. Mesmo que de forma diferenciada e sem o carter
fortemente racial e elitista de seu discurso, muito dos princpios defendidos por Coelho
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Netto, como disciplina, coletividade, amor ao pavilho sobrevivem mesmo nas
atuais estruturas do futebol profissional globalizantes e mercantilizadas, como
exigncias feitas aos atletas quando defendem seus clubes e principalmente a seleo
brasileira.
FONTES: PERIDICOS O Paiz, A Tribuna O Imparcial Rio-Jornal Athltica - Revista literria, artstica e esportiva (1920) Vida Sportiva (1917 - 1921) O Sportman Hebdmantvo sportivo (1915 1916) poca Sportiva (1919 -1920) SITES www.ufrgs.br/bioetica/eugenia - ltima visita em 28 de agosto de 2009
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