UM MERGULHO EM ALCOOLS

download UM MERGULHO EM ALCOOLS

of 9

Transcript of UM MERGULHO EM ALCOOLS

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    1/9

    123 123 123 123 123

    UM MERGULHO EM

    ALCOOLS: CIDADES

    Houve um perodo da crtica literria em que as

    sociar a vida do autor sua obra era fundamen-tal. Qualquer explicao sobre algum aspecto obscuro de um

    texto literrio era buscada na infncia ou adolescncia do escri-

    tor, sem contar as experincias traumticas da vida adulta. Mais

    tarde, a crtica renegou esse procedimento, pretendendo, ento,

    que a obra deveria falar por si mesma. Seria a fase da negao

    total do autor. Exageros parte, o caso de Guillaume Apollinaire

    (1880-1918), nascido em Roma, criado na Frana, com passa-

    gens pela Blgica e Alemanha e paixes multinacionais, deve

    ser considerado. Sua vida indissocivel de sua obra. Os regis-

    tros de suas viagens, impresses, espanto diante da modernidade

    que se anunciava no incio de nosso sculo marcam presena emsua obra potica e tambm em sua obra terica.

    Sua ascendncia polonesa o levou Europa Central.

    Frias passadas na Blgica deixaram em seus poemas marcas

    das paisagens que o poeta viu. Um ano passado na Alemanha

    deu impulso criao do ciclo das Rhnanes, conjunto depoemas inseridos na coletneaAlcools. A efervescncia cultural

    e criativa da poca, canalizada em Paris, atravessou toda a sua obra.

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    2/9

    124 124 124 124 124

    Apesar da nacionalidade italiana, Apollinaire assumiu seu

    lado parisiense, vindo at a se naturalizar francs e, desse modo,

    defendeu a Frana durante a Primeira Guerra Mundial. Esta deci-so lhe custou a vida, j que, tendo sido atingido na cabea por

    uma bala durante um confronto, sua sade ficaria debilitada e a

    gripe espanhola lhe seria fatal, dois anos mais tarde.

    Ora, toda a agitao e modernizao do mundo do

    incio do sculo passa, evidentemente, pela cidade. Espaos querenem passado e principalmente futuro, Paris e outras metr-

    poles servem de pano de fundo criao potica de Apollinaire.

    Ele descobre a poesia dos

    [...] prospectus les catalogues les affiches qui

    chantent tout hautVoil la posie ce matin et pour la prose il y a les

    journaux

    Il y a les livraisons 25 centimes pleines

    daventures policires (APOLLINAIRE, 1994,p. 40)

    Zone, primeiro poema deAlcools, contendo 156

    versos, abre a coletnea com uma proclamao: A la fin tu es

    las de ce monde ancien(Idem, p. 40). Paris o cenrio cen-

    tral do poema. A torre Eiffel, smbolo de uma nova era, transfor-

    ma-se em pastora das pontes que balem na manh. Os autom-

    veis, hangares de Porta-Aviao, datilgrafas, sirenes, a graade uma rua industrial, o gs, aeroplanos, mquinas em geral

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    3/9

    125 125 125 125 125

    misturam-se freneticamente no delrio do poeta, que viaja pe-

    los versos at Marselha, Coblence, Praga, Roma e Amsterdam,

    entre outras cidades. Essa pequena amostra de elementos cita-dinos em apenas um poema deAlcoolsanuncia a poesia da

    mquina e da cidade moderna. Esses elementos serviro for-

    mulao de sua mais famosa conferncia, LEsprit Nouveau et

    les potes, frutos da surpresa do autor diante de toda essa evo-

    luo. Alis, a surpresa um fator fundamental na obra de

    Apollinaire. Para ele,

    le nouveau existe bien, sans tre un progrs. Il est

    tout dans la surprise. Lesprit nouveau est

    galement dans la surprise. Cest ce quil y a en

    lui de plus vivant, de plus neuf. La surprise est

    le grand ressort nouveau. Cest par la surprise,par la place importante quil fait la surprise

    que lesprit nouveau se distingue de tous les

    mouvements artistiques et littraires qui lont

    prcd. (APOLLINAIRE, 1991, p. 949)

    Dessa forma, na esteira de Charles Baudelaire e ArthurRimbaud, Apollinaire demonstra simultaneamente desenvoltura

    e surpresa em relao cidade e modernidade a contida.

    Baudelaire (1821-1867), um dos criadores da palavra

    modernidadede que considerado o poeta, emprega a palavra

    em 1859,

    desculpando-se por sua novidade, mas [dizque] necessita dela para expressar o parti-

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    4/9

    126 126 126 126 126

    cular do artista moderno: a capacidade dever no deserto da metrpole no s a deca-

    dncia do homem, mas tambm de pres-sentir uma beleza misteriosa, no descober-ta at ento. Este o problema especficode Baudelaire, ou seja, a possibilidade dapoesia na civilizao comercializada e do-minada pela tcnica. Sua poesia mostra o

    caminho, sua prosa examina-a teoricamen-te a fundo. Este caminho conduz a uma dis-tncia, a maior possvel da trivialidade doreal at a zona do misterioso; o faz de talforma, todavia, que os estmulos civiliza-dos da realidade, includos nesta zona, pos-sam se converter em poticos e vibrantes.Este o incio da poesia moderna e de suasubstncia to corrosiva quanto mgica.(FRIEDRICH, 1978, p. 35-36)

    Percebe-se ento que o Baudelaire dos Tableaux

    Parisiensque vai ser seguido pelas vanguardas e conseqente-

    mente por Apollinaire, e no o poeta doSpleen et Idal. Rimbaud

    (1854-1891) tambm demonstra um duplo comportamento em

    relao modernidade. Averso e fascnio misturam-se. Seus

    poemas Ville e Villes possuem imagens incoerentes (...), o

    real e o irreal se cruzam, (...) jardins artificiais, chals de cristal e

    palmeiras de cobre os permeiam, a parte superior da cidadeconstruda to no alto que j no se v a parte inferior (...): tais

    cidades repeliram tudo o que familiar. (Ibidem, p. 66)

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    5/9

    127 127 127 127 127

    Ao invs dessa realidade destruda, Apollinaire traba-

    lha a simultaneidade. ainda em Zone que esse fenmeno

    aparece, enfocando vrias cidades ao mesmo tempo:

    Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi

    la foule

    [...]

    Entoure de flammes ferventes Notre-Dame ma

    regard ChartresLe sang de votre Sacr-Coeur ma inond

    Montmartre

    [...]

    Maintenant tu es au bord de la Mditerrane

    Sous les citronniers qui sont en fleur toute lanne

    [...]

    Tu es dans le jardin dune auberge aux environs

    de Prague

    [...]

    Te voici Marseille au milieu des pastques

    Te voici Coblence lhtel du Gant

    Te voici Rome assis sous un nflier du Japon

    Te voici Amsterdam avec une jeune fille que tu

    trouves belle et qui est laide

    [...]

    Tu es Paris chez le juge dinstruction

    [...]

    Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages

    (APOLLINAIRE, 1994, p. 41-42)

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    6/9

    128 128 128 128 128

    Com essa seqncia, nota-se ao mesmo tempo fuso

    e fragmentao, simultaneidade e desconstruo, ou seja, de-

    composio do espao-cidade. Essa uma caracterstica dalrica moderna. Na verdade, todos os espaos que aparecem

    nomeados em Zone nada mais so do que a traduo de um

    cenrio simultneo de um nico evento exterior e interior.

    (FRIEDRICH, 1978, p. 203)

    Contudo, apesar desta multipresena citadina, Paris a cidade mais representada emAlcools. Ela aparece 21 vezes

    na coletnea, a saber: 12 vezes em Vendmiaire poema de

    174 versos, que fecha o livro; quatro vezes em Zone e em La

    Chanson du Mal-Aim, e uma vez no Pome lu au mariage

    dAndr Salmon, contra trs ocorrncias dos segundos luga-

    res, Roma e Coblence, cidade alem.

    Como podemos ver, as duas pontas do fio tecido em

    Alcools, Zone e Vendmiaire, convergem sobretudo para

    Paris. Porm,

    les contextes comme les tonalits sont fort diffrents.Linvocation Paris sous la forme du vocatif

    reprsente plus de la moiti des occurrences de

    Vendmiaire (7 sur 12). Paris apparat avant

    tout comme un univers euphorique situ au centre

    du choeur bachique des villes unies dans la chanson

    du vin et des vendanges lyriques. Le Paris deZone est un lieu plus concret, plus dysphorique

    aussi, o le pote marche parmi la foule

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    7/9

    129 129 129 129 129

    industrieuse dune grande cit moderne et doit

    rpondre aux enqutes de la justice. (HUBERT

    DE PHALSE, 1996, p. 58)

    Vendmiaire traz tambm outra surpresa: a primei-

    ras obra de Apollinaire publicada sem pontuao, reproduzindo

    assim o novo ritmo que nascia das cidades. Desta vez, Apollinaire

    estabelece um dilogo com elas, em uma cano de Paris per-

    sonificada:

    Jai soif villes de France et dEurope et du monde

    Venez toutes couler dans ma gorge profonde

    (APOLLINAIRE, 1994, p. 149)

    Das estrofes 7 a 24, as cidades lhe respondem suces-

    sivamente:

    Et Rennes rpondit avec Quimper et Vannes

    Nous voici Paris [...]

    Et les vill es du Nord rpondirent gaiement

    O Paris nous voici boissons vivantes

    Les viriles cits o dgoisent et chantent

    Les mtalliques saints de nos saintes usines

    Nos chemines ciel ouvert engrossent les nues

    (Ibidem, p. 149-50).

    Entretanto, Paris que se destaca entre tantas cida-

    des, no verso que revela, em tom imperativo, uma ntima relaodo poeta com a capital francesa: coutez-moi je suis le gosier

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    8/9

    130 130 130 130 130

    de Paris. Assim, no dizer de Morhange-Bgu e Lartigue (1991,

    p. 33-34), a cidade de Paris est estreitamente ligada noite,

    momento que favoreceria a criao potica, ao ser evocada pormeio de marcas pontuais, como os cais e o rio Sena, por exem-

    plo. O mesmo ocorre em La chanson du mal-aim ou em

    Zone, poemas nos quais a noite urbana quem d o tom.

    A capital francesa, celeiro da arte moderna no incio

    do sculo oferece tambm a Apollinaire

    ... le raisin le plus doux de la terre

    Ces grains miraculeux qui aux treilles chantrent

    demonstrando mais uma vez a importncia da cidade para o

    poeta.Concluindo brevemente, pode-se perceber que as ci-

    dades, tendo Paris como carro-chefe, ocupam um espao privi-

    legiado nos poemas de Apollinaire, cidades que, em sua poca,

    foram sinnimo de modernidade e de grandes mudanas. Como

    o poeta deAlcoolsestava frente de seu tempo, mas tambmsintonizado com as modificaes importantes do incio do scu-

    lo, nota-se perfeitamente o uso que ele fez dos cenrios citadi-

    nos, incorporando-os sua poesia e, assim, multiplicando seu

    prprio espao interior.

    O modo como o poeta retrata as cidades, inebriadode seu lcool, um convite a mais ao leitor para embarcar com

  • 7/25/2019 UM MERGULHO EM ALCOOLS

    9/9

    131 131 131 131 131

    Apollinaire nessa viagem potica que parte de Zone, faz vrias

    escalas, e tem Vendmiaire como ponto de chegada.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    APOLLINAIRE, G. OEuvres en Prose Compltes, II. d. de P.

    Caizergues et M. Dcaudin. Paris, Gallimard, 1991 (Coll.

    Bibliothque de la Pliade).

    ______. OEuvres Potiques. d. de M. Adma et M. Dcaudin.

    Paris, Gallimard, 1994 (Coll. Bibliothque de la Pliade).FRIEDRICH, H. Estrutura da Lrica Moderna; da metade do

    sculo XIX a meados do sculo XX. Trad. de M. M. Curioni.

    So Paulo, Duas Cidades, 1978 (Col. Problemas atuais e suas

    fontes, 3).

    HUBERT DE PHALSE. Quintessence dAlcools; le recueildApollinaire travers les nouvelles technologies. Paris, Nizet,

    1996 (Coll. CapAgreg, 8).

    MORHANGE-BGU, C. & LARTIGUE, P. Alcools (1913),

    Apollinaire. Paris, Hatier, 1991 (Coll. Profil dune oeuvre, 25).

    Silvana Vieira da Silva Amorim

    FCL UNESP Araraquara