UM MERGULHO EM ALCOOLS
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UM MERGULHO EM
ALCOOLS: CIDADES
Houve um perodo da crtica literria em que as
sociar a vida do autor sua obra era fundamen-tal. Qualquer explicao sobre algum aspecto obscuro de um
texto literrio era buscada na infncia ou adolescncia do escri-
tor, sem contar as experincias traumticas da vida adulta. Mais
tarde, a crtica renegou esse procedimento, pretendendo, ento,
que a obra deveria falar por si mesma. Seria a fase da negao
total do autor. Exageros parte, o caso de Guillaume Apollinaire
(1880-1918), nascido em Roma, criado na Frana, com passa-
gens pela Blgica e Alemanha e paixes multinacionais, deve
ser considerado. Sua vida indissocivel de sua obra. Os regis-
tros de suas viagens, impresses, espanto diante da modernidade
que se anunciava no incio de nosso sculo marcam presena emsua obra potica e tambm em sua obra terica.
Sua ascendncia polonesa o levou Europa Central.
Frias passadas na Blgica deixaram em seus poemas marcas
das paisagens que o poeta viu. Um ano passado na Alemanha
deu impulso criao do ciclo das Rhnanes, conjunto depoemas inseridos na coletneaAlcools. A efervescncia cultural
e criativa da poca, canalizada em Paris, atravessou toda a sua obra.
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Apesar da nacionalidade italiana, Apollinaire assumiu seu
lado parisiense, vindo at a se naturalizar francs e, desse modo,
defendeu a Frana durante a Primeira Guerra Mundial. Esta deci-so lhe custou a vida, j que, tendo sido atingido na cabea por
uma bala durante um confronto, sua sade ficaria debilitada e a
gripe espanhola lhe seria fatal, dois anos mais tarde.
Ora, toda a agitao e modernizao do mundo do
incio do sculo passa, evidentemente, pela cidade. Espaos querenem passado e principalmente futuro, Paris e outras metr-
poles servem de pano de fundo criao potica de Apollinaire.
Ele descobre a poesia dos
[...] prospectus les catalogues les affiches qui
chantent tout hautVoil la posie ce matin et pour la prose il y a les
journaux
Il y a les livraisons 25 centimes pleines
daventures policires (APOLLINAIRE, 1994,p. 40)
Zone, primeiro poema deAlcools, contendo 156
versos, abre a coletnea com uma proclamao: A la fin tu es
las de ce monde ancien(Idem, p. 40). Paris o cenrio cen-
tral do poema. A torre Eiffel, smbolo de uma nova era, transfor-
ma-se em pastora das pontes que balem na manh. Os autom-
veis, hangares de Porta-Aviao, datilgrafas, sirenes, a graade uma rua industrial, o gs, aeroplanos, mquinas em geral
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misturam-se freneticamente no delrio do poeta, que viaja pe-
los versos at Marselha, Coblence, Praga, Roma e Amsterdam,
entre outras cidades. Essa pequena amostra de elementos cita-dinos em apenas um poema deAlcoolsanuncia a poesia da
mquina e da cidade moderna. Esses elementos serviro for-
mulao de sua mais famosa conferncia, LEsprit Nouveau et
les potes, frutos da surpresa do autor diante de toda essa evo-
luo. Alis, a surpresa um fator fundamental na obra de
Apollinaire. Para ele,
le nouveau existe bien, sans tre un progrs. Il est
tout dans la surprise. Lesprit nouveau est
galement dans la surprise. Cest ce quil y a en
lui de plus vivant, de plus neuf. La surprise est
le grand ressort nouveau. Cest par la surprise,par la place importante quil fait la surprise
que lesprit nouveau se distingue de tous les
mouvements artistiques et littraires qui lont
prcd. (APOLLINAIRE, 1991, p. 949)
Dessa forma, na esteira de Charles Baudelaire e ArthurRimbaud, Apollinaire demonstra simultaneamente desenvoltura
e surpresa em relao cidade e modernidade a contida.
Baudelaire (1821-1867), um dos criadores da palavra
modernidadede que considerado o poeta, emprega a palavra
em 1859,
desculpando-se por sua novidade, mas [dizque] necessita dela para expressar o parti-
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cular do artista moderno: a capacidade dever no deserto da metrpole no s a deca-
dncia do homem, mas tambm de pres-sentir uma beleza misteriosa, no descober-ta at ento. Este o problema especficode Baudelaire, ou seja, a possibilidade dapoesia na civilizao comercializada e do-minada pela tcnica. Sua poesia mostra o
caminho, sua prosa examina-a teoricamen-te a fundo. Este caminho conduz a uma dis-tncia, a maior possvel da trivialidade doreal at a zona do misterioso; o faz de talforma, todavia, que os estmulos civiliza-dos da realidade, includos nesta zona, pos-sam se converter em poticos e vibrantes.Este o incio da poesia moderna e de suasubstncia to corrosiva quanto mgica.(FRIEDRICH, 1978, p. 35-36)
Percebe-se ento que o Baudelaire dos Tableaux
Parisiensque vai ser seguido pelas vanguardas e conseqente-
mente por Apollinaire, e no o poeta doSpleen et Idal. Rimbaud
(1854-1891) tambm demonstra um duplo comportamento em
relao modernidade. Averso e fascnio misturam-se. Seus
poemas Ville e Villes possuem imagens incoerentes (...), o
real e o irreal se cruzam, (...) jardins artificiais, chals de cristal e
palmeiras de cobre os permeiam, a parte superior da cidadeconstruda to no alto que j no se v a parte inferior (...): tais
cidades repeliram tudo o que familiar. (Ibidem, p. 66)
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Ao invs dessa realidade destruda, Apollinaire traba-
lha a simultaneidade. ainda em Zone que esse fenmeno
aparece, enfocando vrias cidades ao mesmo tempo:
Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi
la foule
[...]
Entoure de flammes ferventes Notre-Dame ma
regard ChartresLe sang de votre Sacr-Coeur ma inond
Montmartre
[...]
Maintenant tu es au bord de la Mditerrane
Sous les citronniers qui sont en fleur toute lanne
[...]
Tu es dans le jardin dune auberge aux environs
de Prague
[...]
Te voici Marseille au milieu des pastques
Te voici Coblence lhtel du Gant
Te voici Rome assis sous un nflier du Japon
Te voici Amsterdam avec une jeune fille que tu
trouves belle et qui est laide
[...]
Tu es Paris chez le juge dinstruction
[...]
Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages
(APOLLINAIRE, 1994, p. 41-42)
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Com essa seqncia, nota-se ao mesmo tempo fuso
e fragmentao, simultaneidade e desconstruo, ou seja, de-
composio do espao-cidade. Essa uma caracterstica dalrica moderna. Na verdade, todos os espaos que aparecem
nomeados em Zone nada mais so do que a traduo de um
cenrio simultneo de um nico evento exterior e interior.
(FRIEDRICH, 1978, p. 203)
Contudo, apesar desta multipresena citadina, Paris a cidade mais representada emAlcools. Ela aparece 21 vezes
na coletnea, a saber: 12 vezes em Vendmiaire poema de
174 versos, que fecha o livro; quatro vezes em Zone e em La
Chanson du Mal-Aim, e uma vez no Pome lu au mariage
dAndr Salmon, contra trs ocorrncias dos segundos luga-
res, Roma e Coblence, cidade alem.
Como podemos ver, as duas pontas do fio tecido em
Alcools, Zone e Vendmiaire, convergem sobretudo para
Paris. Porm,
les contextes comme les tonalits sont fort diffrents.Linvocation Paris sous la forme du vocatif
reprsente plus de la moiti des occurrences de
Vendmiaire (7 sur 12). Paris apparat avant
tout comme un univers euphorique situ au centre
du choeur bachique des villes unies dans la chanson
du vin et des vendanges lyriques. Le Paris deZone est un lieu plus concret, plus dysphorique
aussi, o le pote marche parmi la foule
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industrieuse dune grande cit moderne et doit
rpondre aux enqutes de la justice. (HUBERT
DE PHALSE, 1996, p. 58)
Vendmiaire traz tambm outra surpresa: a primei-
ras obra de Apollinaire publicada sem pontuao, reproduzindo
assim o novo ritmo que nascia das cidades. Desta vez, Apollinaire
estabelece um dilogo com elas, em uma cano de Paris per-
sonificada:
Jai soif villes de France et dEurope et du monde
Venez toutes couler dans ma gorge profonde
(APOLLINAIRE, 1994, p. 149)
Das estrofes 7 a 24, as cidades lhe respondem suces-
sivamente:
Et Rennes rpondit avec Quimper et Vannes
Nous voici Paris [...]
Et les vill es du Nord rpondirent gaiement
O Paris nous voici boissons vivantes
Les viriles cits o dgoisent et chantent
Les mtalliques saints de nos saintes usines
Nos chemines ciel ouvert engrossent les nues
(Ibidem, p. 149-50).
Entretanto, Paris que se destaca entre tantas cida-
des, no verso que revela, em tom imperativo, uma ntima relaodo poeta com a capital francesa: coutez-moi je suis le gosier
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de Paris. Assim, no dizer de Morhange-Bgu e Lartigue (1991,
p. 33-34), a cidade de Paris est estreitamente ligada noite,
momento que favoreceria a criao potica, ao ser evocada pormeio de marcas pontuais, como os cais e o rio Sena, por exem-
plo. O mesmo ocorre em La chanson du mal-aim ou em
Zone, poemas nos quais a noite urbana quem d o tom.
A capital francesa, celeiro da arte moderna no incio
do sculo oferece tambm a Apollinaire
... le raisin le plus doux de la terre
Ces grains miraculeux qui aux treilles chantrent
demonstrando mais uma vez a importncia da cidade para o
poeta.Concluindo brevemente, pode-se perceber que as ci-
dades, tendo Paris como carro-chefe, ocupam um espao privi-
legiado nos poemas de Apollinaire, cidades que, em sua poca,
foram sinnimo de modernidade e de grandes mudanas. Como
o poeta deAlcoolsestava frente de seu tempo, mas tambmsintonizado com as modificaes importantes do incio do scu-
lo, nota-se perfeitamente o uso que ele fez dos cenrios citadi-
nos, incorporando-os sua poesia e, assim, multiplicando seu
prprio espao interior.
O modo como o poeta retrata as cidades, inebriadode seu lcool, um convite a mais ao leitor para embarcar com
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Apollinaire nessa viagem potica que parte de Zone, faz vrias
escalas, e tem Vendmiaire como ponto de chegada.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICASREFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
APOLLINAIRE, G. OEuvres en Prose Compltes, II. d. de P.
Caizergues et M. Dcaudin. Paris, Gallimard, 1991 (Coll.
Bibliothque de la Pliade).
______. OEuvres Potiques. d. de M. Adma et M. Dcaudin.
Paris, Gallimard, 1994 (Coll. Bibliothque de la Pliade).FRIEDRICH, H. Estrutura da Lrica Moderna; da metade do
sculo XIX a meados do sculo XX. Trad. de M. M. Curioni.
So Paulo, Duas Cidades, 1978 (Col. Problemas atuais e suas
fontes, 3).
HUBERT DE PHALSE. Quintessence dAlcools; le recueildApollinaire travers les nouvelles technologies. Paris, Nizet,
1996 (Coll. CapAgreg, 8).
MORHANGE-BGU, C. & LARTIGUE, P. Alcools (1913),
Apollinaire. Paris, Hatier, 1991 (Coll. Profil dune oeuvre, 25).
Silvana Vieira da Silva Amorim
FCL UNESP Araraquara