“UM MOÇO MUITO BRANCO”, DE GUIMARÃES ROSA:...

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  • UM MOO MUITO BRANCO, DE GUIMARES ROSA: ELEMENTO S

    FANTSTICOS E PROPOSTA DE ENSINO

    Jussara Ferreira MELO

    Fernanda Sylvestre AQUINO (orientadora)

    (Universidade Federal de Campina Grande)

    INTRODUO

    As recentes discusses sobre o ensino de literatura demonstram que a leitura deve

    estar pautada na garantia de uma efetiva experincia com o texto, alm de fazer com que o

    aluno desenvolva uma competncia literria atravs da leitura. De acordo com Colomer

    (2007), [...] o prazer da leitura se constri e a competncia se desenvolve atravs da leitura

    dos livros (p. 137). Portanto, a literatura deve ser vista como um eixo primordial para o

    desenvolvimento das competncias do indivduo; consequentemente, o sistema educativo

    deve reconhecer a sua importncia para a formao de leitores crticos e autnomos.

    A esttica da recepo, teoria desenvolvida por Jauss (1979), coloca o leitor, e no

    simplesmente o texto literrio, como objeto de estudo, discutindo o seu papel de interao

    com o texto. Em outras palavras, essa teoria trata verdadeiramente o leitor como protagonista

    no ato da leitura, cujas experincias e a prpria vivncia dos alunos so de fundamental

    importncia na leitura de um texto literrio. Segundo Bordini e Aguiar (1993),

    Constri-se, na obra literria, um mundo possvel, no qual os objetos e processos nem sempre aparecem totalmente delineados. Esse mundo, portanto, envolve lacunas que so automaticamente preenchidas pelo leitor de acordo com a sua experincia (p. 14-15).

    Desta maneira, a esttica da recepo viabiliza ao leitor uma experincia de leitura

    pessoal com o texto literrio. Vale ressaltar, nesse contexto, o conceito de horizonte de

    expectativas, que pode permanecer imutvel durante uma leitura, ou ser absolutamente

    rompido e expandido, dependendo da experincia do leitor em determinado momento.

    No trabalho em questo, visando oferecer a oportunidade da leitura integral de um

    texto literrio em sala de aula, selecionamos Um moo muito branco, de Joo Guimares

    Rosa. A partir do mesmo, verificaremos especialmente a importncia dos aspectos cromticos

  • que so reproduzidos no texto atravs da linguagem. Concomitantemente, pretendemos

    demonstrar caractersticas que fazem com que o conto seja considerado um relato fantstico,

    tais como a verossimilhana e a hesitao. Por fim, ofereceremos uma possibilidade de se

    trabalhar com o conto de Guimares Rosa em sala de aula.

    ANLISE DO CONTO DE GUIMARES ROSA: ELEMENTOS CROM TICOS,

    INSLITOS E RELIGIOSOS

    Um moo muito branco, de Guimares Rosa, faz parte de uma obra que tem como

    ttulo Primeiras estrias, cuja primeira edio data de 1962. No conto em questo, narrada a

    histria de um jovem que aparece na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, aps um

    evento climtico incomum. A partir desse episdio, nota-se uma verdadeira transformao

    psicolgica nos habitantes da cidade.

    O fantstico est presente no conto, mas de maneira sutil. H, como teorizou Todorov

    (1975), a primeira condio para o fantstico, que a hesitao. Para o autor, nesse gnero

    haver sempre duas possibilidades de leitura, duas solues possveis para entender o inslito:

    Somos assim transportados ao mago do fantstico. Num mundo que exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, slfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que no pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas solues possveis; ou se trata de uma iluso dos sentidos, de um produto da imaginao e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que so; ou ento o acontecimento realmente ocorreu, parte da realidade, mas nesse caso esta realidade regida por leis desconhecidas para ns. (p. 30)

    Guimares Rosa consegue, nesse conto, manter no leitor uma sensao de dvida, a

    comear pelo fato do protagonista ter uma cor praticamente impossvel a uma pessoa. Sua

    chegada e os acontecimentos que surgem ao longo da narrativa na sua presena tambm

    corroboram com essa incerteza sobre o que plausvel no mundo real ou o que , de fato,

    inslito.

    Alm disso, o conto tambm apresenta muitos elementos simblicos representados no

    texto atravs da linguagem, dentre eles esto o contraste das cores, das personagens, bem

    como referncias ligadas ao mito cristo ortodoxo.

  • A histria inicia-se com a descrio exata da data e do lugar onde sucedeu o

    acontecimento que marcar o incio do conto e ser de fundamental importncia para as

    mudanas que se desenrolaro na trama. Trata-se de um terremoto seguido de um temporal

    que destroou grande parte da cidade.

    Apesar de ser um acontecimento em princpio fictcio, a especificidade da data e local

    corrobora para uma leitura verossmil do ocorrido. Alm disso, os fatos narrados foram

    referidos nas folhas da poca e exarados nas Efemrides (p. 99) de um local real, ou seja,

    Guimares Rosa se utiliza do real como artifcio para assegurar e atestar que os fatos

    realmente ocorreram, dando maior plausibilidade narrativa. Vale ressaltar que a fico, por

    mais inventada que seja a estria, ter sempre, e necessariamente, uma vinculao com o

    real emprico, vivido, o real da histria. O enredo mais delirante, surreal, metafrico estar

    dentro da realidade [...] (MESQUITA, 1986, p. 14).

    Os indcios de que o conto apresenta um elemento fantstico j podem ser notados a

    partir do primeiro pargrafo, quando o autor anuncia que na regio deram-se fatos de

    pavoroso suceder (p. 99). Foi, ento, na noite de 11 de novembro de 1872 que o fenmeno

    climtico aconteceu:

    Dito que um fenmeno luminoso se projetou no espao, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundao, subindo as guas de rio e crregos a 60 palmos de plana (p. 99)

    Podemos notar que Guimares utiliza, como recurso lingustico, um sujeito

    indeterminado para narrar o que ocorreu neste dia. No obstante, se introduz na narrativa o

    primeiro elemento inslito: um evento luminoso no espao que provoca um terremoto na

    regio de Serro Frio, em Minas Gerais. Entretanto, as principais causas de um terremoto so

    falhas geolgicas, vulcanismos e encontro de placas tectnicas, nada que tenha relao com o

    firmamento1. Alm do mais, abalos ssmicos j foram detectados em algumas regies do

    Brasil, todavia nenhum de enorme magnitude, como o descrito no conto, capaz de provocar

    consequncias to devastadoras.

    Ainda sobre a construo da narrativa, Guimares Rosa no utiliza a 1 pessoa do

    singular, como frequente no fantstico, mas um narrador que no presenciou temporalmente

    os fatos e que carrega caractersticas da narrativa oral: Seja que da maneira ainda hoje se

    1 Acesso em http://www.brasilescola.com/brasil/terremotos-no-brasil.htm

  • conta, mas transtornado incerto, pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou

    netos dos que eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram

    (ROSA, 1975, p. 100).

    Como primeira consequncia dos cataclismos, a mudana j podia ser notada:

    confirmou-se que o terreno, em raio de lgua, mudara de feies (p. 99). Esse evento marca,

    ento, um processo de transformao que parte primeiramente do ambiente, no qual a

    devastao foi extremamente intensa, deixando irreconhecvel a paisagem local, alm de

    vitimar, soterradas ou afogadas, os que estavam nos arredores.

    Era dia de So Flix quando apareceu na Fazenda do Casco, de propriedade de Hilrio

    Cordeiro, um moo de distintas formas, mas em lstima de condies (ROSA, 1975, p. 99).

    So Flix foi o primeiro capuchinho canonizado pela igreja catlica. Pobre e analfabeto, sua

    vida foi marcada pela simplicidade e devoo. Vale ressaltar que 11 de novembro, dia dos

    eventos cataclsmicos, considerado no calendrio cristo-ortodoxo o dia de So Martinho de

    Tours. Este santo foi batizado e ajudado pelo Bispo Hilrio para seguir nos votos cristos,

    tornando-se monge, dicono e sacerdote. Ora, na fazenda de Hilrio Cordeiro que o moo

    consegue o primeiro apoio:

    Hilrio Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres, temente e bom, e mais ainda nesse ps-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido morte e arrasos totais, no duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de comer. (p. 100)

    Consoante a essa analogia dos santos com as personagens, o sobrenome de Hilrio

    tambm nos remete religio. Os cordeiros eram comumente utilizados como sacrifcios

    pelos hebreus para remisso dos pecados. Jesus Cristo tambm foi chamado de cordeiro por

    ser o maior sacrifcio de Deus na terra.

    Tambm a fazenda, na qual o moo apareceu, estava situada prxima rua do Arraial

    do Oratrio, onde podemos entender arraial como o lugar onde se renem os romeiros e

    oratrio como um adoratrio, ou seja, um lugar designado ao culto e orao. Ele estava

    enrolado apenas em um pano, como a manta de cobrir os cavalos. Esse detalhe tambm pode

    ser associado ao famoso episdio do manto de So Martinho. Conta-se que um mendigo foi

    pedir-lhe esmolas, como no tinha nenhum bem material consigo alm da roupa que vestia,

    Martinho cortou com a espada um pedao de seu manto e entregou ao mendigo. Na mesma

    noite, Jesus apareceu-lhe em sonho agradecendo pelo gesto to nobre de t-lo aquecido.

  • Era manh quando o moo foi avistado. Acanhado, aparecia e se escondia atrs do

    cercado de vacas. Esse contraste da noite (fenmeno luminoso com consequncias

    catastrficas) e manh (apario de um jovem) um tema recorrente na literatura fantstica.

    Podemos dizer que linguagem da noite refere-se ao inconsciente e a linguagem do dia

    racionalidade (LE GUIN, 1979 apud CESERANI, p. 77 78). No caso do conto de

    Guimares Rosa, percebemos vrias contraposies entre claro e escuro, dia e noite, sol e

    escurido, referncia cromticas que aparecem comumente na narrativa Roseana.

    Fazendo jus ao ttulo, a criatura chamou ateno no apenas por estar malvestido, mas

    por ser de uma cor nunca vista pelos moradores da regio:

    To branco; mas no branquicelo, seno que de um branco leve, semi dourado de luz; figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente no depara nem nunca viu; fazia para si outra raa. (p. 99)

    A descrio do moo bastante potica e rica em imagens claras, luminosas e

    douradas. Ele comparado aos estrangeiros dos quais a populao local nunca teve contato.

    rico Verssimo, em O tempo e o vento, tambm descreve com bastante perplexidade a reao

    dos habitantes de Santa F com a chegada dos primeiros imigrantes alemes: Muitos dos

    santafezences nunca tinham visto em toda a sua vida uma pessoa loura e aquela coleo de

    caras brancas, cabeleiras ruivas e douradas, olhos azuis, esverdeados e cinzentos [...] (p.

    270); logo, no demorou muito para que os novos habitantes virassem o principal assunto do

    municpio. Entretanto, Rosa deixa claro que o habitante recm-chegado no tem um tom de

    pelo normal, trata-se de um ser que manifesta certa iluminao.

    O aparecimento de um ser estranho no conto de Guimares Rosa , ainda, um sistema

    temtico recorrente na literatura fantstica. De acordo com Ceserani (2006),

    A cena da apario repentina e inesperada de um estrangeiro no espao domstico de uma casa quase um esteretipo, presente na psicologia e no imaginrio cultural das comunidades humanas antes ainda que nos textos literrios, artsticos ou cinematogrficos, fortemente implicado (e por isso rgido) nos processos de construo da identidade dos povos, das comunidades tnicas e nacionais. (p. 84)

    A figura do indivduo que aparece inesperadamente na trama provoca perplexidade e

    inquietao. Normalmente, esse personagem provoca alguma transformao ou gera

    desequilbrio na narrativa, seja ele um vampiro, um fantasma ou um monstro. No conto de

    Guimares, esse moo o responsvel pelas transformaes que ocorrem ao longo do texto.

  • Para tornar o caso ainda mais estranho, o moo tinha perdido totalmente a memria,

    no se lembrava de onde tinha vindo e nem do seu prprio nome. No quiseram lhe dar outro

    nome, deduzindo que ele j teria um. Concluiu-se que ele seria filho de nenhum homem

    (ROSA, 1975, p.100).

    Apesar disso, os moradores da regio gostaram dele. Principalmente o preto Jos

    Kakende, ex-escravo. O moo cria logo forte estima pelo negro. Jos Kakende faz parte de

    um grupo marginalizado pela sociedade, ainda mais quando o descrevem como uma pessoa

    de ideia conturbada (ROSA, 1975, p. 100). O moo, por sua vez, tambm parece estar

    deslocado, um estrangeiro em terra estranha. Notamos, ento, a dicotomia entre branco (o

    moo) e preto (Kakende). justamente o negro, personagem sem nenhuma credibilidade na

    histria, quem afirma ter avistado algo incomum s vsperas da catstrofe. Suas advertncias

    e avisos sobre a apario que presenciou nas margens do rio do Peixe so, por conseguinte,

    consideradas sandices.

    Em carta escrita pelo padre da regio ao cnego Lessa Cadaval, so relatados os

    despautrios que Jos Kakende afirmou ter visto na beira do rio. Note-se que a descrio da

    viso recheada de elementos cromticos:

    ... o rojo de vento e grandeza de nuvem, em esplendor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os arcanjos, mediante rosas, labaredas e rumores (p. 101)

    Segundo Ceserani (2006), a loucura tambm um sistema temtico recorrente no

    fantstico e est ligado aos problemas mentais da percepo. [...] o tema do louco se liga

    quele do autmato, da persona dividida, e tambm quele do visionrio, do conhecedor de

    monstros e fantasmas. (p. 83). A figura do negro Jos Kakende estabelece essa incerteza no

    conto, tendo em vista que ele, nico a presenciar essa cena que antecedeu o terremoto e o

    temporal, tem sua sanidade contestada.

    A carta escrita de punho e firma, para testemunho do esquisito (p. 101) pelo padre

    Bayo relatando a viso de Jos Kakende tambm pode ser considerado um elemento

    recorrente no fantstico, j que refora a plausibilidade do acontecimento. Alm do mais,

    trata-se de uma figura respeitvel na cidade que, apesar de no crer nas divagaes do negro,

    no as trata com banalidade.

    Dentre os personagens do conto, o nico que no se engraou com o moo foi um tal

    de Duarte Dias, pai de Viviana, a moa mais bonita da regio. Ele descrito com um homem

  • de gnio forte, alm de maligno e injusto, sobre prepotncias: naquele corao no caa nunca

    uma chuvinha. (p. 100 101). De acordo com Pinheiro (2011), a aliterao em d no nome

    desse personagem j foi constatada em outro conto de Guimares Rosa, Os irmos Dagob,

    que tambm eram pessoas de m ndole: Damastor, Dorico, Dismundo e Derval. Segundo

    ele, essa aliterao pode ser vista como uma associao a demo, demnio e diabo.

    Mais uma vez adentrando no mbito religioso, decidiram levar o moo missa. Ele

    portou-se indiferente, no fazendo modos de crer, nem increr (p. 101). O trecho dedicado

    descrio desse momento de bastante poeticidade:

    Cantoria e msicas do coro, escutasse, no srio sentimental. Triste, dito, no; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas, saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa maior alegria corao de co com dono. Seu sorriso s vezes parava, referido a outro lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o rosto, seno com os olhos [...] (p. 101).

    Na sada da igreja, o moo encontrou, cena bastante comum, um cego a pedir esmolas.

    O moo observou-o demasiadamente e, mais uma vez, a narrativa confirma a forte presena

    da oralidade: contam que seus olhos eram cor-de-rosa! (ROSA, 1975, p. 101). Os elementos

    cromticos tambm podem ser percebidos nesse momento, quando o prprio narrador

    comenta o contraste de um cego estar de baixo do sol, sob o calor do astro-rei sem poder

    perceber a beleza da luz.

    O moo foi em direo ao cego, que se chamava Nicolau, e deu-lhe uma partcula

    retirada da algibeira. O cego apalpou-a, percebeu que no era uma moeda e foi logo levando

    o objeto boca, quando o seu menino guia o advertiu que aquilo no seria algo de comer, mas

    uma espcie de semente. O cego a guardou por vrios meses e, apesar dela s ser plantada

    aps os fatos ainda serem narrados, o narrador antecipa o que dela nasceu:

    [...] e deu um azulado p-de-flor, da mais rara e inesperada: com entreaspecto de serem vrias flores numa nica entremeadas de maneira impossvel, num primor confuso, e, as cores, ningum a respeito delas concordou, por desconhecidas no sculo; definhada, com pouco e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar. (p. 102)

    A flor que nasceu do p dava a impresso de serem vrias, como se fosse um objeto

    impossvel de existir em um plano real. Mas ela estava l, fraca, seca e estril, pois era nica.

    Assim como o p dessa flor era azulada, tambm dessa cor era descrita a redoma de vidro

  • sobreposta da viso de Jos Kakende, da qual desceram os arcanjos envoltos em labaredas. A

    cor azul, nesse caso, pode representar, alm do cu, paz e serenidade.

    A inusitada flor que nasceu da semente doada pelo moo ao pedinte pode ser tomada,

    enquanto consideramos o conto um relato fantstico, como um objeto mediador. Segundo

    Ceserani (2006), esse tipo de objeto aparece para testemunhar a presena do irreal, do inslito

    na narrativa. como uma prova cabal de que algo diferente da nossa realidade se instaurou na

    trama. Lugnani (apud CESERANI) define como funciona esse tipo de objeto:

    preciso pensar que o objeto mediador desempenha a sua funo especfica dentro do conto fantstico pelo fato de que se trata de um conto em que h um desnivelamento de planos de realidade, o qual no est previsto pelo cdigo e por isso vem marcado por um forte efeito de limite, e no qual o objeto mediador atesta uma verdade equvoca porque inexplicvel e inacreditvel, posto que inepta. (p. 74)

    Nota-se, portanto, que a rosa no meramente um objeto comum, mas est ali para

    atestar algo inexplicvel. Agindo como um ponto de desequilbrio da realidade, no deixa

    dvidas de que houve a introduo do elemento inslito na narrativa.

    Aps a cena que envolveu o cego Nicolau, Duarte Dias apareceu no adro com uma

    proposta que muito causou surpresa: queria carregar consigo o moo, alegando que, pela cor

    de sua pele, to clara, ele possivelmente seria algum parente seu desaparecido no terremoto na

    regio do Condado, e que, at algum ter alguma notcia concreta, lhe competia a guarda do

    moo. Obviamente, Hilrio Cordeiro, aquele que o acolhera desde o aparecimento, no

    mostrou nenhum agrado com a proposta. A discusso pela disputa do moo quase virou coisa

    sria, salvo pelo parecer de Quincas Mendanha, poltico e provedor da irmandade (p. 102).

    Ento houve a primeira transformao com algum personagem na narrativa aps os

    eventos cataclsmicos. Melhor razo teve Hilrio Cordeiro ao confirmar a guarda do moo,

    pois tudo na sua vida passou a prosperar: a paz no lar, a sade, os negcios... Mas em nada

    interferia aparentemente o moo, pelo contrrio, ele estava sempre areo, parecendo estar

    enfeitiado. Sua nica e estranha memria era olhar ele sempre para cima, o mesmo para o

    dia que para noite espiador de estrelas. (p. 103).

    O fato de o moo gostar de olhar sempre pra cima nos remete tanto s circunstncias

    que antecederam o terremoto (o fenmeno luminoso no cu), quanto descrio de Jos

    Kakende, cuja viso tinha por espao o cu. Alm do mais, outro contraste pode ser percebido

    nesse trecho: a relao dia/noite. Essa saudade de algo desconhecido sentida pelo moo,

  • relatada anteriormente na narrativa, causa um sentimento de hesitao no leitor, que passa a se

    indagar se ele teria vindo mesmo do espao.

    Outro divertimento do rapaz era acender fogueiras, influenciado diretamente pela

    tradio das festas de So Joo. Mais uma vez, a religiosidade marca presena no conto.

    Tanto as estrelas, quanto as fogueiras sugerem algo iluminado, radiante. Esse contraste entre

    luz e escurido, sol e lua, dia e noite perpassa toda a narrativa.

    Deu-se, ento, o caso de Viviana; corroborando com o aspecto da oralidade, sempre

    mal contado. (p. 103). Viviana era, como anunciado anteriormente, uma das moas mais

    bonitas da regio; entretanto, no era feliz. Contam que o moo estava acompanhado com

    Jos Kakende quando deu com ela. Aproximou-se e, delicadamente, colocou a mo em seu

    seio. O pai de Viviana, Duarte Dias, que assistia a tudo, logo protestou e bradou que o moo

    infamara sua filha e agora teria que casar. O moo ouvia a tudo indiferente, como se no

    entendesse o motivo de tamanha balbrdia por um gesto to simples. Duarte Dias s se

    acalmou quando o padre Bayo e outros dois senhores rejeitaram to compromisso, que no

    seria caso para tanto.

    Eis que ocorre a segunda transformao de personagem. Viviana, que assistia a toda a

    confuso com um sorriso no rosto, serenava o rapaz: a partir dessa hora, despertou em si um

    enfim de alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom (ROSA, 1975, p. 103).

    Diferentemente da transformao material de Hilrio Cordeiro, Viviana teve a sua

    personalidade modificada. Da moa que no se divertia como as outras, ela transformou-se

    em criatura alegre constantemente. Nesse momento, tambm o narrador antecipa que outra

    modificao maior e mais importante acontecer na vida de outro personagem: Duarte Dias

    o que no se entende ia produzir ainda outros lances de estupefao (p. 103)

    No dia 5 de agosto, dia da missa da Dedicao de Nossa Senhora das Neves e tambm,

    no por acaso, dia da viglia da Transfigurao, as coisas comeam a tomar um novo rumo.

    Por transfigurao, podemos entender o ato ou efeito de transfigurar(-se), ou seja, pode ser

    uma mudana na aparncia, no carter ou na forma. Justamente nesse dia, para surpresa de

    todos, Duarte Dias voltou Fazenda do Casco pedindo para falar com Hilrio Cordeiro. Do

    contrrio de como tinham sido as outras aparies de Duarte Dias no conto, dessa vez ele no

    veio fazer nenhuma exigncia, mas um pedido:

    [...] suplicava deixassem-no levar o moo, para sua casa. Que queria assim, e necessitava, muito, no por ambicioneiro ou impostor, nem por interesse somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrio de escrpulo, a fortssima estima de afeio! (p. 103)

  • Dizendo isso, as lgrimas corriam-lhe sobre o rosto. O motivo da gua aparece trs

    vezes at ento no conto: na inundao, cuja consequncia desoladora; na passagem em que

    se comenta o carter de Duarte Dias, quando se afirma que naquele corao no caa nunca

    uma chuvinha (p. 101); e agora, quando o mesmo Duarte Dias no se utiliza de violncia

    para manifestar o amor ao moo, mas chora copiosamente ao pedir que este venha morar

    consigo. Nesses dois ltimos motivos, notamos uma representao da mudana do estado de

    esprito da personagem, que tinha um corao seco e duro, para uma pessoa com sentimentos

    mais serenos, que se deixa regar pelas prprias lgrimas.

    Mais uma vez, o moo, agora descrito sendo claro como o olho do sol (p. 103) est

    em companhia do negro Kakende, realando novamente a dicotomia entre branco e negro no

    conto. Dessa vez, porm, Duarte Dias tambm conduzido pelo moo aos campos, que

    seriam de propriedade daquele. L chegando, o moo indicou um local onde deveria ser

    cavado e ali encontraram uma grupiara de diamantes; ou um panelo de dinheiro, segunda

    diversa tradio (p. 104). Quanto ao aspecto da narrativa, o narrador no chega nunca a

    afirmar que est recontando uma histria que ouviu, mas d sempre indcios de que atravs

    da tradio oral que essa histria foi sendo recontada, tendo alguns pormenores modificados,

    mas, no fim, contendo a mesma essncia.

    Depois desse episdio, percebe-se a maior transformao de um personagem no conto,

    que a de Duarte Dias. Ele, de fato, mudou completamente. Transformou-se, ento, em

    homem sucinto, virtuoso e bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar

    sobremaravilhado dos coevos (p. 104).

    Ento, assim como o moo apareceu e o narrador fez questo de afirmar que era numa

    manh do dia de So Flix, tambm de manh, mas agora no dia de Santa Brgida, o moo

    desapareceu. O motivo da manh sugere oposio ao da noite, em que ocorreu o terremoto.

    Disse-se, e outra vez temos a partcula que indetermina o sujeito no discurso, que ele

    desapareceu pelos altos na paragem, num tempo de trovoadas secas. Novamente, o nico a

    testemunhar o caso foi o Jos Kakende. Ele conta que, na vspera, o moo pediu sua ajuda

    para acender nove fogueiras. Com o raiar do sol, o moo ganhou asas e partiu, como um anjo.

    O conto nos deixa a impresso de que, assim como se espera dos anjos, o moo teve

    sua funo na terra e, depois disso, no havendo mais nenhum trabalho a ser feito, ele parte

    tendo sua misso cumprida.

    O episdio marcou tanto os moradores da comarca de Serro Frio que eles passaram a

    desconfiar efetivamente das coisas reais: Duvidavam dos ares e montes; da solidez da terra

    (ROSA, 1975, p. 104). Houve um desequilbrio na percepo da realidade em virtude dos

  • eventos inslitos que ocorreram na trama. Num tempo cronolgico, eles ainda no sabiam at

    ento que da semente dada ao cego Nicolau pelo moo nasceria uma flor ainda mais digna de

    dvida entre o que seria possvel ou irreal.

    As transformaes das personagens se confirmaram efetivamente ao fim do conto.

    Duarte Dias, que tomou bastante afeio pelo moo, morreu de d com a sua ausncia;

    Viviana conservou-se alegre. Jos Kakende, na falta do amigo, estabeleceu amizade com o

    cego Nicolau. Hilrio Cordeiro, bem como todos que conheceram o moo, sentia intensa

    saudade s de pensar nele, que cintilava ausente (p. 104), ou seja, sua luminosidade

    permaneceu mesmo com a sua partida.

    O conto de Guimares Rosa tem como um dos principais elementos a transfigurao

    dos seus personagens atravs da presena do moo, cuja mudana ocorreu de acordo com as

    necessidades de cada um. Hilrio Cordeiro, por exemplo, j era uma pessoa pacfica, seu

    carter no precisou ser modificado, mas, pela sua generosidade, foi recompensado com o

    prosperar dos negcios. Viviana, pessoa triste, embora bela, teve a alegria reconstituda ao

    esprito. Duarte Dias foi quem mais se transfigurou, tornando-se pessoa simples e bondosa. O

    motivo da mudana foi, ento, totalmente revertido em algo positivo atravs do conto, que se

    iniciou com uma enorme tragdia dizimando boa parte da populao local e que modificou

    terrivelmente a paisagem da comarca: o terreno, em raio de lgua, mudara de feies: s

    escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas

    razes, solevados novos montes e rochedos, fazendas sovertidas [...]. No fim, o bem

    prevaleceu e as mudanas se mostraram sempre favorveis aos personagens da trama.

    3 UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O CONTO DE GUIMARES EM SALA

    DE AULA

    Aps a anlise de alguns elementos no conto de Guimares Rosa, pretendemos, a

    partir de ento, oferecer uma possibilidade de trabalho com o mesmo em sala de aula. Nossa

    proposta no a de uma receita ideal e inaltervel, mas um a sugesto que pode ser adequada

    de acordo com as necessidades dos alunos, cabe ao professor perceber as especificidades da

    turma e providenciar as necessrias mudanas.

    O conto pode ser trabalhado nas sries do ensino mdio. Estimamos cerca de 5 aulas

    para um trabalho mais completo do contedo. Dentre os objetivos, buscamos a) estimular o

    gosto pela leitura; b) desenvolver a competncia leitora; c) promover o desenvolvimento da

  • sensibilidade, da imaginao e do senso crtico; d) compreender as particularidades do gnero

    fantstico; e e) estimular a produo de contos fantsticos.

    No primeiro encontro, o professor dever iniciar o envolvimento da turma com o

    universo fantstico. Isso se dar atravs da leitura oral ou dramatizao de uma histria que

    contenha elementos inslitos. Partindo da tradio oral, so muitas as histrias que podem ser

    resgatadas nesse encontro, ou at mesmo inventadas para o momento. Consequentemente,

    prevemos que os alunos espontaneamente queiram narrar histrias de cunho fantstico,

    mesmo no as reconhecendo enquanto gnero. Esse processo de compartilhamento das

    histrias bastante importante, pois valoriza o conhecimento de mundo dos prprios alunos.

    Deve-se, ainda, mostrar a importncia da entonao, dos gestos entre outros elementos na

    interpretao da histria, que deve manter um clima de tenso e hesitao nos ouvintes.

    Apenas no segundo encontro ser levado para a turma o conto de Guimares Rosa.

    Aps a distribuio das cpias, o professor deve promover a leitura compartilhada da obra,

    permitindo comentrios ou questionamento dos alunos quando necessrio. No trmino da

    leitura do conto, abre-se espao para debate da obra em geral. Deve-se incitar os alunos para

    que eles discutam o que lhes chamou ateno no conto, o que gostaram ou no e os motivos.

    Espera-se que nesse momento seja explorada a linguagem de Guimares Rosa, como os

    neologismos, os contrastes cromticos e as referncias religiosas. Nesse sentido, reafirmamos

    a importncia que a escola tem no ensino da literatura, pois muito valioso o

    compartilhamento de informaes a fim de que os alunos possam aumentar seu horizonte de

    expectativa, posto que os sentidos sero completados na medida em que professores e alunos

    compartilhem suas ideias. No possvel, portanto, afirmar quais elementos do conto

    chamaro mais a ateno dos alunos, pois, assim como discute a esttica da recepo, a

    leitura ser conduzida de acordo com a experincia pessoal de cada um.

    No terceiro encontro, com base nas discusses anteriores do conto Um moo muito

    branco e tambm das histrias narradas oralmente pela turma no primeiro encontro, espera-

    se que os alunos j tenham percebido alguns elementos do gnero fantstico, como o foco

    narrativo, as referncias factuais, o comprometimento da plausibilidade e a hesitao.

    Levando em considerao esses elementos, chegada a hora de propor turma a criao de

    uma narrativa fantstica. Eles podem fazer uma releitura do conto de Guimares Rosa ou de

    alguma histria que j conheam; ou inventar uma nova narrativa.

    Em se tratando de produo textual, destacamos a importncia do processo de

    reescritura dos contos escritos pelos alunos. O professor pode sugerir mudanas quando julgar

    necessrio. No quarto encontro, ento, sugerimos que a turma seja dividida em duplas para

  • que eles prprios possam trocar ideias e discutir suas histrias. No final, para que os contos

    escritos adquiram sua funo enquanto gnero, pode-se fazer uma coletnea com os melhores

    contos e distribuir na escola ou expor em mural.

    Colomer (2007) afirma que ler e escrever so atividades interligadas que funcionam

    como aprimoramento na aquisio da competncia leitora. Contudo, sabemos que os alunos

    quando vivenciam a experincia literria em sala de aula leem mais do que escrevem. A

    autora pontua:

    [...] se ler literatura serve para aprender a ler em geral, escrever literatura tambm serve para dominar a expresso do discurso escrito; concretamente, escrever literatura contos, poemas, narrativas feitos individual ou coletivamente permite que as crianas compreendam e apreciem mais, tanto a estrutura ou a fora expressiva de seus prprios textos, como a dos textos lidos. (COLOMER, 2007, p. 162)

    nesse sentido que apoiamos nossa proposta de aula: na escrita do texto literrio com

    base na literatura fantstica, gnero ainda no muito explorado em sala de aula atualmente.

    No ser preciso teoriz-lo propriamente, mas, muito provavelmente, algumas de suas

    caractersticas ficaro bem definidas para a turma, principalmente depois que eles tiverem a

    oportunidade de relatar por escrito alguma experincia ouvida ou inventada.

    A leitura do texto literrio, enfim, faz com que o leitor assimile as chaves metafricas,

    o direcionando para uma mudana subjetiva, para uma verdade que est alm dos fatos.

    Diferentemente de um texto informativo, cuja leitura restritiva e imediata, o texto literrio

    plurissignificativo, ou seja, permite diversas leituras. No caso do gnero literrio fantstico,

    muitas tentativas de desfazer a hesitao podem ser colocadas, mas, se o leitor partir

    essencialmente do texto, ver que o inslito e o real no conseguem se desvencilhar nesse

    gnero.

    4 REFERNCIAS

    CESERANI, Remo. O fantstico. Traduo de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora da

    UFPR, 2006.

    COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literria na escola. So Paulo: Global, 2007.

  • MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. So Paulo: tica, 1986.

    PINHEIRO, Valter Cesar. Luzes na comarca - uma leitura de Um moo muito branco, de

    Guimares Rosa. Revista Litteris. N. 7. Maro. 2011.

    ROSA, Guimares. Primeiras estrias. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio, 1975.

    TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. Trad. Maria Clara Correa Castello.

    So Paulo: Perspectiva, 1975. (Debates, 98). p. 29-63