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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE UM OLHAR ATRAVÉS DO VISÍVEL: reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz Lílian de Carvalho Soares Dissertação de Mestrado Área de Concentração: Teorias da Arte Linha de Pesquisa: Análise Crítica

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE

UM OLHAR ATRAVÉS DO VISÍVEL:

reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

Lílian de Carvalho Soares

Dissertação de Mestrado

Área de Concentração: Teorias da Arte

Linha de Pesquisa: Análise Crítica

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Lílian de Carvalho Soares

Um olhar através do visível:

reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção de Título de Mestre em Ciência da Arte, pela Pós-Graduação em Ciência da Arte, da Universidade Federal Fluminense. Linha de Pesquisa: Análise Crítica Orientador: Luciano Vinhosa Simão

Niterói

2011

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Lílian de Carvalho Soares

Um olhar através do visível:

reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção de Título de Mestre em Ciência da Arte, pela Pós-Graduação em Ciência da Arte, da Universidade Federal Fluminense.

Linha de Pesquisa: Análise Crítica

BANCA EXAMINADORA

_________________________________

Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão (Presidente e Orientador)

Universidade Federal Fluminense – UFF

_______________________________________ Prof. Dr. Pedro Hussak

(Membro Interno) Universidade Federal Fluminense - UFF

_______________________________________

Prof. Dr. Luiz Cláudio da Costa (Membro Externo)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S676 Soares, Lílian de Carvalho.

Um olhar através do visível : reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz / Lílian de Carvalho Soares. – 2011.

95 f.; il. Orientador: Luciano Vinhosa Simão. Dissertação (Mestrado em Ciência da Arte) – Universidade

Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social, 2011. Bibliografia: f. 87-90.

1. Fotografia. 2. Arte. 3. Tempo. I. Simão, Luciano Vinhosa. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte e Comunicação Social. III. Título.

CDD 770

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Agradecimentos

Agradecer é sempre uma tentativa de retribuir em palavras gentilezas que

muitas vezes foram a mim ofertadas em forma de gestos e carinhos. Quais

palavras usar para recompensar de maneira justa aqueles que me

acompanharam nessa jornada, muitas vezes impensada? Foram tantas pessoas

que me guiaram, deram colo, afeto e segurança para que um dia esse trabalho

fosse, finalmente, finalizado. Não quero, contudo, tornar meu agradecimento

prolixo nem tentar alcançar por meio da palavra a dimensão de cada gesto. As

palavras, por mais belas e poetizadas, não equivalem aos gestos. Esses sempre

são maiores, mais doces, mais amorosos. Contudo, não posso deixar de citar

nomes, pois sem um deles, talvez, não tivesse chegado até aqui.

À minha mãe, Rosa de minha vida, sem a qual não estaria aqui.

À Nati pelo amor, companheirismo e apoio.

Ao meu pai Fábio, poetinha de olhar sempre amoroso.

À minha Dandy, irmã querida e eternamente admirada.

Ao Fabiano, pelos conselhos acadêmicos sempre lúcidos.

À Beatriz, amiga querida, que me ajudou a abrir essa porta.

À Eneida e Angelinha, pelo tempo e gentilezas.

Ao Luciano Vinhosa, orientador gentil e paciente.

Ao Luiz Sérgio pelo auxilio acadêmico.

Ao Pedro Hussak e Luiz Cláudio pelas palavras esclarecedoras.

Ao Chema Madoz pelo diálogo.

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SOARES, Lílian de Carvalho. Um olhar através do visível: reflexões sobre as

fotografias de Chema Madoz. Orientador: Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão. Niterói:

UFF/IACS/PPGCA. Dissertação de Mestrado. 2011.

RESUMO

O presente trabalho investiga as imagens do fotógrafo contemporâneo espanhol

Chema Madoz. Para tanto, fez-se um estudo sobre o seu processo de criação

que abarca não apenas as etapas clássicas de obtenção da fotografia, mas

também desenhos e construção de coisas peculiares. Com isso, o fotógrafo

desenvolve uma poética particular e imagens que colocam em cheque a

ontologia do fotográfico. Nesse sentido, no desenvolver da dissertação, se

rediscutem os paradigmas estabelecidos da linguagem fotográfica, no intuito de

alcançar os questionamentos suscitados pela fotografia do espanhol. Em

seguida, se propõe pensar suas imagens a partir do entrelaçamento com o

tempo, objetivando expandir a compreensão e fazer suscitar um jogo de

paradoxos labirínticos, típicos de seu trabalho. A proposta é mostrar, então, que

as fotografias sugerem um olhar além do visível.

Palavras-Chave: Chema Madoz, fotografia, tempo.

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SOARES, Lílian de Carvalho. A look through the visible: studies

about Chema Madoz‟s photography. Advisor: Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão.

Niterói: UFF/IACS/PPGCA. Master‟s degree dissertation. 2011.

ABSTRACT

This study investigates the images of the contemporary Spanish photographer

Chema Madoz. To this end, an analysis of his creation process was performed,

embracing not only the classic steps of photography, but also the preparation of

drawings and construction of peculiar things. Therewith, the photographer

develops particular and poetic images that cast some doubt on the ontology of

photography. In this sense, in developing the dissertation, the paradigms

established on photographic language are re-discussed, in order to achieve the

questions raised by his images. Then, we propose to think about his images

from the entanglement with time, aiming to expand the understanding about

his photography and raise the labyrinth of paradoxes, typical of his work. The

aim is to show, then, that the photographs suggest a look beyond the visible.

Keywords: Chema Madoz, photography, time.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Madoz em seu atelier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Figura 2: Estante de objetos usados para elaboração das fotografias . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

Figura 3: Cadernos de desenhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Figura 4: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

Figura 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

Figura 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Figura 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Figura 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Figura 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Figura 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Figura 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Figura 12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Figura 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Figura 14 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Figura 15 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Figura 16 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Figura 17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Figura 18: Renée Magritte. La trahison des images. 1928-29. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Figura 19: Renée Magritte. Ceci est un morceau de fromage. 1963-64. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Figura 20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Figura 21 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

Figura 22 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Figura 23 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

Figura 24 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

Figura 25 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Figura 26: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

Figura 27 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

Figura 28: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

Figura 29 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

Figura 30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

Figura 31 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

Figura 32 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Figura 33 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Figura 34 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

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SUMÁRIO

1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 02

2. Chema Madoz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

2.1. Breve retrospecto: trajetória de vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

2.2. Processo de criação das imagens: dos objetos à fotografia . . . . . . . . 11

2.3. Desconstruindo clichês: reflexões sobre a crítica alheia . . . . . . . . . . 22

3. A fotografia: teorias e reflexões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

3.1. A questão indicial e suas limitações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

3.2. O real e a fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3.3. O tempo e a abertura ao paradoxo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

4. Através do visível: debatendo sobre as imagens madozianas . . . . . . . . . . . 64

5. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

6. Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

7. Anexo I – Entrevista com Chema Madoz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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Creio que vemos em parte com os

olhos, mas não exclusivamente com

eles.

Wim Wenders – Janela da Alma

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1. INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, as dissertações procuram fazer uma investigação por

meio da escrita de determinado tema, geralmente surgido de um

questionamento geral sobre o mesmo. Contudo, nesse caso, o foco desta

dissertação não veio a mim primeiramente como uma pergunta, mas sim em

imagem. Explico-me. Durante uma aula, muito adequadamente intitulada

Descondicionamento do Olhar, fui, pela primeira vez, arrebatada pelas fotografias

de Chema Madoz. Até aquele momento, não percebia na linguagem fotográfica

seu poder de transfiguração e observava as fotografias com um olhar

ligeiramente jornalístico e testemunhal. Para mim, até esse encontro, as

fotografias seriam fruto de um registrar mecânico ora catalogando coisas ora

testemunhando acontecimentos. Eis, então, que tais fotografias me ensinaram

que é possível ir além desse paradigma

O mais surpreendente disso foi perceber que, apesar da simplicidade

dessas imagens, realizadas com o uso de objetos extremamente banais, elas

eram capazes de provocar tamanho estranhamento, certas vezes pela aridez1

por se tratar de imagens com a ausência de figuras humanas e contexto. É

evidente que após essa primeira observação passei a investigar a respeito do

fotógrafo, seu processo de criação e aprofundar os estudos, já iniciados, sobre

essa matéria tão apaixonante: a fotografia. E logo surgiram as primeiras

indagações para o desenvolvimento deste trabalho.

Ademais, as discussões a respeito das fotografias de Madoz irão se

entrelaçar com meus questionamentos quanto à ontologia do fotográfico. A

dúvida, plantada pelas fotografias e cultivadas neste texto, sobre a dimensão

valorativa dada a essência indicial do fotográfico tornou-se ubíqua, não na

1Apesar de Madoz possuir algumas séries do início sua carreira de fotografias com figuras humanas, elegeu-se debater apenas sobre as fotografias de objetos. Essa escolha objetiva priorizar uma etapa de sua estética que se tornou recorrente, além de ter sido essa fase a que instigou o debate deste texto.

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intenção de negá-la, mas sim na tentativa de perceber algo além desse aspecto

ou ao menos de sugerir que é preciso “ver menos”.

Não foi à toa que esta dissertação se tornou, não apenas um estudo

crítico sobre as imagens de Madoz, mas também um meio de investigar a

própria linguagem fotográfica. O intuito neste texto não foi, dessa maneira, dar

prioridade a um divagar onírico, mas sim de expor como e o que tais imagens

nos interpelam e questionam.

Para tanto, foi preciso primeiramente apresentar Chema Madoz - pouco

conhecido - objetivando relatar sua trajetória de vida e sua relação com a

fotografia. Acredito que essa apresentação situa o espanhol cronologicamente,

proporcionando uma maior aproximação do leitor com o fotógrafo.

Posteriormente, faço uma explanação sobre seu processo de criação das

imagens. Sua fotografia é fruto de uma longa tomada de consciência sobre

como e o que será fotografado. Essa é uma atividade incomum a fotógrafos,

pois além de usar a máquina fotográfica, Madoz necessita desenhar e construir

seus objetos antes de fotografá-los. O que torna ainda mais intrigante suas

imagens.

Nessa etapa do trabalho, a colaboração do fotógrafo espanhol – por meio

de entrevistas2 - foi de extrema importância, pois permitiu maior proximidade

com seu ato criador. Além disso, os títulos da editora espanhola La Fabrica,

Obras Maestras3 - com centenas de imagens, cronologia e esboços – e

Conversaciones con Fotógrafos4 – com uma longa entrevista feita por Alejandro

Castellote - também foram auxiliares importantes nessa pesquisa.

O passo seguinte foi desconstruir as sucessivas associações do trabalho

de Madoz a movimentos modernistas, em especial ao Surrealismo. Faço isso

questionando alguns críticos que buscaram “classificar” as fotografias a partir

de um distanciamento crítico, cientificista e designador. Essa crítica insinua

2 Foram feitas três entrevistas, por meio de correio eletrônico com o fotógrafo, compiladas e anexadas ao fim do trabalho. 3 MADOZ, Chema. Obras Maestras. Madrid: La Fabrica, 2009 4 ______. Conversaciones com fotógrafos: Chema Madoz habla com Alejandro Castellote. La Fábrica y Fundacíon Telefônica, Madrid, p.77, 2003. Entrevista concedida a Alejandro Castellote.

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uma espécie de “ponto de fuga”5 que enquadra o olhar a partir de uma

estetização modernizante e reduz as fotografias aos objetos visíveis. Apenas o

visível na fotografia de Madoz fragiliza a discussão, celebrando uma espécie de

“mutismo contemplativo”6, abdicando da linguagem fotográfica.

No capítulo posterior, é o momento de comentar a respeito dos teóricos

da fotografia. Essa parte se destina a fundamentar teoricamente os debates a

cerca das imagens. Primeiramente, teóricos como Philippe Dubois7 e Roland

Barthes8 são abordados, pois ambos são personagens principais para a

disseminação sobre o entendimento da fotografia a partir do referente. No caso,

a intenção é expor as limitações que o culto do referente e da teoria indicial

infligem ao fotográfico. Para isso, os estudos de André Ruillé9 foram de muita

utilidade. Deu-nos suporte para demonstrar que as fotografias madozianas

questionam ao mesmo tempo em que ultrapassam o discurso da ontologia e

sugerem uma reflexão a qual se considere não apenas o aparato mecânico, mas

também o processo de criação.

Essa limitação de (apenas) considerar a fotografia como vestígio de uma

realidade não é capaz de responder como é possível fotografar com filme – a

luminosidade se imprime sobre a película virgem – coisas que não podem ser

encontradas na realidade tangível, como acontece com as imagens de Chema

Madoz. Logo, é mister desenvolver uma perspectiva que amplie esse olhar. E,

para isso, a noção de virtual foi eleita como aquela que permite a compreensão

da fotografia como potência, como uma imagem além do rastro luminoso, do

rastro de uma realidade. Nesse caso, alguns princípios de Pierre Levy10 foram

utilizados.

5 BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. 6 ibidem 7 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico.Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993. 8 BARTHES, Roland. A câmera clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 9 ROUILLÉ, André. A fotografia: entre o documento a arte contemporânea. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: SENAC, 2009. 10 LÉVY, Pierre. O que é virtual?. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed.34, 1996.

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Para finalizar, as indagações, sobre a relação da fotografia com o tempo,

feitas por Lissovsky,11 complementam as bases teóricas desta dissertação. Nesse

caso, o autor põe ao alcance um entendimento mais expansivo sobre o ato

fotográfico, ao demonstrar a existência de um pré-fotográfico, determinado pela

duração, que está imbuído da subjetividade do fotógrafo. É na expectação do

instante que o fotógrafo irá imprimir na imagem uma singularidade que lhe é

própria.

Além disso, há ainda o tempo compreendido como imagem: a imagem-

tempo. Nesse caso, faço o empréstimo de alguns apontamentos feitos por

Deleuze12 para destacar os paradoxos nas fotografias. As imagens-tempo

rompem com a linearidade do clichê, produzindo novas formas de imagens por

meio de um transbordamento. O paradoxo de a fotografia ser rastro da

realidade, mas ao mesmo tempo apresentar algo irreal é aquilo que converge

com o ponto de indiscernibilidade, característico da imagem-tempo.

Finalmente, após definir os pilares da discussão, faço uma análise sobre o

trabalho de Madoz. Nesse terceiro e último Capítulo, procurei argumentar, por

meio de um estudo sobre processo criativo do fotógrafo – desenhos, objetos e

fotografia – como suas imagens questionam a si mesmas ao plantar a dúvida

sobre sua essência indicial. Nesse sentido, demonstra-se que o rastro luminoso é

posterior ao rastro do grafite sobre o papel o qual, por sua vez, é posterior às

primeiras concepções da imagem em seu pensamento. A fotografia de Madoz

carrega consigo a tríplice indicialidade e, ao mesmo tempo, a discute.

Ademais, fotografar para Madoz vai além do simples contato com o

aparato mecânico. Seu processo de desenhar e construir é também uma fase do

ato fotográfico. Um modo de expectar o instante, por meio de uma ação

construtiva e ativa. Essa ação reside na duração desse instante que o olhar sobre

a imagem é amadurecido para se alcançar o desfecho final, qual seja, fotografar.

Por fim, com o escopo de aliviar as tensões suscitadas pelos debates

anteriores, opto por desenvolver uma breve interpretação de algumas imagens.

11 LISSOVSKY, Maurício. A máquina de esperar: a origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008 12 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34, 1992

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Com isso, deixo pulular os paradoxos e uma provável invisibilidade (particular)

das fotografias de Chema Madoz a partir de um olhar particular. Espera-se,

dessa maneira, que este texto seja um instigador de questionamentos sobre a

fotografia de Madoz e a apresente como uma imagem, uma potência permeada

de contradições que busca o olhar que atravesse o visível.

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2. Chema Madoz

2.1. Breve retrospecto: trajetória de vida

Um menino começa a receber suas primeiras aulas na casa de uma

vizinha. Ao chegar, na ausência de uma mesa para seus estudos, sua professora

o coloca sentado em um pequeno banco e abre a porta do forno. Com seus

cadernos sobre essa porta permanece sentado olhando para a escuridão do

interior do fogão. O que antes era apenas objeto de cozinha torna-se mesa. O

menino chama-se Chema Madoz. E nesse instante o artista passa a entender a

realidade como um universo arbitrário de possibilidades e a cada descoberta

uma nova realidade aflora (MADOZ, 2009).

Essa breve recordação relatada por Chema Madoz é a melhor

representação do que virá a se tornar sua obra e sua forma de encarar as coisas

à sua volta. Como esta dissertação trata-se de um texto crítico a respeito de suas

imagens é importante contextualizar e relatar sobre a trajetória do

artista/fotógrafo para melhor compreender o desenvolvimento do trabalho.

Filho único do casal espanhol Luis Rodriguez e Carmen Madoz, José

Maria Rodriguez Madoz, conhecido como Chema Madoz, nasceu em 1958 em

Madrid. Teve uma infância financeiramente modesta e em 1962 mudou-se para

um apartamento recém construído para imigrantes na Espanha. Nesse mesmo

ano inicia seus estudos preparatórios para o ensino primário na residência de

uma vizinha, conforme já relatado. Em 1964 entra em contato pela primeira vez

com a fotografia: recebe de seu pai uma máquina fotográfica instantânea da

Kodak e aos seis anos fotografa pela primeira vez. A foto é um retrato de seus

pais (MADOZ, 2009).

Seu contato mais consciente com a linguagem fotográfica só vai acontecer

em 1978 quando realiza sua primeira série de fotografias com a câmera

emprestada de um amigo. E é na casa desse amigo que toma conhecimento do

processo de revelação química de filme preto e branco. “Pela primeira vez

observei como aparecia uma imagem do líquido, uma imagem do nada. Foi

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uma experiência mágica. Soube que esse era o meio pelo qual contaria o que

tinha na cabeça.”13.

Cursou História da Arte (1980 a 1984) na Universidade Complutense de

Madri e fez parte de um grupo de estudos sobre a imagem que visava à

formação de fotógrafos para os veículos de imprensa, no Centro de Estudios de la

Imagen. Nesse curso ele relata que os professores tinham o propósito de

instrumentalizar os alunos para a profissão de fotógrafo de forma bem objetiva,

sem a compreensão da fotografia como meio de expressão da arte (MADOZ,

2009). Além disso, essa formação em fotografia jornalística não impediu que

aflorasse em Madoz uma expressiva sensibilidade acerca das produções

fotográficas do meio artístico. E nesse mesmo ambiente entra em contato com a

história da fotografia, que lhe desperta a curiosidade por fotógrafos e artistas

reconhecidos mundialmente. Entre eles, cita Jan Dobbets, artista holandês, por

suas obras conceituais “em torno dos problemas da percepção e da

perspectiva”14; e John Phall “que desenvolvia imagens que insistiam nos

enganos visuais”15.

Prematuramente abandona os estudos universitários para se dedicar à

fotografia (idem, 2003.). Foi responsável por organizar sua primeira exposição

(1984) em um bar de Madri chamado Liberdad 8, conseguindo vender algumas

de suas imagens. Posteriormente fez exposições no Centro de Estudios de la

Imagen (1985), no Museu de Arte Reina Sofía (1991) e em diversos países do

mundo (idem, 2009). Com esforço alcançou prestigio no campo das artes e suas

obras passaram a ser expostas nos mais prestigiados circuitos mundiais.

Em 1986, entra em contato pela primeira vez com a obra do poeta catalão

Joan Brossa do qual poucos anos depois se torna amigo. Apesar dessa

aproximação, o maior impacto relatado por Madoz em relação à obra de Brossa

foi durante visita a uma exposição antológica do poeta no Museu Reina Sofía de

13 Tradução livre: “Por primera vez observé cómo aparecía una imagen del líquido, una imagen de lo nada. Fue una experiencia mágica. Supe que ese era el medio con el que contar lo que tenía en mi cabeza.” (MADOZ, 2009, p.309) 14 Tradução livre: “en torno a los problemas de la percepción y la perspectiva.”. (MADOZ, 2009, p.311). 15 Tradução livre: “que desarrollaba imágenes que insistían en los engaños visuales.”. (ibidem, p.311)

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Madrid: “[...]Creio que foi no ano de 1992 no Reina Sofía onde recebi minha

primeira lição de humildade.”16. Quatro anos depois, o próprio poeta se

encantou com as fotografias de Madoz. Tornaram-se amigos. “Brossa disse que

havia esperado setenta anos para conhecer um irmão.” 17. A amizade foi breve,

devido ao falecimento do poeta, mas permitiu uma parceria, cujo resultado é a

elaboração do livro Fotopoemario18. Este é um diálogo entre as poesias do poeta

catalão, suscitadas da observação das imagens, e imagens do fotógrafo. Cada

poesia vem acompanhada de uma fotografia, originando um belíssimo livro de

poesias fotográficas e de fotografias poéticas.

Ainda nos anos noventa, recebeu diversas propostas de editoras para

utilizar suas fotografias como ilustração de capas de livros. Além disso, a

revista El Mundo o convida para colaborar com imagens criadas a partir de

contos e em apenas um ano produziu 14 obras (MADOZ, 2009, p.324). Afirma o

fotógrafo: “Aceitei o trabalho como um desafio. Tinha que resolver a obra em

poucos dias e não estava acostumado a trabalhar com essa rapidez.” 19.

As fotografias de Madoz são compostas essencialmente por objetos do

cotidiano modificados por ele. Os objetos são construídos a partir de idéias que

usualmente surgem em sua mente. A técnica fotográfica que utiliza é a de filme

preto e branco e todo o processo de revelação é executado por ele e feito da

forma mais tradicional.

No início de sua carreira fez o uso de figuras humanas (geralmente

amigos próximos) e paisagens, mas pouco a pouco foi esvaziando as imagens

desses elementos e focando exclusivamente nos objetos. Ele percebeu que suas

primeiras fotografias eram fruto de uma tomada de consciência de que suas

escolhas por paisagens e pessoas eram catalisadores de imagens previamente

idealizadas em sua mente. Nesse sentido, as figuras humanas são vistas por ele

16 Tradução livre: “[...] Creo recordar que fue en el año 1992 en el reina Sofía donde recebi mi primera cura de humildad.” (BROSSA; MADOZ, 2008, p.7) 17Tradução livre: “Brossa dijo que había tardado setenta años en conocer a un hermano.” (BROSSA; MADOZ, 2008, p.7) 18 Fotopoemário é um livro que consiste em uma reunião de fotografia de Chema Madoz e poesias de Joan Brossa, poeta catalão. 19 Tradução livre: “Acepté el trabajo como un desafío. Tenía que resolver la obra en un par de dias y no estaba acostubrando a trabajar con esa rapidez.” (MADOZ, 2009, p.325)

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como elementos os quais não tinham um caráter de personagem apenas

obedeciam a um enquadramento formal e, por isso, foram aos poucos sendo

descartadas. A escolha por objetos proporcionou, também, imagens mais

elaboradas tanto esteticamente quanto em termos de linguagem. Portanto, o

percurso para o uso de objetos ocorreu de maneira natural e consciente,

permitindo maior controle sobre o processo de criação. (MADOZ, 2003, p.21).

Assim se expressa:

Uma decisão consciente, com um motivo que pode parecer absurdo: é mais fácil trabalhar com objetos do que com pessoas. No entanto, existe um mesmo olhar que atravessa as fases, embora com uma diferença: na primeira fase era mais ingênuo e minhas intenções podiam ser decifradas mais claramente; agora administro uma linguagem mais elaborada.20

Há em suas fotografias uma carga de sua personalidade tímida e

observadora. A ausência de figuras humanas nas imagens atuais também se

deve em parte ao seu temperamento retraído e à sua necessidade por solidão,

influenciando na sua forma de trabalhar e na sua maneira de se relacionar com

o mundo à volta. Ademais, sua capacidade de apreciar pequenos detalhes o

estimula a construir objetos e imagens peculiares.

Assim, o uso da fotografia é essencial para manifestar suas idéias e

estimular a imaginação e os jogos de linguagem. É por meio da imagem que

Madoz questiona as coisas do mundo e as nossas relações com elas. Na

fotografia do espanhol a imagem é estímulo a indagação e a dúvida, em um

labírintico dialógico entre o que acreditamos ver e o não-visto, no intuito de

alcançar um olhar para além do visível.

2.2. Processo criativo: dos objetos à fotografia

20 Tradução livre: “Una decisión consciente, con un motivo que puede parecer absurdo: es más práctico trabajar con objetos que con personas. Sin embargo, hay una misma mirada que atraviesa las dos fases, aunque con una diferencia: en mi primera época era más ingenuo y mis intenciones se podían descifrar más claramente; ahora manejo un lenguaje más elaborado.”. (MADOZ, 2009, p.316)

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Por se tratar de um texto que ambiciona refletir para além da descrição

imagética se faz necessário imputar um olhar sobre o processo criativo, visto

que a elaboração das fotografias de Chema Madoz é executada de maneira

singular e influencia diretamente as reflexões sobre seu trabalho. E esse

detalhamento trará mais clareza nas discussões que seguirão no decorrer do

texto, além de permitir uma maior aproximação com as imagens. Portanto, o

que está sendo enfatizado aqui é o ato criador das imagens para que, vivendo

os meandros desse processo, possamos conhecê-las melhor.

Como explicitado

anteriormente, as imagens

madozianas são fotografias de

objetos que ele mesmo constrói e

idealiza. É importante esclarecer

que o uso do termo fotografia

madoziana ou imagem madoziana

será recorrente durante o

trabalho como uma forma de dar

destaque à poética particular das

imagens.

As imagens de Chema

Madoz são singulares e transitam

entre as coisas existentes e ao

mesmo tempo irreais. Seu

processo de criação vai além do

simples ato de fotografar o objeto

e isso ocorre devido a um sistema que foi cuidadosamente refletido e cada

passo é interdependente entre si. Essa escolha supera o uso da técnica como

meio intermediário para solucionar problemas estéticos ou de usá-la como mero

veículo de registro dos objetos que constrói. Longe disso, durante todo o

Figura 1: Madoz em seu atelier

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processo a linguagem fotográfica é personagem principal nas suas reflexões e a

sua arte é a imagem.

Com um olhar sempre sensível, coleciona todos aqueles elementos que

lhe chamam a atenção: vela, faca, prato, taça, garrafa, copos, castiçais, sapatos e

tantos outros (figura 1). Apesar de tantas coisas, ele as organiza

cuidadosamente e, por isso, observar a fotografia do seu atelier é perceber como

seu trabalho resulta de um processo meticuloso: inicia com desenhos,

posteriormente constrói objetos, estuda os ângulos mais favoráveis para criar

imagem pretendida, os fotografa e finalmente os revela, decidindo por escalas,

formatos e modos de apresentação. Assim, um a um, os objetos vão sendo

cuidadosamente inventariados.

Seguimos, então, um estudo sobre seu processo de criação. As fotografias

madozianas são imagens de objetos do cotidiano. E apesar das novas tecnologias,

como a fotografia digital, Chema Madoz usa exclusivamente filme preto e

Figura 2: Estante de objetos usados para elaboração das fotografias

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branco, usufruindo do

clássico processo de

revelação e impressão

de imagens. Contudo

antes da obtenção final

das fotografias há fases

anteriores que precisam

ser esmiuçadas.

Com efeito, a

presença do fotógrafo

nas imagens vai além da

produção da foto pelo

negativo, há nele a

necessidade de intervir

diretamente em seus

objetos. Isso significa

que o processo de

produção de fotografias

possui dois momentos

distintos e complementares: o ato criador de objetos e a fabricação da imagem

técnica. No primeiro deles, o fotógrafo relata que geralmente suas imagens são

prévias, ou seja, por meio de um olhar atencioso sobre as coisas à sua volta ele

cria imagens mentais. A partir disso ele inicia o registro e a elaboração das

idéias em um caderno através do desenho que corresponderão a futuras

imagens (figuras 3, 4 e 5) (MADOZ, 2003, p.22). Posteriormente, busca objetos

que possam materializar aquilo que anteriormente foi idealizado e desenhado.

Contudo, algumas vezes, ele compra ou adquire objetos sem um objetivo claro e

só depois da convivência com os mesmos é que ele irá compreender em que

direção seguirá seu trabalho.

Figura 3: Cadernos de desenhos

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Geralmente a

procedência desses objetos é

variada; podem ser obtidos ou

encontrados em casas de

amigos, latas de lixo,

containers, lojas ou mesmo em

feiras livres. Dentre esses

lugares, um dos quais

assiduamente freqüenta é a

famosa feira El Rastro que de

acordo com suas palavras

exerce “um atrativo enorme”

sobre ele, pois compreende

que nesse lugar os objetos de

caráter múltiplo são

convertidos em únicos

(ibidem, p.23).

El Rastro é uma feira

madrilena de objetos de

segunda-mão; isso significa

que cada coisa foi utilizada

por diferentes pessoas e em

situações distintas. E é por

essa perspectiva que cada objeto, aos olhos poéticos de Madoz, é único. Como

um andarilho que coleciona objetos triviais, ele vai à feira em busca de coisas as

quais possam corresponder ao seu planejamento, à sua imagem mental prévia.

Algumas vezes, procura apenas adquirir coisas sem objetivo claro, mas que

possam posteriormente contribuir para a criação de novas imagens. Para

Madoz, nem sempre há uma imagem prévia concreta; algumas vezes há apenas

uma idéia geral ou conceito que servirá de estimulo para a criação de suas

imagens:

Figura 4: Esboço pré-fotografia

Figura 5

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15

Às vezes, primeiro tenho uma idéia e busco objetos que possam simbolizá-la. Geralmente nesses casos são situações que respondem a uma idéia ou uma sensação ou emoção... No entanto também podem surgir idéias a partir de um objeto concreto.21

Com o conceito do que pretende já estabelecido ou mesmo com a

imagem já criada mentalmente Madoz inicia a construção de suas coisas

peculiares: primeiro ele desenha (projeta) sobre o papel objetos os quais irá

construir. Alguns raros objetos são especialmente construídos por artesãos mais

habilitados para concretizar seus objetivos. Dessa maneira, consegue visualizar

pela primeira vez a imagem que antes era apenas mental. Posteriormente, entra

em contato direto com os objetos e os une. Geralmente esses elementos são

distintos ou não estão originariamente relacionados entre si. Essa união dará a

forma inicial para a elaboração da imagem que ele deseja adquirir. Assim,

artesanalmente, Madoz vai manipulando cada objeto por um determinado

tempo, lhe proporcionando certa intimidade com as coisas. A fluidez para a

elaboração dos seus objetos ocorre de forma lenta e gradual cada passo tomado

é cuidadosamente refletido.

Nesse momento de construção do objeto poder-se-ia associar o processo

criativo do fotógrafo com a de um escritor ou um poeta que manipula as

palavras para construir uma estrofe ou um parágrafo. Cada modificação nos

objetos agrega um novo sentido e vai moldando a futura imagem. E refletindo

sobre como cada coisa é usada no dia a dia ele transfigura suas funções,

construindo coisas inusitadas. Logo, compreender-se-ia que essa etapa de

construção dos objetos faz parte do processo de manipulação da própria

imagem.

É mister ressaltar que o interesse de Madoz não reside no objeto em si,

mas nas relações que são estabelecidas com eles. Cada coisa adquirida conta

uma história e a partir dela cria-se uma determinada relação entre os indivíduos

21 Tradução livre de entrevista concedida: “A veces, primero está la idea y busco los objetos con los que la puedo simbolizar. Generalmente en estos casos, son situaciones que responden a una idea, como tu señalas o bien una sensación o emoción... Sin embargo también puede surgir la idea a partir de un objeto concreto.”

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e os objetos. Portanto, algumas vezes, no intuito de estabelecer um diálogo

particular com esses objetos, Madoz necessita de um tempo de intimidade que

lhe ajudará no processo de modificação de

seu sentido original.

A maioria das fotografias madozianas

utiliza essencialmente objetos triviais, mas

em outros momentos sobressaem imagens

com componentes mais gráficos como

mapas, notas musicais, partituras ou

mesmo elementos da natureza que não

possuem as mesmas características

funcionais das coisas do cotidiano. Assim,

Madoz amplia a noção de objeto para além

da coisa construída pelo homem e propõe,

mesmo que pontualmente, um olhar

diferenciado até mesmo sobre elementos

como pedras, água ou areia (figuras 9,10 e

11).

Pode-se afirmar: trata-se de uma

fotografia; que contrariando o esperado no

processo analógico do qual faz uso, não

parte exclusivamente do estímulo exterior –

o mundo que o cerca e com o qual se

julgaria uma relação de dependência – mas

sendo motivada por objetos e cenários do

cotidiano, fundamenta-se, enquanto

imagem elaborada, desde o interior, na

mente do artista. Comporta-se por assim

dizer como uma instância imagética

dialeticamente motivada.

Figura 6

Figura 7

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17

Ademais, em certas imagens o

cenário em torno do objeto torna-se

crucial para completar suas intenções e

essa escolha se assemelha na busca por

objetos, pois o ambiente será aquele que

proporcionará às coisas a permuta de

sentido e a materialização conceitual da

imagem. Por exemplo, nas fotografias

em que Madoz troca o corrimão por

uma bengala (figura 12) ou o ralo em

um terreno árido (figura 13). Sem o

cenário apropriado em torno da

bengala ou do ralo não se concretizariam

as intenções do fotógrafo. Cada coisa

está cuidadosamente colocada de

maneira a dialogar com o meio no qual

foi inserida. Nessas fotografias a

dúvida se houve ou não manipulação

em suas imagens se insinua. Será que

esses objetos já se encontravam naquele

lugar? A pergunta geralmente legítima

quando se trata de imagens madozianas,

sobressalta com o uso de paisagens

visualmente reconhecíveis.

Contudo, em imagens mais

recentes o fotógrafo espanhol tem

pouco a pouco elegido cenários cada

vez mais neutros e desnudados de

qualquer interlocução com o objeto, como se esse adquirisse mais

independência e destaque. Nesse caso ele usa, por exemplo, materiais como:

Figura 8

Figura 9

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18

folha branca, mesa de mármore

ou elementos de fácil acesso que

possua no seu estúdio.

Percebe-se que ele abdica

de cenários fotográficos com

materiais específicos de estúdio e

usa exclusivamente fundos

“naturais”22. Nessa mesma

postura técnica está a escolha

pela iluminação dos objetos.

Madoz faz uso invariavelmente

da iluminação não-artificial. E ela

é protagonista na obtenção da

imagem, contrapondo-se ao

objeto: enquanto ele está

visivelmente manipulado a

iluminação confere ao objeto

certa realidade por se mostrar

“natural”.

A fabricação do objeto e a

escolha do cenário já são

elementos que definem como a

fotografia deverá ser finalizada e

já demonstram o alto grau de

pré-definição da imagem na

mente de Madoz. Contudo, em

seus relatos, o fotógrafo afirma

que nem sempre o planejado e o idealizado correspondem ao resultado final na

fotografia e, por esse motivo, o processo poderá ser retomado mais de uma vez

22 A palavra natural é empregada para se referir ao uso de materiais incomuns a técnica fotográfica de estúdio que geralmente usa fundos feitos de telas e luz artificial.

Figura 10

Figura 11

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19

até que o resultado final satisfaça o

autor (MADOZ, 2003, p.16). Isso

pode ocorrer por causa de uma das

principais matérias primas da

fotografia - a luz - não permitir o

seu controle total, dificultando sua

manipulação. Afinal sem a luz, não

seria possível obter o negativo,

somente revelado se exposto à

luminosidade. Ou, por outra razão

qualquer, algumas fotos

simplesmente não correspondem,

como imagem, aos anseios prévios do autor e, por isso, o processo pode ser

retomado e o objeto reconstruído.

Essa compreensão de que nem tudo pode ser controlado e

completamente planejado desconstrói parcialmente o processo anterior23

meticuloso e quase catalogador do

objeto, mas esse aspecto sobre seu

processo de criação não

corresponde às suas intenções.

Madoz compreende que a

fotografia vai além da idéia

simplista de máquina de registro.

Ela é uma linguagem possível de

jogar com todas as suas nuances,

desde o momento de idealizar a

imagem mentalmente até ao

processo de revelação. A fotografia

para Madoz é um meio pelo qual

23 Defino como “processo anterior” o ato de desenhar o objeto, construí-lo e determinar o cenário.

Figura 12

Figura 13

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20

aquilo que se vê pode ser questionado.

Além disso, em alguns casos seus objetos só são observados na fotografia

devido à escolha de uma determinada perspectiva, como, por exemplo, a

fotografia de uma escada encostada sob um espelho. O efeito do espelho que se

transforma em janela só ocorre graças ao ângulo de visão da imagem. Esse olhar

fotográfico está presente na imagem madoziana, mesmo naquelas imagens mais

assépticas e de aparente objetividade. Há nelas um direcionamento do olhar,

proporcionando uma determinada visualização do referente. Isso significa dizer

que olhar para o objeto concreto não corresponderá necessariamente àquilo

visto na fotografia.

Retomemos: definido o

objeto e o cenário, chegamos

finalmente ao ato fotográfico em si.

Madoz usa em todas as suas

imagens filme preto e branco, como

já dito anteriormente. No princípio

de sua carreira eram filmes de 35

mm, hoje, contudo, utiliza filmes

de médio formato (120 mm) e uma

câmera Hassemblad adequada a

esse tipo de filme. A câmera de

médio formato permite obter

imagens mais nítidas e com uma

qualidade de gradação de cinzas

superiores aos filmes de 35 mm

(MADOZ, 2009).

Tendo controlado o que pode - referente, cenário, tempo de exposição e

velocidade do obturador - Madoz agora fará um jogo de olhares sobre o objeto,

a luminosidade e as sombras. Em um determinado momento, ao olhar o visor

da câmera verá a imagem a qual acredita ser aquela que melhor corresponderá

ao seu planejamento e com um toque expõe o filme à luz. Isto é, ele faz uma

Figura 14

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21

busca pelas circunstâncias as quais possam servir às suas necessidades. Repetirá

esse procedimento algumas vezes até se sentir satisfeito com o resultado.

Assim, após vivenciar todo o sistema de construção do referente, ele concretiza

a conexão luminosa da fotografia.

O fotógrafo age como se estivesse em um jogo, pois é consciente da

impossibilidade de controle de todas as etapas da elaboração da imagem, então,

procura o momento em que o planejado poderá ser concretizado. Contudo,

ainda que o processo tenha etapas iniciais as quais ambicionam o controle sobre

o resultado final da imagem, Madoz adota fatores – como a luz natural – que

dão abertura ao acaso por vezes incorporado à fotografia final. É necessário

compreender que o acaso não diz respeito necessariamente à completa

mudança do planejamento inicial, mas sim a todo um conjunto de interferências

surgidas naturalmente e alheias às intenções do artista e que podem

proporcionar o emergir de resultados diversos às intenções primárias. Não a

esmo, o fotógrafo diz:

Apesar de a imagem estar muito clara [no pensamento] quando começo a trabalhar com ela sempre estou aberto ao que possa acontecer durante o processo. Nesse sentido, há algumas imagens que acabaram de uma maneira bem distinta daquela que foram concebidas.24

O instante de exposição do filme à luz é sempre um tempo imprevisto,

um centésimo de segundo destituído de controle, mas que expressa as intenções

transformadoras do fotógrafo sobre o objeto que deixará de ser coisa para se

tornar imagem, conceito e jogo de indagações.

Posteriormente, ele transforma o filme em negativo por meio de um

processo de revelação química. Feito isso e sem mais intervenções sobre o filme,

o resultado é o negativo. Essa matriz da foto não será mais transformada. A

terceira etapa é a produção da cópia do negativo; isto significa expor o negativo

24 Tradução livre da entrevista concedida: “A pesar de que la imagen está muy clara cuando comienzo a trabajar en ella, siempre estoy abierto a lo que pueda suceder durante el proceso. En ese sentido hay unas cuantas imágenes que acabaron de una manera bien distinta a como fueron concebidas.”.

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à luz que refletirá sobre o papel sensível; posteriormente o papel fotográfico

será imerso em líquidos químicos, lavado e secado resultando na foto.

O que há em comum nessas etapas é a obtenção de dois elementos que

serão definitivos: o negativo e a foto. Entretanto, conseguir o negativo e utilizá-

lo são duas atitudes distintas em sua essência. O primeiro é irreversível, ou seja,

no momento em que o fotógrafo expõe o filme à luz, esse frame não poderá mais

ser modificado, mesmo se o fotógrafo repetir a ação. Mesmo o filme sendo

novamente exposto, ele não poderá mais voltar à sua condição de filme virgem.

No caso quando o fotógrafo trabalha com o negativo, ele pode obter um

número infinito de imagens, intervindo de diferentes maneiras em todas as

etapas de trabalho25. Dessa forma, pode optar por fortalecer o contraste, dar

nuances aos tons de cinzas, optar por uma tiragem sobre certo tipo de papel.

Então, “o trabalho com o negativo é inacabável à medida que pode sempre ser

retomado e realizado outra vez, e isto de maneira potencialmente diferente.”

(SOULAGE, 2010, p.131).

É na fase de impressão que Madoz irá perceber se o planejado

correspondeu ao exposto no papel fotográfico. E a partir de suas conclusões fará

mudanças no objeto, no cenário ou em quaisquer outros elementos que

considerar necessário. Quando satisfeito com o resultado imagético, terá

finalmente concluído a execução do trabalho. Assim, para Madoz o ato criador

de suas imagens vai muito além do simples apertar de botão, ao contrário seu

processo de criação é extenso e a imagem é pensada e repensada durante todas

as etapas de obtenção da foto.

2.3. Desconstruindo clichês: reflexões sobre a crítica alheia

A produção peculiar das imagens madozianas e as características visuais

de suas fotografias com objetos modificados e estranhos suscitaram críticas

sobre o aspecto de seus objetos, suas imagens e seu estilo. As primeiras foram

25 Trabalho com o negativo: expor, revelar, banho interruptor, fixar, lavar e secar

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23

publicadas em 1988, ressaltando a originalidade e inovação, sem aprofundar os

questionamentos. A crítica a respeito de seu trabalho passou a ser mais assídua

decorrente dos prêmios e algumas tentaram propor uma leitura modernizante

das fotografias. A título de exemplo, transcrevo o seguinte:

Sua obra está fundamentada sobre duas concepções artísticas que raramente coabitam entre si [...] Estou me referindo ao Surrealismo (freudiano, irracional, especulativo) e a Arte Conceitual (matemática, fria, cerebral).26. (Antonio Molinero) Uma manifestação da estética do infraleve [...] uma prática híbrida em que os recursos da poesia visual ou a tradição do objeto surrealista são incorporados no registro do fotográfico.27 (Fernando Castro) As naturezas mortas de Chema Madoz funcionam às vezes como poemas visuais em que muitas vezes emprega objetos peculiares que chega a inventar guiado quase sempre por um gosto pelos paradoxos de certa ressonância surrealista.28

Nesses trechos percebemos um direcionamento do olhar sobre as

fotografias de Chema Madoz. Antonio Molinero argumenta que as imagens

madozianas estão fundamentadas no Surrealismo e na Arte Conceitual;

Fernando Castro cita a tradição do objeto surrealista como característica; e o

texto da exposição no Salão Internacional de Fotografia ressalta as ressonâncias

surrealistas. Como visto, é recorrente a menção do Surrealismo nos exemplos de

textos críticos. E não é rara a referência do movimento Surrealista nas reflexões

sobre as fotografias madozianas. Será que Madoz possui a atitude proposta pelo

Surrealismo? Terão suas imagens influência direta do movimento? Torna-se

imprescindível, portanto, refletir a esse respeito.

26 Tradução livre: “Su obra está fundamentada sobre dos concepciones artísticas que raramente cohabitan entre si [...]. Me estoy refiriendo al Surrealismo (freudiano, irracional, especulativo) y al arte conceptual (matemático, frio, cerebral)” (MADOZ, 2009, p.322). 27 Tradução livre: “una manifestación de la estética de lo infraleve (...), una práctica híbrida en la que los recursos de la poesía visual o la tradición del objeto surrealista quedan incorporados en el registro de lo fotográfico.”. (ibidem, p. 330) 28 Texto da exposição no Salão Internacional de Fotografía no Palácio de Revillagige. Tradução livre: “Las naturalezas muertas de Chema Madoz funcionan unas veces como poemas visuales en los que a menudo emplea peculiares objetos que llega a inventar guiado casi siempre por un gusto por la paradoja de cierta resonancia surrealista.”. (ibidem, p.332)

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A relação da fotografia com o Surrealismo é historicamente conhecida.

Nomes como Man Ray são referência para esse movimento modernista e para a

história da fotografia. Façamos então um breve retrospecto sobre o movimento

para uma melhor reflexão sobre o assunto.

O surrealismo foi um movimento do início do século XX organizado por

escritores e artistas, concentrados na cidade de Paris e tendo como um dos

principais líderes André Breton, autor do primeiro Manifesto do Surrealismo

(1924). O movimento foi doutrinado por ele e motivado por teorias freudianas

surgidas nesse mesmo período. Em vista disso, o movimento está influenciado

pela psicanálise que compreende o inconsciente como fonte inesgotável de

imagens recalcadas e que podem ser exteriorizadas pela arte quando faz uso de

certos métodos como, por exemplo, o automatismo psíquico, libertando o

indivíduo de sua miséria existencial.

O espírito revolucionário surrealista procurou derrubar as convenções

sociais e morais, afrouxando os limites habituais que separavam a arte da vida.

Apesar de estimularem as imagens fantásticas e o onirismo, aceitavam a

realidade do mundo físico, “embora julgassem havê-lo penetrado tão

profundamente que o tinha transcendido.” (CHIPP, 1996, p.374). Com efeito,

mais do que arte, os surrealistas pretenderam assumir uma postura em que o

sujeito tomasse a frente de expressão no mundo em oposição à massa alienada.

Acreditavam que somente dessa forma poderiam proporcionar uma

transformação radical na sociedade a ponto de engendrar em seu horizonte

uma nova humanidade.

Para Breton, a pintura surrealista e a arte em geral eram meio de registrar

e dar evasão às imagens do inconsciente. Dentre as técnicas usadas pelos

integrantes do movimento, duas se destacam: a “escrita automática” - usada

pelos poetas e escritores - e “desenhos automáticos” - praticada por pintores.

Em ambos os casos, a intenção era, desfazer-se das amarras e controles do

consciente e extravasar o inconsciente. “O Surrealismo como movimento foi,

assim, de um alcance muito mais amplo do que na literatura ou na pintura, e

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constitui, nas palavras de Breton, um „automatismo psíquico puro‟.” (idem,

1996, p.375).

Essa fase do automatismo, portanto, tinha como objetivo ultrapassar a

realidade, propondo uma nova relação do indivíduo com o real. E a descoberta

da surrealidade está presente nos sonhos, nas narrações oníricas e na hipnose.

Breton, então, define o Surrealismo:

Automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir, quer verbalmente, quer por escrito, quer por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral. (CHIPP, 1996, p.417).

Entre os artistas que se destacaram nesse movimento estão: Salvador

Dalí, Magritte, Man Ray, Miró e Max Ernst. O movimento abarcou um número

grande de artistas com diversos pensamentos e linguagens formais distintas,

mas com ideais que os uniam em uma mesma postura e movimento. Walter

Benjamin destacou o Surrealismo como o primeiro movimento a revolucionar o

ideal de liberdade:

Foram os primeiros a liquidar o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e dos humanistas, porque sabem que a “liberdade, que só pode ser adquirida neste mundo com mil sacrifícios, quer ser desfrutada enquanto durem, em toda a sua plenitude e sem qualquer cálculo pragmático.” (BENJAMIN, 1994, p.32).

Além da influência das teses freudianas o Surrealismo também se

balizou na filosofia de Nietzsche29 no que se refere a postura crítica diante da

vida, na procura pela libertação do homem da alienação imposta socialmente.

Para Breton tudo é válido para pôr fim às concepções tradicionais da ética, da

moral e dos preceitos religiosos. As idéias do filósofo estimularam a

criatividade e as manifestações espontâneas (BRAUNE, 2000, p.25).

29 Fernando Braune faz referência ao livro Assim falou Zaratustra e cita uma fala representativa do movimento Surrealista de Zaratusta em que estimula o indivíduo a falar, cantar e dançar. E o importante é o „embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontade de viver.‟. Braune compreende que nessa fala estão implícitos o estímulo à criação e as manifestações espontâneas (BRAUNE, 2000).

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No contexto surrealista, a fotografia foi vista como uma estética capaz de

romper com as tradições artísticas do passado. Afinal, a priori, ela não estava

compromissada com os cânones da arte e questionava o inquestionável,

fazendo emergir um novo olhar sobre o mundo. Logo, a linguagem fotográfica

ajustava-se bem nas concepções e idéias do Surrealismo.

Braune destaca que a fotografia apesar de ser uma representação da

realidade também está habilitada a manifestar o inconsciente por meio dos

acidentes fotográficos, ou seja, pelo resultado não esperado do ato fotográfico, o

acaso. Para se obter uma fotografia, por mais perfeita que ela seja, é preciso no

ato, por um milésimo de segundo, uma mínima fração de tempo, não ver; os

olhos ficam em completa escuridão30 e esse momento é visto por Braune como o

instante no qual tudo é inconsciente. Assim, a oscilação entre inconsciente e

realidade torna a fotografia ajustável aos preceitos do Surrealismo e às noções

de automatismo do movimento. Além disso, a técnica fotográfica faz uso da

deturpação do real - por meio de zoom, recortes, distorções, etc - e sua imagem

não corresponde ao olhar, por isso, estará sempre distorcendo a realidade e

proporcionando seu questionamento.

Man Ray, com seus fotogramas serviu-se de papéis fotográficos e da luz

para produzir imagens sem a máquina fotográfica. Foi com Man Ray que o

material fotográfico (papéis sensíveis e luz) passou a ser visto como material

artístico. Ademais, suas fotografias estabeleceram diferentes realidades aos

objetos e corpos, apoiadas pelos princípios31 da colagem/montagem do

movimento.

Outra célebre obra do Surrealismo é o livro Nadja de Breton no qual

fotografias da cidade de Paris são acompanhadas das narrativas do autor.

Imagens documentais da capital francesa são usadas para suscitar, por meio do

30 Ao fotografar o obturador a máquina aciona o movimento dos espelhos e é nesse momento que os olhos enfrentam a escuridão. 31 As colagens e montagens surrealistas, e em destaque as de Max Ernst, estabeleciam relações diferentes entre os objetos e seres, alterando os conceitos pré-estabelecidos: “a realidade do encontro entre objetos, estabelecida por uma montagem, encerra o seu caráter verdadeiro só e somente só enquanto esta durar, isto é, em outra situação, em outra montagem, esses mesmos objetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo, assim, identidades diferentes.” (BRAUNE, 2000, p.40).

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texto, “uma aproximação entre o devaneio e a realidade” (VINHOSA, 2009,

p.114).

Contudo, essa aproximação da estética fotográfica aos preceitos

surrealistas não implica dizer que toda e qualquer fotografia esteja

necessariamente vinculada ao movimento. A proposta de Braune ao relacionar

a fotografia com o Surrealismo é em verdade investigar a surrealidade

impregnada na estética fotográfica. Não é gratuito o livro se intitular O

Surrealismo e estética fotográfica. Evidentemente a escolha por esse movimento

não é ingênua visto que ele proporcionou um novo olhar sobre o uso da

fotografia na arte, como nos exemplos brevemente citados.

Fica fácil, com essa tese de Braune, pôr em paralelo as fotografias de

Chema Madoz ao movimento Surrealista. Afinal, as imagens madozianas são

obtidas por um processo de criação que também necessita passar pelo instante

de escuridão no qual não é possível, por uma fração de segundos, ter controle

sobre o ato de fotografar. Todavia, será que suas imagens poderiam ser

reduzidas apenas a essa fração de tempo?

A comparação com o Surrealismo não é de um todo inábil, porquanto há,

em algumas fotografias pontuais, homenagem ou alusão a certas obras do

movimento Surrealista, como, por exemplo, na imagem 15 com referência direta

a objetos representados por Magritte e na imagem16 faz uma dupla

homenagem a Duchamp e ao cubista Picasso. Além de a própria fotografia ser

uma técnica que apresenta aspectos de surrealidade, o ato fotográfico sozinho

não exprime esteticamente as imagens madozianas.

As imagens acidentais, outras vezes oníricas, tão representativas desse

movimento, não condizem com o processo de criação do fotógrafo, mesmo que

suas imagens de chofre aludam ao universo de sonhos, de irrealidades ou a

paradoxos. Para se obter imagens de sonhos, como almejavam os surrealistas,

mecanismos psíquicos – influenciados pelas teorias freudianas – precisariam ser

ocasionados para afrouxar as amarras do consciente. Essa intenção não acontece

com o fotógrafo espanhol. Para as doutrinas surrealistas não convinha refazer

uma imagem porque ela não corresponde esteticamente ao almejado – como

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algumas vezes ocorre com Madoz

– fazer isso é abrir mão do

inconsciente e seguir com as

amarras do consciente. Portanto,

há um equívoco na crítica de

Molinero ao apontar que as

imagens de Chema Madoz estão

fundamentadas pelo Surrealismo

freudiano e irracional, a fotografia

cuidadosamente trabalhada por

Madoz não carrega consigo essa

irracionalidade nem mesmo a

atitude revolucionária do

movimento, ao contrário

desenvolve uma postura

particular ao seu momento

histórico e a partir de suas

influências culturais propõe um

jogo de linguagem característico

de suas fotografias.

De acordo com relatos do

fotógrafo, antes mesmo de tomar

conhecimento de alguns

movimentos estilísticos, ele estava

interessado em aspectos visuais

dos quadrinhos e outros

elementos da cultura popular.

Após o desenvolvimento de sua

estética, passou a realizar imagens

que faziam certa referência ao

Surrealismo sem, no entanto,

Figura 15

Figura 16

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29

haver uma preocupação formal de seguir diretrizes ou posturas. Seu intuito não

é desenvolver um “novo surrealismo” nem de obter imagens doutrinadas.

Assim se expressa o fotógrafo:

Quando comecei a fazer fotografia tinha uma certa cultura visual, porém creio que se alimentava mais de cartazes, quadrinhos ou capas de disco do que um conhecimento profundo de história da arte32.

Se a crítica vê nas imagens madozianas Surrealismo, isto se deve em parte

pelo fato de suas fotografias apresentarem objetos que se tornaram conhecidos

nas pinturas desse movimento modernista. A obra La trahison des images, como os

dizeres “Ceci n'est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) de Magritte tão

amplamente discutida é rapidamente lembrada na imagem 15. Há entre os dois

artistas algumas similitudes: ambos utilizam objetos do cotidiano e os retiram

de suas banalidades; para Magritte assim como para Madoz há uma

preocupação com os jogos de linguagem, no caso do surrealista: jogos entre a

imagem e palavra compõem o questionamento sobre a representação e o real.

Para Madoz a fotografia é entendida como uma linguagem muito além do

aparato técnico, ela é uma linguagem com a qual se questiona o real e a si

mesma. Não é à toa seu processo de criação das imagens necessita não apenas

da máquina fotográfica como também de desenhos, criação de objetos, etc.

Além disso, ambos usam da conexão entre um objeto imaginário e outro objeto

existente para evocar estranheza no familiar. Como na imagem do porta-queijo

o qual faz referência direta a Magritte (figuras 18 e 19): o próprio objeto está

fatiado aludindo ao queijo. Por esse motivo também, o crítico Fernando Castro

relata a tradição do objeto surrealista nas fotografias de Chema Madoz.

É importante observar que Magritte, assim como outros artistas

surrealistas, apresenta uma singularidade estilística em relação ao movimento.

O Surrealismo em si é bastante heterogêneo. Rosalind Krauss constatou33 que as

32 Tradução livre: “[...] Cuando comencé a hacer fotografías tenía ya una cierta cultura visual, pero creo que se alimentaba más de carteles, cómics o portadas de discos que de un conocimiento profundo de la historia del arte.”. (MADOZ, 2003, p. 28). 33 As contradições de Breton percebidas pela autora são debatidas no texto Fotografia e Surrealismo e estão focadas nas distinções entre escrita e visão, percepção e representação. Para

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30

tentativas de Breton de doutrinar o

movimento não foram concretizadas,

pois no cerne de seus manifestos há

contradições que o impedem de

construir uma explanação clara sobre o

movimento, tornando complexa e

imprecisa a definição do Surrealismo.

Portanto, relacionar em alguns aspectos

as imagens madozianas às obras de

Magritte não é torná-las surrealistas,

mas sim apontar que algumas se

referenciam a obras de artistas desse

período.

Essa citação modernista é posta

em dúvida em fotografias com aspectos

mais gráficos, como no caso da imagem

20 em que gotas de água aludem a um

quebra-cabeça ou mesmo na imagem 21

onde Madoz se utiliza de dois elementos

– mármore e corda – para criar um jogo

visual de texturas. Há, dessa maneira,

imagens de Madoz que expressam

despreocupação com estilo ou postura. Por isso, designar o trabalho do

fotógrafo a partir de algumas aproximações estilísticas é um equivoco. A

postura dos integrantes do Surrealismo não condiz com as do fotógrafo que, ao

contrário do Movimento, não está interessado propor rompimento com as

convenções sociais e políticas.

ela Breton não esclarece suas escolhas: ora escolhe a escrita em detrimento da visão ora o contrário. Durante o Movimento Surrealista Breton vai construindo um discurso contraditório sem conseguir definir com clareza quais dos meios está mais próximo do inconsciente, se a visão ou a escrita. (Krauss, 2002)

Figura 17

Figura 18: Renée Magritte. La trahison des images. 1928-29

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31

Molinero considera ainda que além

desse movimento modernista, as

fotografias de Madoz estão

fundamentadas na Arte Conceitual. Essa

arte está à frente historicamente do

Surrealismo, surgindo na década de 1960.

Os artistas desse período não se

intitulavam pintores ou escultores,

fabricavam a chamada arte conceito: “A

arte conceitual é um tipo de arte na qual o

material é linguagem.” (WOOD, 2002,

p.8). Para a arte conceitual fazia-se necessário abolir a apreciação “física” da

obra e a expressividade e converter a materialidade da obra em um conceito.

Quando o crítico baliza as imagens

de Madoz nesses dois estilos está

recortando características na tentativa de

construir uma análise que defina o estilo do

fotógrafo. Todavia, essa busca incansável

por um enquadramento estilístico perde de

vista outros elementos de sua fotografia. Na

Arte Conceitual, por exemplo, a fotografia

não era usada como um meio expressivo da

arte, mas sim como uma técnica para

romper com a materialidade, usando a

fotografia pelo olhar documental, sem se

preocupar com a técnica ou as

particularidades do fotográfico. Madoz não faz uso da fotografia como

ferramenta para documentar seus objetos. A linguagem fotográfica é pensada e

vivida muito antes do próprio ato, o objetivo do fotógrafo é produzir imagem.

Ademais, o fotógrafo não se baliza apenas no conceito, na idéia. Esse conceito

(imagético ou não) é desencadeador para a concretização da imagem e trabalha

Figura 19: Renée Magritte. Ceci est un morceau de fromage. 1963-64

Figura 20

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32

em conjunto com ela, sem hierarquizar ou suplantar um elemento pelo outro. Se

a obra de Madoz se aproxima da de Magritte, do Surrealismo ou da Arte

Conceitual em alguns aspectos, por outro ela vai se distanciar dessas referências

para engendrar um universo poético próprio. Afinal, o uso da linguagem

fotográfica é capital para a definição de sua poética.

O desconforto de Chema Madoz com a crítica “estilizadora” das

fotografias é percebido em seus relatos:

[...] Creio que também incorporo códigos que foram utilizados em outros movimentos, porém o que acontece é que me custa muito definir onde encaixar meu trabalho. Não poderia classificar como um trabalho conceitual, porque há uma série de componentes que não são parte dessa tendência, apesar de que é próxima a ela no uso de alguns recursos (...). Sempre compreendi [meu trabalho] como terra de ninguém, bebendo de diferentes fontes e cada vez que colocam etiquetas me acomete a sensação de que se perdem muitas coisas.34

Essas críticas que procuram

estabelecer e identificar estilos nos

artistas são reflexo da crise das

vanguardas nas décadas de 60 e 70 do

século XX. As críticas acostumadas à

facilidade de leitura das obras do

período modernista e da identificação

dos ismos característicos de cada

movimento engessaram o olhar sobre

a arte atual, contemporânea que

apresenta identidades cada vez menos

fixas e mais híbridas. Há uma

necessidade do público e da crítica em

34Tradução livre: “[...] Creo que también incorporo claves que se han utilizado en otros movimientos, pero sucede que me cuesta muchísimo definir dónde encaja mi trabajo. No lo podría classificar como un trabajo conceptual, porque hay una serie de componenetes que no formam parte de esa tendência, aunque es cercano a ela en el uso de algunos recursos.(...) Siempre lo he percibido un poco en tierra de nadie, bebiendo de diferentes fuentes, y cada vez que le ponen una etiqueta me asalta la sensación de que se quedan fuera muchas cosas.” (MADOZ, 2003, p.28-29).

Figura 21

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33

geral de identificar padrões, reconhecer e designar com precisão as produções

artísticas da atualidade. O artista contemporâneo age de maneira inversa ao

período modernista e, em vez de usar uma única referência, mistura diferentes

repertórios e dilui as fronteiras entre os diversos materiais (COCCHIARALE,

2006, p.217).

O fazer arte não pode ser mais enquadrado nos olhares modernizantes,

pois está em trânsito contínuo entre as diversas formas expressivas e

identitárias. Isso não significa negar as lições do período modernista, mas sim

dizer que o artista, no caso Madoz, se utiliza de diferentes fontes, movimentos

ou estéticas, sem priorizar e sem abdicar das indagações a respeito da

fotografia.

Assim, a crítica assume um olhar objetivo, distanciado e

demasiadamente cientificista ao tentar distinguir uma determinada estética ou

estilo nas imagens madozianas. Esse olhar historiográfico provoca a perda de

elementos particulares de sua poética. É preciso entender que Madoz constrói

as imagens sem se preocupar com normatizações ou regras. Ele procura apenas

dialogar ou, em algumas imagens pontuais, incorporar aspectos de movimentos

estéticos da história da arte, como o Surralismo, mas sempre mantendo um

olhar diferenciado por meio do uso da linguagem fotográfica.

Além disso, a procura por uma estética que explique as fotografias de

Chema Madoz é provocada por um olhar sobre o objeto, renunciando o

fotográfico. Tanto Molinero - com sua associação à Arte Conceitual e

Surrealismo - como Castro - com a referência dos objetos surrealistas - parecem

se esquecer da fotografia e de suas particularidades. Esse apego à coisa

fotografada é resultado de uma tradição histórica do uso da fotografia na arte

como documento, ou seja, a fotografia tende a ser vista no campo da arte como

um meio para mostrar a arte, para registrá-la.

A fotografia foi incorporada no meio artístico como uma linguagem

expressiva, mas as críticas feitas às imagens do fotógrafo espanhol tendem a

cair no olhar modernizante devido a seu singular método de produção da

imagem: em um momento, ele constrói objeto, em outro fotografa. Se entendida

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34

a partir do objeto, a fotografia de Madoz torna-se documento, porém a

compreensão dessas etapas deve ser feita por um olhar complementar: o objeto

é fotografia não concretizada; ele é uma imagem antes de ser objeto. Logo, a

fotografia não é meio para se ver o objeto, mas sim o objeto torna-se um veículo

para se concretizar a imagem.

Esse entendimento sobre as fotografias de Chema Madoz deve-se

também ao que Rouillé (2009) identificou como uma resistência à

desmaterialização da arte, cada vez mais intensa com o advento da fotografia

digital. A fotografia madoziana deve ser entendida como tal: como fotografia,

como imagem. Caso se observe, com cuidado, seus objetos tais como são vistos,

eles só são concretizados como imagem final quando flagrados por

determinado ângulo ou iluminação escolhidos pelo fotógrafo. A fotografia da

escada sobre o espelho é exemplo disso; percebe-se que só é possível visualizar

uma janela por causa da posição e lugar em que a fotografia foi tirada. Sem a

escolha do fotógrafo, essa imagem não se concretizaria e nem se realizaria como

conceito.

Por fim, há na fotografia de Chema Madoz a ressonância de diversos

movimentos históricos, de diversas estéticas, assim como há eco das fotografias

publicitárias, dos quadrinhos, das capas de disco. As imagens são um acúmulo

de informações visuais, culturais e ao mesmo tempo a expressão de uma

poética particular do fotógrafo.

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35

O passo entre a realidade que é

fotografada na medida em que

nos parece bonita e a realidade

que nos parece bonita na medida

em que foi fotografada é

curtíssimo.

A aventura de um fotógrafo –

Ítalo Calvino

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36

3. A fotografia: teorias e reflexões

Para se desenvolver um olhar que atravesse o visível e, portanto, para ir

além do olhar exclusivo sobre a coisa fotografada o escopo principal desse

Capítulo é desconstruir barreiras para posteriormente refazer um caminho

particular de reflexão sobre as fotografias de Chema Madoz.

O primeiro obstáculo é desfazer o uso recorrente das teorias ontológicas

para discutir a fotografia. Há certa tendência em reduzir as discussões às noções

indiciais, ou seja, em repetir o discurso de rastro da realidade, sujeitando a

fotografia apenas à coisa fotografada e ao seu aparato tecnológico. Desfeito

isso, o pensamento se iluminará sobre as imagens madozianas. Nesse caso, os

tijolos desse muro construído com Roland Barthes35 e Dubois36, os quais

estudaram a fotografia como objeto teórico de essência a ser desvelada, serão

realinhados a partir dos estudos de André Rouillé37 e sua defesa por um

fotográfico para além dos olhares ontológicos.

É mister ressaltar que não será negada a tese da conexão física com a

realidade como essência do fotográfico - até porque este elemento é intrínseco a

ela - mas salientar que ela não é suficientemente esclarecedora nas discussões

sobre a fotografia e em especial aquelas produzidas pelo fotógrafo espanhol.

Delineadas as limitações, é imprescindível o debate sobre a relação da

fotografia com a realidade para dar continuidade às reflexões anteriores. Neste

item, o intuito é esclarecer como o observador compreende a realidade na

imagem fotográfica e, nesse sentido, desfazer a noção habitual de recorte do

real, propondo o uso de conceitos como o virtual e o atual emprestados de

35 BARTHES, Roland. A câmera clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 36 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993. 37 ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: SENAC, 2009.

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37

Pierre Lévy38. Contudo, a intenção não é aprofundar as teorias sobre virtual

versus atual, mas sim de alumiar a potência da imagem.

Em seguida, para finalizar as bases teóricas da dissertação, será

desenvolvida a compreensão sobre o tempo fotográfico por meio das

argumentações e estudos de Mauricio Lissovsky39. As discussões sobre o

instantâneo e seu estudo sobre o pré-fotográfico permitirão o entendimento

mais completo sobre a construção das imagens madozianas para além de seus

objetos. Ademais, as noções de imagem-tempo elaboradas por Deleuze40

complementarão o debate sobre o tema ao introduzir o olhar paradoxal sobre as

imagens.

3.1. A questão indicial e suas limitações

O universo madoziano é feito de imagens, um número infinito delas. Ao

observar as fotografias de Chema Madoz o pensamento procura normatizar e

classificar essas imagens. O impulso é visualizar apenas o que está explicito ao

olho, apontar e dizer: “eis aqui...”; “isto é...”. Como numa tentativa de descrever

aquilo que está sendo visto. É a busca pela descrição da coisa fotografada, do

referente. Eis, portanto, o questionamento que norteou os estudos da fotografia:

terá o referente esse domínio absoluto na imagem? Será preciso, portanto,

esclarecer e refletir sobre a teoria do referente e as discussões construídas por

Roland Barthes e Dubois para melhor compreender esse impulso inicial que a

fotografia de Chema Madoz parece nos proporcionar.

Dubois esclareceu em o Ato Fotográfico, a partir das teorias Semióticas de

Peirce, que a compreensão da fotografia fez um trajeto da verossimilhança,

passando pelo símbolo ao índice. No princípio do surgimento da técnica, a foto

era compreendida como uma imitação fiel da realidade enquadrando-se na

38 LÉVY, Pierre. O que é virtual?. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed.34, 1996. 39 LISSOVSKY, Maurício. A máquina de esperar: a origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. 40 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34, 1992

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38

perspectiva de ícone, ou seja, um signo que remete ao objeto ausente apenas por

causa de sua similitude, a fotografia nesse caso seria espelho do real. Em

seguida, na tentativa de desconstruir esse discurso da verossimilhança passou-

se a questionar essa suposta característica para compreender a fotografia apenas

como uma espécie de ilusionismo ou efeito de espelho do real. Então, nesse

caso, ela seria da ordem do símbolo, ou seja, um “signo que remete ao objeto que

ele denota em razão de uma lei [...] que determina a interpretação do símbolo

em referência a esse objeto” (SOULAGE, 2010, p.91). Assim, na tentativa de

desconstruir o entendimento da fotografia pela verossimilhança, buscou-se

demonstrar que a foto não é ingênua, mas sim um instrumento de interpretação

e de transformação do real.

Essas compreensões acarretam duas maneiras de receber a foto: a

interpretação icônica em que apenas o referente é visto e a simbólica com o foco

apenas no observador o qual está livre para atribuir qualquer sentido à imagem.

Geralmente o ícone é reivindicado para fotografias documentais ou fotografias

de famílias como no caso das fotos discutidas por Barthes. O discurso sobre a

fotografia a partir do símbolo é usado para relacionar aquelas fotos que

gostariam de se originar na arte.

Após descrever esses dois aspectos Dubois sugere que a fotografia possui

algo particular em seu modo de representação e que tanto a visão de “espelho

do real” (DUBOIS, 1993, p.44) como a de “transformação do real” (op.cit) não

dão conta de imagem fotográfica. Ademais, Dubois rediscute os argumentos de

Roland Barthes41 para iniciar sua tese de que a fotografia é rastro de um real. Ao

fazer isso, Dubois critica que essa linguagem vista pelo olhar barthesiano

proporciona um excesso de “transferência da realidade” (op.cit.) ou do “culto

da referência pela referência” (op. cit.). No intuito de expandir esse

pensamento, o autor de O ato fotográfico se apropria da noção de índice da

Semiótica. A fotografia seria o traço do real, ou seja, para a foto existir é preciso

haver uma conexão física, uma impressão luminosa, portanto, ela não deverá

41 Barthes em a Câmera Clara propõe uma análise da fotografia a partir do seu referente, contudo seus argumentos se limitam a este. E por isso construiu uma soberania do espectador e um culto do referente pelo referente.

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necessariamente se assemelhar ao objeto fotografado. Com essa concepção

indicial da fotografia, o referente não está tão claro como na visão icônica da

foto, deixando um mistério em torno do objeto. Expande-se, então, a noção de

aderência com o referente.

Assim, a categoria de signo indicial definido por Peirce pertence à ordem

da impressão, do traço, da marca e do registro (ibidem p.61). Isso significa que

por um determinado tempo a foto esteve em conexão com o real (contigüidade

física). Essa relação com o referente trás à tona não uma reprodução do real,

mas a indiscutível existência de um referente, de um real. Contudo, o intuito de

Dubois não foi fazer uma análise semiótica precisa, mas sim se apropriar de

certos conceitos para melhor discutir a respeito da fotografia.

Ele constata que a contigüidade física proporciona à fotografia o atestado

de existência; portanto não é preciso fotografar para haver fotografia. O maior

exemplo disso são as célebres Raygrafias (fotogramas) de Man Ray que

sobrepunha objetos em papeis fotográficos, expondo-os à luz. Logo, o

fotograma é a literalidade do ideário indicial refletido por Dubois.

Se de fato a imagem fotográfica é impressão física de um referente único, isso que dizer, por outro lado, que, no momento em que nos encontramos diante de uma fotografia, esta só pode remeter à existência do objeto do qual procede. (DUBOIS, 2008, p.73)

Dessa maneira, antes das fotografias serem representações: elas são

impressões luminosas. Elas são rastro de algo que existiu. Antes de ser a

fotografia de um espelho e escada (figura 14)42, a imagem é rastro de seu

referente – aqueles objetos. Aquela escada existiu. E essa é a primeira reflexão.

A escada esteve em um instante qualquer presente para poder se mostrar diante

dos olhos na fotografia madoziana. Ela esteve ali.

Fica claro que o princípio de atestação proporciona a fotografia

indiscutível conexão com uma determinada realidade e como conseqüência a

este há o princípio de designação, ou seja, o índice não determina, ele aponta.

Peirce esclarece: “O índice não afirma; só diz: Ali.” (apud Dubois, p. 76). É a

42 Ver imagem na página 20.

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40

retomada dos argumentos barthesianos feita por Dubois, mas esse retorno é

debatido separando o sentido da referência. Ele constata que o discurso de

Roland Barthes em seu livro A Câmera Clara é uma soberania do espectador na

qual o “eu” do observador impõe a fotografia a aderência do referente, ou seja,

a foto reflete “a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva

sem a qual não haveria fotografia” (ROUILLE, 2009, p.70). O que importa, para

Barthes, ao olhar a imagem é aquilo que está aderido nela. O ato fotográfico

usado para mostrar esses elementos é esquecido. “A fotografia é sempre apenas

um canto alternado de „olhem‟, „olhe‟, „eis aqui‟; ela aponta com o dedo um

certo vis-à-vis e não pode sair dessa pura linguagem dêictica.” (BARTHES,

1984, p.14).

Barthes nos aponta: “não importa o que ela mostre e qualquer que seja

sua maneira, uma foto é sempre invisível, não é ela que vemos.” (ibidem, p18-

19). E, por isso, o retorno ao referente é inevitável. O desejo ao olhar as

fotografias é reconhecê-las como simples analogias, como recorte banal da

realidade. Mas, será a fotografia madoziana apenas o índice do referente? Será a

fotografia apenas um meio catalogador de objetos?

No entanto, ao retomar as indagações iniciais surge o pensamento: as

fotografias de Madoz não podem apenas serem descritas. Elas resistem, naquilo

que nos apresentam, tanto à teoria do índice – “isto foi” – quanto à do ícone –

“isto é aquilo” –, porque, sendo traço analógico, se comportam paradoxalmente

como imagens autônomas emanando sentidos sempre atuais. O primeiro

impulso de descrever a imagem ou de associá-la como atestação de uma

realidade não pode ser definido como sentido e não é capaz de alcançar a

complexidade do trabalho artístico de Chema Madoz.

Se a fatalidade de a fotografia estar necessariamente colada ao referente

impede de destituí-la desses objetos, o raciocínio seria de que não há foto sem

objetos ou sem alguém, sendo, então, Madoz passivo aos ditames da máquina

fotográfica. É pelo viés do Spectator, ignorando o Operator, que Barthes aparenta

defender a “onipotência” do ato luminoso que imprime no papel o referente.

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41

Parecia-me que a Fotografia do Spectator descendia essencialmente, se é possível assim dizer, da revelação química do objeto (cujos raios recebo com atraso) e que a Fotografia do Operator estava ligada, ao contrário, à visão recortada pelo buraco de fechadura da câmera escura. No entanto, dessa emoção (ou dessa essência) eu não podia falar, na medida em que nunca a conheci; não podia unir-me à corte daqueles que tratam da Foto-segundo-o-Fotógrafo. Eu tinha a minha disposição apenas duas experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha. (BARTHES, 1984, p.21-22).

No entanto, as indagações sobre as fotografias não devem ser reduzidas

apenas aos objetos nelas representados, esclarece Rouillé, porque, dessa forma,

não será vista a imagem, mas “a coisa necessariamente real que foi colocada

diante da objetiva [...]” (2009, p.70). Essa noção empirista pretende reduzir a

imagem em uma “metafísica da existência”. Mesmo as fotografias banais, que

pretendem despretenciosamente fazer um recorte objetivo do real, são capazes

de emanar sentidos muito além do referente.

Ademais, Dubois faz uma tentativa de seguir um caminho diverso ao de

Barthes quando esclarece os cuidados com o aspecto indicial para que a

referência não se transforme em barreira para a compreensão do sentido. Não

se deve confundir a contigüidade física da fotografia com o referente, com o seu

sentido: “O índice pára com o „isso foi‟. Não o preenche com um „isso quer

dizer‟. A força referencial não se confunde com qualquer poder de verdade.”

(DUBOIS, 2008, p. 85). Assim, o autor sustenta a ontologia do fotográfico.

Contudo, Rouillé faz uma critica a Dubois ao perceber que apesar da

pretensão de sair do culto do referente pelo referente, esse cai em uma

abordagem excessivamente ontológica, reduzindo a complexidade da fotografia

à sua característica indicial, ao rastro da existência prévia das coisas, como se as

imagens fossem passivas a esse registro do vestígio. Por isso, Rouillé acredita

que a fotografia perde com essa perspectiva suas particularidades e acaba

convertida apenas ao funcionamento do aparato técnico, com afirma:

Assim, „a‟ fotografia tem seu paradigma construído a partir de seu grau zero, de seu princípio técnico, e assimilado como um simples automatismo; ao inverso do pensamento em relação à

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pintura, que geralmente se alimenta da infinita singularidade das obras.(ROUILLÉ, 2009, p. 190)

Não obstante, Dubois ter conseguido libertar a fotografia da relação

mimética com o real, o autor não impediu que a mesma fosse reduzida à sua

característica química de rastro luminoso em detrimento do processo criativo.

Afinal, ao eleger o fotograma43 como expressão mais relevante da ontologia do

fotográfico, afastou qualquer relação de analogia da fotografia. Entretanto, o

que aconteceu com o processo criativo para elaborar a imagem? A visão

humana foi deixada de lado? Não haverá no processo criativo de um fotógrafo

decisões e escolhas junto à máquina fotográfica que permitem a criação de

certas imagens? Será que as imagens não são capazes de ir além do visível, do

referente? Dessa maneira, a teoria indicial reduz a fotografia aos seus elementos

tecnicistas afastando-a dos contextos, códigos culturais e da nítida existência de

um processo criador ativo. Assim, o citado autor mantém as reflexões no

patamar elementar do suporte e daquilo que compõe a imagem para alcançar

uma suposta categoria universal, como se fotografia fosse imune à história e às

transformações culturais.

Com efeito, a foto não é janela do real e a máquina fotográfica não é um

prolongamento do olho. Ela, a máquina, não passa pelas mesmas

transformações ópticas, químicas ou nervosas. E nem é atingida pela luz da

mesma maneira (SOULAGES, 2010). Ela reduz as quatro dimensões em uma

bidimensionalidade e, por isso, a imagem não é recorte do real; ela é a

representação desses objetos. A constatação do referente na imagem é apenas

um golpe de vista sobre a superfície. O que vejo não é o referente, mas sim

“conceitos relativos ao mundo” (FLUSSER, 2002, p.15).

Ainda que a contigüidade física da fotografia seja indiscutível não há

porque reduzir toda sua complexidade apenas a essa questão tão elementar. É

preciso levar em conta a expressão, o processo criativo e o contexto em torno

dessa prática, dessa linguagem. Ao hierarquizar o índice Dubois furta aspectos

43 “Na realidade o fotograma é uma impressão luminosa não mimética, obtida em câmera escura, sem dispositivo óptico, por intermédio de objetos e de ação direta da luz sobre uma folha de papel sensível.” (ROUILLÉ, 2009, p.192)

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43

da fotografia, como a questão temporal, e constrói a essência da linguagem por

meio de um olhar parcial sobre ela. Rouillé explica:

Na realidade, a fotografia é, ao mesmo tempo e sempre, ciência e arte, registro e enunciado, índice e ícone, referência e composição, aqui e lá. Atual e virtual, documento e expressão, função e sensação. (2009, p.197)

Logo, o mais adequado é pensar a fotografia como um conjunto, sem

excluir qualquer aspecto, refletindo a linguagem por meio do processo de

criação, pelo seu resultado, suas implicações estéticas, sociais, materiais e

principalmente sem separar a técnica, de seu uso e produto final.

Ademais, a atestação de existência característica intrínseca da fotografia

não pode ser confundida com o sentido, pois seus códigos não são respostas,

apenas estabelecem uma proximidade com o real, uma indicação do que

poderia ter sido. Há uma tensão entre o que se vê e não se toca e uma conexão

não apenas com seu referente como também com o passado. Não se pode

apenas levar em conta aquilo que é observado. Existe no processo fotográfico

um encontro entre a imagem e a coisa fotografada. Para isso escolhas são

tomadas no processo fotográfico que permitem definir as condições de contato

desse referente e como essa imagem se apresentará ao final.

[...] a fotografia não representa exatamente uma coisa preexistente, ela produz uma imagem no decorrer de um processo que coloca a coisa em contato, e em variações, com outros elementos materiais e imateriais. Por outro lado, isso transfere a fotografia do domínio das realizações para o das atualizações, e do domínio das substâncias para o dos eventos. (ROUILLE, 2009, p.73)

Quando Dubois se utiliza da tríplice divisão peirciana acaba contentando-

se em caracterizar a fotografia pela sua indicação de existência. Em vista disto, a

questão indicial produz outra redução inapropriada a ela: a divisão metafísica

de que ela ou representa as coisas do mundo ou é atestação de existência, ou

seja, intercalando entre a essência e existência. Deste modo, em vez de ampliar

suas possibilidades, a fotografia se torna presa do registro das coisas do mundo,

reproduzindo um real dado.

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44

Na fotografia, a imagem pode se assemelhar com o referente ou ser

distinta dele. A imagem não está exclusivamente ancorada nas coisas; ao

contrário, ela oscila entre referência e a vivência do fotógrafo, pois ela não está

imune ao ponto de vista do autor e à sua interferência no processo de criação.

Elementos pré-fotográficos compõem a imagem tais como: escolha de ângulos,

objetos, luz, composição visual/estética, além de tantos outros. Um mesmo

referente pode ter abordagens e apresentações distintas. E, por isso, a imagem,

por mais semelhante ao seu referente (ou transparente como afirma Barthes)

não está imune a um processo de expressão, de uma interferência direta do

fotógrafo.

O processo criador das imagens madozianas - desenho, construção do

objeto, escolha do cenário, etc - é exemplo de que a imagem não pode ser

reduzida apenas ao seu referente, nem ao seu vestígio. Madoz não está passivo

no processo de obtenção da imagem, ao contrário, está presente em todas as

etapas para a obtenção da fotografia. E isso resulta em que imagens de aparente

objetividade - quase retratos catalogadores de coisa - sejam imbuídas de

intenções, questionando o visível e a noção de rastro do real. A compreensão

dessas fotografias não pode ser reduzida à atestação de existência ou à

designação de coisas, pois as imagens madozianas atravessam essa noção

ontológica da linguagem para se tornar um mar de indagações e dúvidas.

Logo, a imagem produzida pelo ato fotográfico não está ancorada apenas

nas coisas - das quais carrega o vestígio - como também nas percepções e

experiências do fotógrafo. Deste modo, as imagens fotográficas carregam

consigo o rastro de objetos e entidades não materiais, não explícitas ao olho.

Elas expressam uma indissociável intimidade entre o autor, o referente e o

observador. Será preciso compreender essas imagens como a porção visível de

uma possível invisibilidade: um diálogo entre o visto, o não-visto e o

expressado.

A imagem é, então, não aquilo que se vê, mas antes de tudo o que se

aloja no dialogismo entre a fotografia, o autor e o observador (o outro). E essa

perspectiva de diálogo a liberta da suposta limitação indicial e icônica.

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45

3.2. O real e a fotografia.

Como visto, apesar de indiscutível característica indicial da fotografia,

essa concepção a priva de qualquer discussão sobre as escolhas estéticas do

fotógrafo. O pensamento ontológico impõe à fotografia um ciclo vicioso de

reflexão entre a representação das coisas do mundo e do testemunho de sua

existência. E essa compreensão binária é insuficiente para sublinhar a

complexidade da relação privilegiada que a fotografia estabelece com a

realidade.

A imagem fotográfica por mais transparente não possui uma automação

em reproduzir a realidade; ao contrário, essa máscara, imposta pelas noções

indiciais e icônicas, esconde a capacidade da imagem em produzir novos

mundos e diferentes pontos de vistas. Fotografar uma casa, por exemplo, não é

o mesmo que reproduzir suas paredes, seu espaço ou cenas. A casa existe

materialmente, é possível percorrer seus ambientes, mas quando vemos a

fotografia de uma casa estamos diante de uma imagem e não da realidade

materializada. Cada percurso que o observador/fotógrafo faz ao redor ou pela

casa proporciona diferentes olhares capazes de reconstruir a cada ponto de

vista diferentes fotografias; criam-se visadas efêmeras e infinitas imagens de

uma mesma casa real, materialmente existente. Dessa maneira, um mesmo

referente pode produzir, a partir de infinitos outros olhares, imagens

completamente diversas entre si.

A fotografia, portanto, pode apresentar uma aparência perceptível ao

real concreto, possuir uma conexão física com o real, mas é também imagem e,

apesar do status de documento que ela carrega, não tem a competência de

recriar o real concreto, ao contrário age de maneira paradoxal e atualiza um

“real virtual”. Por conseguinte, poderíamos dizer que a fotografia possui

diferentes realidades e é uma potência do real, mas sem nunca chegar a se

apresentar concretamente como tal. Ela se opõe ao presente concreto. Existe

uma lacuna entre o passado possível (a imagem) e o presente (o real palpável).

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E, como tal, pode ser compreendida a partir da concepção filosófica do virtual.

Essa concepção é um olhar diferenciado da relação da fotografia com o real.

De acordo com Lèvy (1998), o virtual é essencial na compreensão da

maneira de ser dos objetos e, em especial, das linguagens e obras, pois ele é

capaz de explicar diversas realidades. Nesse caso a noção apresentada por Lèvy

está em oposição ao senso comum de virtual definido como ausência de

existência, associado ao real, às coisas tangíveis. A proposta do o autor tem

como derivação o latim : virtualis, que provêem de virtus, significando força,

potência. Nessa conjuntura, o autor compreende que o virtual existe em

potência e não em ato; por isso, tem como pólo o atual e não o real.

O virtual é como um complexo problemático, o nó de tendência ou forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer e que chama um processo de resolução: a atualização. (ibidem, p.16)

Ao exemplificar o virtual, Lèvy demonstra o problema da semente que

busca se fazer brotar em árvore. A semente aqui é o problema e a árvore sua

busca por solucionar o problema. Mesmo a árvore não estando materialmente

presente, ela está presente potencialmente na semente. Isso significa dizer que a

árvore está virtualmente presente na semente que será atualizada durante sua

germinação. O virtual, então, não irá se opor ao real nem o substitui, mas

apenas busca sua atualização.

Assim, a atualização é a solução de um determinado problema. Por outro

lado, Lèvy compreende que existe outra perspectiva do virtual, não apenas uma

maneira de ser, mas sim, compreendendo sua dinâmica: a virtualização. Essa é

entendida como um estágio da atualização. A virtualização é o percurso do

atual ao virtual, o movimento inverso do exemplo dado. A virtualização

consiste então em:

(...) uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma solução), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. (LÈVY, 1998, p.17)

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47

Tornar o virtual uma dinâmica, ou seja, virtualizar, significa buscar uma

questão geral com a qual uma entidade se relaciona, fazendo-a ir em direção a

uma interrogação. Ainda, de acordo com Lèvy, a virtualização necessariamente

questiona conceitos como o da identidade clássica e o do pensamento baseado

em definições.

Logo, a relação da fotografia não está com o real e sim com o atual, ou

seja, ela não se define a partir das coisas materiais e palpáveis, mas sim com

aquilo que “existe apenas em potência e não em ato” (ROUILLÉ, 2009, p.200): o

virtual. As fotografias atualizam potências.

Ora, uma tal imagem fotográfica não é uma simples impressão de coisas materiais, mas sim a atualização de uma relação fotográfica (imaterial) com um estado de coisas (material): a passagem de um infinito-virtual para um finito-atual. (ibidem, p.201)

Assim, quando o fotógrafo faz escolhas de ponto de vista, ângulos ou

cortes, por exemplo, não está fotografando o real, “nem mesmo no real, porém

com o real.” (ibidem, p.202). E a imagem fotográfica não se reporta unicamente

aos objetos e não é o resultado do estado das coisas por mais direta que ela

possa parecer.

É necessário frisar que virtual não é o papel fotográfico, mas, sim, o que

está representado nele. O papel fotográfico como objeto é real, concreto. No

entanto, a imagem que se vê nele é a potência de algo, é virtual. O que é visto na

imagem existe, mas apenas no plano da idéia44. A imagem não é simples

reprodutora do real.

Essa noção é importante por desconstruir o imaginário social da

fotografia como recorte do real. E apesar da sua conexão com a noção de

virtual/atual e das enumeradas limitações que a noção indicial e icônica impõe

à imagem, no imaginário social a fotografia ainda desperta diferente tipos de

percepção. Estudiosos como Rouillé não refutaram em contestar a ontologia e o

culto do referente pelo referente e demonstraram as manipulações possíveis que

a imagem fotográfica pode sofrer, mas ela ainda continua sendo vista pela

44 Idéia aqui está sendo dita no sentido dicionarizado, significando pensamento.

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maioria das pessoas como prova irrefutável da realidade. A fotografia parece

ser imune à contestação de seu status de registro da verdade, da realidade.

(FABRIS, 2007)

Historicamente, sabe-se que a máquina fotográfica não é ingênua. Além

da presença do fotógrafo, que estabelece escolhas de luminosidade ou

aproximação, a imagem produzida é fruto de um mecanismo de observação

herdeira de técnicas e práticas históricas. Ela é o avanço tecnológico da câmera

escura45. Isso significa que seu modus operandi segue uma ordenação

predeterminada, resultando em “um ponto de vista particular sobre o mundo”

(SOULAGES, 2010, p.87). O olhar sobre a imagem não equivale ao olhar para o

mundo. Observa-se outro mundo, outra realidade. E as palavras do Orson

Welles são esclarecedoras: “[...] a máquina fotográfica é mais do que uma

máquina de gravar, é um meio pelo qual nos chegam mensagens de um outro

mundo de um mundo que não é nosso e nos conduz ao cerne de um segredo.”

(WELLES, apud. SOULAGE, 2010, p. 88).

Logo, repito, a fotografia não é neutra e sua imagem não é o recorte do

real. E mesmo assim ela é vista pela sociedade como um momento que

aconteceu e o qual o fotógrafo foi capaz de captar. Esse caráter testemunhal é

ainda valorizado mesmo com todas as informações e desconstrução dessa

compreensão. Mesmo com o advento da fotografia digital e dos softwares de

modificação da imagem digital. Ao que parece, a sociedade não consegue

romper com a materialidade do mundo. E essa materialidade inequívoca aos

olhos da maioria das pessoas fica aquém da capacidade da imagem em provir

paradoxos e contradições. Claro que a ingenuidade diante da fotografia não é a

mesma da época do surgimento da tecnologia em que se acreditava estar

copiando a realidade sem o benefício da dúvida. Na atualidade, a sociedade 45 De acordo com Soulages a câmera escura tem: “[...] os princípios que presidem à construção de uma máquina fotográfica – e primeiramente à da câmera escura – estão ligados a uma noção convencional do espaço e da objetividade que foi elaborada antes da invenção da fotografia e à qual os fotógrafos, em sua imensa maioria, não fazem outra coisa a não ser se adaptar. A própria objetiva – cuja „aberrações‟ foram cuidadosamente corrigidas e cujos „erros‟ foram reparados – não é tão objetiva quanto parece: digamos que satisfaz, por sua estrutura e pela imagem ordenada do mundo que permite obter, a um sistema de construção do espaço particularmente familiar, mas já muito antigo e desgastado, ao qual a fotografia teria conferido tardiamente uma inesperada retomada de atualidade.” (2010, p.86).

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com um olhar mais amadurecido na leitura da imagem, coloca em dúvida

aquilo que vê, mas quando se trata de fotografias jornalísticas46 ou de família,

por exemplo, a crença no ideário de recorte da realidade persiste.

No filme One Hour Photo47, ocorre uma reflexão que exemplifica a

discussão: a fotografia faz um caminho de registro do real para o de potência de

um real idealizado. Robin Williams protagoniza o Sr. Parrish, um funcionário

de uma loja de revelação de filmes apaixonado pela fotografia e acima de tudo

por uma perfeita revelação. Sr. Parrish é um solitário e peculiar senhor sem

família ou amigos que vive às custas do parco salário da loja na qual trabalha. A

narração quase épica do personagem levanta discussões como uma pessoa

comum compreende a fotografia. Logo no início do filme, ele descreve como a

sociedade em geral fotografa na tentativa de imortalizar os momentos mais

felizes como casamento ou aniversários. Sr. Parrish sabe da importância que as

fotografias representam e se dedica a seu trabalho na mesma proporção e

respeito que o registro desses momentos representa para as pessoas.

Contudo, há, entre as peculiaridades mostradas no filme sobre a

personalidade do Sr. Parrish, a obsessão pela família Yorkin, eixo narrativo

principal do filme. Regularmente essa família revela suas fotografias na loja e, a

cada rolo de filme revelado, Sr. Parrish faz secretamente uma cópia a mais para

guardar de recordação. Como numa tentativa de superar o isolamento social

em que vive o personagem recria uma família a partir das fotos da família

Yorkin. E, a cada foto revelada, Sr. Parrish experiencia virtualmente os

aniversários, festas e celebrações. Não há dúvidas para ele que as imagens que

coleciona representam uma família feliz e perfeita aos moldes norte americanos.

Em contraponto com a personagem de Sr. Parrish está a Sra. Yorkin. Com

um casamento insatisfeito e com um marido ausente, ela busca nas fotos o

registro de uma família perfeita. As imagens indiretamente lhe permitem seguir

46 Douglas Davis em seu artigo Photography as Culture relata a visão do jornalista sobre o objeto (o assunto) a ser fotografado com o elemento mais importante a ser capturado e em segundo a composição da imagem, isso denota que a clareza do visível para a atitude jornalística é o fundamento da imagem. (1977, p.64) 47 ONE HOUR PHOTO. Direção de Mark Romanek. USA: 20th Century Fox, 2003. DVD (96 min): NTSC, son., color., inglês.

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acreditando no relacionamento com Sr. Yorkin. Em medidas diferentes,

Sr.Parrish e Sra. Yorkin são dois solitários que usam a imagem fotográfica como

um refúgio de suas condições.

Ambos acreditam na veracidade da foto. Contudo, em um dado

momento do filme, Sr. Parrish revela imagens que desfazem a idealização que

criou em relação a essa família: as fotos são do Sr. Yorkin traindo sua mulher. O

mito da família perfeita é desfeito e Sr. Parrish compreende que as imagens por

ele reveladas até aquele instante não correspondiam ao pai e marido perfeitos.

A narração do filme mostra que, em parte, o status da imagem

fotográfica de recorte do real se deve ao desejo de transformar a fotografia em

um baú de memórias afetivas. E um desejo de ter a certeza que o tempo daquela

realidade vivida pode ser capturado. Sr. Parrish, em um dado momento do

filme, diz:

[...] mas essas fotos são a sua vida contra o fluxo do tempo.[...] E se essas fotos têm alguma coisa importante para dizer para as gerações futuras é isso: „eu estive aqui‟; „eu existo‟; „eu era novo‟; „eu era feliz e alguém se importou comigo o suficiente para tirar minha fotografia.48

Assim, compreender a virtualidade extensiva da imagem seria aceitar a

imaterialidade dos momentos e de certa maneira a perda de algo que não mais

se repetirá. Afinal, a fotografia não seria mais uma prova irrefutável do

momento. Essa fala de Sr. Parish traz à tona a ontologia da fotografia

determinada por Barthes e Dubois e a característica de designação: “ele esteve

aqui”. Contudo, pouco a pouco, a narrativa vai desfazendo esses valores. O

filme, então, seguirá o caminho de desconstrução da realidade nas imagens,

antes entendidas como provas de felicidade e harmonia do casal agora revelam

uma situação que não mais as correspondem. Aos poucos Sr. Parish vai

compreender que a fotografia não pode reproduzir o real, apenas de mostrar

uma mera relação de vestígio com ele.

48 Tradução livre: “[...] but these snapshots are their life stands against the flow of time. […] and if these pictures have anything important to say to the future generations, it‟s this: „I was here.‟; „I existed.‟; „I was young.‟; „I was happy and someone cared enough about me in this world to take my picture.‟” (ONE HOUR PHOTO, 2002)

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Ambos os personagens buscavam na fotografia a experiência de uma

vida (virtualmente) perfeita, carregada de uma falsa recordação. O desejo de

controlar a felicidade sobre suas vidas é o que incita um a fotografar e outro a

colecionar secretamente (Sr. Parrish não fotografa, apenas coleciona e organiza)

em uma espécie de auto-ilusão. Aceitar a impossibilidade da fotografia de

reproduzir o real seria a confirmação de uma vida imperfeita e infeliz.

A fotografia, nesse caso, é a atualização de uma vida virtualmente

idealizada. Cada imagem representa a potência de uma vida notável sem

dificuldades, infelicidades ou conflitos. A foto alija a vida real de suas

complexas instâncias. Cada imagem serve para registrar tudo aquilo que

desejamos lembrar e construir uma história que acreditamos ser a verdadeira.

Em One Hour Photo a particularidade está exatamente em confrontar a

visão do imaginário social de fotografia como recorte do real com a realidade

crua da vida. Aos poucos se revela que a foto é mais do que registro/prova do

real ou vestígio dele: ela é antes de tudo imagem potência permeada de

paradoxos. Ao mesmo tempo em que possui vínculo - rastro - com o real, é

também imagem virtual.

Sr. Parrish compreende, enfim, que as fotografias usualmente tiradas

pela maioria das pessoas não correspondem às melhores representações da

realidade. E, por isso, acredita que as coisas,49 aquelas que menos observamos,

são as que melhor representam o sentido da vida.

Mesmo com esse entendimento de que talvez as imagens não

correspondam à realidade, a traição do Sr. Yorkin provoca o rompimento da

imagem idealizada pelo Sr. Parrish e conseqüentemente faz emergir um

conflito: a realidade divergiu com as fotografias de sua coleção. Assim, isso o

impulsiona a mostrar para a Sra. Yorkin, mulher e mãe perfeita, o real

casamento no qual vive. Para a decepção dele, quando Sra. Yorkin é

confrontada com a traição toma uma atitude inesperada: ignora a informação e

continua casada. Pouco a pouco cada idealização projetada a partir das imagens

49 Alguns dos exemplos dado como representação do sentido da vida pelo personagem: band-aid usado, o funcionário desconhecido de um posto de gasolina e a mosca sobre a gelatina.

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52

da família vai sendo desconstruída pela realidade vivida fora da fotografia. A

decisão final do Sr. Parrish é vingar-se da decepção sofrida, proporcionando ao

Sr. Yorkin a tomada de consciência da traição e confrontá-lo com sua mulher.

Em um momento de fragilidade emocional em virtudes das novas

descobertas, Sr. Parrish decide por fim à sua idealização, apagando, de todas as

imagens que coleciona da família, o rosto do Sr. Yorkin, como se virtualmente

fosse capaz de apagar daquela historia um indivíduo que não correspondeu aos

seus anseios. Mesmo com as insinuações da trama, Sr.Parrish não chega a

concretizar seu desejo, apenas procura trazer à tona a realidade vivida pela

família Yorkin.

Isso acontecerá com a mudança de status da personagem principal de

simples observador de fotografias para o de fotógrafo. Em um plano de

vingança, usa o ato de fotografar como se estivesse atirando/disparando50 para

concretizar sua vingança de por fim à sua idealização. Vai ao encontro do Sr.

Yorkin quando este está com sua amante e o obriga a fazer poses sexuais

registrando cada uma delas fotograficamente. O intrigante na situação é que, na

realidade, Sr. Parrish não fotografa, apenas insinua com o disparar do flash o

ato de fotografar, como em um jogo de atualização da imagem virtualmente

idealizada. Assim, Sr. Yorkin é confrontado com o medo de sua traição ter sido

eternizada em uma fotografia. Sr.Parrish, ao final, percebe que a fotografia não

reproduz o real, mas o reinventa.

O imaginário social funciona de forma muito semelhante ao do início do

filme: a fotografia é um recorte do real. E talvez devido a essa concepção

(equivocada) ao olhar as imagens somos levados ao impulso de apontar e dizer:

“é isto!” Como se o fotógrafo estivesse apenas capturando as coisas ao seu

redor. Como no filme, as imagens madozianas desconstroem o primeiro olhar

sobre as coisas, sobre a fotografia por meio de imagens que transitam entre a

sensação de real e a visualização de algo irreal. A tentativa de classificar

objetivamente as fotografias míngua na mera associação com as coisas reais e

50 No filme a expressão usada é shoot que significa disparar verbo usado tanto para fotografar, como para atirar com armas.

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perde de vista a potência das imagens. Em Madoz a imagem vai além do real,

em vez de reproduzi-lo, se propõe a questioná-lo no momento em que a

fotografia, sendo registro de suas concepções, se põe a prova enquanto estatuto

de registro da realidade.

O filme se assemelha às imagens madozianas quando faz uma narrativa

ilustrativa da fotografia como imagem que potencializa a criação e o advir de

mundos e realidades diversas, desconstruindo a noção de representação

automática do real. Ao mesmo tempo, reavalia a relação que a imagem tem com

o referente e indiretamente sugere autonomia das imagens em relação às noções

de registro e da coisa fotografada.

3.3. O tempo e a abertura do paradoxo

A noção indiciária da fotografia é uma característica intrínseca a ela e, ao

mesmo tempo, limitadora da sua compreensão, pois, como visto anteriormente,

quando o índice é o direcionador das reflexões, a fotografia se torna mero

aparato de captação de um rastro da realidade. As teorias ontológicas não

satisfazem as reflexões sobre a imagem. No mesmo caminho – ou, ainda, por

meio de um olhar exclusivo sobre a coisa fotografada – está a crítica sobre as

imagens de Chema Madoz na qual abdica das discussões sobre a complexidade

da imagem, esquecendo que há, na fotografia, algo além do visível, além da

simples representação da coisa, além da referência a artistas modernistas.

O domínio das teorias ontológicas sobre a fotografia condicionou as

discussões à essência da linguagem fotográfica, abdicando das indagações sobre

outros elementos constitutivos a ela. E com isso, a crítica esbarrou no obstáculo

de ora descrever o visível na imagem, ora aplicar conceitos exteriores a ela.

Gostaríamos de argumentar a seguir que, entre as possíveis variáveis analíticas,

o tempo se constitui como uma das mais fundamentais para se compreender o

funcionamento dinâmico das imagens fotográficas, pois, quando nos colocamos

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diante de uma fotografia, o que se realiza, apesar da invisibilidade, é uma

experiência de cunho temporal no seu modo complexo e paradoxal. O tempo,

na fotografia, lateja, pulsa, mesmo em se tratando de imagem fixa. Ainda que a

percepção do tempo não seja imediata no fotográfico, ela, a percepção, está

absolutamente presente no fazer e no ver.

A fotografia transformou as relações temporais da imagem. É complexo

refletir sobre o tempo, visto ser ele impalpável e apenas percebido quando o

mensuramos. Como compreender o tempo, em se tratando de imagem fixa?

Nas fotografias, as medidas visíveis são unidades de comprimento que não

correspondem ao entendimento da duração. Contudo, mesmo não estando

visível, o tempo está presente na imagem.

O tempo fotográfico é singular. E essa singularidade tem relação com a

noção de instantâneo, comumente associada apenas a um fragmento de tempo.

Contudo, o instante nos impulsiona para além e explica como a prática

fotográfica desenvolveu com ele uma conexão impar com o tempo.

A emergência do instantâneo tem origem a partir da fotografia, tornando

sua prática simples e rápida, se refletida pelo ponto de vista da abertura do

obturador e captação da luz. O ato fotográfico foi capaz de transformar a

experiência em que a duração não era mais um elemento problemático na

construção da imagem. Em contra partida, a fotografia instantânea provocou

dificuldades no entendimento sobre o instante, muitas vezes de existência

questionada ou considerado descartável ao pensamento fotográfico.

Todavia, Lissovsky, muito corretamente, relembra: se a fotografia é uma

experiência, “não é possível conceber uma experiência sem duração (...)”

(LISSOVSKY, 2008, p.8). Nesse caso, o autor faz uma análise sobre o pré-

fotográfico, mas seus estudos esclarecem a latência temporal da fotografia. A

técnica fotográfica lida com a experiência da duração, mesmo ela não estando

aparente na imagem. Cada fotografia está imbuída por um tempo que não

passa, um tempo permanente e inseparável a ela.

O que se compreende como experiência de duração na atualidade não é a

mesma daquela vivida com as primeiras câmeras escuras. A fotografia passou

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por uma transição que foi sua passagem do “domínio espacial – o império do

visível – para uma esfera temporal.” (ibidem, p.26). Esse trajeto de uma

percepção para outra deu origem à fotografia moderna, à noção de instante. O

instante fotográfico não é apenas uma fração de tempo, mas uma experiência de

duração, em que ocorre “a desaparição do durante no interior do ato

fotográfico” (ibidem, p.36). Nesse sentido, não mais a expectação seria

vivenciada durante os momentos de manuseio da máquina fotográfica, mas nos

instantes anteriores, no pré-fotográfico.

As primeiras técnicas de captação da luz não conseguiam transpor a

barreira do tempo, visto que este impunha à prática fotográfica restrições. O

aparato técnico necessitava que tanto o fotógrafo como o modelo partilhassem

da duração. O daguerreótipo51, um dos primeiros aparelhos fotográficos, exigia

um tempo de exposição à luz demasiadamente prolongado e, por isso,

fotografar era uma experiência duradora, no sentido mais pleno da palavra. O

tempo era tão prolongado, que se tornava doloroso para o modelo ser

fotografado. E por isso, foi inventada na época (1840), uma espécie de prótese,

que sustentava o corpo do modelo e proporcionava maior estabilidade e

conforto.

Mas o inconveniente mais importante é, decerto, a demora do tempo de exposição, entre quinze e trinta minutos nos seus primórdios: as paisagens urbanas eram esvaziadas de transeuntes e de veículos, porque estes não permaneciam nelas tempo suficiente para impressionar a chapa (AMAR, 2007, p.24).

Esse cenário se alterou anos mais tarde, precisamente em 1870, quando

as técnicas de captação de luz e de abertura e fechamento do obturador

tornaram-se mais ágeis, convertendo a fotografia a uma prática do clique, da

rápida produção de imagens. E com isso, expulsa o tempo do ato fotográfico,

simplificando a técnica e aumentando o grau de controle sobre o resultado final

das imagens. Com esse tempo reduzido, o fotógrafo libertou-se das limitações

anteriores, facilitando o trabalho dos modelos e a obtenção dos assuntos a 51 O daguerreótipo foi uma máquina fotográfica inventada por Daguerre, consiste em uma técnica de sensibilização de lâminas de prata com vapor de iodo.

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serem fotografados. O tempo, nesse caso, deixa de ser um intervalo entre as

etapas de obtenção da imagem para se tornar uma negociação prévia ao ato.

Não à toa, os retratistas passaram a determinar com precisão, por meio de

aparatos mobiliários ou fundos pintados, a imagem.

Essa liberdade proporcionada pelas novas tecnologias de captação da luz

e conseqüente facilidade na prática fotográfica gerou a crença de que os

fotógrafos tinham finalmente dominado o tempo: a fotografia não era mais

vassala da duração, mas a senhora do tempo. Contudo, ao contrário do que se

pensara, o que a técnica fotográfica havia dominado não era o tempo, mas o

movimento.

Nesse mesmo período, seguindo o caminho inverso, os fotógrafos não

retratistas buscaram retomar a aproximação com a temporalidade ausente. Os

Pictorialistas, por exemplo, não admitiam imagens que apresentassem

características mecânicas como nitidez e, por isso, elas precisariam mostrar o

gesto da mão para se adequarem ao ideal de beleza clássico; para tanto, técnicas

de pintura e suavização do foco são recursos por eles empregados. Era preciso

vivenciar o tempo da pintura sobre o papel fotográfico para apresentar uma

imagem “artística”. Assim, tentaram aproximar a fotografia da pintura

impressionista, para negar o seu uso científico. Outras técnicas, como o

fotodinamismo – o qual objetivava registrar a continuidade do movimento na

imagem – tentavam captar o tempo por meio do registro da ação. Ambos

tinham a ambição de materializar o invisível, o tempo de uma ação, por meio de

técnicas que tornassem visíveis a duração na imagem fixa. Todavia, no primeiro

exemplo, o que ocorreu foi apenas uma tentativa de inserir a fotografia no meio

artístico, em contraponto ao utilitarismo das novas tecnologias e no

fotodinamismo o que se captou foi o movimento. Nessas tentativas, o tempo

conservou-se irrepresentável, e a fotografia moderna permaneceu com um

tempo invisível na imagem, o advento do instantâneo transformou o tempo em

um intervalo que vai “desde o momento em que o fotógrafo dispõe-se a

reproduzi-la.” (LISSOVSKY, 2008, p.58).

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Gradualmente, o instante fotográfico se “naturaliza”, graças ao

esquecimento da duração característica das primeiras máquinas fotográficas. E

assim, pouco a pouco, o tempo tornou-se definitivamente invisível na fotografia

– em parte pelo advento do cinema que sepulta de vez as tentativas de impor à

ela a prática de interrupção do movimento. Não mais o tempo se manifestaria

como instância determinante da imagem. Esse tempo, incapaz de subjugar a

fotografia, converte-se em conciliador da imagem, transformando-se em espera.

Essa espera, para o fotógrafo moderno, é a expectativa do instante. Não

obstante, este é compreendido, aos moldes de Lissovsky - um piscar os olhos

que não objetiva recompor a perda do intervalo “não-visto” - mas sim, uma

duração, um tempo contínuo próprio da fotografia (LISSOVSKY, 2011). O

instante não é tempo estanque como a cronologia propõe, pois este não ver já se

constitui de imagem. O tempo sai da prática para se tornar um momento que

abrange o pensar em fotografar até a impressão. Portanto, esse tempo é “o da

expectativa. É na forma de expectar que a duração veio finalmente integrar-se

ao instantâneo.” (ibidem, p.59).

O instante deixa ser interrupção artificial da duração, e passa a ser produzido por ela [fotografia], gestado em seu interior. E o instantâneo fotográfico deixa de ser uma forma particular em que o tempo se manifesta pelo vestígio de seu ausentar-se, pelo seu modo de refluir. (ibidem, p.60)

Logo, o tempo fotográfico rompe com o modelo linear e cronológico. E o

instante, nesse sentido, é abstrato e não pode ser cronometrado. Quando o

instantâneo afinal se naturalizou, o tempo se transferiu para uma instância na

qual sua ausência se presentifica, deslocando-se para fora da imagem. O

instante na fotografia não está sucedido ou aderido ao movimento e não é o

rompimento do contínuo da duração52, de outro modo ele obtém uma duração

singular que se mostra no percurso da fluidez do tempo no qual o instante

ainda não se realizou. É na espera, no expectar o lugar dessa duração

fotográfica.

52 Lyssovsky relata que Bergson, para definir o estatuto ontológico da duração, concede ao instante o status de “vilão do pensamento”, afirmando ele seria uma experiência artificial. (idem, 2003, p.145).

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Nessa perspectiva, o instante deixa de ser aquilo que interrompe a

duração para se tornar produto dela, e o instantâneo fotográfico converte-se em

imagem provida de um tempo particular manifestado pelo “vestígio de seu

ausentar-se, pelo seu modo de refluir” (LISSOVSKY, 2003, p.148). É por meio da

expectação, que o fotógrafo imprime, na imagem, a ausência do tempo.

A fotografia, por sua vez, não dispõe do instantâneo na origem de seu ato. Ela não dispõe, na duração, de um equivalente. Ela dispõe apenas de um horizonte de instanteização. Se drena algo, isto que ela drena só pode ser o tempo, e não o movimento. Sua duração própria é o tempo dessa drenagem. (idem, 2008, p. 95)

A partir desse panorama, Lissovsky desenvolve o conceito de latitude de

espera para definir os modos de expectação de cada fotógrafo. Para ele, a espera

se manifesta de duas maneiras distintas. Quando o instante se instala de

maneira cômoda, o autor denomina de larga; nesse caso, a apresentação da

imagem não é feita ao acaso, mas sim fruto de uma decisão prévia, em que as

imagens estão “inscritas desde antes de serem produzidas.” (idem, 2003, p.149)

e a espera “deve ser larga o bastante para que a evolução da forma encontre o

lugar que lhe estava desde o início destinado” (ibidem, p.150). No caminho

oposto, está a latitude de espera estreita, em que o instante é reconhecido como

momento curto o bastante para capturar o pretendido e sua duração é suficiente

apenas para a tomada de uma decisão, sendo, dessa maneira, reconhecido como

um instante de ocasião.

Essas latitudes tornam evidentes posturas diversas de expectação para o

advento do instante entre os fotógrafos: a passiva, na qual o profissional se

acomoda pela concretização de suas deambulações em um casual momento.

Isso significa dizer que não há para esse fotógrafo uma imagem prévia, mas a

espera de um cruzamento entre as configurações almejadas. Esses fotógrafos

creditam suas ações na espontaneidade do instante. Um excelente exemplo

dessa postura é o Cartier-Bresson em que o esperar significa aguardar o

momento no qual haverá o encontro entre o acontecimento e a geometria.

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Há ainda a atitude ativa em relação ao instante. Nesse caso, o fotógrafo

persegue seu objetivo e sua espera é construtiva, refletindo antecipadamente

sobre os elementos que serão captados. Não basta aguardar pelo momento

crucial; é preciso interferir e agir ativamente para que a imagem almejada

emirja. Chema Madoz se enquadra nessa classificação, visto que seu instante é

resultado de um acúmulo de intenções. Esses não são “momentos decisivos”,

mas duração construída e amadurecida até a chegada do ápice, o devir do

instante. Ele é um construtor que escolhe os elementos necessários para tornar

a imagem estável, por meio de uma convergência entre a luz e o assunto.

As noções de expectação e de instante mostram que a linguagem

fotográfica tem uma relação com o tempo distinta, e debate a partir da noção de

um processo fotográfico surgido anteriormente ao manuseio do aparato

mecânico e à impressão da imagem. Todavia, talvez, proveniente do olhar de

observador sobre a fotografia, mais do que uma discussão sobre o processo,

surge um questionamento crucial: de que modo a relação com o tempo

problematiza a imagem? Responder a essa indagação é imputar à imagem

paradoxos.

Para elaborar o desdobramento sobre esse questionamento, Deleuze é

salutar. Ele sugere refletir sobre o tempo a partir de imagens: imagem-

movimento e imagem-tempo. Esses termos foram usados em suas reflexões

sobre o cinema; contudo, o segundo termo será esclarecedor para as indagações.

No primeiro, imagem-movimento, o tempo é concebido como sucessivo

e obedece a certa previsibilidade, que dessa forma está subordinada ao

movimento, uma vez que o tempo, nesse sentido, é a própria medida do

movimento. Assim, o tempo possui um espaço delimitado, composto por ações

e reações, seguindo uma lógica linear. Assim expressa Deleuze: “As ações

encadeiam-se com percepções, as percepções se prolongam em ações.” (1992,

p.68). Na imagem-movimento, o movimento se coloca ao lado da duração,

tornando o tempo subordinado às ações, respeitando certo ordenamento. Nesse

caso, poderíamos associar, em certa medida – visto que Deleuze usa essas

denominações para falar de cinema, conseqüentemente do fotograma – as

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imagens produzidas pelo fotodinamismo o qual buscou reproduzir, na imagem

fixa, a percepções sensório-motora, que foram logo suplantadas pela chegada

do cinema. Essas imagens não se transfiguram, apenas reproduzem

movimentos por meio de um tempo linear.

Há, porém, a modalidade da imagem-tempo, que é algo para além da

imagem-movimento. Essa imagem-tempo não está mais situada na relação

sensório-motora e não é linear, longe disso, possuem um circuito em que a

relação entre movimento e tempo se inverte. “O tempo não resulta mais da

composição das imagens-movimento (montagem), ao contrário, é o movimento

que decorre do tempo.” (DELEUZE, 1992, p.69). Na imagem-tempo, as coisas

estão suscetíveis de transformação, independente de haver ou não uma ação.

Nessa conjuntura, o observador sai do campo sensório-motor para se

concentrar na visão. “Ele não está mais numa situação sensório-motor, mas

numa situação óptica e sonora pura. É um outro tipo de imagem.” (ibidem,

p.68). E isso permitirá o transbordamento da imagem.

O espaço que a imagem-tempo ocupa está desconectado, esvaziado e

impreciso. Ao contrário da imagem-movimento, esse espaço revela mudança,

passagem. E por isso, na imagem-tempo, o subjetivo e o objetivo, o real e o

imaginário permeiam o campo do indiscernível. Isso significa dizer que o

tempo tem o caráter virtual, onde passado e futuro coexistem com a imagem

presente. É o pulular do paradoxo nas imagens.

Se o cinema pós-guerra rompe com esse modelo [imagem-movimento], é porque ele faz emergir todo tipo de cortes irracionais, de relações incomensuráveis entre imagens. (...) Portanto, encontraríamos aqui conjuntos paradoxais. Mas se os cortes irracionais tornam-se desse modo o essencial, é que o essencial não é mais a imagem-movimento, é antes a imagem-tempo. (...) Não há mais encadeamento de imagens por cortes racionais, mas reencadeamentos sobre cortes irracionais (Resnais, Godard). (ibidem, p.82).

As imagens-tempo são as imagens paradoxais, em que, a partir do

instante fotográfico, apresentam, de modo simultâneo, um tempo empírico e

transcendental. Um instante tomado como porta de virtualidade e uma

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fotografia, no caso as imagens madozianas, imbuída por um imaginário

deleuziano de indiscernibilidade entre o real e o irreal53, substituindo os clichês

– típicos da imagem-movimento – pelas contradições, pelo duvidoso e

ambíguo. Logo, o conceito de imagem-tempo traz à tona a complexidade e o

sentido das fotografias, pois são refletidas a partir de seus paradoxos.

A fotografia madoziana é em si um paradoxo; ao mesmo tempo em que

seus objetos, por ele transfigurados, são irreais, não podem ser encontrados no

cotidiano, nas imagens eles são apresentados de maneira quase documental - no

sentido de proximidade com a realidade. Afinal, a fotografia é rastro da

realidade. Contudo, ele impõe a pergunta: poderá existir rastro de realidade de

objetos irreais? Terá a fotografia esse poder? Realidade e irrealidade parecem

coabitar as fotografias. Há um hiato, uma lacuna dentro da fotografia de Madoz

que é sempre preenchida por ambigüidades labirínticas.

Por fim, o instante de lissovsky esclarece de que modo o fotógrafo

espanhol lida com a duração, transcendendo o pensamento exclusivista sobre

os objetos ou apenas sobre a fotografia. Há, em todo ato fotográfico, um

processo de construção da imagem, uma expectação que perpassa o gatilho de

abertura do obturador para se tornar imanente. Afinal, uma invisibilidade

possível da fotografia está no paradoxo do tempo que se presentifica pela sua

ausência.

53 Deleuze explica que seu conceito de imaginário está relacionado ao conceito definido por ele como imagem-cristal: “O imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua distinção. É o que se vê bem no fenômeno cristalino, segundo três aspectos: existe a troca entre uma imagem atual e uma imagem virtual, o virtual tornando-se atual e vice-versa; e também há uma troca entre o límpido e o opaco, o opaco tornando límpido e inversamente; enfim, há troca entre um germe e um meio. Creio que o imaginário é esse conjunto de trocas. O imaginário é a imagem-cristal.” (ibidem, p.85)

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Logo: há uma janela que se debruça

sobre o mundo. Do lado de lá está o

mundo; mas e do lado de cá? Também

o mundo: que outra coisa queríamos

que fosse?

Palomar - Ítalo Calvino

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4. Através do visível: debatendo sobre as imagens madozianas

Uma xícara, um garfo, uma escada, um espelho, uma pedra, um cigarro,

um fósforo, um ralo, um mapa, uma mala. Todos são objetos do dia a dia.

Todos são objetos que já vimos, reconhecemos e, obviamente, nominamos.

Agora, façamos um exercício: imaginemos que seja possível embaralhar cada

um desses objetos e escolher como eles podem deixar de ser o que são. Madoz

propõe: transfigurar as coisas e por fim fotografá-las. Todo o seu processo

criador objetiva a construção da fotografia e, por isso, cada etapa é também

fotográfica. Logo, ele fotografa mentalmente, fotografa no desenho, fotografa na

hora de fabricar suas coisas, para finalmente fotografar. O desfecho: a imagem

madoziana.

Nas suas fotografias nada é o que parece ser. As palavras, que antes

nominavam as coisas nas imagens, não alcançam os sentidos. Elas parecem

pertencer a um inventário de coisas: quase-conhecidas ou quase-desconhecidas. O

que fazer para entender esse universo? E a realidade dessas imagens, como

compreendê-las? As fotografias possuem tamanha inquietação, que nos atrai

como imã. Será preciso classificá-las? Alguns diriam que isso facilitaria um

estudo científico. Entretanto, a ciência aqui não é o caminho. O único percurso a

ser feito é o de um labirinto. Cada imagem pode ser uma realidade nova a ser

descoberta.

Retomemos o processo criativo: primeiro surge um pensamento, um

conceito, uma palavra ou uma imagem; depois ele usufrui do papel em branco e

do lápis para fazer surgir o rastro do grafite, delineando aquilo que formará

uma imagem desenhada, ou seja, um planejamento da fotografia que pretende

adquirir; em seguida, a busca, a caminhada. Madoz procura pelas coisas

conhecidas e vai ao mercado que simbolicamente lhe diz: o Rastro. Na feira, ele

encontra cada peça, depois as une e o resultado: uma “quase-fotografia”54. O

rastro do grafite se mistura ao rastro da imagem pensada para alcançar o

54 Esse termo tem o sentido de dizer que o objeto é o paço mais próximo da fotografia final no processo de criação de suas imagens.

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vestígio fotográfico, e, como último sopro

desse conjunto de ações, ele manuseia sua

Hassemblad e aperta o gatilho, expondo o

filme à luz. O negativo será impresso;

surge, então, a fotografia, a imagem

madoziana.

Eis o labirinto: primeiro há uma

imagem idealizada, depois ela é

reproduzida por meio de desenhos, em

seguida será construída, transformando-se

em objetos quase-conhecidos, posteriormente

será fotografado, eternizando o instante e

finalmente será impresso em papel

fotográfico. As imagens são várias: uma

imagem ideal, projetada no pensamento; posteriormente, uma imagem

projetada sobre o papel; em seguida ela se desdobra em “imagem-objeto” 55,

para, finalmente, tornar-se imagem fotográfica.

[...] Uma foto é, pois, uma imagem de imagens (...) ela designa a totalidade dos possíveis; indica tanto todos esses possíveis quanto o que fez ser: ela é, portanto, duplamente imagem de imagens, ao mesmo tempo das imagens virtuais intermediárias (a imagem visual do objeto, a imagem psíquica do fotógrafo, a imagem midiatizada pela máquina fotográfica, a imagem do negativo, etc) e das imagens possíveis. (SOULAGES, 2010, p.138-139).

Entre tantas imagens, aquela que o observador vê de imediato é aquilo

que há de mais visível na fotografia. E nela vemos: xícara com ralo , sapatos que

não podem ser usados (figura 23)56, espelhos que também são janelas (figura

14)57 e tantas outras coisas as quais tiveram seu uso cotidiano modificado. A

55 Novamente uso o termo “imagem-objeto” para afirmar que o objeto em si para Chema Madoz, nada mais é do que uma imagem que será posteriormente concretizada em fotografia. E, por isso, não é visto pelo fotógrafo como escultura, mas como uma imagem que está sendo construída para ser fotografada. 56 Ver imagem na página 66. 57 Ver imagem na página 20.

Figura 22

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união entre coisas diversas e antes inimagináveis torna o todo da fotografia

intrigante, impondo um jogo de sentidos e indagações filosóficas.

A descrição tenta sugerir um caminho: uma escada e um espelho (figura

14)58. Esse apontar para os objetos das imagens é uma atitude barthesiana. O

ícone tenta sobrepor-se à imagem. Esse apego à materialidade supostamente

visível, mas não presente, não corresponde ao seu sentido. Wim Wenders nos

lembra: “creio que vemos com os olhos, mas não exclusivamente [com eles].”59.

Os olhos não são suficientes para compreender as imagens. Afinal, logo somos

confrontados com a suspeita de que, talvez, aquele espelho seja uma janela. A

dúvida, então, persiste diante do impulso descritivo: será espelho ou uma

janela?

Esse barthesianismo do olhar se deve a apresentação dos objetos na

imagem. Todas as fotografias são em preto e branco e se mostram em um tom

publicitário: os objetos estão em destaque, muitos deles centralizados, sem

quaisquer interferências de outros

elementos em torno. Na imagem

madoziana, tudo que se mostra faz parte

do objeto, da coisa transfigurada. A

luz, que preenche a fotografia, cobre o

objeto quase-desconhecido de uma

realidade de ambição transbordante. E

mesmo assim, mesmo com essa

“natural” realidade sugerida pela luz, a

imagem não convence como

documento do real, pois não pode

simplesmente ser descrita, nominada e

encontrada em nossa realidade

palpável.

Há ainda uma característica

58 Ver imagem na página 20. 59 Trecho retirado do filme Janela da Alma.

Figura 23

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relevante nas reflexões sobre as imagens: todas as fotografias não possuem

título, denominação, numeração ou qualquer indicação vocabular. Ela é

apresentada por Madoz aberta à interpretação e, talvez, por essa ausência de

título, de quando em vez ela inebria de liberdade a interpretação. A fotografia

madoziana parece dizer: a imagem satisfaz. Elas instauram um conflito entre o

visível e o dizível. Esta relação se aloja no cerne da representação e da

indicialidade. Por este motivo, as fotografias põem em cheque a representação e

o índice.

Folhear o catálogo Obras Maestras60 dá a impressão de estarmos diante de

uma enciclopédia de coisas. Parece fácil retomar o olhar icônico: um garfo, uma

xícara, um prato. As fotos possuem uma aparente certeza conceitual, quase uma

fotografia de objetos específicos61. Desavisados podem olhar para essas imagens

como quem vê uma revista de design, só estão ausentes seus valores. Nada

mais está aparente, somente o objeto simples e descontextualizado. Alguns

diriam que nessas imagens se tem apenas a forma e o culto ao objeto por si

mesmo. Com um olhar descuidado, teríamos a certeza de que se trata de objetos

de arte contemporânea, que foram fotografados com o intuito de se registrar,

documentar.

O “isto é” designador, que se busca ao olhar as fotografias, é insuficiente.

Por isso, procura-se tentar alcançar a fotografia pela palavra. Porém, essa

compreensão também não é suficiente para abranger o sentido da imagem. “É

preciso que o olhar se mantenha acima de todo o deciframento possível”

(FOUCALT, 1989, p.26). O uso ordinário da linguagem não irá representar o

que o se desvela ao olhar. Os sentidos da imagem escapam aos olhos, fogem do

visível e do vocábulo.

Há nessas fotografias uma experiência que ultrapassa aquilo que se vê.

Afinal, o ato de ver não é o mesmo observar de uma máquina ao fotografar os

objetos e, por isso, o olhar sobre essas fotografias é singular. Essa ação de ver é

mais do que apontar as evidências. Ela é:

60 MADOZ, Chema. Obras Maestras. Madrid: La Fabrica, 2009 61 Objetos específicos são definidos por Didi-Huberman como aqueles “[...] objetos que não pedissem outra coisa senão serem vistos por aquilo que são.” (1998, p.50).

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67

[...] inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detento. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.77)

O que se vê, então, na imagem 24? Vemos os cílios acompanhados por

uma chave. O primeiro é útil para guarnecer o globo ocular, encobrem os olhos.

E, originariamente, o símbolo gráfico deveria ser exibido em par para reger sua

função de reunir itens relacionados entre si. Ambos estão com seus pares

ausentes, os cílios sem os olhos e a chave sem seu correspondente. Há uma

comunhão entre eles que nos faz crer neste dueto improvável, mas harmonioso.

Metaforicamente, o olho está

cerrado, fechado para o visível.

Talvez, a chave busque nos cílios

seu complemento e por meio

dessa união se tem a imagem de

algo não visto, que inquieta o

olhar e o pensamento. A nossa

percepção transborda a descrição

e nos impõe um olhar poetizado.

A imagem confunde e, com um

olhar de viés, o humor brota e

ambos tornam-se desenhos de

pêlos faciais: a chave um bigode

e o cílio uma barbicha de um ser

imaginário. A única certeza da

imagem é a fugacidade da

interpretação.

Logo, as coisas, na fotografia, são apenas a porta de entrada. É uma frase

da poesia que representa o conjunto de imagens madozianas. Cada uma é

produto de um processo de reflexão longo do fotógrafo. Foi preciso que Madoz

construísse primeiro uma idéia imagética prévia. As fotografias do catálogo não

Figura 24

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68

são apenas documentos, mas

imagem permeada de sentido e

cuidadosamente construída. “Então,

compreendemos que a mais simples

imagem nunca é simples, nem

sossegada como dizemos [...].”

(DIDI-HUBERMAN, 1998, p.95).

Se a fotografia não tem seu

sentido determinado pelo seu

referente, o que então olhar na

imagem? A resposta mais adequada

seria: ela própria. O que se vê não é

o referente, mas uma imagem que

inquieta o olhar e atrai o sujeito

observador a repensar o visível e

construir, a partir da percepção

imagética, uma interpretação

dialógica com a imagem.

Contudo, conceber a

fotografia como imagem não é

deixar de lado a indicialidade que

lhe é tão característica. Afinal, o

rastro luminoso escreve sobre o

filme, marcando-o para sempre.

Madoz utiliza esse aspecto em todas

suas etapas para com ele atravessar a

ontologia. E, a partir disso, sugerir, a

despeito do atestado de existência,

que a fotografia pode produzir

imagem de algo que não subsiste na

realidade palpável.

Figura 25

Figura 26

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69

Logo, o rastro permeia as

etapas: o rastro de uma idéia, o

rastro do grafite sobre o papel.

Novamente, somos obrigados a

retomar as fases de criação da

imagem. Primeiro, o rastro de um

pensamento é extravasado por

meio do desenho, na tentativa de se

aproximar ao máximo da imagem

fotográfica. A imagem, nesse

momento, pulula de dentro do

fotógrafo: “aquilo que se cria não

entra pelos olhos, elas brotam do

poeta.” 62. Esse rastro do grafite irá

delinear como a fotografia deverá se

apresentar. Contudo, nem sempre

esse desenho corresponderá

exatamente ao resultado final da

fotografia. Algumas vezes, será

preciso, durante o ato fotográfico,

solucionar questões como

luminosidade, contraste ou

enquadramento. No caso da imagem

25 a fotografia se aproxima muito

mais do desenho (figura 26), mas, na

imagem 27, fica claro que foi preciso definir um fundo (figura 28), para dar

contraste ao objeto a ser fotografado.

Definida as diretrizes de como esse objeto deverá se apresentar, o

fotógrafo vai em busca das coisas triviais. E, para isso, será preciso procurar,

62 Trecho retirado do filme Janela da alma.

Figura 27

Figura 28

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70

dentro do Rastro para alcançar o vestígio fotográfico. O Rastro representa

simbolicamente o vestígio das coisas cotidianas não-avistadas, mas que, aos

olhos de Madoz, tornaram-se únicas.

Ao adquirir os objetos, ele os transfigura, concretizando o planejamento

do rastro da idéia e do grafite sobre o papel. E cada objeto trivial tem seu rastro

de existência presente nessas maquetes a serem fotografadas. Na imagem 20 63,

a compreensão de xícara, seu significado e funcionalidade estão evidentes:

sabemos que tal coisa objetiva reter o líquido e o ralo tem a utilidade de escoar.

Na união desses dois itens, cada um desses elementos perde suas funções e,

conseqüentemente, seu sentido, restando apenas a atestação de que há nele o

vestígio de algo quase-conhecido que, unidos, transformaram-se em objeto quase-

desconhecidos. Há, portanto, nisso, a lógica da indicialidade.

Se o próprio objeto de Madoz já carrega consigo a tripla indicialidade - o

rastro da idéia, o rastro do grafite sobre o papel e o rastro do objeto trivial – por

que então fotografá-lo? Com a fotografia, Madoz impõe ao observador o

afastamento físico do referente e a aproximação ruidosa dessa ausência. Com

isso - e a percepção de que aqueles objetos são irreais - o referente emudece,

mas a imagem (ou diríamos as imagens) brota do olhar, causando desassossego

do pensamento. Agora, entre o objeto que foi fotografado e o olhar do

observador há a mediação do fotográfico. Logo, ao decidir pelo ato de

fotografar, o espanhol impõe às reflexões irem além da noção indicial e

conceberem a fotografia através da inscrição do referente, isto é, compreendê-la

para fora da noção de vestígio, por meio de sua percepção de que a fotografia é

imagem, uma potência imbuída de paradoxos.

Finda-se, dessa maneira, qualquer reflexão de que as fotografias de

Chema Madoz poderiam se tratar de meros registros de “objetos artísticos”,

pois se tratam de imagens para além da noção de foto-grafia. E a contradição está

justamente em questionar o índice por meio do próprio rastro. Ora, o que se vê

na imagem madoziana não é exclusivo aos olhos ou ao atestado de existência do

fotográfico. Ela nos incita a perceber sua inerente invisibilidade.

63 Ver imagem na página 31.

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71

Madoz coloca em prática um jogo de paradoxos entre real e irreal: real,

por se tratar de uma mídia na qual supostamente atestaria o rastro da realidade

e irreal, por apresentar objetos que não se encontra na realidade palpável. O que

se apresenta é uma imagem que transita entre realidade e irrealidade,

tencionando-as de maneira a tornar a imagem um nó de problemas, um jogo de

deciframentos labirínticos.

Na Imagem 29, esse conflito é

apresentado de maneira singular. A

colher, o único objeto aparente, não

teve seu sentido alterado por meio da

união com outro distinto a ele. A luz

apresentada na fotografia cobre a

colher de uma realidade inquietante e

quase enfática. Como se nos dissesse:

isto é uma colher. Contudo, o objeto

incide sobre a sombra de algo

completamente diverso. A luz busca

cobrir o objeto de certezas, mas seu

oposto, a sombra, torna a imagem

duvidosa. Onde a luz não alcança,

delineia-se um garfo. Como poderia a luz, precipitada sobre determinado

objeto, produzir um rastro completamente diferente dele? Nesse caso, a colher

tem em sua sombra a representação da incoerência. E relembro: “o ato de ver

não se limita a olhar o visível, mas também, o invisível.” 64. O que vemos é

mácula da colher, a sombra parece gritar por sua independência em relação à

luz. A sombra não atualiza o objeto, mas age como um emergir de incertezas,

em uma virtualização infinita, pois, aos nossos olhos é eternizada na fotografia,

ela teve sua forma consumada: será para sempre a silhueta de algo diverso à

colher. O observador é obrigado a confrontar com a natureza arbitrária daquilo

que vê, como se fosse posto em um labirinto sem começo ou fim, apenas o mais

64 Trecho retirado do filme Janela da Alma.

Figura 29

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72

longínquo deserto. E, partindo desse princípio arbitrário, a imagem pode

representar uma sombra com forma qualquer. Nessa imagem, há de se pensar

que o jogo proposto por Madoz é infindo, pois cada resposta é uma nova

pergunta a ser desvendada.

Há ainda outro aspecto a se destacar: o tempo. O tempo, próprio de

feitura da imagem, expande a discussão. Nesse caso, retomam-se as bases

teóricas já explicitadas de Lissovksy. Novamente, as discussões se entrelaçam

ao processo de execução da imagem. Não há como dissociar a fotografia de seu

processo, principalmente em se tratando do caminho lissovskyano. Dessa

maneira, isso imputa lidar com um tempo próprio da fotografia, manifestado

por meio da expectação.

Parte-se do princípio que o instante se instala na imagem madoziana a

partir de suas estratégias de aproximação do fenômeno fotográfico. Nesse

sentido, o processo de fabricação das imagens não ocorre aos moldes do

“instante decisivo”, como definiu Bresson65, mas, sim, por meio de um processo

que pensa o ato fotográfico como um fenômeno no qual o fotógrafo participa,

para, ao final, obter a fotografia desejada. O auge dessa ação ocorrerá a partir de

operações de aproximação como: desenho, fabricação de objetos, definição do

horário a ser fotografado66, etc. Para Madoz, o tempo da fotografia não se reduz

apenas ao momento de apertar do gatilho, mas, sim, a uma espera prolongada o

bastante para se alcançar o ponto final e culminante de sua trajetória.

A espera – determinada pelos seus planejamentos prévios – é um método

de amadurecimento do instante. “Ele nutre-se – cresce e aparece – da própria

expectação” (LISSOVSKY, 2008, p.78). A composição da imagem definida por

Madoz – a definição de quais coisas serão fotografadas, seus enquadramentos,

contrastes e apresentação – é indissociável do instante em que determinará o

acionar da máquina. “A evolução da forma não se dá ao acaso; ela amadurece,

65 “Fotografar é reconhecer, num mesmo instante e numa fração de segundo, um fato e a organização rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem este fato.”. E por isso, para ele, o “aparelho fotográfico é o „mestre do instante‟, „questiona e decide ao mesmo tempo.‟” (ibidem, p.76-77). 66 Todas as fotografias de Madoz são iluminadas pela luz natural, sem uso de lâmpadas de estúdio. Por isso, ele escolhe os horários mais viáveis para a execução da fotografia.

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73

converge para o akme [culminância] que a composição expressa.” (ibidem,

p.79). Ao olhar algumas de suas fotografias, e como elas foram previamente

planejadas, se demonstra que a experiência fotográfica implica em imagens

inscritas antes mesmo de sua produção. E, portanto, a expectação deverá ser

larga o suficiente para que a imagem apresente a forma a qual fora previamente

destinada.

A atitude do fotógrafo

espanhol para com o seu

referente também distingue a

maneira como ele lida com

essa expectação. Nesse caso, o

advir do instante é

determinado pelo seu modo

ativo na produção da

imagem. Ele enxerga na

expectação uma potência para

alcançar o instante e a

configuração da imagem,

depende inteiramente dessa

postura.

Na imagem 30, um

violino está disposto em

diagonal. Nesse objeto, uma

parte de sua anatomia está modificada: o cavalete responsável por apoiar e

manter as cordas do instrumento no lugar foi substituído por uma lâmina. A

maneira como a luz incide sobre o objeto, o ângulo e enquadramento escolhido

e, principalmente, a decisão por mudar parte desse instrumento torna a imagem

resultado de uma expectação construtiva (de um acúmulo de ações), pois são

valores que foram decididos ao longo da espera do fotógrafo.

Logo, Madoz não aguarda o momento em que as coisas poderão se

apresentar da maneira que deseja para fotografar, mas decide agir como um

Figura 30

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74

engenheiro paciente, que dispõe de todos os instrumentos para capturar o

instante que permitirá o surgimento da imagem. E, por isso, há nessas imagens

uma estabilidade que salta aos olhos, pois a luz e o assunto estão em perfeita

convergência. Nesse caso, o instante é um horizonte a ser alcançado e, para

isso, o tempo precisa ser drenado. “Para os fotógrafos que trabalham no eixo

senório-motor, operando sobre ele o intervalo da espera, o pré-fotográfico é

potencialmente fotográfico: potência de um mostrar-se que a fotografia

atualiza.”. (LISSOVSKY, 2008, p.113)

É preciso esclarecer essa postura para alcançar o instante não é um

método de doação a forma, mas, sim, o estabelecimento de uma tensão, que

favorece em certa medida a maneira como a imagem será apresentada. É, a

partir da espera, que se favorece a forma. O tempo invisível na imagem não se

ausentou do fotográfico, mas se estabeleceu no pré-fotográfico e:

(...) é a partir do traço legado pelo tempo que reflui para fora da imagem (...) que se torna possível ler uma fotografia, atribuir-lhe sentido, e não – somente – por ocasião da restituição de uma temporalidade perdida por meio da contemplação, da crítica, da análise ou do devaneio. (ibidem, p.207)

Nessa construção, para o advir do instante, Madoz faz um movimento

que o conduz do virtual ao atual. A partir de idéias prévias – idéia

compreendida como imagem – ou seja, imagens virtuais, as quais são

atualizadas durante seu processo ao transformá-las em desenhos, depois em

objeto e, por último, em fotografias. Cada etapa atualiza uma imagem possível:

na imagem 25, uma idéia se atualizou em um desenho de luvas (figura 26)67,

para, em seguida, ser atualizada na forma de um objeto e, ao final ser atualizada

em fotografia. Todas as imagens anteriores à impressão são fotografias em

potencial. O que nos leva compreender o sentimento de Madoz de se considerar

primeiramente fotógrafo, em detrimento do de artista. Afinal, o seu processo de

criação em várias etapas, sem o uso do aparato mecânico, não significa estar

ausente do ato fotográfico.

67 Ver imagens na página 69.

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Ademais, a apresentação das imagens madozianas não deixa perder de

vista a afirmação acima. O vestígio legado pelo tempo na fotografia nos induz a

refletir que, nessas imagens, não basta - apenas - seguir o caminho do devaneio

do espectador, da contemplação diante da imagem, mas é preciso considerar

esse rastro do tempo. É necessário perceber que a fotografia se particulariza

graças àquilo o qual remanesceu do processo, da duração do olhar sobre a

imagem prévia. O que vemos é imagem poetizada, um diálogo proposto pelo

fotógrafo.

Caminhamos para um olhar particular de espectador. O fotógrafo nos

sugere por meio da imagem: o tempo não pode ser medido (figura 31). O

relógio da observação não pode ser lido, seus números foram substituídos por

símbolos irreconhecíveis, que se repetem, instaurando um paradoxo: como

poderá o relógio mensurar o tempo, se nele não reconhecemos seus símbolos? O

percurso do olhar sobre a imagem reconsidera a dimensão temporal: se a

imagem estivesse no presente, tornar-se-ia uma lembrança do tempo escoado.

Contudo, o que vemos não aponta para um tempo presente; seu tempo está

inibido pelas reflexões racionais, a imagem se constrói em um tempo que não

subsiste. A noção de presente, passado ou futuro não se concretiza. E somos

impulsionados a pensar: não há tempo. A imagem nos confunde. Talvez a

proposta de Madoz seja pensar o

tempo de maneira não linear.

Afinal, ao olhar esta imagem, os

momentos não se distinguem, pois o

relógio carrega consigo o mesmo e

repetido elemento simbólico.

Indiscernível e desconhecido.

Porventura, há simultaneamente

todos os tempos. É a liberdade

absoluta, pois o tempo dessa

imagem não nos impõe a

consciência do futuro fatídico ou a Figura 31

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76

atestação do passado extinto. Ela aparenta querer se libertar de sua mortalha,

do vínculo com o passado e com a obrigatoriedade de realização do mundo.

Se relembrarmos, a fotografia está, pelos seus princípios, invariavelmente

conectada com o tempo, seja como constatação de um passado, de um

acontecimento que não mais se repetirá, seja por meio da expectação do

instante. Logo, ao representar na imagem a figura de um relógio, que, em

princípio, não exerce sua função de mensurar o tempo, Madoz cria um novo

circuito, impossibilitando a contagem linear do tempo ou a atestação de

existência do referente. E oculta o suposto passado da fotografia, representando

uma imagem com o tempo desconectado e virtual que transcende a si mesma.

Nesse sentido, o questionamento a respeito da imagem passa a ser determinado

pelo arbitrário e pelas contradições, tornando o seu sentido metamorfoseante.

Na imagem 32 observamos

um objeto do cotidiano em um

espaço não contextualizado.

Trata-se, provavelmente, de um

ambiente urbano, devido à

aparência do chão que se

aproxima ao aspecto de uma

calçada. Vêem-se pratos, sem

quaisquer características que os

individualize, dispostos sobre

algo semelhante a um escorredor

de cozinha, mas que, na

realidade, trata-se de uma

canaleta de esgoto. Ao dispor os pratos sobre a canaleta, a imagem nos causa

estranhamento. Somos capazes de nos convencer, a partir dessa imagem, que

essa situação inusitada pode ser vista no cotidiano. A presença da luz natural e

por se tratar de objetos que reconhecemos torna a fotografia aparentemente

crível. Terá Madoz, em sua caminhada ao Rastro, se deparado com aquela

situação peculiar? A imagem não convence e a dúvida permeia as reflexões.

Figura 32

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77

Não há como apontar para aquela imagem e crêr em sua realização, mesmo ela

sendo fotográfica, mesmo com o rastro luminoso. Os pratos foram re-inseridos

em outro contexto, transfigurando, portanto, a realidade originalmente

relacionada a esses objetos.

Ao observar atentamente, lemos sobre a grade: saneamiento. A palavra

saneamento tenta indicar um caminho do pensamento. O objeto tem função de

proporcionar limpeza e asseio; não apenas um meio de escoamento de água,

como um escorredor de pratos, brevemente associado a ele. Eis uma relação

ambígua dessa grade: proporciona limpeza, mas está próximo do esgoto, dos

dejetos. Essa água impura escoada pela grade, limpa de incertezas a

incoerência, os pratos. O apontamento vigoroso da fotografia, desse suposto

contato com a realidade fatual, escorre por entre as arestas da dúvida, para

desaguar nas ambigüidades e contextos inusitados. A grade representa a

passagem, a inconstância do sentido que parece seguir o fluxo das águas,

gerando um movimento contínuo de interpretações possíveis.

Caminhamos o olhar sobre outras imagens e nos deparamos com a

imagem 22 68. Novamente, os objetos estão centralizados. Trata-se de uma

xícara branca, que poderia ser comum a tantas outras. Eis que essa fotografia

diz: pare e olhe novamente. Observa-se que, dentro dessa xícara, há um ralo.

Com essa união, o objeto não cumprirá sua função de reter o líquido. Qualquer

líquido pousado sobre a xícara de Madoz será drenado pelo ralo. A ordenação

pré-visível seria a de reconhecer nessa xícara como um objeto de contenção de

líquidos, mas a apresentação da imagem esvazia o espaço e, regida pelo tempo,

transforma o movimento imaginado do líquido em passagem do objetivo –

quase em tom publicitário – para o subjetivo do espectador que, por meio da

narrativa, busca reconstruir o sentido da imagem.

Madoz impõe à imagem a inconstância, a ambigüidade. E essa

imprecisão relembra o conceito deleuziano de imagem-tempo. Os ralos vistos

em ambas as fotografias representam simbolicamente o espaço da passagem em

que os sentidos são mutáveis e convivem com a indiscernibilidade entre aquilo

68 Ver imagem na página 65.

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que pode ser real, e ao mesmo tempo, não é. Com isso, Madoz desconstrói a

suposta “credibilidade” da imagem, por meio de uma desarticulação das

referências, e evita uma re-apresentação do objeto e dos clichês. Afinal, não há

como determinar, afirmar e reconhecer nessas fotografias coisas da realidade

tangível tal qual como se apresentam. Nesse sentido, o encontro, nas imagens,

de objetos tão diversos transforma tanto a coisa avistada, como a leitura da

própria fotografia. O ralo escoa o sentido pré-determinado desses objetos quase-

desconhecidos.

Continuamos a jornada

e nos deparamos na imagem

33 com um livro. Esse,

contudo, não é um livro

qualquer: nele não vemos

frases ou palavras. Suas folhas

estão em branco. Ele é visto

parcialmente devido ao

enquadramento em diagonal,

apresentado na fotografia.

Nota-se, ainda, outro objeto:

uma lâmina. Lâmina em

espanhol é hoja, que também

significa folha. Entre as folhas

de papel, uma delas é metálica e navalha o livro em duas partes igualmente

brancas, sussurrando: universal. A palavra grafada sobre a lâmina induz o

pensamento: talvez, aquelas folhas, por não carregarem a ditadura lingüística

ou vocabular, é o único livro que pode ser lido por todos e de infinitas

maneiras, pois cada indivíduo cria sua própria estória. Talvez, não seja um

livro, mas um caderno de anotações ou desenhos. Tantos são os cadernos que

Madoz possui que contem o rastro do grafite sobre o papel. Nesse caso, o que se

mostra é a presentificação da ausência: de palavras, desenhos ou qualquer

grafismo sobre as folhas de papel. Um livro ou caderno podem ser memórias

Figura 33

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79

ora narrativas, ora imagéticas e a fotografia, para a maioria, seria a memória

visual do mundo. A fotografia é, muitas vezes, a referência de um passado

esquecido, um legitimador de acontecimentos. Um diário ou um caderno de

anotações, em certa medida, pode ter essa mesma função. Contudo, pensamos:

terá essa imagem memória? Ela, a imagem, está vazia de um tempo objetivo. Se

ela remete ao passado, por que não reconheço nela suas representações? Eis a

ambigüidade: como preservar a memória de algo ausente de lembranças? De

algo ausente de tempo cronológico? De um livro inverossímil? O espaço desses

objetos descontextualizados e sem referências nos obriga a inverter o caminho.

O tempo desta imagem não é apenas de um passado que se tornou presente

pela sua re-presentação; ela está em um tempo transformante, em que a duração

do olhar redefine as percepções. A palavra universal, único termo presente,

aparenta ditar uma propriedade comum, querer impor ao livro uma

universalidade impossível, pois suas páginas em branco são a mais legitima

apresentação do não-cativo. Nelas, as estórias se particularizam, assim como o

sentido da imagem: “o universo é o espelho em que podemos contemplar só o

que tivermos aprendido a conhecer em nós.” (CALVINDO, 1994, p. 107). É o

universal sendo particular e o particular sendo universal. E, por isso, a imagem

é “memória sendo esquecimento; esquecimento sendo memória” (SANZ, 2009,

p.7).

Para os nossos olhos, a imagem é um labirinto em que cada caminho um

novo paradoxo precisa ser confrontado. Madoz parece responder

imageticamente a afirmação de Borges: “A certeza de que tudo está escrito nos

anula e nos faz fantasmas.” (BORGES, 2007, p.78). Eis o livro – eis a imagem -

no qual “nada” está escrito, mas tudo pode ser lido. Com essa imagem Madoz

nos salva da fantasmagoria. E, mais uma vez, a fotografia do espanhol

questiona a suposta atestação de existência. Ela é mais do que vestígio, ela é

potência para ver através da janela fotográfica e buscar, nas indagações, a

invisibilidade que tenta responder os paradoxos suscitados.

Nosso olhar, antes tolhido pelo referente, agora está liberto. E nos faz

lembrar de Palomar, personagem e livro de Ítalo Calvino. Assim como para

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Palomar, as fotografias madozianas resultam dos olhares do fotógrafo e do

observador sobre as coisas próximas do cotidiano:

Dado que há um mundo do lado de cá e um mundo do lado de lá da janela, talvez o eu não seja mais que a própria janela através da qual o mundo contempla o mundo. Para contemplar-se a si mesmo o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar. (CALVINO, 1994, p.102)

Na imagem 34 vemos um objeto que aparenta ser uma foice sobre um

bloco de pedra. O objeto, como todos os outros, está em destaque e

centralizado. O modo de apresentação límpido e documental inflige à imagem

uma suposta designação: “isto é uma foice.”. Contudo, um elemento subverte

essa intenção: a lâmina da foice tem a aparência de uma pena. A foice,

historicamente, está associada ao uso agrícola, para a colheita de cereais e sua

lâmina, geralmente, é feita de metal. E, neste caso, parece um registro de um

objeto recolhido em alguma expedição arqueológica. Poderia ser este objeto de

um tempo remoto? Há de se constatar que, antes das lâminas de metal,

existiram as de pedra.

Pensamos, no impulso, que

esta imagem restituiu o

manto do passado da

fotografia. Contudo,

novamente relembramos: e

essa aparência de pena? A

imagem de um objeto

modificado é sugada pelo

presente e diz: isto não é

documento, é imagem –

madoziana. Portanto, a

fotografia tem o tempo

sempre em estado de

mudança, numa relação de

contração e expansão: “Ali, Figura 34

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naquela imagem, o futuro que foi não coincide com o presente que passa, pois o

passado é capitulado também em futuro.” (SANZ, 2009, p.7).

Se continuarmos a reflexão, a palavra pena (semelhante em grafia e

significado em espanhol) pode ser empregada como penalidade. A foice, que

lembra a fertilidade do campo, também condena. Ela decreta o destino do

indivíduo, se associada à morte. Afinal, a representação icnográfica é de um

esqueleto armado de foice. Na mitologia, Cronos armado de foice, corta o órgão

sexual de seu pai, Urano, castrando-o e afastando seu pai do poder,

dominando, portanto, o Universo. O instrumento que ajuda na colheita fértil é

também castrador, pune, controlando a fecundação descontrolada de Urano.

Cronos é aquele que inaugura o tempo, separando os imortais dos mortais

(GONÇALVES, 2011). Contudo, na imagem, a foice não possui o mesmo poder

castrador, pois sua lâmina foi substituída por algo não cortante, uma pena.

Madoz impõe a latência e subverte o tempo da imagem, impedindo a imposição

linear de Cronos.

Novamente, somos inundados de dúvidas que permutam entre a

atestação de existência de algo real com a irrealidade. Madoz usa da fotografia

como um poeta usa das palavras. “O dever do poeta é modificar o mundo

através das palavras.” 69. E o dever do fotógrafo é modificar o visível por meio

da imagem.

Poderíamos continuar infinitamente a indagar sobre as fotografias. É um

labirinto que não tem horizonte, permitindo continuamente questionar as

imagens quantas vezes quiséssemos. Há em todas elas uma ironia, um joguete

de Madoz para com aquele que olha suas fotografias. E, não apenas isso: a

partir da imagem, o fotógrafo questiona sua própria linguagem e, convicto,

parece nos dizer: a fotografia é, acima de tudo, potência de imagem que

ultrapassa o visível. A fotografia madoziana é uma imagem de fluxo contínuo, de

sentido desafixado em que os paradoxos, ambigüidades e contradições

permitem o sobressaltar da invisibilidade. “É como se ela fosse a própria

69 Trecho retirado do filme Janela da Alma.

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apresentação do paradoxo de dois sentidos da experiência no tempo: uma

dobradura” (SANZ, 2009, p.6).

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5. CONCLUSÃO

“A fotografia é enigma: incita o receptor a interpretar, questionar, a

criticar, em resumo, a criar e a pensar, mas de maneira inacabável.”

(SOULAGES, 2010, p.346). Essa frase pode ser usada para traduzir de certa

maneira, o quanto de provocação a imagem madoziana nos suscita. E dentre elas,

ao longo do texto, buscou-se destacar que suas fotografias questionam a si

mesma ou ao menos sugere olhar diferenciado sobre elas.

A análise aqui desenvolvida elegeu primeiramente fazer uma narrativa

sobre a vida do fotógrafo, no intuito de apresentar sua trajetória artística e seus

primeiros contatos com a linguagem mais essencial de seu labor. A primeira

parte proporciona uma maior intimidade com Madoz, pouco conhecido no país.

Posteriormente, foi necessário explicitar o método para obter a fotografia.

Seu processo de produção singular foi, em todo o trabalho, guia das discussões

sobre as imagens. Afinal, “é inegável que meu ponto de partida é a convicção

de que a técnica constitui subjetividade” (LISSOVSKY, 2008, p.201). Não se

espera de um fotógrafo que ele produza imagens as quais não sejam

exclusivamente resultados de seu aparato mecânico, ou seja, de que as

fotografias possam ser resultado de um processo híbrido que utiliza desenhos,

maquetes além da máquina fotográfica.

Logo, auferiu-se que alguns críticos estilizaram suas imagens a partir de

preceitos modernizantes. Ora refletiam unicamente seus objetos ora buscavam

enquadrá-lo em algum movimento estilístico. Em parte, esse equívoco se deve

ao processo de obtenção da imagem, que se confunde com a prática de uso da

fotografia como registro de objetos artísticos, além da clara referência, em

algumas fotografias pontuais, a movimentos modernistas. Há uma armadilha

nessa escolha, pois em ambos os casos, a crítica anula a linguagem fotográfica e

pratica um olhar exclusivo ao referente, ao objeto visível na imagem.

Entretanto, o que se sugere nesse texto foi fazer o caminho inverso desse,

desenvolvido por alguns críticos espanhóis. Buscou-se defender que as

fotografias vão além do visível, além desse apego ao referente. Nesse sentido, a

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produção da imagem não se inicia no momento em que Madoz entra em

contato com a máquina fotográfica, mas, sim, em um pré-fotográfico, que vai

desde o instante no qual uma idéia surge em seus pensamentos até a construção

de seu objeto peculiar, para, finalmente, iniciar o ato fotográfico. Não, a toa,

devido a tal singularidade, tornou-se preferível referir-se as fotografias de

Chema Madoz como madozianas, para não impor a elas características artísticas

classificadoras de outrem.

Nessa conjectura, Madoz propõe, a partir de uma produção clássica de

imagem – filme preto e branco, luz natural – questionar a suposta essência do

fotográfico. Suas imagens impõem uma ruptura: será esse atestado de existência

do referente suficiente para compreender a imagem por inteiro? E é a partir

desse questionamento que se buscou desenvolver um olhar crítico sobre as

imagens.

O que se pretendeu não foi, contudo, negar a intrínseca essência indicial

do fotográfico, mas, sim de mostrar que as imagens madozianas se utilizam

dessa característica para questioná-la, por em dúvida. Dessa maneira, as

imagens nos ensinam que a fotografia vai além da noção de recorte, moldura e

de sua denominação de vestígio de uma realidade. Ela é muito mais que uma

grafia da luz, ela é potência, um mistério a ser desvendado. Uma imagem que

ultrapassa o visível.

Só uma “estética do ao mesmo tempo” permite englobar, num mesmo movimento de pensamento, a pluralidade, (...) e permite sobretudo estar muito próximo não só da fotograficidade, mas sobretudo da relação problemática e enigmática da fotografia com o enigma do real. Só ela ultrapassa a alternativa estéril que opõe um realismo materialista ingênuo, fundamentado num „isto existiu‟, a um formalismo desencarnado simplista, baseado num „isto é apenas uma forma‟ (...) Só ela nos põe diante da riqueza infinita, misteriosa e poética do fotográfico e da complexidade da fotografia e de sua arte. (SOULAGES, 2010, p.344)

Para isso, foi necessário discorrer sobre as teorias indiciais do fotográfico,

demonstrando suas limitações a respeito da complexidade da fotografia. Em

seguida, as noções sobre virtual e atual possibilitaram a desconstrução do

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paradigma social de compreender a fotografia como testemunho da realidade e,

conseqüentemente, relativizar a percepção da imagem, a partir de um olhar que

a encara como algo permeado de complexos problemáticos. Esse é um dos

aprendizados das imagens madozianas - usando a própria fotografia de filme e

com todos os aparatos que proporcionam uma suposta realidade ao referente -

ao olhar para essas imagens o espectador coloca em dúvida tanto os objetos

vistos, como a própria linguagem fotográfica.

A invisibilidade da fotografia está justamente nessa suspeita de que,

talvez, o visível não seja suficiente para dar sentido à imagem. Por isso, para

promover um caminho de argumentação, discutiu-se sobre a relação temporal

da fotografia. O tempo, deslocado para fora da imagem, expandiu a sua

compreensão para os momentos anteriores ao ato fotográfico. A expectação de

Madoz permitiu mergulhar a imagem de subjetividade, de poesia. É, a partir de

seu processo de criação, que se planta as incertezas suscitadas sobre as imagens

madozianas. E é, com o movimento da virtualização, que o nó problemático irá

se florescer na reflexão do espectador, projetando-se para além do processo

criativo do fotógrafo e criando um trânsito particular de indagações infindas.

O tempo das fotografias madozianas se dá a partir de imagens, seu espaço

é impreciso, não linear e são carregadas de paradoxos, de uma

indiscernibilidade entre real e irreal, que promove o questionamento sobre a

própria imagem e interpretações infinitas. Como se Madoz nos jogasse em um

labirinto sem paredes, janelas ou horizontes e nos embriagasse com suas

imagens de coisas quase-conhecidas e, ao mesmo tempo, quase-desconhecidas.

Por fim, essa dissertação não procurou priorizar os devaneios

interpretativos acerca das imagens madozianas, mas, sim, de desenvolver uma

discussão sobre a produção dessas fotografias e, a partir disso, expor que há

nelas uma crítica à própria linguagem, impondo ao olhar uma busca pela

invisibilidade, por meio de um emaranhado de contradições. As imagens

madozinas são ecos que dizem: é preciso ver através do visível.

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7. ANEXO I – Entrevista com Chema Madoz

Durante as pesquisas sobre o trabalho do fotógrafo, senti a necessidade de

elaborar uma entrevista que complementasse minha pesquisa e permitisse

melhor aproximação com o processo de criação das imagens. Chema Madoz

respondeu70 muito gentilmente as minhas perguntas. Acredito que a entrevista

possa servir como um acréscimo aos conhecimentos sobre seu processo criativo

e suas imagens.

1. Seu processo de criação das imagens pode ser dividido em duas fases: a criação dos objetos e a fabricação das imagens técnicas. Na primeira, como é o processo de criação e construção dos objetos? Você sempre desenha? C.M.: Geralmente, há um desenho prévio que me serve para fazer uma primeira abordagem para a imagem. Na maioria dos casos, a imagem a imagem costuma ser muito fiel ao desenho; contudo, em outros casos, o próprio processo de produção me mostra algumas possibilidades que não havia considerado71.

2. No catálogo Obras Maestras, eu percebi que você possui diversos cadernos com desenhos de objetos. Em sua maioria, acredito que sejam projetos para a elaboração da imagem. Pergunto-me se todos os desenhos se transformam em imagens? C.M.: Desenhar as fotos é uma forma prévia para fazer uma primeira aproximação com a imagem, para ver se funciona ou tem uma mínima referência visual. Nem todas as fotos são resultado de um desenho prévio. Se eu tenho os objetos necessários, começo diretamente a trabalhar com eles72.

70 A entrevista foi feita via correio eletrônico e respondida em dois dias: 17 de março e 22 de abril de 2011. 71 Tradução livre: “Generalmente hay un dibujo previo que me sirve para hacer un primer acercamiento a la imagen. En la mayoría de los casos la imagen fina suele ser bastante fiel a ese primer apunte, pero en otros casos el propio proceso de producción te va mostrando algunas posibilidades que no habías considerado.”. 72 Tradução livre: “Dibujar las fotos es una forma de hacer una primera a apróximación a la imagen para ver si funciona o tener una mínima referencia visual. No todas las fotos se corresponden con un dibujo prévio. Si tengo los objetos necesariso, empiezo directamente a trabajar con ellos.”.

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3. Você decide no desenho o ângulo [a ser fotografado] e a iluminação ou somente quando está exercendo o ato fotográfico? C.M.: Quase sempre há variações do desenho para a fotografia. Elas são mínimas, mas no processo sempre aparecem possibilidades com as quais não havia contado73.

4. Seus objetos são fabricados espontaneamente ou cada um foi refletido de maneira consciente? C.M.: Quando estou construindo os objetos é porque, em princípio, havia visto uma imagem [prévia] que poderia fazer replantar a idéia [anterior] que, até então, tinha deles, ou seja, seria parte de um processo de tomada de consciência. Às vezes, primeiro vem a idéia, e busco os objetos com os quais posso simbolizar. Geralmente, nesses casos, são situações que respondem a uma idéia, ou uma sensação, ou emoção... Sem embargo, também pode surgir a idéia a partir de um objeto concreto74.

5. Ainda em relação aos objetos... Eu me pergunto se, algumas vezes você brinca de montar e remontar os objetos até o ponto que algum resultado lhe satisfaça? C. M.: Às vezes, levo ao estúdio algum objeto que me atrai, mas que não sei bem o que quero ou o que procuro nele. O fato de tê-lo à vista e conviver com ele durante um tempo, essas ocasiões, me dão a oportunidade de entender o que havia me atraído nele. Geralmente, não trato de fazer combinações aleatórias com diferentes objetos para ver o que ocorre...75

6. Além de imagens prévias, também há conceitos ou palavras prévias, ou

as duas coisas?

73 Tradução livre: “Casi siempre ha variaciones del dibujo a la fotografía. Suelen ser mínimas, pero en el proceso siempre aparecen posibilidades con las que no había contado.” 74 Tradução livre: “Cuando me pongo a construir los objetos, es porque en principio, me ha parecido ver en esa posibilidad una imagen que me puede hacer replantearme la idea que hasta entonces tenía de ellos. O sea que sería parte de un proceso de toma de conciencia. A veces, primero está la idea y busco los objetos con los que la puedo simbolizar. Generalmente en estos casos, son situaciones que responden a una idea, una sensación o emoción... Sin embargo también puede surgir la idea a partir de un objeto concreto.". 75 Tradução livre: “Hay veces que llevo al estudio algún objeto que me atrae pero que no sé que es lo que quiero, o busco en el . El hecho de tenerlo a la vista y convivir con él durante un tiempo, en ocasiones me da la posibilidad de entender que es lo que me había atraído de el. Generalmente, no trato de hacer combinaciones aleatorias con diferentes objetos para ver que ocurre.”.

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C. M.: As duas coisas. Com o conceito e a imagem mental são prévios...76

7. Quando vejo suas fotografias, um dos primeiros conflitos que surge em meu pensamento é de que maneira poderia classificá-los, qual nome daria para eles. Eu me pergunto se suas idéias, para a construção de seus objetos, aparecem em seu pensamento na forma de imagens ou palavras? E se o significado de cada objeto escolhido faz parte do processo criativo? C.M.: Na maioria dos casos os objetos mudam de função nas imagens. São pequenos deslocamentos do sentido que eles têm, porque sempre vinculamos os objetos à idéia de uso e isso, de alguma maneira, nos faz ver o objeto como se soubéssemos tudo dele e não tivessem mais nada para nos mostrar. Enquanto que um olhar mais pausado, nos ensina a selecionar deles possibilidades que estão implícitas neles, que a idéia de uso apaga. Não me planejo em nenhum momento dar um novo, nome ao objeto criado. De certa forma, seria cair no mesmo de novo, já que ao nomear damos sentido muito concreto, enquanto que, se não há nomes, as interpretações ficam muito mais abertas. O que é certo é que, às vezes, o significado de certas palavras podem desempenhar um papel importante na hora de criar uma imagem nova77.

8. Todas as escolhas de luz, ângulo da fotografia e a impressão são realizado exclusivamente por você? Qual a câmera que utiliza atualmente? C.M.: Sim todas as decisões são tomadas por mim. Trabalho com uma Hassembald78.

9. Você leva mais tempo no processo de construção dos objetos ou no ato fotográfico? C.M.: O usual é que a maior parte do tempo é na construção do objeto, embora existam exceções.79

76 Tradução livre: “Las dos cosas. Con el concepto la reflexión es previa y con la imagen mental, posterior.”. 77 Tradução livre: “En la mayoría de los casos, los objetos cambian su función en las imágenes. Son pequeños desplazamientos del sentido que tenemos de ellos, porque siempre los tenemos vinculados a la idea de uso y eso de alguna manera nos hace ver el objeto como si supiéramos todo de él y no tuviera nada más que mostrarnos. Mientras que una mirada más pausada, no enseña a entresacar de ellos posibilidades que están implícitas en él y que la idea de uso borra de ellos. No me planteo en ningún momento dar un nuevo nombre al objeto creado. En cierta forma sería caer en lo mismo de nuevo, ya que al nombrar, damos un sentido muy concreto, mientras que si no hay nombre las interpretaciones quedan mucho más abiertas. Lo que sí es cierto es que a veces el significado de ciertas palabras pueden jugar un papel importante a la hora de crear una imagen nueva.”. 78 Tradução livre: “Trabajo con una Hasselblad de formato medio. Y todas las opciones que mencionas las decido o soluciono yo.”.

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10. Algumas fotos, no princípio de sua carreira, contam com a presença de

figuras humanas. Por que decidiu utilizar somente os objetos nas fotografias? C.M.: De certa forma, percebi que as pessoas que apareciam nas imagens estavam sendo utilizadas para mostrar minhas próprias idéias ou sentimentos mais do que os seus. Assim, decidi tentar trabalhar com os objetos, entre outras razões, porque estava totalmente rodeado por eles e, que pouco a pouco, fui tomando consciência, de cada objeto há um símbolo que permite interpretá-lo como um conceito, quase como uma palavra em que as interpretações e os significados se acumulam...80

11. Qual é a influência do poeta de Joan Brossa (poeta catalão) em seu trabalho? C.M.: O trabalho de Brossa eu conheci quando tinha vários anos trabalhando em torno do objeto. Tivemos ocasiões. Nós tivemos a oportunidade de nos conhecer e de colaborar em um livro no final dos anos noventa, pouco antes de ele morrer. Sempre me pareceu que havia uma relação estreita entre nossos trabalhos... Daí a idéia de colaborar...81

12. Depois de construir os objetos, você os fotografa. Por que sente a necessidade de fotografar? C.M.: A fotografia outorga ao objeto um espaço imaginário que, do meu ponto de vista, encontra um território que lhe é próprio, mais próximo do intangível, da imaginação...82

13. O que faz com os objetos que fotografa? Guarda?

79 Tradução livre: “Lo normal es que la mayor parte del tiempo se lo lleve la construcción del objeto, aunque hay excepciones.”. 80 Tradução livre: “En cierta forma caí en la cuenta de que las personas que aparecían en las imágenes estaban siendo utilizadas para mostrar mis propias ideas o sentimientos, más que las suyas. De ahí que decidiera intentar trabajar con el objeto, entre otras razones porque estamos totalmente rodeado de ellos y que poco a poco fui tomando conciencia, de en cada objeto hay un símbolo que nos permite interpretarlo como un concepto, casi cómo una palabra sobre la que se agolpan las interpretaciones y los significados...”. 81 Tradução livre: “El trabajo de Brossa lo conocí cuando llevaba varios años trabajando en torno al objeto. Tuvimos ocasión de conocernos y de colaborar en un libro conjunto a finales de los años noventa, poco antes de morir. Siempre me pareció que había una relación estrecha entre nuestros trabajos.... De ahí la idea de colaborar.”. 82 Tradução livre: “La fotografía otorga al objeto un espacio imaginario en el que desde mi punto de vista, encuentra un territorio que le es más propio, más cercano a lo intangible, a la imaginación...”.

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C.M.: Os armazeno no estúdio, mas mais como material de trabalho que posso voltar a reutilizar, do que como peças acabadas que podem mostrar como tais.83

14. Muitos fotógrafos estão abertos aos resultados inesperáveis da fotografia ou aceitar “erros” e imprimir uma imagem que não havia sido concedido mentalmente. Se você é aberto a isso também? C.M.: Apesar de a imagem está muito clara quando começo a trabalhar com ela, sempre estou aberto ao que possa acontecer durante o processo. Nesse sentido, há poucas imagens que acabaram de uma maneira bem distinta a como foram concebidas.84

15. Definiu-se a ontologia da fotografia a partir da teoria indicial, ou seja, ela é rastro/vestígio do real. Isso implicaria em dizer que tudo que vemos na fotografia é rastro de uma realidade; porém, ao olhar suas imagens, nós observamos coisas que não existem na realidade. Estes objetos existem somente em sua fotografia. Creio que suas fotos tratam de ampliar e desafiar a teoria redutora da indicialidade, quando expõe o paradoxo entre real e irreal. Concorda? C.M.: De alguma forma, é disso que trata as imagens... A fotografia, curiosamente e apesar de todas as transformações tecnológicas que tem havido nos últimos anos, ainda carrega essa estreita relação com a idéia de realidade. Nas minhas fotografias, a realidade adota um caráter que é difícil de entender como real, porém, se aproveita dessa etiqueta, que a técnica fotográfica carrega para dar carta de realidade ao imaginário.85

16. Algumas de suas fotografias fazem referência ao Magritte. Eu me pergunto se as obras de Magritte e o Surrealismo têm influencia em sua criação? C.M.: Em algumas delas pode haver uma homenagem mais ou menos explícita ao seu trabalho. Magritte foi um artista que trabalhou muito sobre a leitura que podemos fazer de uma imagem e isso é algo que me interessa. Enquanto a influência do Surrealismo, em muitas ocasiões

83 Tradução livre: “Los almaceno en el estudio, pero mas como posible material de trabajo que puedo volver a reutilizar, que como piezas acabadas que se puedan mostrar como tales.”. 84 Tradução livre: “A pesar de que la imagen está muy clara cuando comienzo a trabajar en ella, siempre estoy abierto a lo que pueda suceder durante el proceso. En ese sentido hay unas cuantas imágenes que acabaron de una manera bien distinta a como fueron concebidas.” 85 Tradução livre: “De alguna forma es de eso de lo que tratan las imágenes... La fotografía curiosamente y a pesar de todas las transformaciones tecnológicas que ha habido en los últimos años aún arrastra esa estrecha relación con la idea de realidad. En mis fotografías la realidad adopta un carácter que en ocasiones es difícil de entender como real, pero se aprovecha de ese marchamo que le otorga la técnica fotográfica para dar carta de realidad a lo imaginario.”

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mais formal do que conceitual: interessa-me [o Surrealismo] como corrente, porém da mesma maneira que outras me interessam...86

86 Tradução livre: “En alguna de ellas puede haber un homenaje más o menos explícito a su trabajo. Magritte fue un artista que trabajó mucho sobre la lectura que podemos hacer de una imagen y eso es algo que me interesa. En cuanto a la influencia del surrealismo, en muchas ocasiones puede ser más formal que conceptual: me interesa como corriente, pero de la misma forma que me pueden interesar otras...”