Um olhar sobre a relação entre cultura visual e cultura ... · Frames do filme Victoire de la...
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Um olhar sobre a relação entre cultura visual e cultura política: os filmes de
Henri Cartier-Bresson na Guerra Civil Espanhola
ERIKA ZERWES∗
Apesar de estar trabalhando como repórter fotográfico na segunda metade da
década de 1930, Henri Cartier-Bresson não foi para a Espanha em guerra como
fotógrafo, mas como diretor de documentários de propaganda. Ele havia aprendido
rudimentos do ofício em Nova York em 1935 na cooperativa Nykino, que tinha
tendências políticas de esquerda e era dirigida pelo fotógrafo e documentarista Paul
Strand1. A intenção era levantar ajuda financeira para a Espanha, e ainda denunciar os
abusos do lado de Franco.
Sabe-se que Cartier-Bresson realizou três filmes na Espanha em guerra. Um
deles consiste em curto trecho recentemente atribuído, With the Abraham Lincoln
Brigade in Spain (16mm, 21’) de 1938. Foi encontrado nos arquivos da Abraham
Lincoln Brigade, organização de veteranos norte-americanos das Brigadas
Internacionais que lutaram ao lado dos republicanos, e mostra soldados fazendo uma
∗ Doutora em História pelo IFCH-Unicamp. 1 Nykino é a junção das palavras New York e kino, cinema em russo. Como o nome indica, o grupo de cineastas de posições políticas de esquerda pregava uma estética documentária inspirada no cinema soviético dos anos de 1920. Além de Strand, faziam parte do grupo William Van Dyke, Ralph Steiner, Jay Leda, entre outros. A produtora dos filmes de Cartier-Bresson na Espanha em guerra, a Frontier Films, assim como parte da equipe, é ligada ao grupo. Phillipe-Alain Michaud vê semelhanças entre Heart of Spain, documentário filmado por Strand, do qual fez parte também Herbert Kline, e Victoire de la vie. Esta produtora também foi responsável por Spanish Earth, de Joris Ivens, filmado na mesma época (MICHAUD In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 85).
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refeição em campanha2. Os outros dois são filmes de propaganda, Victoire de la vie
(16mm, 47’) feito em 1937 para mostrar o trabalho da Centrale Sanitaire
Internationale, e L’Espagne vivra (35mm, 44’) que foi filmado para o Secours
Populaire de France et des Colonies em 19383. Ambas as instituições eram ligadas ao
Partido Comunista Francês. Estes três trabalhos fizeram parte de uma mobilização
maior dos intelectuais e artistas franceses de esquerda. Grande parte dos membros da
equipe de filmagem e pós-produção era ligada à revista ilustrada semanal Regards,
ligada ao PCF, ou à AEAR, a Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários.
Faziam também parte deste círculo outros dois fotógrafos, amigos de Cartier-Bresson:
Robert Capa e David Seymour “Chim”. Juntos, os três fundariam a agência
fotográfica Magnum, em 1947.
Img. 1. Anônimo. Jacques Lemare, Henri Cartier-Bresson e Herbert Kline durante
filmagens. Espanha, outubro de 1937.
Victoire de la vie é voltado para a atuação da Centrale Sanitaire Internationale
na retaguarda do conflito. Narrado por Pierre Unik, repórter da Regards, filmado por
Jacques Lemare e Herbert Kline e dirigido por Henri Cartier4, o filme começa
2 Disponível em http://www.albavolunteer.org/2010/03/rare-documentary-film-saved/. Acesso em 02/04/2014. 3 Estes filmes estão preservados no Fonds Audiovisuel du PCF, Ciné-Archives, Archives Françaises du Film, Forum des Images. 4 Segundo seu biógrafo, Cartier-Bresson faz questão de ser creditado sem o sobrenome completo também quando suas fotografias são publicadas no jornal Ce soir. Ele não deseja ser associado à alta classe francesa da qual sua família faz parte (ASSOULINE, 2004, p. 118).
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afirmando a preocupação da República com a saúde e o bem estar das crianças, e o
perigo em que a guerra as coloca. Mostra assim as doações da instituição indo para o
cuidado e alimentação das crianças, vítimas inocentes da guerra. Em seguida,
trabalhadores do campo são filmados durante uma colheita, erguendo suas foices à
contra-luz, compondo uma cena de alto grau simbólico, uma vez que a foice e o
martelo simbolizam o comunismo [Img. 2]. Apesar de se focar na retaguarda, há
algumas seqüências de batalha.
Imgs. 2 e 3. Frames do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1937.
A Imagem 3 mostra uma tomada da artilharia composta com um gosto pelo
geométrico caro à Cartier-Bresson. Em seguida a câmera se posiciona fixa atrás de
um abrigo, registrando a passagem apressada de soldados em ação. É possível ver as
bordas de madeira do buraco pelo qual a câmera filma abrigada [Img. 4].
Img. 4. Frame do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha,
1937.
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Terminadas estas seqüências de ação, o filme volta a se focar na retaguarda,
mostrando o trabalho das ambulâncias chegando para socorrer os feridos, e, após os
primeiros cuidados, a evacuação destes para centros médicos mais afastados do
combate, e a recuperação nos hospitais de Barcelona, com tratamentos de fisioterapia
e até a colocação de próteses. A mesma apreciação por composições elaboradas e
geométricas aparece quando é mostrado um hospital que comemora um ano de
funcionamento com a ajuda do CSI. Os quadros do filme reproduzidos nas Imagens 5
e 6 remetem à fotografias que Cartier-Bresson havia realizado no país quando lá
esteve em 1933, como a Imagem 7, feita em Sevilha.
Imgs. 5 e 6. Frames do filme Victoire de la Vie, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1937.
Img. 7. Henri Cartier-Bresson. Sevilha. Espanha, 1933.
A aproximação estética entre algumas das tomadas do filme e a produção
fotográfica de Cartier-Bresson é sugeria por Phillip-Alain Michaud, quando este
afirma que, segundo Kline, a maior parte da concepção visual do filme veio de
5
Cartier-Bresson, ao mesmo tempo em que a maior parte das idéias de cenas vieram
dele mesmo. Assim, Michaud conclui que mesmo que Cartier-Bresson não tenha
fotografado a guerra na Espanha, como Capa ou Chim, ainda assim, por sua estética,
o fotógrafo estaria contido dentro do filme de propaganda (In CARTIER-BRESSON,
MONTIER (eds), 2009, p. 85)5.
Victoire de la vie continua mostrando o cuidado com os feridos na guerra,
quando os veteranos são enviados para um descanso na praia e participam de um
trabalho de educação ou reeducação. Os homens são mostrados sendo alfabetizados
por voluntárias, e as mulheres aprendendo a bordar. O seguinte letreiro o encerra:
Avec de tels hommes l'Espagne ne peut pas mourir. L'idéal pour
lequel ils ont prodigué leur sang est un idéal de Paix. Pour que les
enfants grandissent dans la joie. Pour les belles moissons de
demain. L'Espagne au grand cœur doit vivre. L'Espagne vivra.6
L’Espagne vivra parece não ter sido distribuído comercialmente, tendo ficado
pronto apenas depois que a guerra terminou. Foi realizado pela mesma equipe, porém
sua narração é feita por Georges Sadoul, poeta que trocou o surrealismo pelo
comunismo, membro da AEAR, e repórter do L’Humanité e depois da Regards. Além
de mostrar a ajuda humanitária vinda das doações francesas, o filme constrói uma
denúncia sobre a participação da Itália e da Alemanha, e dos exércitos mouros, na
guerra ao lado de Franco, buscando provas assim de que o tratado assinado pela
França e Inglaterra com a Alemanha fascista, afirmando que não iriam intervir no
conflito espanhol, não era respeitado. Uma vez que o Comitê de Não-Intervenção, do
qual fazia parte a França, não agia de modo legítimo, também a França não estaria ela
própria segura com o avanço do fascismo. O filme é composto por trechos de outros
5 O autor afirma que: “Selon Kline, la plupart des idées visuelles développées dans Victoire
de la vie venaient de Cartier-Bresson, tandis que le plupart des idées de scènes venaient de lui. Le point n’est pas sans importance : il manifeste une dissociation, perceptible dans le déroulement même du film, entre l’unité du plan (l’image) et celle de la scène (la construction narrative). Si Henri Cartier-Bresson, à la différence de Robert Capa et de David Seymour (Chim), n’a pas pris de photos durant la guerre d’Espagne – ce qu’au demeurant il dira par la suite avoir toujours regretté –, le photographique reste néanmoins inscrit dans le film, ce dernier étant désormais conçu comme une forme composite” (MICHAUD In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds), 2009, p. 85). 6 Victoire de la vie, 16mm, 47’, 1937, dir. Henri Cartier-Bresson.
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filmes e imagens de arquivo, de animações gráficas, além de material próprio. Há
muitos braços erguidos com os punhos fechados [Img. 8], gesto característico das
Frentes Populares européias7, imagens de equipamentos alemães e italianos, atestando
o descumprimento do Pacto de Não-Intervenção, e tomadas das vítimas e da
destruição de cidades, especialmente Madri [Img. 9].
Imgs. 8 e 9. Frames do filme L’Espagne Vivra, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1938.
Diferente de Victoire de la vie, não é possível identificar em sua estética muito
do olhar pessoal de Cartier-Bresson. Uma seqüência, no entanto, chama a atenção por
sua semelhança com fotografias das crianças espanholas feitas por Chim, ainda em
1936. Enviado pela Regards para cobrir a guerra desde seu início, esta foi uma das
primeiras séries feitas por Chim, sobre órfãos que perderam os pais no conflito contra
os fascistas. A temática é praticamente a mesma do filme de Cartier-Bresson, como
mostra a Imagem 10, aos 36 minutos.
7 Sobre o gesto dos punhos fechados como uma manifestação visual da cultura política de esquerda e anti-fascista no entre-guerras ver ZERWES, Erika. Tempo de Guerra. Cultura
Visual e Cultura Política nas Fotografias de Guerra dos Fundadores da Agência Magnum,
1936-1947. Tese de doutorado, 2 vols. IFCH-UNICAMP, 2013.
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Img. 10. Frame do filme L’Espagne Vivra, dirigido por Henri Cartier-Bresson. Espanha, 1938. Imgs. 11 e 12. David Seymour Chim. Crianças em uma creche ou orfanato de Madri fazem a
saudação republicana. Espanha, agosto-setembro de 1936.
Não apenas as crianças, que aqui como em Chim representam as vítimas
inocentes das barbaridades fascistas, mas também outros temas e enfoques presentes
nos filmes de Cartier-Bresson também povoaram semanalmente as páginas da
Regards e de outras revistas ilustradas. Ainda em 1938, Robert Capa lançou um livro
com fotografias suas, de Chim e de Gerda Taro, chamado Death in the Making.
Muitas destas imagens haviam sido publicadas na imprensa ilustrada. O livro, assim
como Victoire de la Vie e L’Espagne Vivra, tinha a intenção de divulgar a causa
republicana no exterior. O tom de propaganda, e os temas exaltados pelas imagens são
praticamente os mesmos no livro e nos filmes.
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Imgs. 13, 14 e 15. Páginas do livro Death in the Making. Covici-Friede Publishers, EUA, 1938.
Como em Victoire de la Vie, o livro de Capa também mostra o cuidado com os
combatentes feridos [Img. 14], e milicianos republicanos analfabetos sendo
alfabetizados [Img. 13]. Eles simbolizavam um passado feudal de atraso e de
exploração no campo, que estava sendo eliminado pela República. Da mesma forma,
o zelo pelo patrimônio e pela cultura simbolizavam um lado civilizado, em oposição à
destruição causada pela barbárie fascista. Destruição esta causada principalmente
pelos bombardeios aéreos [Img. 15]. A dedicação à cultura, ameaçada pelos
bombardeios fascistas às cidades, e a exaltação dos trabalhadores rurais apoiadores da
República, são temas compartilhados por Cartier-Bresson, Capa e Chim, entre outros
fotógrafos ligados às esquerdas.
Esta semelhança estética e quanto ao tema mostra as afinidades do trabalho
destes futuros colegas da Magnum na Espanha em guerra. Ela deixa ver um círculo
social compartilhado por estes fotógrafos que era não apenas artístico, mas também
politicamente ativo. Ao mesmo tempo, ela deixa ver também um programa político
muito claro, que estava sendo construído metodicamente através do visual. A crença
no poder heurístico da imagem técnica é posta claramente.
No entanto, enquanto Chim e Capa divulgaram suas imagens de propaganda
prioritariamente em forma de fotografias para a imprensa, Cartier-Bresson optou
pelos filmes. Michaud aponta que Cartier-Bresson viria a expressar arrependimento
em ter preterido a fotografia na Espanha (In CARTIER-BRESSON, MONTIER (eds),
2009, p. 87). Seu último filme ficou pronto somente após o término do conflito,
quando as fotografias de seus futuros colegas da Magnum, Chim e Capa, já haviam
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atingido os grandes públicos das revistas ilustradas, chegando mais perto do objetivo
de propaganda. Isto o ajudou na decisão de abraçar definitivamente a fotografia como
meio privilegiado. Seu biógrafo, Pierre Assouline, afirma:
Cartier-Bresson confessa com dificuldade: ‘sofrerá’ durante muito
tempo porque somente seus dois grandes amigos Capa e Chim
passaram para a posteridade como os fotógrafos da Guerra Civil
Espanhola, e não ele, embora os três tivessem trabalhado nela. Só
que Cartier-Bresson não tirara nenhuma foto. Eterno remorso...
Antes preocupado em conseguir dinheiro para os hospitais
republicanos, ele trabalhara pela causa, no contexto da
propaganda, e o fizera filmando. Mas um documentário passa pela
memória coletiva tão rápido quanto as imagens que passam na tela.
As fotos permanecem. A montagem de um filme geralmente leva
tempo. No tempo que leva para finalizá-lo, a guerra civil já
terminara. (ASSOULINE, 2004, p. 118)
Esta experiência, assim como a experiência da Segunda Guerra Mundial,
foram fundamentais para as escolhas posteriores de Cartier-Bresson. Foi neste
momento que ele deixou de lado a pintura: segundo Russel Miller, Cartier-Bresson
afirmaria mais tarde que ele pretendia voltar a pintar depois da guerra, mas se sentiu
levado a “bear witness to the wounds and upheavals of the world with some
instrument more rapid than a brush” (MILLER, 1997, p. 42).
BIBLIOGRAFIA
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ZERWES, Erika. Tempo de Guerra. Cultura Visual e Cultura Política nas Fotografias de
Guerra dos Fundadores da Agência Magnum, 1936-1947. Tese de doutorado, 2 vols. IFCH-UNICAMP, 2013.