UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS - A HISTÓRIA DE UMA CORTESÃ

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Ela era uma moça dedicada à família, cuidava da casa e dos quatro irmãos: Eulália, Pietro e as pequenas gêmeas ainda recém-nascidas. No entanto, em troca recebeu a traição como paga...

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Um olhar vale mais que mil palavras

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Adriana Matheus

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A Editora

IXTLAN

Apresenta...

Adriana Matheus

Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras

A história de uma cortesã

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Um olhar vale mais que mil palavras

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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73).

Adriana Matheus

[email protected] Ano 2014 1ª Edição

Projeto Gráfico e Impressão: Editora Ixtlan Revisão ortográfica: Pâmyla Serra www.re-visaodeaguia.com Edição de capa: Adriana Matheus Diagramação: Márcia Todeschini

CIP.

CIP. Brasil. Catalogação na Publicação. M427s - Matheus, Adriana, 1970. Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras/ Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. p. : il. ISBN: 978-85-65588-01-0 Ficção brasileira. Contos. CDD: B869.2

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UM OLHAR VALE MAIS QUE

MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

Adriana Matheus

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Um olhar vale mais que mil palavras

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Sumário

Capítulo I - A decepção...............................................09

Capítulo II - A iniciação...............................................52

Capítulo III - Do pacto à vingança.............................109

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Prólogo:

Ela foi massacrada por todos e pelo próprio destino, e tornou-se então a maior feiticeira da Espanha e também a rainha dos cabarés. Canta a lenda que bastava um olhar seu para colocar qualquer homem aos seus pés. Emanuelizia nunca conseguiu ficar com o seu único amor, mas também nunca desistiu de vingar-se dele e de todos os que lhe fizeram mal. Dizem que seu espírito ainda clama por vingança e que ela nunca reencarnará até que todos os culpados por sua degradação estejam debaixo de seus pés.

Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por acaso, na verdade são fases... E essas fases têm que ser aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas também temos que nos lembrar que eles vieram para nos ensinar que não existe nada e ninguém permanecerá conosco por toda a eternidade. Na vida tudo é passageiro e viver dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as tentações do mundanismo e da decadência são muitas e, aparentemente, facilitam a vida do ser humano o deixando futuramente em um completo tormento de solidão. Pensem nisso!

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Dedico esta obra ao povo cigano e sua cultura

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I – A decepção

brisa que vinha do oceano gelava os meus ossos

naquela fria manhã de início de inverno, mas

não me importava – estava muito ansiosa por encontrar meu

noivo, Maxuel. Não via a hora de estar em seus braços. Maxuel

era tão gentil! Ele fazia qualquer vontade minha. Era só eu pedir

e ele buscaria a Lua se assim eu quisesse. Mas confesso que

existiam alguns prós e contras em nossa relação...

Caminhei por muito tempo pela praia. Precisava pôr

meus pensamentos em ordem. O clima hostil que se formava

dentro da minha casa estava a cada dia mais intolerável. As

discussões entre meu pai e minha mãe na noite anterior tiraram-

me o sono e a minha cabeça parecia ter bolhas de sabão. Meus

olhos amanheceram inchados e ardendo, de tanto que chorei

durante toda aquela madrugada. Tive também que me manter

em estado de alerta por causa da minha irmã mais nova – que,

naquela noite, teve outra séria indisposição. Meus pais pareciam

não se preocupar conosco, pois estavam ocupadíssimos

engalfinhando-se o tempo todo. Às vezes, ficavam até altas

horas da madrugada discutindo – com isso, ninguém mais

conseguia dormir na casa. O que mais me preocupava era a

saúde de Eulália, minha irmã. Ela se tornava cada dia mais

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debilitada e seu semblante era pálido e deprimido. Meus pais,

porém, pareciam não dar importância a esse fato, que a cada dia

ficava mais delicado. Por isso, a responsabilidade de cuidar da

casa e dos meus irmãos caía sempre sobre as minhas costas. Não

sabia ao certo o que minha irmã Eulália tivera naquela noite –

talvez tivesse comido algum fruto do mar estragado... ou comido

em excesso, o que estava sendo uma rotina em sua vida. Ela

andava muito nervosa e descontava toda a ansiedade em

guloseimas. Eram tantos os meus problemas que nem sabia por

onde começar...

Amava minha família. Eles eram tudo para mim. Vivi

somente em função dos meus irmãos. Anulei a minha vida

pessoal por causa de todos eles. Nunca imaginaria que um dia

um deles fosse me trair. Eu e meus irmãos, quando crianças,

éramos muito unidos, embora Eulália estivesse aparentemente

revoltada nos últimos tempos. Meus pais não tinham tempo para

nós, nunca foram afetuosos. Então, com isso, assumi a

responsabilidade de mãe zelosa. Entendia a rebeldia de Eulália:

provavelmente era por causa da idade ou resultado das brigas

diárias que ela presenciava desde muito cedo. Com o passar do

tempo, fizemos uma família à parte, separada de nossos pais.

Eles não se separavam, não nos mandavam embora e tampouco

demonstravam amor por nós.

Quando éramos mais jovens, nossa única diversão era

pegar conchinhas à beira da praia. Não tínhamos brinquedos,

mas sinto saudades daquela época. Porém, durante todas as

brincadeiras, Eulália sempre foi a mais ambiciosa e dizia que

um dia iria ser rica e iria embora dali para bem longe. Tais

palavras jogavam água fria nas minhas expectativas de ter uma

família feliz e unida para sempre. Definitivamente, ela me

preocupava mais que os outros. Meu irmão provavelmente seria

um pescador como meu pai ou, por sorte, Maxuel arrumar-lhe-ia

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um emprego na fábrica de sua família. E eu?! Só queria ter uma

vida simples e ser feliz ao lado de Maxuel... Em meus planos,

nunca descartei levar minha mãe e irmãos comigo – aonde quer

que eu fosse, eles iriam. Não era que eu não amasse meu pai,

mas vê-lo maltratando minha mãe me deixava arredia com ele.

Ele era um homem muito rude e seco em demasia. Para ele, tudo

tinha que ser a tempo e a hora. Caso contrário, apanhávamos

muito. Por ser um pescador de pesca grande, ficava seis meses

em terra, seis meses em alto-mar. Por isso, via-o como um

estranho e evitava ao máximo contrariá-lo.

A onda do mar tocou em meus pés naquele momento,

fazendo-me abrir os olhos, despertando-me daquele quase transe

cheio de preocupações e tormentas. Fitei o horizonte para ver

aquela beleza de cenário à minha frente. O mar da Espanha era

mesmo lindo, de um azul inigualável. Observei algumas

conchinhas trazidas pelas ondas, o que ressaltou mais uma vez

minhas lembranças nostálgicas. Baixei-me, pegando-as, para em

seguida devolvê-las ao mar. As ondas logo as levaram para

longe... Outra coisa que muito me fascinava era ver as ondas

quebrando nas pedras. Elas passavam pelas pedras todos os dias,

pacientemente – assim, com o passar do tempo, transformavam-

nas em minúsculos grãozinhos de areia. Como algo tão sensível

como a água poderia transformar algo tão bruto como as rochas?

Isso era poético e de pura alquimia. “A natureza é perfeita”! –

pensei comigo.

Levantei-me e fiquei olhando ao longe os pescadores,

que jogavam suas redes ao mar num esforço incansável. Eram

dessas redes que aquelas pessoas simples tiravam o sustento de

suas famílias. Era uma vida muito simples, sem muitas

perspectivas. Mas, de certa forma, todos estavam felizes daquela

maneira. Não deveria ser mudado o rumo daquela história.

Afinal, quando tentamos mudar uma história, embutindo certos

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sonhos na cabeça das pessoas, elas podem perder a

grandiosidade de serem como são. Ser simples não é ser

conveniente – é ser poético e transparente! Para mim, só

existiam duas coisas terríveis: o excesso de ignorância por

teimosia ou o excesso de ambição.

Pensamento estranho esse que tive naquele dia,

principalmente vindo de uma jovem humilde como eu era.

Voltei meus pensamentos para o meu noivo, que estava

atrasadíssimo, para variar. Maxuel e eu nos conhecíamos desde

crianças. Nossas famílias eram muito amigas. Embora minha

família fosse de origem humilde, a de Maxuel nunca se

importou com nossa condição financeira. Éramos o que se podia

dizer o casal perfeito. Maxuel sempre me respeitou. Nunca

fomos além. Aliás, ele nunca sequer tentou beijar-me: dizia que

estava guardando o melhor para depois do casamento. Às vezes,

eu sentia falta de algo mais, mas não podia manifestar meus

desejos, pois tinha medo que Maxuel interpretasse mal minhas

verdadeiras intenções. Fui criada de maneira muito rígida,

embora fôssemos apenas uma família de pescadores de uma

pequena aldeia de Valença, quase divisa de Portugal com a

Espanha.

Embora fôssemos espanhóis, viemos morar nessa

pequena vila porque minha família dizia que ali a vida seria

mais farta e tranquila. Eu amava minha pequena vila. Ela era

maravilhosa e parecia ter saído de um conto de fadas. As casas

eram posicionadas uma ao lado da outra, e a arquitetura era a

mesma do outro lado da rua. Todo mundo se conhecia, todo

mundo era amigo. Mentalizei, detalhando na minha mente a

história da minha Espanha. De vez em quando, fazia isso para

memorizar o que Maxuel me ensinava. Ah, a Espanha!... É

cercada de histórias e mesclada de nomes místicos, condes,

califas, cruzadas e reis, que se iniciam desde os princípios da

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civilização e que chegam a adquirir contornos de ficção, com

toques folclóricos e de romances... Houve, sim, diversos

acontecimentos históricos que causaram a unificação da

Espanha, mas eu estava tão preocupada com o atraso de Maxuel

que, novamente, desviei meus pensamentos para a minha vida

cotidiana. Estava confusa e meus pensamentos estavam em

desordem. Minha cabeça pensava mil coisas ao mesmo tempo.

Respirei profundamente, pensando “onde estaria Maxuel”?!

Nossas famílias não só eram muito amigas, mas

mantinham um laço consanguíneo. A irmã de minha mãe casou-

se com um lorde inglês e ambos decidiram ajudar minha família.

Minha tia Ellen batizou-me assim que nasci, fazendo a estranha

promessa de casar-me com Maxuel quando eu completasse vinte

anos. Meu primo, também meu noivo, é dois anos mais jovem

que eu. Senhor Álvaro Merton, esposo de minha tia Ellen, era

um homem muito elegante: nunca o ouvi exaltar a voz para ela.

Os dois pareciam viver muito bem, embora também não

fizessem demonstrações de carinhos em público. Maxuel não foi

mimado. Seu pai, nesse ponto, teve pulso firme, fazendo-o

assumir os negócios da família desde cedo. Ele seria, por certo,

um bom esposo – claro, dentro das normas e tradições inglesas –

, exceto pela pontualidade. Eu, propriamente, nada podia

reclamar de Maxuel e muito menos da família de minha tia, que

sempre estava fazendo algo por nós. Eles tentaram de tudo para

nos ver crescer. Inclusive minha tia arrumou na fábrica de seu

esposo um ótimo emprego para meu pai. Ele seria, então, o

administrador encarregado da fábrica, mas teimosamente não

aceitou, embora minha mãe tivesse feito de tudo para que ele

deixasse a pesca. Papai era um homem muito simples e muito

rude, e o mar era a sua vida. Não conseguiria, portanto, ver-se

preso dentro de uma fábrica. Para ele, a liberdade era tudo. Mas

nós, as mulheres da família, não podíamos ter esse privilégio. Se

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algo maculasse nossa reputação, seríamos expulsas de casa

imediatamente. Sua presença dentro de casa era motivo de

pânico, pois ele nos mantinha debaixo de seus olhos e de suas

ordens constantes. Ou seja, ele era o dono e a nossa reputação

tinha que ser acima de qualquer suspeita. Ele batia em minha

mãe sempre que chegava alcoolizado em casa. Com isso, eu

estava ansiosa para me casar com Maxuel. Queria ter minha

própria família e parar de presenciar o horror em que vivia

minha mãe – que, embora com todo aquele sofrimento, aceitava

tudo o que meu pai fazia com ela. Ela baixava a cabeça com

uma devoção desprezível. Ele era o Deus dela, a voz de

comando em seu cérebro, o seu monarca, senhor e dono. Eu

nunca havia visto nada tão estranho e doentio como a vida de

minha mãe. Eu tinha dezenove anos e não era isso o que eu

queria para mim.

Minha irmã Eulália tinha quinze anos e também estava

em busca de um pretendente para sair daquela vida miserável de

amargura e prisão. Meu irmão Pietro era apenas um menino de

treze anos, mas trabalhava como louco fazendo pequenos

serviços à vizinhança para poder juntar o suficiente e ir embora

de casa. Minha mãe estava amamentando minhas duas outras

irmãs mais jovens, Maria de Lourdes e Maria da Consolação,

que estavam apenas com seis meses de nascidas. Na verdade,

não tínhamos muitas perspectivas de vida e, por isso,

agarrávamo-nos à oportunidade de um casamento feliz e

vantajoso.

O Sol começava a despontar no horizonte. Era de um

vermelho alaranjado e seus raios fundiam-se com as águas do

mar. O cheiro da maresia sempre me pareceu tão familiar! Às

vezes, tinha a sensação de sempre tê-lo conhecido. O mar e eu

sempre estivemos ligados, não sei por quê. Ali, naquele exato

momento, eu poderia jurar que escutava vozes vindas do fundo

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do oceano. Talvez fossem das sereias. Havia tantas lendas sobre

o mar! Quando era mais nova, imaginava-me sendo sequestrada

por piratas que me levavam para bem longe. Sempre fui muito

sonhadora e os corsários eram a minha fantasia favorita. Não sei

por que, mas naquele momento abri meus braços e deixei que o

vento me tocasse. Queria sentir aquela magia. As ondas

agitavam-se e pareciam que iam crescendo cada vez mais. O

mar tocou novamente meus pés; a areia úmida deslizava entre

meus dedos. Eu adorava andar descalça – o que era o desespero

de minha mãe. Mas, para mim, não tinha nada mais sublime do

que sentir a terra, a areia e o chão que eu pisava. Não me dava

ao luxo de me privar dessa liberdade. Meus cabelos soltos

agitavam-se com o vento. Pude sentir meu xale cair ao chão. De

repente, não sentia mais frio, e o mormaço daquele nascer de sol

foi o suficiente para que meu corpo não quisesse mais nada além

de...

Alguém chegou por trás e tampou meus olhos com as

mãos. Eram mãos macias, de gente que nunca havia pegado no

pesado, e estavam cheirosas. Vir-me-ei lentamente e vi um

jovem muito bem trajado. Seus olhos eram azuis como o céu e

seus cabelos muito loiros. Abrindo um largo sorriso, disse-me:

– Como está a minha querida prima nesta bela e fria

manhã? Desculpe-me pelo atraso, minha linda flor. Tive uns

compromissos inesperados. Sabe como são coisas de trabalho...

Papai incumbiu-me de resolver alguns problemas com os nossos

fornecedores.

Não sei por que, mas aquele elogio não me soou tão

sincero. Maxuel era sempre tão ponderado, tão frívolo em

questões de elogios! Porém, respondi tentando não demonstrar

que desconfiava que Maxuel tivesse outras mulheres além de

mim – o que era normal, já que nunca tivemos nada

intimamente.

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– Já aprendi a lidar com o seu atraso, meu querido primo.

Para falar a verdade, já nem ouvia as desculpas que ele

dava, pois eram sempre as mesmas. A família de Maxuel tinha

uma indústria têxtil e exportava tecidos para outros países. Por

certo, havia ficado preso com algum fornecedor. Tentei mudar

os pensamentos, para não ficar como muitas mulheres, que

vivem cobrando de seus noivos. Fiquei meio perdida em meus

pensamentos. Foi preciso que Maxuel me tirasse daquele transe.

– Emanuelizia! Onde estava, mocinha? Parecia estar

desacordada do mundo! Há minutos estou a chamá-la. –

chamou-me a voz, que parecia muito distante naquele momento.

– Desculpe-me, meu querido Maxuel. Estava somente a

pensar – senti uma lágrima rolar em minhas faces.

Ele me abraçou e me interrogou, parecendo preocupado.

– Posso saber em que pensa minha noiva? Saiba que

sinto ciúmes.

Dei-lhe um sorriso, respondendo em seguida:

– Na vida. Nas coisas que já passei e nas coisas que

presencio em minha casa.

– Não quero que se aborreça com essas coisas. Logo

estaremos casados e já lhe disse: poderá levar consigo a sua

irmã. Assim, ficará despreocupada com o destino que ela poderá

ter. Serei para Eulália como um irmão mais velho, você vai ver.

Poderemos ajudá-la no que for necessário.

Abracei-o imediatamente mediante aquelas palavras. Ele

me empurrou e beijou-me as mãos. Senti minhas faces

enrubescer diante daquela atitude tão fria vinda da parte dele.

Mediante isso, fomos caminhar à beira-mar. Falei-lhe

sobre muitas coisas, e logo acabei por esquecer aquela súbita

insegurança, seguida de um teimoso ciúme. Maxuel era muito

compreensivo e ficou a me ouvir por horas. Ele sempre tinha

uma resposta para tudo. Dávamo-nos muito bem, pelo menos

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era o que eu pensava! Fazíamos muitos planos juntos, e ajudar

minha irmã Eulália era um deles. Pensávamos em colocá-la

numa escola para moças para que tivesse boa educação. Na

verdade essa ideia veio da parte de Maxuel, eu apenas acatei. Só

aprendi a ler porque Maxuel tivera boa vontade e paciência

comigo. Ele me ensinou tudo o que aprendera em uma faculdade

da Inglaterra. Eu lhe era muito grata por tudo. Achava que o

amor era simplesmente decorrente de uma amizade como a

nossa. Talvez aquele sentimento fosse mesmo uma forma de

amor. Eu estava feliz daquela forma. Afinal, não conhecia nada

além daquela vila de pescadores à beira-mar.

Caminhamos por horas um ao lado do outro. Perdemos a

noção do tempo – já era quase meio-dia quando percebemos que

tínhamos excedido no tempo. Quando resolvemos voltar para

casa, Maxuel foi logo me prevenindo que não ficaria para

almoçar, pois estava muito atrasado para o trabalho.

Mal abrimos a porta de casa e já percebemos o clima

hostil entre minha mãe e meu pai. Ele acabara de chegar da

pesca e ainda estava todo sujo de isca. Minha mãe estava

reclamando e pedindo para que ele fosse se lavar. Porém, papai

dizia que ela fazia isso por ele ser um homem de origem

humilde. Não aguentando ver aquela discussão, interferi,

perguntando:

– O que é que está acontecendo aqui? Será que os dois

não conseguem viver sem um ter que afrontar o outro?

Meu pai olhou-me furioso. Mal cumprimentou Maxuel

com um aceno de cabeça e saiu batendo a porta. Eulália estava

chorando, com as mãos nos ouvidos. Meu irmão não estava em

casa, devia estar sentado à beira-mar, olhando para o tempo. Fui

à cozinha atrás de minha mãe, para tentar ver o que eu podia

fazer. Ela estava andando de um lado para o outro, com as

gêmeas no colo, que estavam em prantos. Tomei as meninas do

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colo de minha mãe e levei-as para o quarto, fazendo-as

adormecer em seguida. Quando voltei à sala, vi uma cena que

não era normal. Maxuel estava abraçado a Eulália e, ao me

verem, ambos tiveram uma reação adversa. Mediante aquela

situação, imediatamente indaguei-lhes:

– O que é que está havendo aqui?

– Sua irmã estava inconsolável e eu estava tentando

acalmá-la. – respondeu ele, assustado, afastando-se

abruptamente de Eulália.

Porém, minha irmã respondeu-me em tom de ironia – o

que me deixou ainda mais intrigada.

– Não precisa ficar com ciúmes, Emanuelizia. O noivo

ainda é seu. – dizendo isso, Eulália saiu exasperada da sala.

Olhei para Maxuel, procurando uma resposta plausível,

interrogando-o:

– O que ela quis dizer com isso, Maxuel? Existe algo

entre vocês?

– Não imagine coisas. Sua cabeça está confusa e já está

com problemas demais para criar mais um agora.

Ele me deu um beijo na testa, como de costume, e saiu,

deixando-me parada no meio da sala vazia. Fui ao quarto onde

minha irmã estava em prantos. Vendo aquela cena desmedida,

perguntei-lhe:

– O que é que está havendo, Eulália?

Ela virou-se para mim, abruptamente, e respondeu-me:

– O que é que está havendo? Ora, minha irmã! Você

parece que vive em outra dimensão! Nossos pais engalfinham-se

o tempo todo, vivemos nesta miséria, e você ainda vem me

perguntar o que é que está havendo?! Como você pode ficar

tranquila e aceitar essa vida que levamos? Vivemos como

animais esquecidos do resto da sociedade!

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– Não diga uma coisa dessas, Eulália! Você acha que não

me preocupo com toda essa situação? Lógico que sim. Mas o

que quer que eu faça? Quer que eu mate nossos pais?

– Seria mesmo melhor que eles estivessem mortos, ou

melhor, que eu nunca tivesse nascido.

– Pare de falar bobagens! Meu Deus, as coisas vão se

arranjar. Quando eu me casar com Maxuel, poderei ajudá-la, vai

ver.

– Quando você se casar com Maxuel... Você não pensa

em outra coisa não, é? Acha que tenho tempo para esperar que

você se case ou mude de vida para que a minha vida tome um

rumo? Você é uma egoísta e uma tola, se acha mesmo que quero

viver de suas migalhas. Por que você acha que tem que ser mais

afortunada do que eu? Por que não deram a mim ao invés de

você em casamento para Maxuel? Isso não é justo! Você sempre

tem as melhores roupas, enquanto tenho que ficar com as que

não lhe servem mais. Tudo para você é mais fácil do que para

mim. E você nem ama Maxuel.

– Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Como pode

dizer uma sandice dessas? É claro que amo Maxuel! Senão, não

aceitaria casar-me com ele. E o jeito como você se expressa...

Parece que você me odeia e sente inveja de mim. Não tenho

culpa se nossos pais nos uniram em uma promessa ainda quando

éramos crianças. Também não entendo o porquê dessa união

prematura. Mas se esse é o meu destino, já que nossos pais

assim o escolheram, eu o aceito.

– Eu? Com inveja de você? Ora, Emanuelizia, você é

mesmo muito ingênua! Embora seja mais velha, não tem

nenhuma percepção da vida. Sou muito melhor do que você em

tudo, e vou provar-lhe isso. Fique sabendo que não vou ficar

com suas migalhas. Mereço ter tudo do bom e do melhor. Sabe

por quê? Porque sou mais esperta que você e sei agarrar as

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oportunidades quando vejo uma. E quanto ao seu destino,

aproveite-o enquanto ainda pode.

Dizendo essas palavras tão rudes e tão duras de ouvir, ela

saiu batendo a porta do quarto atrás de si, sem nada mais a dizer.

Joguei-me em uma poltrona e coloquei as mãos no rosto.

Respirei profundamente e fiquei me interrogando o porquê de

Eulália ter tanta raiva de mim. Era injusto o que ela me disse.

Logo comigo, que sempre lhe fui tão dedicada! Fui para a

cozinha ajudar minha mãe a limpar o peixe para o almoço.

Eulália havia ido caminhar à beira-mar. Ela sempre fazia isso

depois que discutíamos. Minha mãe estava taciturna e mal

dirigiu a palavra a mim. Ficamos ajeitando as coisas na cozinha

em total silêncio. No fundo, eu a compreendia. Sabia que aquele

silêncio, embora sufocante, era a forma que ela encontrara para

meditar e colocar seus pensamentos atordoados em ordem.

Estava de costas pondo a mesa para o almoço, mas percebi

quando meu pai entrou batendo a porta. Ele tirou o chapéu da

cabeça e cumprimentou-me, perguntando:

– Onde está sua mãe?

– Na cozinha, terminando o almoço.

Ele parecia ir em direção à cozinha. Mas, percebendo

aquela atitude que poderia não acabar bem, interrompi, dizendo:

– Pai, por favor, por hoje acho que já foi suficiente.

Deixe a mamãe em paz. Ela precisa ficar um pouco sozinha.

Ele, porém, saiu resmungando alguma coisa,

confirmando em atitudes que ia mesmo à cozinha somente para

colocar mais lenha naquela discussão constante e que começara

cedo naquele dia. Respirei fundo e tranquilizei os ânimos

quando ouvi a porta do quarto dos meus pais batendo – assim,

pude ter certeza de que papai não voltaria mais à cozinha. Eu

estava de costas, mas percebi quando meu irmão entrou em

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seguida. Logo ao ver-me, ele perguntou se papai estava em casa.

Vir-me-ei lentamente e respondi-lhe:

– Sim, mas o aconselho a não incomodá-lo agora, pois

parecia bem nervoso quando chegou.

– Eu não ia falar com ele. Na verdade, queria que ele

ficasse por lá para o resto da vida. Odeio a vida que levamos e

preferiria não ter nascido, pois já não aguento mais ter que vê-lo

brigando com a mamãe.

Percebendo aquele tom de revolta e desapontamento em

sua voz, deixei a mesa de lado e fui abraçá-lo.

– Não diga isso, meu irmão. Sempre estarei aqui para

defendê-los. E pense bem: o que seria de minha vida sem você?

Ele me olhou e, com os olhos cheios de lágrimas, deu-

me um beijo na face, retirando-se para o seu quarto em seguida.

Fiquei ali em pé, sentindo-me impotente, sem saber como agir

mediante aquelas circunstâncias. Naquele momento, Eulália

entrou afoita e toda faceira, interrompendo meus pensamentos.

Confesso que a minha curiosidade ao vê-la tão desaforada foi

maior e mais forte. Fiquei ansiosa para perguntar o que tinha

acontecido de bom, para que ela entrasse daquele jeito na casa.

Terminei de pôr a mesa e corri para o nosso quarto para

interrogá-la. Mal abri a porta e fui lhe perguntando, depois de

vê-la rodopiando como uma mariposa pelo quarto:

– Posso saber o que aconteceu de tão esplendoroso que

fez com que a senhorita ficasse assim tão radiante?

– Acha que lhe contaria sabendo que você morre de

inveja de mim? Se depender de mim, irá morrer de curiosidade,

minha irmã, pois nunca lhe direi. Nem mesmo que caia um raio

sobre minha cabeça, não lhe direi uma só palavra. Por mim,

quero que morra.

– Meu Deus, Eulália, por que me odeia desse jeito? O

que foi que lhe fiz?

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– O que foi que você me fez? Quer mesmo saber, minha

irmã? Vou lhe repetir então, você é a mais velha e tudo, como

lhe disse, sempre lhe foi dado como preferência, enquanto tenho

que ficar com as suas sobras. Mas garanto que as coisas irão

mudar em breve, você verá.

– Eulália, está sendo injusta comigo. Nunca a deixei ficar

com minhas sobras. Sempre dividi tudo o que ganho e que tenho

com você, sabe muito bem disso.

– Pois saiba que não quero dividir mais nada com você.

Quero o que é meu por direito. Acha que não percebo como a

mamãe trata você melhor do eu somente porque é mais bonita?

Pois vou provar a todos nesta casa que posso ser muito melhor

do que me julgam.

– Pare imediatamente com isso, Eulália! Você também é

muito bonita, e não tenho culpa de ter sido dada em casamento a

Maxuel. Já lhe disse que não entendo o motivo de nossas

famílias nos terem unido.

– Não entende e aceita porque lhe é conveniente, não é

mesmo? Você é uma sonsa. Você não o ama, nunca o amou

verdadeiramente. Só está noiva dele por puro egoísmo ou

ambição. Você é má, Emanuelizia, e fará Maxuel sofrer. Você

não o merece. Eu, sim, sou quem teria que casar com Maxuel.

Eu seria a esposa perfeita para ele. Mas em breve isso irá

mudar... Passarei a ser o centro das atenções desta casa.

Aquelas palavras deram-me calafrio. Então, peguei-a

pelos braços e perguntei-lhe:

– O que é que você está aprontando? Quer que a mamãe

morra de desgosto? Saiba que se está se envolvendo com algum

homem comprometido, deve me contar imediatamente. Você

ainda é uma menina. Quero que saiba que os homens só pegam

jovenzinhas pobres como nós para se aproveitar e depois

descartam, como uma folha de papel sem o menor valor. Meu

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Adriana Matheus

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Deus, Eulália, o que você anda aprontando? Está se

comportando levianamente. Não consigo acreditar; como pode?

Quem é este homem que está lhe virando os pensamentos? Tem

que me dizer agora, pois irei amanhã mesmo encontrá-lo junto

com Maxuel e o farei responder pelo que anda fazendo com

você!

– Você é mesmo muito tola, Emanuelizia. Não consegue

perceber nem mesmo o que está na frente do seu nariz.

Ela me olhava desafiadoramente. Porém, minha mãe

entrou e, percebendo que havia algo estranho conosco,

perguntou:

– O que está acontecendo aqui? Não me basta o seu pai,

agora tenho que ficar apaziguando as rixas entre duas irmãs?

Estão parecendo animais! Não estão agindo civilizadamente

mais.

– Não estamos parecendo animais, mãe, somos animais.

Caso a senhora não tenha percebido, levamos uma vida

miserável, moramos em um chiqueiro, comemos lavagem,

vivemos de restos como os cães e ainda temos que conviver com

um homem rude que trata a minha mãe como um cachorro.

Saiba que se isso não for vida de animal, nada mais será. Odeio

esta vida, odeio vocês todos. – dizendo isso, Eulália saiu,

batendo a porta.

– Meu Deus do céu, Emanuelizia, o que deu nessa

menina?

– Ainda não sei, mãe, mas prometo que vou descobrir.

Agora vamos almoçar, antes que o papai fique nervoso com o

nosso atraso.

– Sim, vamos.

Minha mãe acompanhou-me, torcendo as mãos no

avental. Ela parecia estar sem rumo e apreensiva com a atitude e

as palavras de Eulália. Eu também estava. Mas uma coisa era

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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certa: eu pretendia descobrir o que ou quem estava desviando

minha irmã para que ela ficasse tão mudada com a família. Por

certo, deveria ser algum homem inescrupuloso e malicioso que

ao perceber que Eulália era uma jovem bonita, ingênua e

ambiciosa, estava manipulando-a de alguma forma.

Quando chegamos à sala, Eulália já estava sentada à

mesa ao lado de Pietro. Meu pai apenas nos olhou com ar de

desaprovação pelo nosso atraso. Fizemos as orações, como de

costume, mas durante o almoço todos comemos em silêncio.

Mal trocamos uma ou duas palavras uns com os outros, para

evitar que meu pai se aborrecesse e acabasse com aquele raro e

único momento em que a família se reunia. Eulália saiu

rapidamente da mesa, interrompendo o silêncio. Meu pai pediu

para que eu fosse ver o que estava acontecendo com ela. Quando

cheguei ao nosso quarto, deparei-me com minha irmã debruçada

à janela, vomitando. Tentei sondar, indagando-a. Ela, porém,

depois de enxugar as lágrimas, respondeu-me:

– Não vê que sou muito doente e toda vez que fico

contrariada meu estômago dói? E a culpada disso sempre é

você.

Dizendo isso outra vez, ela saiu do recinto, deixando-me

a ver navios. Eu ainda estava no meio do quarto, sem saber o

que fazer em relação a ela, quando minha mãe entrou, querendo

saber o que aconteceu. Porém, respondi-lhe:

– Sei tanto quanto a senhora, mas confesso que estou a

cada instante ficando mais preocupada.

Minha mãe saiu para ajeitar as coisas e tentar verificar o

que estava acontecendo. Peguei uma vassoura e fui ajeitar o

quarto, tentando tirar Eulália dos meus pensamentos. Acabei

sentindo-me culpada pelo estado de saúde da minha irmã ter

piorado. Estava decidida a conversar com Maxuel e antecipar

nosso casamento, pois queria a qualquer custo tirar Eulália

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Adriana Matheus

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daquela vida de sacrifícios e dificuldades. Continuei a fazer

meus afazeres quando percebi que havia uma caixa de chapéus

debaixo da cama de minha irmã. Pelo formato e pela

embalagem, era uma caixa de uma loja muito cara. Eu saiba que

estava errada, mas precisava saber o que tinha naquela caixa. Ao

abri-la, fiquei extasiada, pois dentro da caixa havia diversos

bilhetes de amor não assinados, e também uma caixinha com

uma joia muito cara. Sentei-me no chão e coloquei a mão na

boca, pois percebi que as minhas suspeitas estavam corretas.

Embora tenha desconfiado e achado aquela letra bastante

familiar, não atinei para a realidade dos fatos, pois no fundo eu

queria acreditar que Eulália estava mesmo sendo seduzida por

algum crápula que, por certo, estava iludindo sua cabeça

confusa e ingênua. Ajeitei tudo para que ela não percebesse que

eu havia descoberto o seu segredo. Terminei com a arrumação e

saí para tentar achar Eulália. Ela estava no rochedo, à beira-mar.

Cheguei por trás dela e disse:

– Sei o que você está fazendo.

Ela se virou e perdi as forças, pois seus olhos eram puras

lágrimas. Tentei fazer-me de rogada, pois não poderia deixar

que Eulália percebesse minha fraqueza. Caso contrário, ela se

tornaria agressiva comigo e acabaria por me deixar falando

sozinha novamente.

– Não lhe devo satisfações de minha vida. Solte-me e

deixe-me em paz.

– Não irá adiantar maltratar-me de novo, Eulália. Está

usando dessa arrogância e presunção como uma autodefesa.

Gritar e espernear é sinal de fraqueza e saiba que não vou me

calar diante de mais uma de suas crises de rebeldia. Descobri

seus planos: está pensando em fugir com o seu amante. E como

acha que ficará sua vida caso isso aconteça? O que será de

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mamãe? Papai irá espancá-la, e sabe Deus o que mais pode

ocorrer após essa sua atitude leviana e impensada.

– Você não sabe nada de mim e mesmo tendo mexido

em minhas coisas, nada me fará dizer uma palavra.

– Você não percebe, criança tola? Este homem está

usando-a, mais nada. Responda-me apenas uma coisa: ele é

comprometido ou não?

– Sim, ele é. Mas ela não o merece e ele irá largá-la para

ficar comigo em breve.

– E você ainda diz que sou ingênua? Ora, minha irmã,

este homem só está brincando com você e com seus

sentimentos. Ele nunca vai largar a mulher dele ou a família

para ficar com você. Meu Deus, minha irmã, pare com isso!

Pense um pouco: você vai ficar mal falada e nunca conseguirá

arrumar um casamento. E se papai descobrir, irá colocá-la para

fora de casa.

– Sei que é isso o que você deseja para mim. Mas antes

que isso aconteça, fugiremos para bem longe e seremos muito

felizes.

Segurei-a pelos braços com força e disse-lhe:

– Você tem que me dizer quem é este crápula.

– Você é mesmo uma tola, se acha que lhe direi alguma

coisa. Mas não se preocupe: em breve matarei a sua curiosidade.

– Não estou curiosa. Estou preocupada com você.

– Quer um conselho, minha irmã? Preocupe-se com você

mesma. E mais: aprenda a prestar mais atenção nos detalhes,

antes que tenha que chorar lágrimas de sangue.

– O que você quer dizer com isso? – falei, apertando-lhe

mais fortemente os braços.

Fitei-a e prossegui:

– Já estou cheia de suas insinuações. Você vive

insinuando alguma coisa. Acaso acha que a vida é um jogo e

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que com essa atitude de meretriz que está tendo, de se envolver

com um homem comprometido, terei inveja de você? Acha

mesmo que tenho a intenção de disputar alguém ou alguma

coisa com você ou com quem quer que seja? Tudo o que sempre

quis foi saber que poderia no futuro ajudar a minha família, nada

mais. Só quero poder dar-lhe um futuro melhor, com uma vida

segura e promissora, diferente desta que levamos. Mas o seu

egoísmo é tamanho que você só consegue ver o seu próprio

umbigo. Não vou mais interferir em sua vida, e isso é uma

promessa. Mas quero que saiba que se um dia você se sentir em

perigo e quiser minha ajuda, sempre estarei por aqui.

Soltei-a e fui caminhando em direção à nossa casa.

Escutei-a gritando atrás de mim.

– Nunca precisarei da sua ajuda. Você é quem vai

implorar pelo meu auxílio.

Não me importei com aquelas palavras – para mim, não

passaram de insanidades da cabeça de uma jovem revoltada com

a vida que tinha. Naquela tarde, resolvi não voltar diretamente

para casa. Fui caminhar à beira-mar. O mar havia ficado

agitado. Era como se algo estivesse para acontecer. O vento que

vinha de terras longínquas parecia querer avisar-me sobre

alguma coisa. Tudo naquela tarde estava diferente. Agachei-me,

ficando de cócoras, quase que encolhida pelo frio que vinha do

mar e também pelas águas geladas, que de vez em quando a

maré jogava em meus pés descalços. Olhando as ondas revoltas,

comecei a distrair meus pensamentos, nem me dando conta de

que as horas passavam. O mar tem esse estranho poder

entorpecente. Ele nos faz esquecer todos os problemas e tudo ao

nosso redor. E assim fiquei por horas a fio, olhando o horizonte.

As vozes começaram a falar ao meu ouvido e eu as confundia

com os chiados das ondas do mar. Comecei a sorrir comigo

mesma, pois algumas daquelas vozes pareciam estar discutindo

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por algum problema corriqueiro. Eu achava que as vozes eram

coisas da minha cabeça. Achava até que eram os meus próprios

pensamentos que estavam em desordem emocional, devido aos

tantos problemas que estava passando. Assim fiquei, inerte,

naquele mundo desconhecido, absorta em meus próprios

pensamentos ou no que eu imaginava que fossem meus

pensamentos!

De repente, um sono estranho tomou conta de mim e

acabei cochilando. Despertei com uma voz feminina rouca e

baixa chamando-me. Olhei para cima e vi uma senhora com

roupas de cigana. Assustei-me com a visão, mas olhei-a

fixamente. Ela me deu um largo sorriso e disse-me:

– Assustou-se comigo, minha filha? Sou feia e velha,

mas não faço mal algum. – deu uma gargalhada que ecoou por

toda a praia.

Naquele momento, pareceu que não ventava e foi como

se toda a terra tivesse parado. Arregalei os olhos e disse,

tentando disfarçar o meu medo:

– Não, imagina, não me assusto tão fácil assim!

– Mentirinha! Não seja hipócrita: odeio hipocrisias. –

falou aquelas palavras, usando um tom de voz sério, o que me

deixou ainda mais assustada.

A mulher parecia uma bruxa vinda de um conto de

terror. Olhou-me nos olhos e estendeu-me as mãos, dizendo:

– Venha, vamos caminhar comigo. Creio que tenho

algumas respostas para lhe dar e também uma proposta a lhe

fazer.

Embora assustada, estendi a mão àquela mulher e

levantei, acompanhado-a em seguida. Caminhamos em silêncio

alguns minutos até que, por fim, ela resolveu falar:

– Tenho acompanhado a senhorita desde o berço.

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Admirada com aquela revelação, eu já ia perguntar-lhe

como ela me conhecia, sendo que eu nunca a havia visto. Mas

ela, percebendo minha intenção, pediu para que eu a deixasse

prosseguir:

– Sim, eu a conheço desde o ventre de sua madre, niña. –

carregou no romani, dando novamente aquela gargalhada

sinistra.

Prosseguiu com o assunto, que a cada instante mais me

intrigava:

– A cada cem anos uma de nós, do clã secreto das

serpentes, escolhe uma discípula a quem passa os ensinamentos

e os poderes. Podendo, assim, descansar o aparelho, partindo

para o descanso eterno. Durante anos procurei, no meio de todos

os mortais, uma que me fosse perfeita, assim como você. Agora

que atingiu a maior idade, poderei resgatá-la e transferir-lhe os

meus poderes.

– Não estou entendendo, senhora! Resgatar-me? Como

assim? De que poderes a senhora está falando? Saiba que, se

está brincando, a única coisa que está conseguindo é me

assustar.

– Prefiro não entrar em detalhes agora, mas lhe prometo

que em breve saberá. Agora preciso apenas saber se a senhorita

aceita os poderes que quero lhe transferir.

– Desculpe-me a sinceridade, mas acho que a senhora

não está muito bem. Creio que está em devaneios. Agora, se não

se importa, preciso ir embora. Aceite o meu conselho, senhora:

vá para casa e não fique a andar sozinha por aí. E também lhe

peço que pare com essas histórias insanas, pois se alguém além

de mim a ouvir, acabarão confundindo-a com uma louca, ou o

que é pior: com uma feiticeira.

A velha senhora olhou para mim pacientemente,

respondendo-me:

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– Entendo que esteja confusa, mas preste bem atenção:

quando a senhorita mais precisar de mim, é só chamar-me que

irei ao seu encontro. Onde quer que esteja, lá estarei.

– Desculpe-me, senhora, preciso voltar para casa.

Senhora, por favor, não me interprete mal, mas não tenho o

menor interesse em participar de nenhum ritual de magia, se é o

que a senhora está tentando me dizer. Sou católica e temente a

Deus e nunca mudarei minha religião.

Saí andando, não querendo prestar atenção naquela velha

louca. Onde já se viu?! Que conversa mais estranha! – pensei.

Porém, a velha, percebendo que me distanciava rapidamente,

gritou:

– A senhorita está sendo orgulhosa e presunçosa em

achar-se a dona de todas as verdades. Saiba que, neste momento,

está sendo traída dentro da sua própria casa.

Curiosa como sempre fui, voltei-me para trás

imediatamente e perguntei-lhe:

– O que a senhora está querendo insinuar? Traída por

quem? Está louca, senhora? Vá para casa. Não é bom que ande

por aí sozinha. É uma velha louca, não passa disso.

Saí andando sem olhar para trás, mas senti seus olhos

fitando-me pelas costas. Não satisfeita, ela continuou a gritar:

– Sim, sou velha sim, mas não sou louca. Saiba que

todas envelhecemos, umas mais que as outras, devido ao tempo

de existência terrena. Irá se arrepender por causa da sua

arrogância e mau uso das palavras comigo. E nesse dia estarei

esperando a senhorita vir atrás de mim a implorar-me por

socorro.

Dizendo isso, a velha ficou estática no lugar onde havia

parado de me seguir. Apenas repetiu:

– É só chamar pelo meu nome que virei a seu socorro.

Mas, até lá, que o tempo seja o seu mestre.

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Eu havia andado uns dez passos, mas resolvi olhar para

trás para vê-la olhando-me pelas costas. Assustei-me de

imediato ao perceber que a velha não estava mais atrás de mim,

observando-me como eu supunha. Olhei ao redor, mas só havia

a areia, os coqueiros e o mar, nada mais.

E como eu poderia achá-la, se ela nem ao menos me

disse o seu nome? Balancei a cabeça, rindo, achando se tratar

mesmo de uma senhora confusa com histórias fantasiosas. De

repente, o vento soprou o nome da velha ao meu ouvido.

Eleanor... Arrepiei-me dos pés à cabeça e corri em disparada em

direção à minha casa, pois, naquele momento, acreditei que a

velha fosse um fantasma.

Ao chegar a casa, deparei-me com uma cena nada

convencional que me deixou ainda mais apreensiva: o médico

da família já estava saindo à porta. Tentei interrogá-lo. Porém,

ele sacudiu a cabeça, dizendo-me que era assunto de família. Ao

entrar, para meu espanto, dentro da minha casa encontravam-se,

além dos membros convencionais da minha família, minha tia

aos prantos, meu tio e o vigário local. Cumprimentei os

visitantes e segui em direção à minha mãe, abraçada à minha

irmã, que parecia estar passando muito mal. Como sabia que

Eulália não me contaria, indaguei minha mãe. Ela, porém, com

um olhar de súplica, olhou para meus tios, que baixaram os

olhos. Ela, então, olhou para meu pai, que respondeu em

seguida:

– A filha é sua; conte logo a ela, mulher!

Mamãe, não conseguindo falar, caiu em prantos. Tentei

ampará-la para que não caísse ao chão. Meu irmão, porém,

percebendo o que ia acontecer, tomou-a nos braços, entregando-

a a minha tia Ellen, que parecia envergonhada com a situação.

Porém, não dizia uma só palavra e permanecia de olhos baixos

na minha presença. Irritada com aquela situação, exasperei-me,

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perguntando em voz alta e batendo os pés ao chão. Todos me

olharam, mas foi meu irmão que me pegou pelo cotovelo e

levou-me para a cozinha.

Ao chegar à cozinha, ele deu um longo suspiro e

prosseguiu, falando:

– Sente-se, minha irmã, eu lhe contarei tudo. Sei que não

será nada fácil para você, mas lhe contarei tudo. Só peço que se

mantenha calma. O problema é com Eulália.

– Isso já sabia, mas o que há com nossa irmã de grave

que até o padre foi chamado aqui?

– Ela está grávida. Um homem lhe fez mal. E o pior é

que este homem é comprometido, o que agrava mais ainda a

situação dela.

– Meu Deus, só não tinha certeza da gravidez, mas sabia

que Eulália estava se envolvendo com um homem casado. Isso

para mim já era um fato.

Coloquei as mãos na boca e depois falei, novamente:

– Papai deve estar possesso com essa situação. Pobre

Eulália, o que será dela?

– Santo Deus, minha irmã, você ainda não entendeu? Ou

você é muito ingênua ou está se fazendo de ingênua para não ver

a realidade que está à sua frente. – na verdade Pietro estava

certo, eu não queria mesmo saber da verdade. Porque sabia que

ela seria muito dura para mim. Dei um longo suspiro me

fazendo de rogada respondendo em seguida:

– Sim, entendi, logicamente que sim. Eulália está em

apuros e não é por causa das nossas desavenças que a

abandonarei. Nunca a deixarei, e muito menos permitirei que

nosso pai a expulse de casa. Ela é só uma menina! Preciso ir

agora mesmo para a sala e tentar ajudá-la, mostrando-a que

estou do lado dela.

Quando eu já estava saindo, Pietro falou:

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– Ainda não percebeu? O homem que fez mal à nossa

irmã é Maxuel. Como pode estar preocupada com a situação de

nossa irmã se tudo o que ela fez até agora foi apunhalá-la pelas

costas? Ela a traiu, minha irmã, tomou seu noivo. E Maxuel,

este sim, é um crápula dos grandes, porque sabia que ela é sua

irmã querida.

Ao ouvir aquelas palavras, voltei para trás e deixei o

corpo cair sobre a cadeira que estava no meio da cozinha. Pietro

continuava falando e falando, mas eu não ouvia as palavras que

saíam de sua boca. Minhas mãos pareciam estar dormentes e

tudo começou a rodar à minha volta. Comecei a pensar no

quanto fui ingênua em acreditar que Maxuel me amava. Vi meus

sonhos e meus planos desfeitos, escorrendo por água abaixo.

Fiquei me perguntando quanto tempo perdi com aquele noivado

de mentiras e traições. Por certo, todos sabiam, menos eu. Senti-

me uma tola.

– Sou uma estúpida! – saíram em voz alta aquelas

palavras de revolta – Vocês todos sabiam disso, não é, Pietro?

– Não. Não sabia; talvez mamãe soubesse. Estou tão

confuso e indignado quanto você, acredite.

– Não, acredite: ninguém está tão indignada quanto eu,

ninguém está tão machucada quanto estou! Fui traída pela

minha própria família. Como você acha que estou me sentindo?

– Imagino como está se sentindo.

_ Não, meu caro irmão, você não conseguiria imaginar

como estou me sentindo.

– E o que pretende fazer? Creio que lá fora estão todos

com as mãos atadas.

– Pelo visto deixaram a batata quente para eu segurar.

Acredite: farei o que for correto, como sempre. Não é isso que

sempre esperam de mim?

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Meu irmão baixou a cabeça e nada mais disse. Em

seguida, saímos da cozinha, em total silêncio.

Na sala, estavam todos murmurando e o casal de

traidores estava cada um em seu canto, com as cabeças baixas.

Ergui os ombros e olhei para todos ao meu redor. Disse em tom

de desprezo:

– Maxuel, acompanhe-me até a varanda. Quero falar a

sós com você imediatamente.

Ele, porém, arregalou os olhos e concordou com a

cabeça, parecendo surpreso. Minha mãe tentou me impedir

quando eu já estava saindo, dizendo:

– Não faça nenhuma bobagem, minha filha, da qual você

possa se arrepender mais tarde. Pense em sua irmã: ela é só uma

criança inocente.

– Já fiz a maior bobagem desta vida quando aceitei me

unir a este crápula, cujo sangue que carrega nas veias tem um

pouco do meu sangue também. E quanto à minha doce e ingênua

irmãzinha, creio que ela não foi tão inocente quando seduziu

meu noivo. Portanto, saia da minha frente que farei o que é

correto, independente do que seja a vontade de todos vocês.

Saí porta afora e fui ter com Maxuel, que estava

debruçado no beiral da varanda. Estava com a face pálida, como

se estivesse em um navio balançando. Ele parecia que estava

tendo uma vertigem. Porém, não me deixei abalar, como fazia

de costume. Ele se virou imediatamente quando percebeu a

minha presença e veio logo de braços abertos ao meu encontro,

dizendo:

– Perdoe-me, meu amor, eu a magoei. Mas tudo se

resolverá. Nós nos casaremos e quando o bebê de sua irmã

nascer, nós o acolheremos como se ele fosse nosso filho. Assim,

sua irmã poderá seguir com a vida dela naturalmente e, quem

sabe, poderá até se casar!

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Dei um sorriso triste e decepcionado e, depois de

repudiar o afeto dele, respondi-lhe:

– Pensou em tudo, não é? Como sempre...

– Sim, meu amor. Pedirei a meus pais que a levem para a

fazenda, onde ela terá total privacidade de gerar essa criança.

Ninguém ficará sabendo. Por isso, poderemos criar a criança

como se fosse nossa.

Dei um sorriso sarcástico e respondi imediatamente,

entre dentes:

– Essa criança, que você menciona com tamanho

desprezo, é seu filho também. E por acaso o senhor achou

mesmo que eu faria parte dessa trama inescrupulosa, na qual sou

a vítima?! Quer mesmo que eu passe de vítima a vilã? Nunca me

prestaria a um papel ridículo e tão baixo como esse de ser sua

amante e esposa. Ou acha que eu acreditaria que você e minha

irmã não vão continuar se encontrando às minhas costas?

Desprezo-o, Maxuel Alencastro. E quanto à minha irmã, ela que

fique com o resto de tudo de bom que passei ao seu lado. Não o

quero mais, não passarei o resto de minha vida ao lado de um

homem que nunca deixará de pensar na cunhada. E também não

me sujeitarei à humilhação de ter que criar o filho bastardo

daquela pessoa que, a partir de hoje, morreu para mim. A única

coisa que me deixa triste é saber que não quis ver a traição dos

dois, porque me negava a acreditar que seriam capazes disso

comigo. Só lhe direi mais uma coisa: passe o céu e passe a terra,

vocês nunca serão felizes ao lado um do outro; não terão um dia

de suas malditas vidas que não pensarão na traição que fizeram

comigo; e desse desgosto morrerá a minha irmã.

– Não, essa não pode ser você! Não acredito que me dará

para sua irmã, que não lutará pelo nosso amor. Tudo poderá ser

diferente, não percebe? Basta que aceite a minha proposta e tudo

ficará bem. Porei uma pedra em cima de suas palavras tolas,

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pois sei que só está aborrecida comigo, sei que isso passará com

o tempo.

Dei uma gargalhada que fez com que minha tia chegasse

à porta. Porém, não dei importância e continuei:

– Nunca farei o que é conveniente para vocês. Farei, sim,

o que sei que é correto para mim. Jamais, enquanto eu viver,

perdoarei essa traição.

Olhei para a porta e vi que todos estavam na varanda,

escutando boquiabertos o que eu havia dito. Levantei a cabeça e

ressaltei:

– Sim, é exatamente isso que disse: não me casarei com

Maxuel! Que ele fique com essa mulher que, para mim, a partir

de hoje, está morta. E quanto a você, Eulália, reclamava tanto

das minhas migalhas e agora terá que viver com elas para o resto

de sua vida, pois o resto do homem que estou deixando para

você nunca a amará e ainda saberei que você chorará lágrimas

de sangue por causa das traições que este crápula cometerá. E

reze, mas reze muito, para que essa criança venha com saúde. E,

se nascer, reze para que Deus perdoe essa traição e que esse

rebento não lhe tire o que lhe é mais precioso.

Dizendo isso, virei as costas e saí em direção à praia.

Minha mãe estava com a mão à boca. Meu pai não demonstrou

nenhuma reação. Minha tia parecia estar passando mal, e o

padre ficou a me esconjurar devido à praga que eu havia rogado

contra Maxuel e Eulália. Porém, não dei importância nenhuma a

ninguém. Sabia que o que disse não era correto. Mas, naquele

momento, estava com tanto ódio que meu coração não respondia

a nenhuma coerência que viesse do meu cérebro. Não queria ser

sensata: queria magoá-los como me magoaram. Queria correr,

fugir, sumir de toda aquela sujeira. Sentia-me um lixo humano.

Eram seis horas da tarde. Aparentemente estava frio, mas

meu corpo não sentia absolutamente nada. Caminhei por horas a

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fio e nem percebi o cair da noite. Quando finalmente parei de

andar, percebi que estava sozinha. Então, ajoelhei-me de frente

para o mar e gritei o mais alto e forte que pude. Depois, deixei

as lágrimas caírem até que secasse todo aquele sentimento de

tristeza, dor e perda. Fiquei horas olhando o mar e refletindo

sobre tudo. Lembrei-me das palavras da velha quando ela disse

que eu estava sendo traída naquele dia, dentro da minha própria

casa. Refleti sobre muitas coisas. Percebi o quanto vinha me

iludindo quanto ao caráter de Maxuel e Eulália. E se a velha

tivesse razão? E se eu fosse uma bruxa? No meu estado normal,

nunca havia rogado uma praga em toda a minha vida. E se a

velha havia me enfeitiçado e agora estava eu com uma maldição

sobre os ombros?

Estava tão confusa e cansada, mas não queria voltar para

casa. Fiquei parada em frente ao mar, de joelhos sobre a areia

úmida e fria. O mar dos meus olhos misturava-se com as águas

salgadas do oceano. Sentia-me sozinha e perdida. Não sabia que

atitude tomar. Foi quando resolvi pronunciar o nome da velha

cigana em voz alta. Queria que ela viesse ao meu socorro.

Porém, nada aconteceu. Senti-me impotente e enganada, pois de

alguma forma quis acreditar que aquela velha era mesmo capaz

de me ajudar. Dentro de mim, uma mistura de sentimentos:

queria ser mesmo uma bruxa poderosa, pois, além de aquela

ideia fascinar-me, isso me daria poder para destruir aqueles que

me haviam machucado. Mas, ao mesmo tempo, sentia medo e

dor por ter perdido Maxuel. Senti revolta, impotência e

desprezo. Lembrei-me de todos os santos, mas não quis

pronunciar o nome de Deus: achava que Ele também havia me

traído. Gritei, gritei com todas as forças que havia dentro das

minhas entranhas. Gritei alto até que minha voz se calou com o

som dos ventos. Levantei-me, meio cambaleando, e resolvi, por

fim, voltar para casa. No caminho, eu ia pensando que a

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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primeira coisa a fazer era tirar minha irmã de dentro do meu

quarto. Não queria vê-la novamente, não queria qualquer

proximidade com aquela que foi a causadora de toda a minha

ruína.

Quando finalmente retornei a casa, já passava das dez da

noite e minha mãe esperava-me na soleira da varanda. Ela veio

ao meu encontro, demonstrando preocupação e dizendo:

– Filha, onde você estava? Não consegui dormir de

preocupação. Precisava saber notícias sobre você.

Porém, não respondi nada e recusei qualquer

demonstração de afeto vinda da parte dela. Mas uma coisa me

chamou atenção no meio de toda aquela interrogação. Foi

quando ela disse:

– Seus tios levaram Eulália para viver na casa deles.

Acharam melhor que ela ficasse lá, já que vão se casar. Assim

também evitará mexericos da parte dos vizinhos. Eu... sei que

você não aprovará, filha, mas faremos uma cerimônia bem

discreta no próximo sábado. Sua irmã diz que faz questão da sua

presença. Ela ficou muito grata por você ter entendido a situação

dela, embora ela saiba que você tenha ficado decepcionada com

ela. Filha, imagino o quanto você está magoada com sua irmã,

mas as coisas nem sempre acontecem como planejamos. Vai ver

era o destino de sua irmã casar-se com Maxuel.

Olhei para trás com tamanho desprezo que nem mesmo

me reconheci, respondendo em seguida:

– Quer dizer que além de traidores vocês são todos

coniventes com o que os dois fizeram? Não espere que de hoje

em diante eu seja a mesma pessoa, mãe.

Respirei profundamente e continuei:

– Todos vocês me desrespeitaram, traíram-me, e agora

alcovitam essa situação, tratando essa história como se Eulália

fosse a vítima. Saiba que não irei ao casamento desses dois, que

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Adriana Matheus

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estão mortos a partir de hoje para mim. E também, a partir de

hoje, não quero mais ouvir falar dessa história. Agora, por favor,

deixe-me em paz que quero dormir. Se pudesse, a partir de

agora, não acordaria mais só para não ter que vê-los novamente.

Dizendo aquelas palavras amarguradas e revoltosas,

fechei a porta do quarto, batendo-a à face de minha mãe. Mas

pude perceber que ela havia ficado chorando do lado de fora.

Pude ouvir seu choro. Sei que me portei mal e de maneira cruel

com ela. Mas, naquele momento, não me importava com os

sentimentos dos outros, somente com a minha dor – de tão

tamanha dava para rasgar o tempo, transformando-me em algo

que eu não era: uma mulher amarga e fria.

Tranquei as venezianas e coloquei alguns panos rasgados

nas arestas para não ver os raios de sol do dia seguinte. Queria

solidão absoluta, e o escuro era a forma de esconder a dor que se

encontrava na minha alma. Pelo menos eu achava que essa fosse

a solução para os meus problemas – o que não é verdade, pois

cada vez que estamos passando por um momento muito difícil,

temos a tendência de nos isolarmos, sendo que a solução para a

dor é somente o tempo. Isolar-se, como fiz, só serviu para uma

coisa: prorrogar meu sofrimento. Pois cada vez que ficamos

presos a lembranças amarguradas e tristes, permanecemos

presos no mesmo lugar. Isso não é bom, porque o tempo voa

rapidamente e a vida continua a seguir seu rumo. O preço para

quem teima em se agarrar às amarguras da vida é a solidão

eterna. Naquele momento, não ouviria ninguém, nem mesmo o

meu próprio eu.

Joguei-me na cama, agarrando-me ao travesseiro. Acho

que estava tão cansada que mal percebi se o sono chegou ou

não.

O quarto estava totalmente escuro. Não havia deixado

nenhuma fresta para que a luz do luar entrasse. De repente, algo

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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muito estranho e nefasto aconteceu. Barulho àquelas horas?

Levantei a cabeça para ver o que era. A porta do meu quarto

estava entreaberta, mas lembro-me de tê-la trancado pelo lado

de dentro. Isso foi o que mais me impressionou. Levantei a

cabeça para ver o que ou quem estava me olhando aos pés da

cama, pois aquela forte presença incomodava-me. Mas, devido à

penumbra, mal consegui ver meus próprios pés. Então, resolvi

sentar-me à cama. Foi quando me deparei com um homem bem

trajado, com cartola e fraque, na minha cabeceira, olhando-me.

Ele sorriu.

Era um homem de porte físico forte e, embora fosse

muito bonito, havia algo de estranho com ele. Imediatamente

indaguei-o, perguntando-lhe o que ele estava fazendo dentro dos

meus aposentos e como conseguiu entrar em minha casa sem ser

percebido. Ele me respondeu, mas seus lábios não se

movimentavam. Era algo imaginário e fora do comum aquela

presença masculina dentro do meu quarto. Ao perceber que seus

lábios não se movimentavam, mas que podia ouvi-lo, meu corpo

arrepiou-se por inteiro. Aquela voz grossa e rouca... Nunca

esquecerei! O tom daquela voz era aveludado e ele se

expressava polidamente, o que me deu a entender que ele estava

tentando não ser ouvido pelos demais da casa. Talvez não fosse

fácil, pois, embora ele fosse educadíssimo e falasse muito baixo,

a rouquidão daquela voz a deixava no ar. Havia algo de errado,

pois cada vez que pronunciava uma palavra comigo, o quarto

enchia-se de ecos, como se estivéssemos em uma caverna

profunda ou como se as almas estivessem falando junto com ele.

Aquilo começou a me assustar, pois aquele homem, com o tom

de voz que parecia ter saído do além-túmulo, falou, olhando

fixamente nos meus olhos:

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Adriana Matheus

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– Você é minha, Emanuelizia... Há muito tempo tenho

esperado por você. E agora chegou a hora de buscá-la. Acredite,

nunca mais vou deixá-la.

Estremeci tanto e senti que, de alguma maneira, minhas

forças vitais não me pertenciam mais. Cheguei a urinar de tanto

medo. Por fim, as palavras saíram depois de algum esforço.

Mas, como meus lábios permaneciam imóveis, prosseguimos

em uma conversa telepática. Perguntei-lhe:

– Quem é você?

– Sou aquele que faz as pedras chorarem, sou o dono do

fogo, o último nome no livro do apocalipse, a verdade escondida

por trás de muitas fábulas. Sou a voz que ecoa no meio da

escuridão, calando-se no silêncio dos mortos. Venho a esta casa

cobrar algo que me pertence. Uma dívida muito antiga...

– Não o entendo! O senhor é louco? Como foi que o

senhor conseguiu entrar em meus aposentos? Quem foi que lhe

deu permissão de invadir a minha casa? Vou gritar e logo meu

pai estará aqui.

– Não preciso de permissão para entrar em lugar algum,

pois os lugares são abertos a mim pelos corações de vocês, seres

humanos. A maldade, a raiva, a inveja, a vaidade e a desordem

que vocês causam no mundo são as principais portas para que eu

entre em qualquer lugar que seja. Pode gritar, minha querida:

saiba que estou aqui justamente porque ouvi seus gritos na praia.

Vim para aliviar a sua dor.

Assustada com aquelas palavras, afirmei:

– Você é o demônio.

Ele, porém, colocou as mãos na cintura e deu uma

gargalhada que estremeceu todo o ambiente, respondendo-me

em seguida:

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– Essa é só mais uma das minhas alcunhas, minha

querida. A cada dia que passa, um de vocês me batiza com um

nome diferente. Mas, para você, apresento-me como Zholar.

Dizendo tais palavras, ele se reverenciou a mim da

maneira que faziam os cavalheiros e os nobres.

Repudiei-o, dizendo:

– Arrede-se de mim, criatura sem nome! Não o chamei

aqui e não quero nada com você. Sou filha de um Deus vivo e

não quero nada com o rei dos mortos. Não passa de um verme.

É um imundo e quer minha alma. Pois saiba que não lhe darei.

Novamente ele deu a mesma gargalhada debochada e

prosseguiu:

– Você é tão ingênua como eu imaginava. Saiba que

você não tem escolha, minha amada. Além do mais, não estou

perguntando o que você quer de mim, – estou afirmando que

você é minha. Você é a mulher que foi prometida para ser minha

noiva por toda a eternidade.

– E quem é você para me impor alguma coisa, sua besta?

Jamais cederei às suas vontades. Nunca possuirá a minha alma

ou o meu coração, que é puro, pois nunca cometi nenhum delito

contra a moral e contra o meu Deus. Sei que você é o pai da

maldade e da perversão. Mas, sendo eu filha de Deus, digo-lhe:

arrede-se de mim em nome de Jesus, pois jamais serei sua, filho

das trevas.

Novamente a gargalhada sarcástica e debochada. Em

seguida, a criatura respondeu-me. Porém, dessa vez seus olhos

tornaram-se perversos e furiosos, brilhando como tochas no

escuro do meu quarto:

– Todos nós somos filhos Dele, minha amada. E desde

quando eu lhe disse que queria uma alma corrompida e um

corpo devasso e sujo? Acha mesmo que se eu quisesse já não

teria qualquer uma, seja nesta casa ou em qualquer outro lugar?

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Adriana Matheus

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Não posso levá-la contra a sua vontade, – o que é uma pena!

Mas em breve estarei esperando pelo seu pedido de socorro.

Então, cá estarei, pronto a lhe servir.

Reverenciou-se novamente e prosseguiu:

– Pois este a quem tanto grita e clama com veemência na

hora do seu desespero não lhe responderá como não lhe

respondeu hoje mais cedo. – dizendo isso, a besta sacudiu a

capa.

Percebi que por dentro era de veludo cor de carne. Ele

aproximou-se de mim. Então, baixei os olhos, pois não queria

fitá-lo. Foi quando vi que seus pés eram como os de um bode.

Apertei os olhos e senti que o quarto todo gelou, como se

estivesse nevando dentro dele. A besta, antes de desaparecer,

tocou em meu antebraço esquerdo com os dedos, próximo ao

pulso. Senti que suas mãos geladas queimaram minha pele com

aquele toque macabro. Sentei-me na cama, assustada e com a

respiração ofegante, procurando uma resposta plausível para

tudo o que me aconteceu. Estava com o corpo todo suado e

havia molhado a camisola de algodão azul.

Respirei, olhei ao meu redor e percebi: tudo tinha sido

apenas um pesadelo. Dei graças a Deus, sentindo-me aliviada.

Preocupada com aquele suposto pesadelo, e imaginando que o

havia tido por causa das minhas atitudes de ódio e mágoa contra

a minha família, imediatamente fiz minhas orações. Em seguida,

retirei os lençóis que havia colocado nas arestas, abri o quarto e

deixei a luz entrar, levando para longe as trevas. Olhando para

aquela manhã maravilhosa e iluminada, pedi a Deus para me

livrar dos maus pensamentos e que me ajudasse a perdoar minha

irmã e meu primo. Logo a paz e a harmonia foram tomando

lugar na minha alma. Eu não era daquela forma e, de alguma

maneira, aquele sentimento vil estava atraindo energias

negativas para junto de mim.

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Acabei de ajeitar a cama e arrumei-me apressadamente,

pois estava atrasada para cumprir com meus afazeres matinais.

Foi quando, na hora exata em que eu estava me vestindo,

percebi que havia uma marca de queimado no meu pulso. Meu

Deus! – pensei comigo mesma. Era verdade, eu não havia

sonhado. Fiquei tão assustada que saí do quarto às pressas.

Eu deveria estar muito pálida, pois minha mãe, ao ver-

me, foi logo dizendo:

– Emanuelizia, você está se sentindo bem? Está tão

pálida!

– Sim, mãe, mas me aconteceu um fato muito estranho

esta noite.

– E o que foi?

Depois que ela me trouxe um copo d’água, contei-lhe

tudo, em todos os detalhes. A reação dela foi muito estranha,

ultrapassou as minhas expectativas: além de ter ficado

assustada, ela empalideceu, deixando o corpo cair, jogando-o

sobre uma cadeira. Mediante aquela mulher aparentemente

aterrorizada, perguntei, curiosa:

– Mãe, o que houve? Agora quem está empalidecida é a

senhora.

Ela baixou a cabeça e depois prosseguiu, contando-me a

seguinte história:

– Foi há muito tempo e, por isso, nunca dei importância

a esse assunto, achando que não passava de uma lenda ou

invenção de seus avós, pais de seu pai. Mas eu deveria tê-la

contado antes e, principalmente, deveria ter feito alguma coisa.

Ela começou a chorar e nada me fazia conseguir consolá-

la. A cada instante, eu ficava cada vez mais assustada e curiosa.

Interroguei-a, depois que percebi que já estava mais calma.

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– O que, mãe, deveria ter sido feito que a senhora não

fez? O que a senhora deveria ter me contado e não contou? A

senhora agora conseguiu me deixar apreensiva e curiosa.

Seus olhos eram pura tristeza e pavor. Depois de enrolar

as mãos no avental, ela prosseguiu gaguejando:

– No dia do seu nascimento, seu pai e sua avó paterna

desejaram que você fosse um menino para que pudesse ajudá-lo

na pesca, e também para quebrar a maldição que já vinha

acompanhando a família dele havia séculos.

Ela levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado

a outro da cozinha. Levantei-me também, fui à sua direção e

segurei-a pelos braços, dizendo:

– Tenha calma, mamãe. Sente-se novamente e respire.

Agora, diga-me: de que maldição a senhora está falando?

– Você não entende, minha filha. A culpa foi minha, pois

não fui capaz de dar um primogênito homem a seu pai. Canta a

lenda que há muitos e muitos anos uma mulher de nome

Carmélia Pontes apaixonou-se por seu tataravô. Porém, ele não

correspondeu a ela e ainda a deflorou depois de uma bebedeira,

na frente de seus amigos. Deixou a pobre mulher ao relento e à

mercê da vergonha e do acaso. Ele nunca se importou com os

sentimentos da pobre mulher e sumiu no mundo, só retornando

casado com sua tataravó Nércia. Só que a tal mulher para quem

seu tataravô havia feito mal era uma feiticeira muito poderosa e

lançou uma maldição sobre a família de seu pai. Ela jurou que

a sétima mulher a nascer primogênita, a partir daquela

geração, antes de completar o vigésimo primeiro aniversário

ainda virgem, seria uma praga sobre a terra. Sua alma seria

levada pelo Diabo em pessoa. Ela reinaria por toda a

eternidade ao seu lado como sua esposa. Quando você nasceu,

todos queriam afogá-la, mas seu pai não deixou. Sua avó ficou

durante anos sem falar com o seu pai por causa dessa atitude

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dele. Pois todas as primogênitas da família eram afogadas

assim que nasciam. Seu pai, porém, foi um homem de coragem e

disse que, se notasse algum mau indício demoníaco em você, ele

mesmo o faria. Mas até hoje você nunca deu indícios de nenhum

mal sobrenatural ter possuído o seu corpo. Pelo contrário, você é

uma jovem meiga e doce. Sua avó faleceu e, de desgosto, os

aldeões quiseram nos queimar vivos, então seu pai veio para

esta vila. Desde então, ele vem bebendo como um louco. É por

isso que me calo diante de certas atitudes violentas que ele

comete, não sou omissa como pensam, sou devotada e sei o que

ele tem passado carregando nas costas esse segredo durante

todos esses anos. Somos amaldiçoados, Emanuelizia, se alguém

souber dessa história não teremos chance contra a inquisição.

Eles a levarão...

Ela baixou a cabeça e calou-se, percebendo sua tristeza

prossegui: – A senhora deveria ter me contado isso antes! Essa

história muda muito o meu conceito quanto ao caráter de meu

pai, embora não justifique que ele a maltrate tanto. Mas o

restante da história é loucura! As minhas outras tias, irmãs de

papai, tiveram filhas também. Por que a senhora acha que essa

infeliz teria que ser eu?

– Porque sua tia Feliciana teve três meninas, é certo.

Porém, ela teve uma menina antes de todas, que nasceu morta. E

a sua outra tia, Marta, só teve um menino.

– Mas como? E a Maria da Cruz? É mais velha que

Olavo.

– Sim, mas Maria da Cruz é fruto de uma desventura que

seu tio teve fora do casamento.

– Então, Maria da Cruz não é filha legítima de minha

tia? Somente de meu tio?

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– Sim. E como todos sabem, seu tio mais velho, irmão de

seu pai, é um solteirão. Nunca quis se casar por medo da

maldição. Dizem até que ele é um eunuco, que ele mesmo fez

isso consigo por medo da maldição.

– Mãe... O que será de mim, então? Se esta história for

verdadeira, serei uma maldição.

– Sim, pois foi por isso que nós a entregamos em

casamento para seu primo logo que ele nasceu. Mas parece que

deu tudo errado. Diga-me, Emanuelizia, Maxuel nunca foi além

com você?

– Não, mãe, claro que não.

– Pois saiba que preferiria tê-la desvirginada a saber que

poderá ser esposa do demo.

– Não entendo, mamãe, por que tenho que pagar por

tantas coisas. Por que será que o destino reservou uma sina tão

cruel como essa para mim? Parece-me que nunca serei amada de

verdade, que a minha vida será vagar pela eternidade, causada

por um destino cruel. Sinto-me um monstro! Mãe, não quero ser

esposa do demônio, sou filha de Deus. Não quero esse destino

para mim. Tem que haver algo que possa ser feito!

– Não sei o que fazer, filha. Mas, por ora, não falaremos

nada com seu pai. Você sabe como é o temperamento dele.

Precisamos pensar com calma. Logo irei ao seu quarto e, juntas,

pensaremos em alguma coisa. Mas, por ora, fique calma e não

pense mais bobagens. Vá dar uma volta pela praia para aliviar

seus pensamentos. Não quero que me ajude hoje com a casa.

Quero pôr também meus pensamentos em ordem, e a única

maneira que consigo isso é ficando sozinha com meus afazeres.

Naquele dia, caminhei por mais ou menos duas horas à

beira-mar. Depois de ter colocado meus pensamentos em ordem,

cheguei à seguinte conclusão: a solução seria encontrar

novamente a velha cigana. Porém, não sabia como fazê-lo, pois

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chamei alto seu nome e nada aconteceu. Dúvidas invadiam a

minha mente, pois já não sabia se a velha era real ou apenas

mera imaginação. Pensei comigo Será que ela era sonho ou

realidade? Pois naquele dia eu havia adormecido na areia.

Retornei para casa e tranquei-me no quarto, sem querer

ouvir ou falar com ninguém. Não quis almoçar ou jantar.

Apenas fiquei sozinha com meus pensamentos, até que...

"Nesta vida, mesmo que tudo seja passageiro, é

obrigatório que sejamos honestos em nossas conquistas."

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II – A Iniciação

inha mãe abriu a porta de maneira silenciosa, entrando

na ponta dos pés e tentando não fazer nenhum barulho

para não me acordar. Porém, ao ver aquela cena achei

hilariante, levantei-me de costas apoiando nos cotovelos e falei-

lhe, sorrindo:

– Mãe, não precisa ser tão cautelosa para não me acordar,

pois já estou acordada. E mesmo se quisesse dormir, não

conseguiria. Na verdade, estou esperando-a para tentarmos

juntas chegarmos a uma conclusão sobre o que falamos hoje

pela manhã. Confesso que passei a tarde toda pensando em uma

maneira de tentarmos reverter a minha maldição, mas não

consegui pensar em nada.

– Filha... Sinto muito, mas não consegui pensar em nada. –

disse ela, muito decepcionada, jogando-se na cama e caindo

sentada.

Levantei-me e fui até a outra extremidade onde ela estava.

Ajoelhando-me ao chão, bem à sua frente, falei:

– Tenho que lhe contar um fato que não lhe contei hoje

cedo. Não estou dizendo que essa é a solução, mas é o único

caminho que consegui achar.

Mordi os lábios e fiquei fitando-a nos olhos, esperando

uma resposta – ou melhor, uma interrogação. Ela estava de

cabeça baixa, com as mãos em posição de oração. Por fim,

M

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levantou a cabeça e fitou-me meio desconfiada, como se

soubesse que o que eu tinha a dizer não era boa coisa. Mediante

aquela atitude – que só me passou mais insegurança ainda –,

disse a ela:

– Ontem, como a senhora disse, não lhe contei tudo o que

houve comigo.

Ela levantou as sobrancelhas e falou:

– E ainda houve mais alguma coisa que você me deveria

ter dito? Santo Deus! Deixe-me preparar o espírito – disse ela,

recostando mais para trás.

Eu, no entanto, estava aflita e ansiosa. Não sabia qual seria

a reação dela, mas uma coisa era certa: eu tomaria as minhas

próprias decisões.

– Escute, mãe, é muito importante! Depois que eu e

Eulália discutimos ontem, fui atrás dela nas pedras, tentando

saber o motivo pelo qual ela andava tão nervosa e grosseira

comigo. Não adiantou muito, pois discutimos mais ainda e só

serviu para que sentíssemos mais mágoas uma da outra.

Mediante o esforço inútil, saí e fui caminhar à beira da praia.

Porém, resolvi parar e descansar. Então, sentei-me em frente ao

mar e acho que acabei adormecendo... Não tenho certeza, acho

que adormeci ou cochilei, não sei ao certo. O fato é que, ao abrir

os olhos, deparei-me com uma senhora, ou melhor, uma velha

cigana. Esta mulher disse-me que estava havia tempos me

procurando e que me conhecia desde meu nascimento. A

princípio, achei que era apenas uma velha louca, pois ela me

disse que eu era a sua escolhida e que em breve tomaria o seu

lugar. Contou-me coisas... Na hora, não atinei para os fatos, mas

agora tudo o que ela me disse está fazendo sentido. Estou

decidida a procurá-la.

– Emanuelizia, você enlouqueceu? Você não conhece essa

mulher! Ela pode ser a mulher que amaldiçoou a família de seu

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pai. Não posso permitir que cometa tamanha sandice. O que ela

pode fazer por você?

– Não creio que essa mulher seja a mesma que amaldiçoou

a família de meu pai; ela deve estar morta há muito tempo.

– Minha filha, raciocine um pouco. Não posso permitir

que faça isso, é muito arriscado. E se essa mulher estiver

compactuando com o demônio? E se isso tudo for uma

armadilha? Filha, temos que pensar em todas as possibilidades.

Dizem que as feiticeiras podem viver muitos anos, até mesmo

séculos. Tem alguma coisa errada nessa história toda.

– Mãe, sei que a senhora pode estar certa, mas não vejo

outra saída. Acaso a senhora conseguiu pensar em alguma

coisa?

– Não, infelizmente não. Só que estou temendo por você,

filha... Se alguém desconfiar que esteja compactuada com essa

mulher e com a magia negra, você poderá sofrer sérias

consequências.

– Ninguém irá desconfiar, a menos que a senhora conte, é

claro. Mãe, se não acharmos uma maneira de me livrar dessa

maldição, estarei perdida. Desculpe-me, mas não vejo outra

saída que não essa.

Ela baixou a cabeça pesarosamente.

– Faça o que achar que lhe seja melhor, mas que fique

bem claro que não estou de acordo com você. E é melhor

tomarmos cuidado com esse tipo de conversa: se seu pai

descobrir, ele matará nós duas.

– Não se preocupe, mãe, esse será o nosso segredo.

Ela deu-me um beijo de boa noite na testa e saiu,

retirando-se para o seu leito. Senti no seu silêncio que ela estava

receosa. Respirei fundo e deitei-me, tentando adormecer, pois

sabia que o dia seguinte seria longo.

Amanheceu. Espreguicei-me na cama e levantei-me. Calcei as

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chinelas e fui abrir a janela para dar uma olhada naquela manhã,

que parecia perfeita. Fiz minhas orações, deixando que as

palavras saíssem ao vento. Queria comungar com o universo

invisível. Depois, disse em voz alta:

– Eleanor... Eleanor... Eleanor... Perdoe-me, fui ingrata.

Preciso da sua ajuda, por favor. Estou implorando, preciso

mesmo da sua ajuda.

Pareceu-me não ter surtido efeito algum. Então, vir-me-ei

para dentro e fui arrumar-me para o desjejum. De repente, uma

fria brisa vinda do mar começou a soprar... Aquele frio gélido

arrepiou todo o meu corpo já despido. Quando já estava quase

totalmente vestida, minha mãe entrou ofegante pelo quarto,

pedindo para eu me vestir rápido, pois parecia que estava vindo

uma terrível tempestade e poderia se transformar em um

furacão. Peguei meu xale e saí correndo para ajudá-los. Meu pai

e meu irmão iriam avisar os demais pescadores, enquanto minha

mãe e eu nos dividiríamos e avisaríamos a vizinhança.

Foi uma correria. Confesso que nunca vi nada como

aquela tempestade antes. Olhei para o céu: ele havia ficado da

cor de terra, com nuvens espessas e negras que se juntavam às

demais, fazendo parecer que algo ruim iria acontecer. Quando

estávamos do lado de fora, na varanda, fiquei perplexa ao ver

tamanha confusão. O vento forte havia jogado tudo de um lado a

outro, e um verdadeiro caos estava se formando. Fiquei

catatônica, imaginando como um dia tão lindo poderia, de uma

hora para outra, transformar-se em um dia catastrófico como

aquele...

Quando dei por mim, meu pai e meu irmão já estavam

bem longe e minha mãe seguia rumo ao leste. Eu, porém, estava

meio perdida com meus pensamentos e confusões mentais.

Naquele momento, meu xale foi arrancado de mim pelo vento

forte e jogado na cerca de madeira da varanda. Corri para

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apanhá-lo e, sem querer, acabei olhando para cima. Foi quando

vi sobre o telhado de minha casa algo nada convencional.

Cheguei a cair de costas de tão assustada que fiquei: em

cima do telhado estava a velha Eleanor, flutuando sobre as

telhas. Porém, sua aparência era mais jovem e suas vestes eram

de um linho fino, marrom e preto, com um xale de renda

também preto – o que a fazia parecer ter asas de morcego. A

visão era incrivelmente assustadora, mas me fascinou a maneira

como ela flutuava. A mulher apontava com a mão esquerda para

as cavernas, ao norte. Levei um susto com a minha mãe

chamando-me. Então, vir-me-ei, levantando para atendê-la.

– Emanuelizia, venha rápido! Preciso que venha comigo à

casa dos Carriço. Vamos, menina, eles têm muitos filhos

pequenos e vai dar trabalho juntá-los!

Ao olhar meu semblante, disse:

– O que há, menina? Está pálida como palha de milho!

– A senhora não viu aquilo?

– Aquilo o quê?

– A bruxa! Ela estava em cima do nosso telhado,

flutuando! Ela apontava para as cavernas, ao norte.

– Não vi nada e acho que você deve esquecer essa bruxa.

Pode ter tido um surto de pânico e isso lhe causou essa suposta

visão. Se seu pai souber que estou falando com você sobre esses

assuntos, poderá expulsar-me de casa. Agora me siga, temos

muitos vizinhos que precisarão de nossa ajuda.

Concordei com ela, pois ela parecia muito assustada com

o suposto furacão que estava se formando. Mas, no exato

momento em que estávamos saindo, paramos para observar algo

ainda mais estranho: o vento havia parado de soprar e a

tempestade parecia estar indo em direção ao oceano. Ficamos

sem saber para aonde ir. Olhamo-nos e entendemos que aquela

tempestade não era natural, mas sobrenatural. Meu irmão e meu

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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pai estavam retornando, também assustadíssimos. Então,

resolvemos esperá-los: quem sabe pudessem nos dar umas

respostas para aquele fato inédito e sinistro? Ao se

aproximarem, meu pai falou imediatamente:

– Vocês viram essa tempestade? Parece que está indo para

o mar! Ou melhor, é como se ela tivesse se transformado em um

montinho de nuvens e agora está indo mar adentro!

Apenas concordamos com a cabeça e ficamos todos

juntos, olhando aquele fenômeno. De repente, como em um

passe de mágica, a tempestade foi sugada para dentro do oceano.

No mesmo instante, um céu límpido e cristalino abriu-se, como

se nada tivesse acontecido. Nosso silêncio foi interrompido

apenas pela voz do meu irmão, que disse:

– Não sei quanto a vocês, mas acho melhor não falarmos

disso a mais ninguém.

Meu pai, além de concordar com a cabeça, ressaltou:

– Mesmo porque poderão dizer que estamos possuídos por

espíritos imundos. É melhor todos ficarmos quietos. Deixe que

eu vá verificar no vilarejo se alguém soube do indício de alguma

tempestade. Isso não foi uma coisa normal... Havia algo de

malévolo naquela tempestade e, com certeza, isso foi obra de

alguma bruxa.

Minha mãe olhou-me nos olhos, como se pedisse socorro.

Porém, achei melhor não dizer nada.

– O senhor acha que pode ter sido causado por espíritos do

mal, meu pai? – perguntou meu irmão, com os olhos

arregalados.

– Não sei o que foi. Mas, com certeza, pelos anos que

tenho em alto-mar, sei que isso não é uma coisa normal. Nunca

vi uma tempestade ser sugada para o meio do oceano,

desaparecendo tão enigmaticamente.

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Adriana Matheus

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Minha mãe olhou para mim. Parecia estar tremendo, com

medo de que meu pai desconfiasse de alguma coisa. Voltamos

para casa em total silêncio. Ajudei minha mãe nos afazeres de

casa e com o almoço. Naquele dia, nem meu pai nem meu irmão

quiseram sair de casa. Pareciam receosos. Ficaram arrumando

alguns objetos que precisavam de reparos. Almoçamos todos em

total silêncio, mas confesso que estava ansiosa para ir à caverna.

Assim que terminei o almoço, levantei-me da cadeira e saí

às pressas, antes que minha mãe me pedisse para ajudá-la e meu

pai me impedisse de sair. Corri o mais que pude até que já havia

tomado certa distância de minha casa. Ninguém mais poderia

me alcançar. No caminho, fui pensando mil coisas como, por

exemplo, o porquê de aquela velha apontara-me as cavernas?

As entradas das cavernas eram formadas por inúmeros

recifes de corais. Eles formavam nas rochas pequenos laguinhos,

onde muitos animais marinhos viviam. As pedras também eram

escorregadias e muito perigosas, pois existiam muitos corais

venenosos – se me ferissem, poderiam até me matar. Tirei os

sapatos e as meias, deixando-os em uma pedra seca. Fiquei

imaginando uma maneira de não me ferir. Até que, por fim,

abaixei-me e fui deslizando sobre as pedras, pondo meus pés nas

águas geladas. Era gostosa a sensação de liberdade que aquelas

águas transmitiam-me.

Parei para observar os pequenos animais que deslizavam

por entre meus pés: peixinhos coloridos de toda espécie. Peguei

uma estrela do mar minúscula e fiquei analisando em detalhes a

perfeição daquele pequeno ser. Coloquei-a de volta nas águas.

Os peixinhos coloridos que nadavam entre as minhas pernas

faziam-me cócegas. Eu poderia ficar ali observando a natureza

marítima por horas, mas precisava ser um pouco mais apressada.

Depois de atravessar aquele pequeno mundo de laguinhos,

musgos e minúsculas criaturas; alcancei, por fim, a areia. Andei

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por alguns minutos a mais até que, finalmente, cheguei às

entradas das cavernas. Havia duas entradas, mas a minha

intuição me disse para entrar pela abertura da esquerda. A

caverna era enorme e estava coberta por estalagmites que faziam

um contorno no chão, formando um labirinto. Ao passar em

meio a elas, rasguei a bainha do meu vestido, mas não dei muita

importância a isso. Fui seguindo as estalagmites até que cheguei

a um enorme saguão de rochas, onde uma lagoa de espelhos

d’águas havia se formado. No teto, pingavam gotas vindas de

inúmeras estalactites, o que explicava aquela incrível lagoa de

água cristalina. Algumas daquelas estalactites faziam formar no

chão desenhos em forma de espirais, outros pareciam flores e

animais. Formas distorcidas que aguçavam a minha imaginação,

dando vazão à criatividade dos meus pensamentos jovens. Eu

poderia viver ali para sempre se não fosse tão frio – pensei.

De repente, uma forte luz atraiu minha atenção para o

fundo da caverna. Ao seguir adiante, percebi que o lugar estava

sendo habitado por alguém, pois estava cercado de tochas presas

nas laterais das paredes. Fui seguindo as tochas até que, mais ao

fundo, entrei em um enorme salão de rochas, onde havia um

altar todo montado com estranhos símbolos. Um caldeirão

estava aceso e um grande livro estava postado ao seu lado –

objetos desconhecidos para mim até então. Comecei

curiosamente a tocar em alguns deles. Peguei um athame de

prata, cujo cabo era de ouro maciço, cravejado de pedras

preciosas. Era esplendoroso o tal artefato. Nunca tinha visto

nada igual! Depois, fui detalhadamente observando cada objeto

que encontrei. Confesso que alguns além de desconhecidos,

eram também sombrios. Estava tão distraída que levei um

enorme susto quando uma mão gelada tocou-me os ombros,

dizendo:

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Adriana Matheus

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– Vejo que a menina já está tomando gosto pela magia...

Isso é bom!

– Nossa, a senhora me assustou! Como foi que conseguiu

trazer todos estes objetos para esta caverna? – perguntei

ofegante, colocando a mão no peito.

Ela sorriu, remexendo o caldeirão de cobre com uma

colher de madeira enorme:

– Estou aqui há muitos anos. Cada objeto aqui dentro foi

trazido a seu tempo. Agora, responda: a que devo a honra de tão

cedo tê-la me esperando? Pensei que somente amanhã iria vê-la,

mas me enganei. Pelo que vejo, estou ficando velha mesmo.

– Não tenho tanto tempo assim. Por isso, tive que vir o

quanto antes. Achei que não se importaria, depois da aparição

triunfal e quase catastrófica desta manhã... A propósito, como

foi que fez aquilo?

Ela me sorriu largamente:

– Nem mesmo precisando da minha ajuda a menina deixa

de ser arrogante, não é? A senhorita tem que aprender a ser mais

humilde. Não sou sua escrava. E quanto à aparição, somente

com o tempo você conseguirá fazer certas ilusões.

– Desculpe-me, estou aqui porque realmente preciso da

sua ajuda. Se lhe pareci arrogante, não foi minha intenção. Mas

confesso-lhe que a sua aparição foi muito realista para uma mera

ilusão. Não sei o que dizer. Se eu um dia chegar a esse nível,

serei mesmo uma bruxa muito temida.

– Vamos parar com rodeios e ir direto ao ponto crucial que

lhe trouxe até aqui. E não me bajule, pois odeio esse tipo de

coisa – disse ela, dando um sorrisinho faceiro e virando-se de

costas, para remexer outra vez o caldeirão.

– Preciso saber se a senhora vai me ajudar. Estou com um

problema muito grande. Confesso que, pela primeira vez em

minha vida, estou com medo.

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Ela, porém, virou-se para mim com uma calma, dessas

causadas só por Deus, e disse, pegando-me pelo pulso:

– Ele a procurou, não foi? E, pelo que vejo, deixou sua

marca em você. Com certeza a menina está muito encrencada!

– Como a senhora sabe da existência dele? E como sabe

que ele me marcou se eu nem lhe contei os fatos ainda? Quem é

a senhora, afinal? – perguntei, meio desconfiada.

Ela deu uma gargalhada que ecoou por toda a caverna.

– Sei todas as coisas que acontecem no mundo. Estou

sempre atenta aos fatos e nada me passa despercebido. E é

lógico que ele iria procurá-la, pois queremos a mesma pessoa.

Eu a quero como discípula e ele a quer por toda a eternidade

como sua companheira. Além do mais, não preciso ser uma

bruxa para ver que ele deixou a sua marca no seu antebraço.

Não sou cega, querida, e ser observadora é uma característica

peculiar das bruxas. Estamos sempre atentas aos detalhes. Vá

aprendendo para que não se engane, ou seja, para não ser pega

de surpresa no meio do caminho. Quanto a quem sou, sou

apenas uma velha bruxa cansada de viver por uma longa

eternidade. Como disse, não gosto de rodeios e vou logo direto

ao assunto: quando vi a marca em seu antebraço, vi que você era

uma marcada e soube, então, que eu e a besta queríamos a

mesma pessoa. Porém, é claro, temos propósitos diferentes em

relação a você, como já citei.

– Como a senhora sabe da existência dele e como sabe

tanto sobre essa marca? Não me respondeu ainda!

Ela deu outra sonora gargalhada.

– A menina, pelo que vejo, tem muita curiosidade sobre o

assunto. Mas não se preocupe: estarei aqui para lhe responder.

Acredite: não estaria aqui hoje se não soubesse quem ele é e do

que ele é capaz. E quanto a saber sobre a marca da besta, é

simples: já vi essa marca no pulso de outra pessoa antes.

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Adriana Matheus

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– Quer dizer que a besta já marcou outra pessoa antes? E

quem foi ela?

Levantando a manga da túnica negra que vestia, ela

mostrou:

– Eu. Quando eu tinha a sua idade, a besta procurou-me

também, só que por motivos bem diferentes do seu, creio. Ele

disse que queria os meus poderes. Por isso, havia me escolhido

como sua aliada e discípula. Claro que isso era somente um

pretexto para que ele levasse a minha alma. A besta fez de tudo

para me convencer: ofereceu-me ouro e prata e tudo o que eu

pudesse desejar... Nunca cedi. Por isso, ele me marcou. É assim

que ele faz quando não o aceitamos: ele nos marca para

sabermos que ele é o soberano. É como se fosse um animal ou

senhor de escravos que tem que marcar o seu território e suas

mercadorias.

– E como a senhora conseguiu se livrar dele? Como?

– Não me livrei. Não é possível livrar-se dele com tanta

facilidade. Muito tempo depois do nosso primeiro contato, ele

voltou a me procurar e disse que eu não teria mais serventia para

ele, pois já havia encontrado a mortal que o serviria por toda a

eternidade. Mas disse que nos encontraríamos no inferno, pois

eu havia trabalhado muito para isso. Sabe como é... não se pode

ser perfeita o tempo todo! Pelo que vejo, teremos uma longa

tarde, não é? – disse ela ironizando, mas parecendo curiosa em

saber a minha história.

Contei-lhe em pormenores exatamente como a minha mãe

havia me contado. Ela não dizia nada – apenas ouvia e colocava

fumo em seu cachimbo. Quando terminei tudo, dei um suspiro e

fiquei fitando-a, esperando uma opinião. Na verdade, queria

mesmo é que ela me oferecesse ajuda. Ela levantou-se

calmamente, voltou ao caldeirão e provou o misterioso preparo.

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Depois de sorver aquele líquido, pegou duas tigelas e ofereceu

uma delas a mim:

– Tome este caldo. Está frio e, como disse, teremos uma

longa tarde.

Percebendo que eu havia ficado meio receosa, ela

prosseguiu:

– Se fosse veneno, eu também não iria tomar. Creio,

minha criança, que lhe colocaram muitas crendices na cabeça

sobre as bruxas. É somente um pouco disso e daquilo... nada

demais. Experimente, vai gostar!

Ela deu a gargalhada novamente. Sua ironia assustava-me.

A velha ficou quieta, sorvendo o líquido e observando enquanto

eu remexia o caldo de um lado a outro. Finalmente, respondeu-

me:

– Sinto lhe informar que seu caso é um caso perdido.

– Isso significa que a senhora não irá me ajudar? Pensei

que fosse uma bruxa poderosa, mas vejo que não sabe nada e

terei que procurar outra pessoa, então.

– Nunca disse que não a ajudaria, só lhe disse que o seu

caso não tem solução. Você faz parte de uma maldição que não

tem mais jeito de ser desfeita, pois a mulher que a lançou já está

morta, eu mesma a conheci. Era uma mulher perversa, não

media as consequências dos seus atos. Apaixonou-se

loucamente por um homem que a humilhou publicamente. Mas

ela não o esqueceu e amaldiçoou toda uma geração de

primogênitas. Só não imaginei que a minha escolhida seria

também a escolhida de satanás e parte dessa maldição tão

maquiavélica.

Ela deu de ombros e, depois de soltar outra de suas

gargalhadas, respondeu:

– O que está feito está feito, ora!

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– Então, se não tem jeito de desfazer a maldição, não vejo

o porquê de continuar a visitar a senhora.

– Arrogante como sempre! Posso não poder desfazer a

maldição, mas posso lhe ensinar os poderes da magia para que

possa defender-se das artimanhas da besta. Só quero preveni-la

para que nunca cometa o mesmo erro da mulher que a

amaldiçoou.

– E qual foi? Apaixonar-se?

– Não, isso é inevitável. Mas nunca deverá colocar um

homem como o centro de sua vida. Deverá seguir a magia com

respeito e coragem, pois é um caminho muito difícil. Não é um

caminho para pessoas fracas e covardes. Os deuses da magia são

ciumentos e melindrosos. Gostam de ser tratados com respeito e

carinho. E saiba que não é só porque você vai se iniciar na

magia que vai poder deixá-la de lado e usá-la apenas quando

bem quiser. Não é assim que funciona. A magia exige muita

leitura e prática constante. Agora, deixemos de conversa e

vamos tomar um caldo. Afinal, bruxas não se alimentam de

vento.

Dizendo isso, foi se servir de mais caldo – que, embora

muito cheiroso, pareceu-me bastante suspeito.

– Desculpe, mas o que estamos tomando? – perguntei-lhe.

Ela se virou para mim, colocou as mãos na cintura e

respondeu-me, seriamente:

– Ora, não sabe? Isto é caldo de sapo com orelhas de

morcego e patinhas de lagartixa.

Cuspi o que me estava à boca na hora. Ela quase rolou ao

chão de tanto rir.

– Criança tola, é disso que eu lhe falava: na magia, tem

que apurar até mesmo seu paladar e olfato. Senão, como poderá

diferenciar uma simples canja de galinha de um caldo de frutos

do mar? E mais: deve aprender que bruxas não são seres

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mitológicos. Só comemos comida normal, não voamos em

vassouras e não fazemos sacrifícios com animais e seres

humanos. Praticamos a boa magia, mas temos ciência da magia

negra, embora não a usemos quase nunca. Jamais usamos

nossos poderes ou feitiços em benefício próprio, não usamos

droga ou qualquer subterfúgio desse tipo em nossos rituais

sagrados, e nunca praticamos orgias em nossos sabás. Entendeu?

– Sim, entendi.

– Espero que sim, sinceramente. Agora tome o seu caldo

de frutos do mar e pare de imaginar coisas que nada têm a ver

com a verdadeira prática da magia sagrada.

– Gostaria de obter a receita. – tentei perguntar-lhe de

maneira educada, ainda meio receosa com o caldo.

Ela serenamente levantou-se e respondeu com aquela

calma que só poderia vir de Deus:

– Se vamos trabalhar juntas, é preciso que confie em mim.

E o que é mais importante: que aprenda a apurar o seu paladar e

o olfato. Caso contrário, teremos sérios problemas com seus

preparos. E aprenda a ter um pouco mais de bom humor, pois,

apesar de ser ainda jovem, está aparentando muito mais idade do

que eu.

– Desculpe-me, senhora, mas fica difícil entender o seu

humor. Prometo que tentarei de agora em diante.

Disse isso baixando a cabeça e tentando passar para ela o

maior respeito possível. Não queria que ela se aborrecesse

comigo, pois não seria bom para a nossa convivência. Ela,

porém, olhou-me friamente, parecendo ter percebido quais eram

as minhas reais intenções. Disse-me com um olhar matreiro:

– Estou há muitos anos sobre a Terra e não admito que me

testem. Não sou eu quem procura respostas, é você. Existem,

talvez, duas possibilidades. A primeira é que você deverá perder

sua virgindade somente por amor. A segunda é: nunca deverá,

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em hipótese alguma, chamar por ele. Jamais, enquanto você

viver, deverá fazer acordo com a besta, mesmo que a sua vida

dependa disso.

– Somente isso? Então, pode confiar em mim: se depender

dessas duas coisas, minha maldição foi quebrada a partir de

hoje.

– Criança tola! Ninguém é dono do destino e muito menos

das próprias vontades. Acha mesmo que se Deus quiser, não te

prova isso agora? Ele pode muito bem deixar que a besta aja em

sua vida, pondo-lhe um falso amor e quando você perceber, já

estará perdida. Deus pode mudar o seu destino quando Ele bem

quiser, pois pertence somente a Ele. Você é uma jovem

presunçosa se acha que pode controlar seus desejos carnais. As

paixões mundanas da Terra fazem-nos tolas e cegas. Cuidado

para não cair em uma dessas armadilhas do destino, minha

querida. Continua teimando comigo, e o que é pior: achando-se

capaz de lutar contra as vontades de Deus.

– Se a senhora sabe mesmo todas as coisas, deve saber que

acabei de perder meu grande amor e que nunca mais amarei

outro homem sobre a Terra. Então, desta vez creio que a senhora

está enganada. E nunca, em toda a minha vida, farei um pacto

com a besta. Isso está totalmente fora de cogitação.

Ela parou de fazer o que estava fazendo, colocou as mãos

na cintura e disse:

– É a pessoa mais arrogante e tola que já conheci! Nunca,

em toda a minha existência carnal, conheci uma pessoa tão

presunçosa como a senhorita. Você nunca amou

verdadeiramente o seu noivo. Seu casamento iria ser por

conveniências. Sua irmã, embora tenha agido de má fé, ela sim o

ama. Se quer saber, creio que nunca saberá o que é o verdadeiro

amor. Temo que sofra sérias punições por causa dessa sua

maneira de achar que é a dona do seu destino e do dos outros.

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Fiquei em silêncio. Quando terminei de tomar o caldo

delicioso, ela disse:

– Agora vá, por enquanto. Está na hora de nos

despedirmos.

Antes de sair, ela me entregou vários livros:

– Quero-a de volta na semana que vem. Vai precisar desse

tempo para pôr suas ideias em ordem. Até lá, vá lendo esses

livros que farão parte do seu dia a dia de hoje em diante.

– Não sei se voltarei a procurá-la novamente, mas lhe

agradeço pelos livros.

Na verdade, eu estava ansiosa para começar a trabalhar

com a magia, mas não poderia demonstrar. Caso contrário, a

velha teria razão em tudo. Gostaria de saber de onde ela tirava

tanto humor, pois minha situação não era nada engraçada... Eu a

odiava no seu jeito de agir, mas precisava dela e tinha que me

manter calada, ou ela não me ajudaria. Ciente das minhas

verdadeiras intenções, Eleanor soltou outra gargalhada,

sacudindo a cabeça.

– Minha cara e tola discípula, uma vez conhecedora da

magia, nunca mais conseguimos nos livrar dela, querida!

Eu ia responder, mas, ao virar-me para trás, ela havia

sumido. Disse a mim mesma Esse truque quero aprender!

Voltei para casa, mas dessa vez não fui caminhando

lentamente. Apressei-me, pois não queria que meu pai

desconfiasse de nada. Cheguei em casa ofegante. Minha mãe, da

janela da cozinha, fez um sinal para eu pular a janela do meu

quarto: parecia que estavam com visitas em casa. Fiz o que ela

me mandou. Minha mãe já havia deixado a ânfora no quarto

para que eu me lavasse. Embora tivesse achado estranha aquela

atitude, a água morna foi de boa serventia, pois estava mesmo

precisando me lavar. Troquei de roupas e fui para sala. Para meu

espanto, deparei-me com Maxuel e meus tios, mas minha irmã

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não estava com eles. Ao ver-me, Maxuel baixou o rosto e nada

disse. Minha tia veio ao meu encontro, tentando abraçar-me.

Logo me esquivei, apenas dizendo:

– Como estão passando? Espero que bem, depois de tudo

o que me fizeram. Desculpe-me, tia, mas não preciso de sua

falsa piedade comigo. Aliás, não preciso de nada que venha de

vocês. – disse, olhando para Maxuel, que evitava me encarar.

Minha tia, prestes a cair em prantos, correu para os braços

de seu marido, que a acolheu, dizendo:

– Emanuelizia, tenha mais respeito por sua madrinha. Ela

nada tem a ver com o acontecido. Ela sempre a tratou com

carinho e respeito. Exijo que faça o mesmo com ela. Não

viemos aqui para discutir mais sobre esse assunto, que está

totalmente resolvido. Viemos aqui comunicar o horário do

casamento de sua irmã: sábado, às seis e vinte e seis da manhã,

na capela de Nossa Senhora da Consolação. Não tivemos a

intenção de vir aqui para afrontá-la. Sabemos como deve estar

se sentindo. Sentimos muito, mas é só o que podemos fazer por

você.

Comecei a bater palmas e disse:

– Parabéns aos noivos, então. Desejo toda a felicidade do

mundo. Não era isso que todos esperavam que eu dissesse? Que

os noivos sejam felizes para sempre? Eu seria muito hipócrita se

concordasse com isso! E quanto à minha madrinha, ela sente

tanto respeito por mim que veio até a minha casa junto a esse

traidor dar a notícia dos preparativos desse maldito evento.

Vocês me afrontam dentro de minha própria casa e não querem

que eu me revolte? Alcovitam essa traição e acham que tenho

que estar feliz e abraçá-los como uma boa menina que sempre

fui? Vocês não me deram direito de escolha, tramaram tudo

pelas minhas costas, e acham que sou obrigada a concordar com

essa pouca vergonha? E você, minha tia, sabe muito bem por

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que fui dada em casamento tão cedo! Como pode agora ficar ao

lado de Eulália? Todos vocês sabem que se eu não me casar,

posso perder a minha alma! Até quando vocês iriam esconder

isso de mim? Enquanto minha santa irmã e esse canalha se

casam e levam uma vida tranquila, terei que carregar a maldição

de meu pai nas costas, não é?

Meu pai olhou para minha mãe com os olhos fumegantes

de ódio:

– Mulher, como ousou contar à nossa filha sobre a

maldição?

– Não contei, José, juro! Ela soube de alguma outra forma.

– disse minha mãe, com os olhos arregalados e com medo de

meu pai.

Tomei imediatamente a conversa para evitar que meu pai

se tornasse agressivo.

– Não, pai, o próprio cobrador veio até mim em sonhos e

me contou tudo. O senhor achou mesmo que poderia esconder

de mim uma coisa dessas? Até quando? – disse,

desafiadoramente, olhando para ele.

Ele, porém, baixou guarda e calou-se. Prossegui:

– Como vocês puderam apunhalar-me pelas costas dessa

maneira, sabendo que eu poderia pagar inocentemente por causa

do ato de vocês?

– Achamos que seria melhor que não soubesse. Não

fizemos por mal. Quanto ao seu casamento, minha filha, fizemos

o que era certo, mas parece que o destino intrometeu-se e agora

é esperar e ver o que pode ser feito – disse meu pai.

– Destino? O senhor chama essa sujeira de destino? Acha

mesmo que tenho tempo? O senhor deve acreditar em contos de

fadas, meu pai, e achar que um príncipe encantado irá aparecer e

salvar-me da besta. Este crápula à minha frente traiu-me

sabendo de toda essa história, sem sequer se importar com meus

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sentimentos. Ele não me deu a chance de escolher. Odeio

Maxuel e o desprezo com todas as minhas forças. Ele não vale o

chão que piso.

Maxuel deu um salto inesperado à frente e disse, num tom

de possessividade:

– Alto lá! A senhorita não vai me ofender mais! Quis

ajeitar as coisas e todos estavam de acordo. Porém, você é

quem, como sempre, quis fazer as coisas a seu modo. Errei, sim.

Todos erramos, Emanuelizia. Já estou pagando o meu preço em

me casar com uma mulher que não amo. Fui um tolo ao deixar-

me seduzir por ela. Mas estou, mal ou bem, pagando o meu

preço. Você também está pagando o seu por não ter concordado

comigo. Dei o direito a você de escolha, sim, quando lhe pedi

para anteciparmos o nosso casamento e cuidarmos do filho de

sua irmã assim que a criança nascesse. Mas foi você que se

encheu de falsa moral... Se me amasse verdadeiramente, como

dizia, mesmo estando magoada comigo, teria aceitado o que lhe

propus. Mas não: como sempre, trocou os pés pelas mãos e

agora está a me acusar? Não vou permitir levar a culpa sozinho.

Seus pais deveriam ter vigiado mais Eulália, pois todos os dias

ela saía na hora do meu almoço e levava uma prenda para mim,

sempre com a desculpa de desabafar os problemas de sua casa...

A princípio, evitei-a, mas senti pena dela. Depois, um dia, em

minha sala, ela me beijou e seduziu-me... Ora, Emanuelizia, sou

homem e nenhum homem consegue raciocinar com uma mulher

com a mão em suas calças!

– Controle-se, Maxuel! Poupe-nos desses detalhes

sórdidos! – interrompeu-lhe o pai.

Ele baixou a cabeça, meio constrangido.

– Tudo bem, desculpe-me pelo palavreado. Isso não vai se

repetir.

Passou as mãos pelos cabelos e prosseguiu:

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– Como estava dizendo, tentei remediar as coisas com

você, Emanuelizia. Porém, você nunca ouve os outros. Não

deixa ninguém falar. Somente você é dona da verdade, somente

você é dona do destino.

Aquelas foram as mesmas palavras que a velha havia me

dito. Naquela hora, doeram-me como facas afiadas enfiadas no

coração.

– E como você acha que eu poderia conviver com essa

situação, sabendo que a minha irmã estaria sendo tratada como

um animal, sendo escondida de todos para encobertar a sua

vergonha? Além do mais, ela jamais se casaria com outra pessoa

depois que descobrissem o que houve com ela. Eu nunca me

sentiria bem com tal barbárie e não conseguiria aceitar criar o

filho de vocês como se fosse meu. Vocês acharam mesmo que

poderiam consertar um erro acobertando outro? Acharam

mesmo que eu faria parte dessa trama descabida, da qual Eulália

e Maxuel sairiam como santos, enquanto eu levaria a culpa de

ter me casado grávida?

Todos permaneceram de cabeça baixa, enquanto Maxuel

prosseguia, exaltado, tentando justificar sua culpa:

– Você sempre se sentiu a dona de toda a verdade, não é

mesmo, Emanuelizia? Só sabe me culpar pelo que fiz. Mas o

que você fez para salvar o nosso casamento? Se me amasse, não

teria me dispensado com tanta facilidade assim. Teria feito algo!

Talvez até tivesse, sim, aceitado a minha proposta, pois o amor

supera qualquer coisa. Mas isso só serve para quando o

sentimento for verdadeiro. Você nunca me amou de verdade. Só

queria se casar comigo para ter uma vida melhor e se livrar

dessa família de loucos. Você me jogou nos braços de sua irmã.

Enquanto ela me dava carinho, você só me trazia os problemas

que a sua família lhe causava.

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Minhas lágrimas rolaram de dor e culpa. Novamente me

lembrei das palavras de Eleanor de que eu só estava me casando

por conveniência. Porém, respondi a Maxuel num tom de voz

que mais parecia um sussurro:

– Se você realmente me amasse como dizia, teria resistido

a ela.

– Não houve como... Mas sempre a tratei com muito

carinho... – ele respondeu no mesmo tom.

– Você se sente no direito de me falar de carinho e duvida

do meu amor? Você é quem nunca me amou! Sempre que eu

tentava uma proximidade com você, logo se esquivava. Fui uma

tola esses anos todos, pensando que era porque você me

respeitava. Mas não: era porque você amava minha irmã. Eu o

odeio do fundo da minha alma.

– Disso você não pode me acusar, sempre a respeitei.

– Sim, tanto que se deitava pelas minhas costas com a

minha irmã, agindo como um desfrutável, traindo e magoando o

meu coração. Não entendo por que tive que merecer um destino

tão cruel! Não entendo por que você me apunhalou desta forma.

Se não me amava, era só ter dito! Iria doer menos! – disse isso

quase num sussurro entre soluços.

Maxuel saltou na minha frente e segurou-me pelos

ombros. Forçou-me a olhar para ele enquanto falava:

– Mulher, eu a amo. Perdoe-me por ter falhado! Não vê

que estou de rasto? Basta que me diga um sim e fugiremos daqui

para bem longe.

Não sei de onde tirei forças, mas violentamente o

empurrei.

– Nunca perdoarei a sua traição!

Ele, porém, ao ver minha reação, reagiu com palavras,

tentando ainda justificar suas falhas:

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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– Pois saiba que estou cansado de tentar me justificar!

Saiba que sou eu quem não quero vê-la na minha frente

novamente! Quer saber? Ainda bem que tudo entre nós

terminou, pois agora percebo o quanto fria e sem sentimentos

você é, Emanuelizia! Nunca mais falo com você, nem mesmo se

souber que você corre grande perigo. Fiquem bem. – disse

Maxuel, saindo porta afora, cheio de dor.

Contive-me ao máximo para não correr atrás dele e dizer o

quanto eu o amava ainda. Meu pai pareceu ter percebido isso e,

assim, saltou na frente para encerrar com aquela conversa:

– Está feito, não se pode voltar atrás. Eulália vai se casar

no sábado e ponto final.

A tola aqui correu para o seu próprio quarto, onde passei o

restante da tarde chorando o resto de dignidade que ainda havia

em mim. Era muito humilhante saber que eu amava o meu ex-

noivo, que agora seria o marido da minha irmã. Nossos pais

ficaram horas conversando sobre os preparativos. Eu, porém,

não saí do quarto naquele dia. Tentei ler um romance, mas só

serviu para fazer com que eu chorasse ainda mais.

Definitivamente, histórias de amor não faziam parte da minha

vida – pelo menos era o que eu pensava até então. No meio da

noite, minha mãe foi na ponta dos pés para verificar se eu estava

mesmo dormindo. Fiz-me de rogada e fingi. Eu não queria ouvir

e nem falar com ninguém. Somente queria ficar só, com a minha

dor.

Passei o restante da semana lendo os livros que Eleanor

tinha me dado. Afundei-me em leituras e mais leituras para não

me dar conta de que o casamento de Eulália e Maxuel estava se

aproximando. Mas não adianta tentarmos fugir da verdade: ela

sempre está colada em nossos calcanhares. Fugir da verdade é

como tentar propositalmente deixar de respirar. A verdade é

uma faca afiada que corta o coração de quem tentar fugir dela.

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Adriana Matheus

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Não há um conselho a se dar para quem a teme – digo apenas

Encare-a, pois um dia, mais cedo ou mais tarde, ela vem à tona.

E como disse o próprio Cristo: Não há boca que não confesse, e

nem joelho que não se dobre. Confesso que estava de joelhos

perante a minha verdadeira realidade.

O fatídico dia custou a chegar – o que só prolongou ainda

mais a minha dor. No dia vinte e sete de dezembro de 1830,

minha irmã Eulália casou-se com Maxuel, meu ex-noivo, na

capelinha de Nossa Senhora da Consolação, às seis e vinte seis

da manhã. Lembro-me como se fosse hoje: arrumei-me como

uma lady somente para ficar ao lado de fora da capelinha, pois

não aguentei a dor de ter que vê-los unirem-se em matrimônio.

Na festa que lhes foi oferecida, no grande jardim da casa de

meus tios, também fiquei de longe, limitando-me a

cumprimentá-los. Enquanto ambos pareciam felizes e

descontraídos, tive que me conformar com a dor e a infelicidade

que esmagavam meu coração, despedaçado pela traição e pela

amargura.

Após aquele dia, minha vida seguiu-se com os meus

encontros às escondidas com Eleanor. Ela me ensinava a cada

dia mais e mais sobre os mistérios da magia. Fui ficando cada

vez mais presa àquele mundo secreto e proibido. Passaram-se

três anos depois do casamento de Eulália e Maxuel e eu já

estava bem mais conformada, dedicando-me mais às forças

ocultas. Nesse período, estudei filosofia e artes sagradas da

magia, adquiri um athame, uma varinha, um caldeirão e, é claro,

o meu próprio livro das sombras.

Até que chegou a hora de Eleanor me iniciar como

feiticeira. Os preparativos demoraram seis meses, pois ela

precisava saber qual seria o tipo de material usado na minha

iniciação – sem contar que ela deveria saber com precisão qual

seria a posição e a Lua certa. Eu seria iniciada ao luar nas areias

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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da praia, à meia-noite. Fiquei dias imaginando como sairia às

escondidas de casa. Minha mãe nunca desconfiou que eu

estivesse ainda me encontrando com a velha bruxa Eleanor. Para

ela, minhas saídas eram apenas para espairecer. Como passei a

ler muitos livros de magia, ela pensava que eram de algum tipo

de poesia ou coisa assim. Tornei-me, com o tempo, capaz de

fazer o fogo surgir do espaço à minha frente. A magia era a

minha vida e sabia do que eu era capaz se quisesse destruir

alguém. Mas Eleanor orientou-me sobre as consequências,

embora meus planos fossem outros para o futuro. Eu queria

mais da magia: queria ser famosa, rica, e não dava ouvido ao

que a minha mestra falava. Embora eu estivesse mais

conformada com o casamento de Eulália e Maxuel, tornei-me

muito revoltada e guardava esse sentimento vil dentro do peito,

sem sequer contar à minha mestra. Estava preocupada apenas

com uma coisa: o meu ritual de iniciação. Eleanor dizia que,

após o ritual, eu me tornaria mais forte do que nunca. Pensava

em me tornar imortal ou coisa assim. Não queria ver o que a

magia era realmente.

A Lua estava cheia e alta no céu azul e já passava da meia-

noite. Tive que sair escondida pela janela, levando comigo meus

trajes de iniciação. Confesso que fiquei com medo, pois nunca

havia andado àquelas horas pela praia. Confiei nas palavras de

Eleanor: nada iria me acontecer de mal. Era apenas necessário

que eu confiasse. Quando eu já estava próximo à praia, avistei

várias tochas enfileiradas e estacadas na areia: uma passarela

para que eu pudesse achar o caminho. Quando me aproximei,

percebi que Eleanor havia colocado um enorme altar sobre a

areia. Nele estavam os elementos sagrados da magia, com as

estatuetas do deus cornífero e da grande deusa mãe. Muitas

rosas vermelhas enfeitavam o local. Antes que eu pisasse no

solo, já consagrado para a minha iniciação, Eleanor veio ao meu

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Adriana Matheus

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encontro, pedindo-me para que eu tirasse as minhas vestes e

entrasse no mar, vestindo os trajes sagrados em seguida. Fiz

exatamente como ela me ordenou. Ao sair do mar, pus um

vestido todo de seda transparente cor de carne e coloquei uma

fina capa de seda preta por cima. Coloquei o capuz e segui até

onde Eleanor me aguardava. Ela me fez repetir as seguintes

palavras de conjuração antes que eu entrasse no círculo sagrado:

– Eu, filha do fogo, despojo-me de todos os meus bens

materiais, renunciando, assim, a tudo o que não faça parte do elo

sagrado e da magia. Abro mão de todas as minhas riquezas e

familiares, tornando-me, assim, parte do mundo e da natureza

pagãos. A partir de hoje, sou parte da natureza e ela é parte de

mim, pois estamos unidas pelo fogo sagrado do grande deus

cornífero. Que minhas irmãs ancestrais venham e me façam

companhia nesta jornada que escolhi de livre e espontânea

vontade.

Já dentro do círculo sagrado, citei o juramento sagrado em

voz alta.

– Eu, Emanuelizia Gonzáles, juro a partir de hoje nunca

acreditar e nem honrar a nenhuma deidade conhecida como

Satã, pois o demônio é uma crença da Igreja Católica e de outras

correntes do Cristianismo; nem a sacrificar animais ou humanos;

renunciar formalmente ao Deus Cristão; apenas acreditar em

outros aspectos divinos; nunca odiar os cristãos, a Bíblia ou

Jesus. Nos Sabás e Esbás, não utilizar a nenhuma droga e nem

me submeter a orgias sexuais; não praticar necessariamente

magia negra; não forçar ninguém a fazer algo que agrida seus

princípios e crenças; não profanar as Igrejas Cristãs, hóstias ou

bíblias. O respeito faz parte do universo, assim como faço parte

dele. Juro solenemente que respeitarei na mesma proporção não

só a seres humanos, mas a Terra, os animais e as plantas que

nela habitam. Realizarei os rituais sempre no interior de um

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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círculo mágico, pois os círculos são um espaço sagrado

inviolado, onde somente as divindades pagãs podem penetrar.

Acreditarei sempre com convicção na reencarnação, observando

e respeitando a mudança das estações do ano, com oitos sabás

solares e entre doze e treze esbás lunares – vinte e um ritos

anuais. Respeitarei a minha crença nos aspectos femininos e

masculinos do Divino. Repudiarei o proselitismo, pois pessoas

só se tornam bruxas por escolhas próprias. Respeitarei a

igualdade entre mulheres e homens, pois ambos são

complementares, apesar de sempre a mulher ser enfocada.

Servirei à mãe Terra com carinho e o respeito que ela merece.

Respeitarei todas as religiões e a liberdade religiosa. Repudiarei

toda e qualquer forma de preconceito e defenderei toda e

qualquer irmã ou irmão em relação à cidadania.

Após recitar tais palavras, ela me levou ao centro do

círculo e vendou-me com um lenço negro. Em seguida, ungiu

minha cabeça com o óleo sagrado e gotas do próprio suor.

Depois, colocou o meu athame na mão esquerda. Antes de o

círculo ser fechado, fui posta para fora, no sentido nordeste,

vendada e amarrada. O pacto de atar é feito com três cordas

vermelhas: uma com dois metros e setenta centímetros e as

outras duas com um metro e quarenta e cinco centímetros. A

corda maior é dobrada ao meio para os pulsos serem amarrados

juntos, atrás das costas. As duas pontas são trazidas para frente,

jogadas por cima dos ombros e atadas em frente ao pescoço,

com as pontas caídas a formar uma pega por onde eu pude ser

dirigida. Uma corda pequena é atada no tornozelo direito, e a

outra por cima do joelho esquerdo – cada uma com as pontas

bem escondidas para que não machuquem. Enquanto a corda

estava no tornozelo, pronunciei as seguintes palavras:

– Pés nem presos, nem livres.

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O círculo estava agora totalmente aberto, e o ritual de

abertura procedeu – excetuando o portal a nordeste, que ainda

não estava fechado. Depois de atrair a Lua, Eleanor deu a cruz

cabalística a mim e prosseguiu, dizendo:

– Ateh tocando na minha testa, Malkuth tocando no peito,

ve-Geburah tocando no ombro direito, ve-Gedulah tocando no

meu ombro esquerdo, Le-olam apertando as mãos à altura do

meu peito.

Depois de utilizar também as runas das feiticeiras, ela foi

buscar a espada sagrada no altar. Encarou-me ainda vendada e

declarou a exortação:

– Ó tu, que estás na fronteira entre o agradável mundo dos

homens e entre os domínios misteriosos do senhor dos espaços,

tens tu a coragem de fazer o teste? – disse isso apontando a

espada diretamente contra o meu coração.

Ela prosseguiu:

– Porque digo verdadeiramente: é melhor que avances na

minha lâmina e que pereças do que tentares seguir com medo no

teu coração.

– Tenho duas senhas: perfeito amor e perfeita confiança.

Aceita-me entre os teus e prometo honrar esse elo entre nossos

mundos. – respondi.

– Então, que assim seja! Dou-te a autorização para que

passes através deste misterioso portal.

Beijou a espada, entregando-a a mim. Fechou o portal ou

círculo com o athame, que depois recolocou no altar. Levou-me

para os dois pontos cardeais riscados fora do círculo, dizendo:

– Tomai nota, ó senhores do Este, Sul, Oeste e Norte, que

Emanuelizia Gonzáles está devidamente preparada para ser

iniciada sacerdotisa e bruxa.

Então, guiou-me para o centro do círculo em sentido

contrário, cantando:

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– Eko, Eko, Azarak, Eko, Eko, Zomelak, Eko, Eko,

Cernunnos, Eko, Eko, Aradia.

Repetindo sempre isso, enquanto empurrava-me para

frente e para trás, virando-me às vezes um pouco para me

desorientar. Até que, por fim, parou, tocou um sino três vezes,

virou-me na direção do altar e disse:

– Noutras religiões, você se ajoelha enquanto o sacerdote

a olha de cima. Mas, na arte mágica, somos ensinados a ser

humildes e ajoelhamo-nos para dar as boas-vindas.

Dando-me o beijo quíntuplo, disse:

– Abençoados sejam os teus pés, que te trouxeram para

estes caminhos – beijou-me o pé direito e depois o esquerdo.

Prosseguiu:

– Abençoados sejam os teus joelhos, que devem ajoelhar

perante o altar sagrado – beijou-me o joelho direito e depois o

esquerdo.

Beijou-me acima dos pelos púbicos, dizendo:

– Abençoado seja o teu ventre, sem o qual não

existiríamos. Abençoados sejam os teus seios que, formados em

beleza, te fazem forte como mulher – beijou o meu seio direito e

depois o esquerdo.

Abraçou-me e beijou-me nos lábios fraternalmente:

– Abençoados sejam os teus lábios, que irão proferir os

nomes sagrados. Agora vamos tirar as tuas medidas. Que com

essas medidas você possa seguir em paz na arte da magia, e que

nunca sejas enganada pelas ilusões do mundo mortal.

Dizendo isso, deu-me vinte e uma chicotadas de leve com

aquele pequeno cordão de minhas medidas. Novamente repeti as

palavras citadas por ela:

– Eu, Emanuelizia Gonzáles, na presença dos poderosos

deuses, de minha livre vontade e da forma mais solene, juro

manter sempre secretos os segredos da arte, exceto se for a uma

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pessoa adequada, devidamente preparada num círculo como este

em que estou; e nunca lhe negarei os segredos se ele ou ela

provarem ser um irmão ou uma irmã da arte. Tudo isso juro

pelas minhas esperanças numa vida futura, ciente de que a

minha medida foi tirada, e de que minhas armas vão se virar

contra mim se eu quebrar este juramento solene.

Ela me deu de beber uma bebida sagrada e ungiu

novamente minha cabeça, dizendo:

– Eu, por este meio, te marco com o sinal triplo, consagro-

te com óleo sagrado. – fez sinais diversos e consagrados em

cima dos meus pelos pubianos, no meu seio direito, no meu seio

esquerdo, e outra vez acima do pelo pubiano, completando o

triângulo invertido do primeiro grau.

Molhou a ponta do dedo no vinho, dizendo:

– Consagro-te com vinho – tocou-me nos mesmos locais

com o vinho.

Prosseguiu:

– Consagro-te com os meus lábios – beijou-me nos

mesmos locais.

Continuou:

– Sacerdotisa e Bruxa, tiro-te esta venda e desato tuas

cordas.

Deu-me boas-vindas ao mundo da magia. Apresentou-me

a cada instrumento de trabalho, levando-os de volta ao altar à

medida que os explicava:

– Primeiro, a espada mágica. Com este objeto você poderá

dar origem aos círculos mágicos, invisíveis ou visíveis, como

esse em que você está. Também poderá dominar, subjugar e

punir todos os espíritos rebeldes e demônios, e poderá até

persuadir anjos e espíritos bons. Com isto na sua mão, lidera o

círculo. A seguir, apresento-lhe o athame. Esta é a verdadeira

arma da bruxa, e tem todos os poderes da espada mágica. Agora,

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a faca de cabo branco: é usada para formar todos os

instrumentos usados na arte da magia, mas só pode ser usada

dentro de um círculo mágico. Já a varinha tem a utilidade de

chamar e controlar certos anjos e gênios quando não seja

apropriado o uso da espada mágica. Há o cálice, receptáculo da

deusa, caldeirão de cerridwen, Santo Graal da imortalidade.

Nele, bebemos em camaradagem e em honra à deusa.

Apresento-lhe o pentáculo. Ele tem o objetivo de chamar os

espíritos apropriados. Agora, o incensário: é usado para

encorajar e dar as boas-vindas aos espíritos bons e banir

espíritos maus. Já este é o chicote, símbolo do poder e do

domínio. Também é purificador e iluminador. Por isso está

escrito Para aprender, deves sofrer e ser purificado. Está

disposta a sofrer para aprender?

– Sim, estou.

– Por fim, apresento-lhe as cordas. Elas são usadas para

prender os sigilos da arte e também são necessárias para o

juramento. Agora saúdo você, em nome de Aradia, nova

sacerdotisa e bruxa.

Novamente ela me beijou e finalmente disse:

– Está feito: você é uma sacerdotisa e uma bruxa. Agora

posso partir e descansar, pois sei que tenho em você uma

substituta. Espero, com toda a força da minha alma, que você

saiba usar os poderes que lhe foram passados.

Ceamos à luz da Lua os manjares que Eleanor havia

preparado para aquela ocasião especial. Daquele dia em diante,

nunca mais a encontraria novamente. Retornei para casa naquele

dia e já eram quase quatro da manhã, mas consegui chegar

despercebida.

Minha vida era monótona no decorrer dos dias, sem

muitas atividades – embora eu praticasse a magia todos os dias,

como havia prometido a Eleanor. Certa manhã, em um de meus

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passeios matinais à beira-mar, levei um susto ao ver um homem

bem trajado caminhando descalço. Ele parecia não se importar

com as águas que lhe molhavam as calças. Fiquei intrigada, pois

ele me pareceu um lorde – ou algo assim – pelos seus trajes. Eu

estava toda bagunçada, com a saia levantada e os cabelos soltos.

Não sei por que me preocupei com a minha aparência naquele

dia. Irritada com aquele pensamento, dei de ombros e saí

caminhado em direção àquela figura masculina, que parecia vir

também ao meu encontro. A cada instante que nos

aproximávamos, mais eu ficava encabulada por causa dos meus

trajes.

Quando, por fim, estávamos um em frente ao outro,

nossos olhares identificaram-se. Era como se eu pudesse ler a

alma dele e ele a minha. Uma luz estranha rodeou-o e pude

sentir o seu cheiro como um animal no cio, embora não

estivéssemos tão próximos. Aqueles olhos negros, que jamais

esqueci, reconhecê-los-ia em qualquer encarnação... Não

precisaria de palavras para que eu soubesse que aquele homem

estranho era o meu amor de outras vidas, a minha alma gêmea.

Foi ele quem quebrou aquele clima de hipnose, dizendo:

– Bom dia, senhorita! O que uma criatura tão bela e de

pernas tão belas faz aqui por estas bandas sozinha? – ao olhar

naqueles olhos negros, minhas pernas bambearam, meu corpo

estremeceu e minha voz sumiu. Ele era como um sonho: um

espanhol alto, de cabelos cacheados, pele morena clara e com a

camisa entreaberta, deixando à mostra o peito másculo.

Confesso que tal visão me fez ficar cega. Não consegui

controlar minhas emoções – o que não é bom para uma bruxa.

Aliás, não é bom para mulher nenhuma. Nunca devemos, logo

no primeiro encontro, passar nossas reais intenções,

principalmente quando esse primeiro encontro é uma trapaça do

destino. Ele, ao perceber que eu parecia uma estátua, perguntou:

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– A senhorita sabe ao menos falar? Fiz-lhe uma pergunta.

Nervosa com aquela pergunta impertinente, respondi:

– Sim, sei, é claro. É que me assustei com a sua presença,

pois nunca o vi por aqui.

– E a senhorita está acostumada a se encontrar com muitos

homens? – disse ele, olhando-me de cima abaixo.

– Ora, é claro que não! Como ousa?! – respondi,

arrumando a roupa e descendo a saia, que estava suspensa.

– Então, o que faz uma senhorita caminhando a estas horas

em uma praia deserta com as saias levantadas? – disse ele,

sorrindo ironicamente.

– Moro ali na frente. – disse isso apontando para o farol,

perto da minha casa – Meu pai e meu irmão são pescadores e

todos os dias tenho essa mania de caminhar pela praia. Nunca

imaginei encontrar alguém por estes lados. Aliás, nunca vi

ninguém, além de mim, caminhar por esta encosta. Quem é o

senhor? O que está fazendo por aqui? Não o conheço de lugar

nenhum. Não é morador da vila. Se fosse, eu o conheceria.

– Tem razão, não sou. Mudamo-nos ontem à tarde para a

vila, e vim a esta encosta para pôr os pensamentos em ordem.

– E por que os seus pensamentos estão em desordem?

– Creio que a senhorita não seja a pessoa mais indicada

para que eu conte a minha vida, até porque não nos conhecemos.

A propósito, chamo-me Henrico Gonçalo Lopes, às suas ordens.

– esticou-me as mãos para me cumprimentar.

– Emanuelizia Gonzáles. – estiquei-lhe as mãos.

Aquele toque de mãos foi como se todo o calor do mundo

estivesse nos unindo. Ficamos uns dois minutos nos observando,

até que Henrico disse:

– Já que o destino colocou-nos juntos nesta praia, dar-me-

ia a honra de lhe fazer companhia de volta para sua casa?

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Adriana Matheus

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Dei um sorriso meio encabulado, pois já estava quase o

odiando.

– Claro, por que não?

Caminhamos lado a lado conversando, até que chegamos

em frente de minha casa, onde nos despedimos. Ajudei minha

mãe com o restante dos afazeres, como já era habitual. Fiquei o

restante da tarde pensando naquele homem e relembrando as

coisas que ele havia me contado. Ele pertencia ao povo cigano.

Vieram para Valença para o casamento de uma prima e

acabaram ficando. Era por isso que ele estava tão bem trajado.

Henrico contou-me sobre o preconceito que ele e sua família

passavam por serem ciganos. A família de Henrico conhecia a

magia, o que me deixou mais à vontade de estar ao lado dele,

embora eu não houvesse lhe contado sobre a minha tradição e

escolha, pois era muito cedo para contar-lhe sobre esses fatos.

Ficamos de nos encontrar no dia seguinte. Ele disse que me

contaria sobre suas tradições.

Eu estava tão ansiosa para vê-lo de novo que mal cabia em

meu peito toda aquela alegria súbita. Aquele sentimento

repentino não era normal: era compulsivo, frenético, meio

egoísta, pois sentia ciúmes dele e sequer o conhecia direito. Eu

estava apaixonada. Não era amor, mas eu não soube diferenciar

e muito menos evitar, como havia me prevenido Eleanor.

Dormi como pedra naquela noite. O dia mal amanheceu e

eu já havia me levantado. Corri para fazer o café e os pães – não

queria dar motivos para minha mãe me interrogar. Voltei ao

quarto e coloquei um vestido de renda branco, o xale nas costas,

e pulei as janelas para não acordar os demais. Não fazia ideia de

que horas eram. Só sabia que precisava vê-lo novamente. Não

me importei com o sereno, com o vento frio, com nada. Aquele

homem, de maneira enigmática, passou a ser o ar que eu

respirava. Caminhei muitos minutos à beira-mar e nada de

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Henrico aparecer. A ansiedade é uma inimiga do tempo, pois até

mesmo os segundos transformam-se em horas. Depois de muito

caminhar, parei em frente ao mar, abraçando meu corpo com

meus próprios braços. Percebi que uma lágrima rolou em minha

face. Sentia-me impotente e não sabia o que fazer. Não havia

ido às cavernas para praticar a magia, como deveria ser. Eu

estava doente do coração, nada mais me importava. Só queria

vê-lo novamente. Era uma necessidade maior que a vontade de

viver. A angústia em meu peito tornou-se uma dor insuportável

– era tão forte que dava para senti-la na pele. Eu olhava para o

mar, mas não via graça em suas ondas. Queria gritar muito alto,

na esperança de que ele pudesse me ouvir e vir ao meu encontro.

De repente, uma mão suave tocou-me nos ombros e uma voz

rouca falou aos meus ouvidos:

– Ou estou muito atrasado ou a mocinha caiu da cama!

Senti como se o mundo parasse. Um alívio imediato

tomou conta da minha alma e meu coração bateu de uma

maneira que nunca havia batido antes. Dei um sorriso largo e

vir-me-ei para o meu amado, dizendo:

– Não importa, nada mais importa.

– A senhorita está bem? – disse ele, enxugando com a

ponta dos dedos as lágrimas que ainda escorriam em minha face.

Senti-me uma tola, infantil, e senti vergonha por isso.

– Sim, estou bem.

– O que houve? Alguém a magoou? Quem foi o déspota

que a fez chorar?

Novamente sorri sem graça.

– Ninguém me fez chorar. Choro porque sou uma tola

sentimental. Acredite: agora está tudo bem. Podemos caminhar?

– Sim, podemos. Se a senhorita diz que está tudo bem,

acreditarei. Mas não se acanhe comigo. Saiba que serei seu

amigo e nunca deixarei que alguém a magoe.

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– Fico feliz em saber que tenho um defensor em favor da

minha honra, mas creio que preferiria ser mais que uma amiga.

– Senhorita! Deixa-me encabulado... mas, ao mesmo

tempo, feliz com essa revelação...

– Sou sincera, não gosto de hipocrisias e muito menos de

rodeios. Falo o que sinto e o que penso. Sofri demais por ter

guardado meus sentimentos, sufocando-os dentro do peito. Jurei

a mim mesma que nunca mais isso aconteceria, assim como não

permitirei que ninguém me engane ou me magoe. Sou senhora

do meu destino e dona dos meus atos.

Contei-lhe em pormenores toda minha triste história. Ele

ficou calado, ouvindo-me. Depois, apenas me disse:

– Nunca imaginei que uma jovem como a senhorita

pudesse já ter passado por tantas desventuras amorosas tão cedo.

Saiba que sou um cavalheiro e saberei respeitá-la. Você apenas

me pegou de surpresa e com uma atitude tão... repentina, agora

há pouco.

– Desculpe-me se o ofendo com meus sentimentos e com

a minha maneira de senti-los. Confesso que também fui pega de

surpresa. Mas fiz esse juramento de nunca mais guardar nada no

peito. Se o senhor preferir, nunca mais nos falaremos. Prometo-

lhe que vou para minha casa e evitarei não cruzar o seu caminho

novamente.

– Calma, a senhorita está sendo muito precipitada em

querer antecipar minha resposta. Agora, dê-me um tempo, pelo

menos até amanhã, para que lhe possa responder. Confesso que,

ao vê-la, também fiquei confuso em relação aos meus

sentimentos, mas preciso pôr as ideias em ordem e ver o que

realmente sinto pela senhorita. Creio que não precisamos ser

inimigos até lá. Podemos caminhar à beira-mar. Quero lhe falar

sobre minha família e sobre o meu povo. – disse ele,

oferecendo-me o braço com um largo sorriso nas faces.

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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O sorriso daquele homem iluminava a minha noite escura.

Sorri-lhe também, concordando com a cabeça e colocando a

minha mão sobre aquele braço de chumbo. Ele deu um tapinha

com a mão direita na minha outra mão que já segurava seu outro

braço e fomos caminhar. Caminhamos por horas. A cada

instante eu ficava mais admirada e apaixonada por ele.

Passamos uma manhã muito agradável. Ele me contou

sobre as tradições de seu povo, suas lendas e seus costumes. Seu

povo chegou à Europa proveniente de algum lugar da Índia – o

que não significava que tinham vindo de sua terra de origem.

Todos vieram de algum lugar onde seus ancestrais viveram, ou

de outros países. Toda a hipótese que sustentava a origem indo-

europeia apoiava-se num único elemento: o idioma romanês,

que mais tarde aprendi com exatidão e passei a usá-lo no meu

dia a dia.

Eu ficava admirada com tudo aquilo e quase confessei a

ele daquela vez sobre a minha tradição, mas deixei que a razão

falasse mais alto. Eu não sabia como, mas Henrico tinha sobre

mim um grande poder de persuasão. Não era porque ele queria:

era uma coisa nata nele, era como se ele fosse um deus ou algo

assim. Embora isso me assustasse, deixei-me prender pelos seus

encantos. Não sabia ao certo se isso vinha daquele povo

misterioso ou somente daquele homem fascinante. Como pude

me apaixonar daquela forma de uma hora para outra? Talvez

Eleanor estivesse correta: não se deve desafiar o universo e nem

brincar com as duas maiores forças que o regem.

Aquela manhã passou como um sopro – nem vi e já

estávamos nos despedindo. Estávamos a certa distância da

minha casa, quando Henrico olhou-me dentro dos olhos e falou-

me seriamente:

– Emanuelizia, quero que saiba que qualquer que seja a

opinião dos anciões do meu povo, o meu sentimento para com a

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Adriana Matheus

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senhorita é recíproco. Desde o momento em que a vi caminhado

pela encosta não sei explicar o que houve. Só sei que o meu

coração bateu mais rápido e naquele exato momento em que a vi

percebi que minha vida estava para ser mudada. Só que minha

vida e minhas escolhas não dependem somente de mim. Meu

povo, como lhe contei, tem costumes muito complicados.

Nossas tradições são mantidas a fio, e durante séculos tem sido

dessa forma. Desculpe se a decepciono, mas tinha que lhe contar

sobre os meus sentimentos e sobre o que poderá ocorrer caso

amanhã eu volte e lhe responda positivamente. Sei como meu

povo pensa, e não gostaria de magoá-la. Eu seria a última pessoa

na face da Terra que teria a intenção de feri-la ou magoá-la.

Dizendo tais palavras que mais pareciam de despedida,

Henrico olhou-me nos olhos e novamente vi a luz que o cercou.

Fiquei rendida. Naquele momento, minhas forças estavam em

suas mãos. Naquele momento único, ele me beijou. E digo

agora: se o mundo acabasse, não teria percebido, pois eu parecia

que não estava ali. Era como se pássaros ou anjos tivessem me

levado para outra dimensão. Eu estava de joelhos e

completamente rendida ao amor e à paixão. Meus sentidos não

funcionavam mais. Eu estava cega, surda e muda e com outros

problemas, pois não me senti mais com os pés na terra. Ficamos

muito tempo daquele jeito. Se nos olhassem, pareceríamos um

só a olho nu.

Caminhamos de volta até minha casa, onde nos

despedimos com mais um beijo apaixonado. Mas, por mal dos

pecados, minha mãe estava espreitando da janela da cozinha.

Assim que coloquei os pés dentro de casa, ela indagou:

– Quem era aquele jovem? Acho que você perdeu seu

amor pela vida. Se fosse seu pai ao invés de mim, estaria a essa

hora com as costas retalhadas pelo chicote dele.

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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– Acho que meu pai não faria tal barbárie sendo ele o pivô

de toda a minha desgraça. Afinal, sou eu quem tem que carregar

uma maldição nas costas. Quanto ao jovem, conheci-o em uma

de minhas caminhadas pela praia. Ainda não estamos

namorando, se é o que quer saber, pois ele é cigano e precisa

pedir permissão a seu povo para isso. Mas acredite: se ele

conseguir a permissão, saiba que irei com ele para aonde o povo

dele for.

– Está louca, só pode ser isso! Está se envolvendo com os

ciganos? Essa raça é uma raça amaldiçoada por Deus! Vivem

como errantes e nômades. Todo mundo sabe que são ladrões e

gostam de tirar a virgindade de jovens ingênuas como você. Irei

contar a seu pai! Não passarei por mais essa sozinha para que a

culpa caia em mim novamente. Está muito enganada se acha que

lhe permitiremos envolver-se com esse homem. Onde já se viu?!

Só pode estar louca!

– É isso que a senhora pensa de mim, que estou louca? A

senhora já parou para pensar nos meus sentimentos? Por que

está me negando mais uma vez o direito a escolha? Só quero ser

feliz, mãe!

Ela baixou a cabeça e prosseguiu:

– Há quanto tempo você e este homem estão se

encontrando?

– Conheci-o ontem.

– Agora sei que está louca de verdade! Como pode dizer

que está amando uma pessoa que só conhece há dois dias?

– Não sei. Isso para mim também não tem explicação, mas

não quero lutar contra o que sinto. Não quero ser sensata o

tempo todo, não quero saber se existe lógica ou razão para todos

os fatos. Só quero ser feliz. Por favor, mãe, deixe-me ao menos

tentar! Sou um ser humano e tenho o direito de errar, cair e

aprender.

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Adriana Matheus

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– Tudo bem. Mas quero que esse moço fale com seu pai.

Se ele for um homem de bem, não recusará isso. Não sei mais o

que falar com você, sempre trocando os pés pelas mãos...

Concordo que você tenha o direito de ser feliz e tentar uma nova

chance com outra pessoa, mas aquele homem... Emanuelizia,

não sei... Acho que ele não é uma boa pessoa. Há alguma coisa

nele que me diz que ele vai decepcioná-la muito.

– Ei, alto lá, dona Constância! A bruxa aqui sou eu,

lembra-se? – disse eu, sorrindo.

– Não me lembre desse fato, ou acha que não sei o que

anda lendo às escondidas?

– Só não entendo por que a senhora não controlou e nem

espionou a Eulália desse jeito também!

– Talvez seja por não tê-la espionado, como você está

dizendo, que aprendi a não deixar que nada mais me passe

despercebido. Não quero levar novamente a culpa de ter sido

uma mãe relapsa; não quero ver os olhos de acusação de seu pai

e não quero nenhum filho meu chorando pelos cantos. Aprendi

com meus erros, Emanuelizia, e não me permitirei errar de

novo. Espero que tenha aprendido com o seu erro também.

Ela saiu em direção à cozinha, sem me dizer mais

nenhuma palavra. Embora ela estivesse coberta de razão, eu

estava cega demais para ouvir ou aceitar qualquer conselho de

quem quer que fosse. Havia dois fatores muito importantes que

não posso deixar passar. Um deles era o fato de que eu havia

duvidado de Deus e, de certa forma, o tinha desafiado. O outro

era que eu estava carente afetivamente, e isso ajudou e muito

para que eu me envolvesse com um desconhecido. Uma mulher

jovem não deve ficar tanto tempo sozinha, pois acaba se

tornando alvo e presa fácil para qualquer predador. Isso não

quer dizer que temos que sair por aí, vulgarizando e expondo

nosso aparelho à vergonha do acaso. Mas também não temos

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que nos isolar da humanidade, pois não somos santos ou

eremitas, e creio que nenhuma jovem nesta Terra ainda faça

votos de castidade. Viver e conviver é necessário para o

aprendizado da humanidade, embora algumas pessoas não

saibam o limite disso.

Talvez eu não seja a pessoa mais apropriada para dizer,

pois fiz coisas que me denegriram não só moralmente, mas

também levaram minha alma a viver presa em dois mundos.

Espero, porém, não ser seguida, mas ouvida, pois não desejo a

ninguém que passe pelo que fui obrigada a passar. É fácil,

talvez, aprender com os erros dos outros quando ouvimos ou

lemos uma história. O problema é aprender com os próprios

erros, pois o ser humano não admite, em hipótese alguma, que

está errado. E se o destino envia-lhe o seu pago, ele não é capaz

de entender que foi por alguma falha que cometeu. Em vez

disso, questiona Deus com suas lamúrias constantes. Ninguém é

perfeito o tempo todo. Errar, por certo, é humano – mas

persistir em errar é imperdoável.

Deitei-me cedo naquele dia e dormi o sono dos anjos.

Minha mãe nada comentou com o meu pai sobre o que falamos

– o que me deu a chance de mais um encontro com Henrico.

Acordei cedo, como de costume, e fui à cozinha preparar o

desjejum de todos. Não queria que minha mãe dissesse que eu

nada fazia em casa. Aliás, eu não queria dar motivo nenhum

para que alguém se intrometesse na minha vida. Preparei-me um

banho de ervas. Usei alecrim do campo, rosas vermelhas e

pitadas de canela. É um banho para atrair o amado. Usei uma

saia branca de renda, uma blusa preta e coloquei o corpete por

cima – queria ficar parecida com as mulheres do povo dele,

queria agradá-lo de todas as formas. Deixei meus cabelos presos

em um coque, com uma presilha de marfim que havia ganhado

da minha tia de aniversário. Arrumei uma pequena cestinha com

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Adriana Matheus

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frutas e guloseimas especiais que havia preparado para dar ao

meu amado. Comecei, a partir daquele dia, a pregar contra a

tradição e contra os princípios dela, pois comecei a usar a magia

para prendê-lo através da comida e do aroma. Eu não estava

pensando nas consequências, não queria pensar: estava cega

pela paixão. Pulei a janela, como já era habitual, e saí nas pontas

dos pés para não acordar os demais.

Quando cheguei à encosta, ele já estava lá. Caminhei

devagar para não assustá-lo, enquanto, assim, podia observá-lo.

Ele estava trajando calça preta, dobrada até os joelhos para não

molhar a barra, e blusa de seda branca. Havia amarrado os

cabelos em um rabo de cavalo. Estava parecendo um corsário,

como o dos meus sonhos. Meu coração quase parou ao vê-lo

vestido como um cigano. Ele caminhou lentamente e parei a

quinze metros de distância para observá-lo melhor. Ao ver-me,

veio em minha direção.

– Você está linda, parece uma rainha cigana. – disse ele,

ao estarmos frente a frente.

Senti meu rosto queimar-se naquele momento. Baixei a

cabeça, envergonhada.

– Não dormi bem esta noite. – disse ele.

– O que houve? Aconteceu algo?

– Nada demais, creio que posso resolver esse pequeno

contratempo sozinho. Mas sua imagem não saiu de minhas

lembranças. Eu a amo. Confesso que estou preso aos seus

encantos, não consigo mais pensar na minha vida sem você.

– Então, você conversou com os anciões? O que eles

disseram? – perguntei, animada.

– Sim, conversei. Eles disseram que se é essa é a minha

escolha, que assim seja, então.

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Ele mentiu para mim. Porém, eu estava tão iludida que

não percebi os sinais em seus olhos, dizendo-me o contrário.

Pulando em seus braços de tanta felicidade, disse:

– Jura? Eu sabia que você conseguiria convencê-los! E

quando você irá me levar para conhecer o seu povo,

principalmente sua família? Quero conhecê-los! Você não sabe

o quanto estou feliz! Saiba que aceito tudo para ficar com você e

prometo agir e comportar-me exatamente como mandam os seus

costumes.

Ele estava com os olhos tristes, mas não dei importância.

Sugeri para a minha mente que era por causa dos problemas

pessoais que ele disse ter. Fui uma egoísta e tola. Confesso que

deveria ter sido mais atenta àquele olhar, mais transparente do

que a água. O amor é lindo e maravilhoso. Faz-nos fortes e

capazes de qualquer coisa. Mas quando esse amor vem

acompanhado da paixão, ele nos deixa cegos e tolos. A verdade

estava lá dentro dos olhos dele e gritava para que eu a visse.

Mas eu, de forma egoísta, preferi ver o que me convinha.

Acredito que Henrico, ao ver-me tão afoita e feliz, não quis

magoar-me.

Mas os dias foram passando, e a mentira foi crescendo.

Ele nunca quis conhecer meus pais, pois sempre dizia que não

podia colocar os pés em um lugar onde sua cultura e seus

costumes não eram aceitos. Apanhei muito do meu pai por causa

de Henrico. Nosso namoro era às escondidas. Minha mãe quase

não falava comigo dentro de casa por não aceitar o meu

comportamento. Era mais forte do que eu, embora eu estivesse

sofrendo por causa disso. Meu corpo vivia cheio de hematomas

devido às muitas surras que levei, mas nada me importava: só

queria vê-lo sempre, mesmo que por poucas horas e correndo o

risco de ser flagrada por meu pai.

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Meu irmão foi embora para Londres, pois recebeu um

convite de Maxuel de morar com ele e Eulália. A vida de todos

estava seguindo. Porém, eu estava presa a uma louca e cega

paixão. Quase não comia e mal dormia. Henrico, por alguma

razão ainda obscura, começou a se afastar. Eu ficava horas na

varanda, olhando o horizonte, esperando alguma notícia, pois

ele sempre me enviava um baiat tínar – um jovem rapaz – para

me dar seus recados. Mas cada vez eu o esperava mais e mais e

ele não aparecia.

Os dias foram se seguindo, até que tomei, por fim, uma

decisão, e que por certo foi a causa de toda a minha degradação.

Voltei às cavernas depois de quase oito meses sem sequer me

importar com a magia. Esperei que todos adormecessem e segui

na calada da noite. Levei comigo uma tocha para iluminar o

caminho. Eu estava totalmente enlouquecida, pois não me

preocupei com nada, nem mesmo se um hot – ladrão – ou coisa

pior me abordasse no meio do caminho. Chegando à caverna,

estava tudo como eu havia deixado da última vez. Porém, a

poeira havia tomado todo o lugar. Imediatamente acendi as

tochas nas paredes e comecei uma limpeza minuciosa. Depois

de tudo arrumado e brilhando, procurei pelo velho livro de

feitiço e poções de Eleanor. Revirei o local até que o achei

debaixo de uns caixotes velhos. Mal comecei a manuseá-lo e

caiu ao chão uma espécie de bilhete. Curiosa, peguei-o para ler e

fiquei admirada ao ver que estava endereçado a mim. Era de

Eleanor e dizia:

Eu sabia que você voltaria a este lugar na hora de suas

aflições. Como eu lhe disse antes, ressalto agora: pare e não

faça o que está pensando em fazer. Não use os recursos da

magia para manipular os sentimentos de outra pessoa. Você

não tem o direito de fazer isso. Não pode praticar magia para

uso próprio. Avisei-a antes: você desafiou os senhores do

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destino e agora está colhendo sua paga. Se prosseguir com essa

ideia, irá receber a maior de todas as punições: a solidão. E

acredite: ninguém consegue sobreviver sendo desprezado e

humilhado por todos os que o cercam. Emanuelizia, por favor,

eu lhe imploro: você está perto de cometer um sacrilégio contra

o universo e contra a sua alma. Não ultrapasse os limites da

razão, não perca a cabeça antes de ter certeza de que o que

você quer é exatamente isso que sente. Acredite: nenhum

homem merece isso. Sempre soube que você era fraca. Mas,

mesmo assim, confiei a você os meus poderes. Confesso que

esperava mais da senhorita...

Não quis ler o restante daquele bilhete. Rasguei-o antes de

terminá-lo. Eu sabia que Eleanor estava coberta de razão, mas

estava me sentindo abandonada e desprezada. Eu precisava dar

fim à minha dor. Acendi o caldeirão – não o caldeirão comum,

mas o de feitiços – e comecei a preparar uma poção mágica.

Depois de pronta, guardei-a dentro de um frasquinho. Fiz umas

conjurações, recitando algumas palavras em aramaico – língua

que aprendi nos livros de magia de Eleanor. De repente, no meio

das brasas que esquentavam o caldeirão, começou a aparecer

uma forte luz que quase me cegou. Afastei-me imediatamente

para não macular meus olhos. Foi quando escutei uma

gargalhada que, além de ecoar por toda a caverna, fez as paredes

estremecerem. Afastei-me cada vez mais da fogueira,

encolhendo-me em um canto. Tapei os olhos com as mãos, pois

realmente fiquei com medo. Uma voz tenebrosa falou:

– Não se assuste, minha bela dama. Vim aqui atender o

clamor. Eu lhe avisei que quando todos tivessem se afastado de

você e quando o seu Deus não lhe ouvisse mais, eu voltaria.

Abri os olhos lentamente e vi na minha frente uma figura

cuja só aparição já me gelou a alma. A besta estava de volta,

mas não na sua forma. Não era mais meio humana, como da

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Adriana Matheus

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primeira vez que julguei ter sonhado. A besta agora era um bode

negro de um metro e oitenta, com um pentagrama de ouro no

meio da testa, entre os enormes chifres. Ela me sorriu.

– Não posso buscá-la, minha donzela, contra a sua

vontade. Mas posso ajudá-la a se livrar do seu sofrimento, ou

posso torná-lo um pouco mais leve, quem sabe!

– Não quero e não preciso de nada vindo de você, seu

demônio. Afaste-se de mim! – disse isso colocando para fora da

minha camisola um crucifixo.

Ao vê-lo, a besta deu outra gargalhada.

– Acha mesmo que com tanta amargura e raiva em seu

coração conseguirá me repudiar ou me banir com o seu

amuleto? Criança tola! Sou a verdade escondida por trás de suas

mentiras. Pode enganar todo mundo com o seu jeito de boa

moça, mas conheço seus desejos mais ocultos. Vejo a noite em

seu leito e sei o que você quer.

Dizendo tais palavras, a besta avançou sobre mim,

tirando-me o crucifixo do pescoço. Ao tocá-lo, para meu

espanto, o crucifixo derreteu-se como água fervendo sobre o

fogo.

– Se eu assim o quisesse, você estaria contra a sua vontade

em minhas mãos. Sou sutil e gosto de esperar que me peçam. –

disse ele.

– Você acha mesmo que cederei às suas vontades?

Novamente a gargalhada seguida da resposta:

– Eu não acho, tenho certeza, minha cara. Além do mais,

a senhorita não tem muita escolha, pois, neste exato momento, o

seu cigano se diverte com outra mulher.

– É mentira, você está me dizendo isso para me testar e

saber até que ponto resisto. Não preciso de sua ajuda! Eu mesma

posso fazê-lo se render a meus encantos.

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– Como? Com essa mísera poção? – novamente a

gargalhada.

– Sim, confio no que Eleanor me ensinou. Sei que serei

capaz de prendê-lo a meu modo.

– Não confie muito na sua mestra, minha querida, pois

hoje ela é minha escrava.

– Não acredito em nada do que está me dizendo. Afaste-se

de mim!

Enfurecida, a besta pegou-me pelo pescoço e levou-me até

o caldeirão, fazendo-me ver sobre o líquido que borbulhava

onde estava Henrico e o que ele estava fazendo.

Ele estava em uma festa cigana, dançando alegremente ao

lado de uma jovem cigana de cabelos negros. Eles bailavam

como borboletas ao vento e brindavam vinho em uma taça. Seus

olhos eram pura felicidade e pareciam enamorados. Em seguida,

a besta mentalmente fez-me ver onde estava Eleanor: um lugar

escuro e sujo, cheio de pessoas maltrapilhas e sujas. Era um

lugar onde o Sol não brilhava, as plantas não cresciam. Era um

lugar onde as pessoas devoravam-se umas às outras. Nunca, em

toda a minha vida terrena, havia visto um lugar tão horripilante.

Embora atordoada e enfraquecida com aquela visão do

purgatório, soltei um grito de ódio e revolta. Não me preocupei

com a situação de Eleanor. Só via à minha frente a face de

Henrico ao lado daquela mulher. Eu queria sair dali naquele

momento e iria até onde ele estava para rasgá-lo com as minhas

unhas. No entanto, a besta ao meu lado deleitava-se com a

minha dor. Ao perceber a satisfação daquele ser, enfurecida eu

disse:

– Aposto como é mentira as coisas que me mostrou. Fez isso

somente para que eu ficasse fraca e cedesse ao que me sugere.

Novamente a besta enfureceu-se comigo e agarrou-me pelos

dois pulsos, dizendo:

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– Sua raça de macacos pode me acusar do que bem quiser, mas

não pode me chamar de mentiroso. Não tenho culpa se vocês

são fracos e sucumbem-se facilmente aos desejos da carne. Não

menti para você, Henrico mentiu. E ele continua mentindo! Ele

jura amor eterno e está comprometido com outra mulher. Ele

disse que nunca a magoaria e é quem mais a faz chorar. Ele

disse que a protegeria, mas agora se derrete com outra mulher.

Você é uma tola! Deixe-me ajudá-la. Eu lhe dou a minha

palavra de que ele será seu.

– Nunca farei acordos com você. Por meus próprios meios

conseguirei tê-lo de volta.

A besta deu um urro que quase abalou as estruturas da

caverna.

– Vou embora porque não quero me aborrecer ainda mais com

você, mas voltarei muito em breve, pois sei que me implorará

para fazermos o nosso acordo final.

Dizendo isso, a besta rodopiou, sumindo no espaço em minha

frente. Eu estava com medo, assustada e sem saber como agir,

mas precisava ter coragem. Uma coisa era certa: eu iria lutar

com todas as minhas forças para conseguir de volta aquele

homem que eu supunha ser o meu verdadeiro amor.

Saí da caverna com as pernas bambas pelo que presenciei. Vi o

dia já raiando. Precisava ser esperta e chegar à minha casa antes

que meus pais acordassem. Foi uma correria, mas consegui

chegar a tempo. Pulei rapidamente a janela quando percebi que

já havia movimento do lado de fora do meu quarto, tirei

rapidamente as roupas e entrei debaixo das cobertas, ficando

bem quieta para que pensassem que eu estava dormindo. Ouvi

quando minha mãe despediu-se de meu pai na porta. Depois, ela

deu café para as gêmeas. Quando pensei que estaria tudo bem,

minha mãe entrou pelo meu quarto, dizendo:

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– Não finja que está dormindo, pois sei que não está. Quero

que se levante e me diga onde esteve até agora.

– Fui até as cavernas. Havia muito tempo que eu não ia até lá.

– levantei-me meio ressabiada.

– Está mentindo para mim! Foi se encontrar com aquele

déspota.

– Não, estou realmente dizendo a verdade. Fui até as cavernas,

na encosta.

– E o que foi fazer lá? Perdeu o juízo saindo àquelas horas da

noite? E se a maré estivesse cheia? Poderia ter se afogado ou

ficado ilhada por lá durante semanas, e nunca iríamos adivinhar

o que lhe aconteceu! Não sei mais o que pensar ou fazer com

você, Emanuelizia. Sabe muito bem que seu pai não tem limites:

quando ele começa a bater, não consegue parar. Uma hora

dessas, ele acaba matando você de pancadas!

– A senhora torce para que isso aconteça, não é? Saiba que

seria um alívio para mim se acontecesse! Pelo menos a minha

vida deixaria de ser o inferno que é. Não fiz nada demais e

vocês me acusam o tempo todo de estar sendo promíscua, entre

tantas outras coisas horríveis. Não estou me encontrando com

Henrico. E se a senhora quer saber, há dois meses não nos

falamos; ele foi embora. Não era o que vocês queriam? Vocês

conseguiram afugentá-lo de mim! Ele não volta mais.

Caí em choro profundo. Culpava meus familiares por Henrico

ter se afastado de mim. Não queria ver a verdade: ele só quis

brincar com meus sentimentos enquanto sua noiva não chegava.

Sim, Henrico estava noivo desde o nascimento. Esse era o

grande problema que ele me disse ter no primeiro encontro

nosso. A notícia chegou até a mim pela minha mãe, que disse ter

ouvido o boato na cidade. Mas, como eu disse, estava cega, nem

ouvia ninguém. Minha família não interferiu, mesmo eu estando

namorando às escondidas com ele. Porém, meu pai é quem o

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colocou na parede certa vez e quis saber dele quais eram as

reais intenções comigo. Henrico zombou da minha família e

caluniou-me, dizendo que eu era uma desfrutável e que havia

muito tempo eu já não tinha nada para que fosse zelado. Meu

pai esbofeteou-o e espancou-me. Eu e Henrico continuávamos

nos encontrando às escondidas, só que ele era muito agressivo

comigo. Eu achava que Henrico estava daquela forma por meu

pai o haver humilhado e esbofeteado. Não queria ver que

Henrico estava somente esperando o momento de poder me

seduzir e depois me descartar, como tantas que ele conhecia...

Eu não queria ver que Henrico pertencia ao povo cigano e que

eu jamais me enquadraria naquele meio.

Depois da conversa que tive com minha mãe, ela me abraçou

muito enquanto eu chorava inconsolavelmente. Estava decidida

a deixar de lado aquele amor, mas permaneci durante semanas

dentro de casa. Só chorava, não comia ou bebia, não queria ver a

luz do Sol ou ter qualquer proximidade com as pessoas. Até que,

certa noite, o rapaz que sempre me trazia bilhetes de Henrico

bateu na janela de meu quarto para me trazer um recado dele. A

princípio, não quis aceitar, mas o rapaz disse que era urgente. O

bilhete dizia assim:

Espanha, 20 de março de 1833.

Minha amada Emanuelizia,

Sei que estou em falta com você e peço-lhe humildemente

perdão. Tive muitos problemas aqui com o meu povo. Fui

colocado em uma prova de fogo: arranjaram-me um casamento

de conveniências, mas jamais poderia casar-me com outra

mulher que não fosse você. Estou disposto a assumir o nosso

amor e quero que seu pai me dê a oportunidade de provar isso.

Quero estar junto aos seus em sua casa e oficializar o nosso

amor. Minha amada, se você me perdoa, encontre-me amanhã

bem cedo perto da encosta do farol.

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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Henrico Gonçalo Lopes

Minhas pernas tremeram e eu não sabia se era de fraqueza ou

de esperança. Mas, naquele exato momento, minha mãe chegou

do lado de fora da minha janela atrás do rapaz que me trazia o

recado.

– Entregue-me esse bilhete agora, Emanuelizia!

– Leia. Não irei ao encontro dele, se é o que está pensando. –

eu estava fraca demais para retrucar.

Olhei para o rapaz e mandei-o dizer a Henrico que não iria.

Voltei para a cama. Minha mãe, porém, surpreendeu-se com a

minha atitude. Despachou o mensageiro e entrou em casa,

seguindo em direção ao meu quarto. Ela disse, admirada:

– Você não irá ao encontro daquele crápula? Será que resolveu

tomar juízo?

Nada consegui responder. Meu corpo todo doía muito e sentia

calafrios. Minha mãe, então, aproximou-se de mim, colocando a

mão em minha testa.

– Emanuelizia, minha filha, você está queimando de febre!

Meu Deus, o que você tem?

Nada conseguia dizer, apenas batia o queixo de frio.

Imediatamente, ela correu até a casa mais próxima, para pedir a

alguém que fosse chamar o doutor Helvécio. Voltou e aqueceu

uma chaleira de água, mas percebeu que eu estava desmaiada.

Não me lembro de muita coisa depois disso, só de acordar com

o doutor Helvécio ao lado da minha cama, fazendo-me

perguntas de quanto tempo eu estava daquele jeito sem me

alimentar.

– Não tenho tido fome.

– E a senhorita acha que vai aonde com esse tipo de atitude?

– Não penso em ir a lugar algum, doutor. Só não tenho mais

vontade de viver.

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Adriana Matheus

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– Ah, sim, e essa sua falta de vontade de viver creio que deve

ter um nome, não é mesmo?

Corei ao perceber a perspicácia dele.

– Isso já não importa mais. Nada mais me importa.

– Oh, mas é claro que importa! Acha que se a senhorita ficar

doente e vir a falecer vai conseguir resolver os seus problemas?

Olhe, mocinha, aceite o conselho deste velho aqui: ninguém

neste mundo vale um preço tão alto como o que a senhorita está

querendo pagar. Viver é a única coisa realmente importante

nesta vida. Se tivermos inimigos, temos que viver e lutar para

viver bem e para que eles nos vejam bem. Se tivermos um amor,

temos que viver e lutar para sermos felizes ao lado dele, mesmo

que isso nos custe um preço muito alto. Mas o que não podemos

é entregar os pontos na primeira derrota. Inimigo se vence com

sorriso; e batalha, com luta. Pense nisso e levante-se dessa

cama. Pare de agir como uma tola. Conheço-a desde criança e

você sempre foi a mais forte e sábia desta casa.

– Nossas famílias não aceitam o nosso amor.

– Conversarei com seus pais sobre isso.

– Eles não vão ouvi-lo. Henrico é um cigano.

– Hum... temos um problema, então! Mas nada que uma boa e

franca conversa não resolva. Agora, conte-me o que esse rapaz

significa para a senhorita e quais são as reais intenções dele.

Contei-lhe tudo, desde o começo, e entreguei-lhe o último

bilhete de Henrico que minha mãe, afoita por eu estar doente,

deixou cair ao chão. O doutor Helvécio leu atentamente. Depois

de me ouvir em silêncio, balançou a cabeça positivamente e saiu

do meu quarto, dizendo:

– Não quero saber de ter que vir vê-la nesse estado novamente.

Quanto ao resto, deixe comigo.

Não demorou muito, meus pais entraram para verificar como

eu estava passando. Minha mãe disse em nome dos dois:

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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– O doutor esteve conversando com a gente e pediu-nos para

dar uma chance ao tal cigano.

Fiquei olhando para os dois, sem nada dizer, apenas esperando

uma reposta. Foi meu pai quem continuou:

– Aceito conversar com esse indivíduo, mas somente porque o

doutor pediu-me, dizendo que lhe ajudaria a melhorar. Quero,

porém, que fique bem claro: não o quero dentro de minha casa e

não aceito filha perdida. Caso isso aconteça, esqueça que

existimos para você. E isso também serve caso resolva casar-se

com esse monte de estrume.

Dizendo aquelas palavras amargas e ofensivas, meu pai saiu

sem nada mais para dizer a mim e à minha mãe. Ela olhou para

mim, sentada num canto da minha cama, com o coração em

prantos, pois não sabia se ficava feliz ou se ficava triste por meu

pai dizer tudo aquilo e daquela forma tão deprimente. Então,

depois de muito me analisar, falou:

– Seu pai mandou-me ir até a vila, procurar por aquele déspota

e pedir-lhe que venha até aqui para falar com ele. Quero que

saiba que faço a contragosto, somente porque seu pai me pediu.

Amanhã irei pela manhã. Agora vou preparar uma canja para

você e a janta do seu pai. Quando estiver melhor, quero que me

responda algumas perguntas. Agora fique aí deitada e tente

repousar.

Minha mãe saiu, jogando o xale por cima do ombro e batendo

a porta. Queria que as coisas tivessem sido diferentes. Queria

que eles tivessem aceitado Henrico com o coração aberto. Mas

ao menos eu tinha a esperança de que com o tempo e a

convivência eles pudessem mudar de opinião.

Minha mãe voltou ao meu quarto para me trazer a canja, mas

não abriu a boca para falar comigo. Fiquei observando-a

enquanto ela pegava a tigela vazia e algumas roupas sujas para

lavar no dia seguinte. Adormeci profundamente devido à

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medicação que o doutor havia me dado. Acordei já era alto dia e

o Sol entrava insistentemente no quarto, fazendo-me abrir os

olhos forçosamente. Escutei barulho e vozes vindas da sala.

Meu pai parecia exaltado. Levantei-me lentamente, pois ainda

estava meio fraca. Arrumei um roupão e o vesti por cima da

camisola, seguindo em direção àquelas vozes exaltadas.

Para minha surpresa, vi Henrico assim que passei pela porta.

Ele estava de frente a mim; meu pai, de costas. Ao vê-lo,

percebi que dele saíam luzes. Ficamos parados, olhando-nos.

Não precisávamos dizer nada. Nossos olhos falavam por nós e

neles havia muitas saudades e esperança. O que eu mais queria

naquele momento era abraçá-lo, mas senti minhas pernas

fraquejarem e caí. Não vi mais nada à minha frente. Sentia tudo

girar. Queria pedir ajuda, mas as palavras não me saíam à boca.

Era como se algo me impedisse de falar. Uma enorme escuridão

tomou conta das imagens, que também ficavam desconexas.

Senti frio e pânico. Era como cair em um precipício sem fim, só

que lentamente. Senti náuseas, minha cabeça girava. A sensação

era que eu estava morrendo devagar. Só me lembro de dizer Não

me deixe morrer...

– Nunca... Estarei sempre com você, mesmo após sua morte. –

a voz ao longe respondia.

Aqueles braços ampararam-me antes que eu chegasse ao chão

e levantaram-me ao alto. Pude sentir o cheiro de perfume de

jasmim que vinha daquele corpo tão próximo a mim. Henrico

colocou-me sobre a minha cama e ficou ajoelhado ao chão,

segurando minhas mãos, com súplicas no olhar. Foi quando meu

pai disse:

– Vá, mulher, chame novamente o doutor Helvécio! Diga para

vir imediatamente! Quanto a você, sou-lhe grato por ter ajudado

minha filha, mas agora que saia de minha casa! Se quiser, fique

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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na varanda esperando até que o doutor venha e dê notícias do

estado dela.

Meu pai estava sendo rude demais com Henrico. Queria fazer

algo, mas não tinha forças para sequer falar. Não vi muita coisa

daquele momento em diante. Mais tarde, quando despertei,

fiquei sabendo pela boca do doutor que estava com anemia por

ter ficado tanto tempo sem me alimentar. Henrico havia ficado o

tempo todo ao relento, esperando saber notícias minhas vindas

do doutor. Quando abri os olhos, o médico convenceu meus pais

a deixar o cigano entrar para me ver. Minha alegria era sem

limites. Ele me contou quais foram as condições impostas pelo

meu pai para que pudéssemos namorar. Achei um absurdo, mas

era melhor do que ficar sem o meu único amor. Ele parecia não

se importar com as tais condições. Disse-me que só queria ficar

ao meu lado. Contou-me sobre o suposto noivado que a família

dele havia lhe arrumado. Explicou-me como foi complicado

desfazer o tal compromisso. E pediu inúmeras desculpas por ter

falhado comigo, jurando-me fidelidade e prometendo-me nunca

me abandonar ou fazer-me chorar novamente. Mais uma vez

cedi, dando a Henrico um voto de confiança. Os dias passaram-

se. Até que...

“Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por

acaso. Na verdade, são fases... E essas fases têm que ser

aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos

eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e

cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos

impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas

também temos que nos lembrar que eles vieram para nos

ensinar que não existe nada e ninguém que permanecerá

conosco por toda a eternidade. Devemos, sim, aprender com os

erros dos outros, mas devemos principalmente aprender com os

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nossos próprios erros. Errar é humano, mas não aprender com

os erros é inadmissível. Na vida, tudo é passageiro. Viver

dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as

tentações mundanas e a decadência são muitas e,

aparentemente, facilitam a vida do ser humano, deixando-o

futuramente em um completo tormento de solidão. Cego não é

aquele que não quer ver, mas aquele que não quer ouvir, pois

existem várias maneiras para se enxergar, mas apenas um

modo de aprender. O que quero dizer é que posso enxergar seu

rosto com os meus dedos, mas não ouço as palavras que saem

da sua boca. Apenas escuto o som que se perde ao vento.

Pensem nisso.”

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III – Do pacto à vingança

caminhando à beira-mar de braços dados com

Henrico, paramos para descansar um pouco perto

de um velho farol. Foi quando ele ficou de frente

para mim e, depois de me fitar por alguns segundos, perguntou:

– Emanuelizia, você gostaria de conhecer o meu povo e a

minha família? Gostaria de aprender os meus costumes e tornar-

se uma cigana? A rainha dos ciganos... Já que sou o filho do rei

e em breve serei o sucessor.

Arregalei os olhos. Depois daquele impacto de emoção,

perguntei, meio sem saber o que ia dizer ao certo:

– Você está falando sério? Não teme que eles possam me

rejeitar? E se eu não conseguir ser do jeito que você espera que

eu seja?

Ele sorriu, sacudindo a cabeça negativamente, como se

estivesse desaprovando aquela minha pergunta. Respondeu-me,

segurando-me pelos ombros e olhando ainda mais fixamente nos

meus olhos:

– Sim, estou falando sério, mocinha. E quanto ao meu

povo, eles jamais a rejeitaram. Não se preocupe: eles vão tratá-la

da melhor maneira possível, pois somos muito hospitaleiros com

C

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105

nossos convidados. E quanto a você, sei que se sairá muito bem.

Confio em você.

– Sendo assim, digo que aceito.

Beijamo-nos longamente. Seus beijos tiravam-me a

concentração. Sentia-me levitando. Era como se um coro de

anjos cantasse aos meus ouvidos. Eu o amava, sim, loucamente.

Naquele momento, era essa a certeza que eu tinha. Nada mais

me importava, pois eu estava tão feliz! Iria conhecer a família e

o povo de Henrico. Pensava que, com essa proximidade,

pudéssemos acabar com o preconceito que existia entre nossas

famílias. Ele surpreendeu-me ainda mais ao dar-me um cordão

feito de couro com uma pedra vermelha. Era um rubi. E ele

disse que era para selar o nosso amor. Marcamos para um

domingo, pois haveria uma grande festa entre o povo dele – a de

Santa Sarah Kali, a cigana que venceu os mares com sua fé.

Cantava a lenda que Maria Madalena, Maria Jacobé,

Maria Salomé, José de Arimatéia e Trofino, junto com Sarah –

uma cigana escrava – foram atirados ao mar, numa barca sem

remos e sem previsões. Desesperadas, as três Marias puseram-

se a orar e a chorar. Então, Sarah retira seu diklô (lenço) da

cabeça, chama por Kristesko Jesus Cristo e promete que se

todos se salvassem ela seria escrava de Jesus e jamais andaria

com a cabeça descoberta em sinal de respeito. Milagrosamente,

a barca – sem rumo – atravessou o oceano e aportou com todos

salvos em Petit-Rhône, hoje a tão querida Saintes-Maries-de-

La-Mer, no sul da França. Sarah cumpriu a promessa até o

final dos seus dias. Suas histórias e milagres a fizeram

padroeira universal do povo cigano, sendo que a festa é

celebrada todos os anos no dia vinte e quatro de maio. No dia

seguinte, comemoram-se o dia das três Marias.

Depois que Henrico me deixou em casa, comecei a

preparar-me para a festa. Queria que tudo fosse perfeito! Eu

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precisava trajar-me exatamente como uma cigana. Queria ser a

mais bela entre todas elas. Queria ser motivo de orgulho para

Henrico. Difícil foi convencer minha mãe a fazer um traje típico

para tal evento. Confesso que foi complicado, pois ela não

aceitava que eu me vestisse ou muito menos que fosse a uma

festa cigana. Mas, modéstia à parte, em questão de convencer

alguém até hoje sou louvável! E quem me conhece sabe. Quanto

a ir à festa, foi mais fácil, pois meu pai estava em alto-mar e só

voltaria em duas semanas: esse pequeno detalhe favoreceu-me.

Saí com minha mãe e fomos ao armazém – sim,

armazém, pois naquela época comprávamos de tudo nos

armazéns, inclusive tecidos para roupas. Como éramos pobres,

não tínhamos dinheiro para pagar uma costureira ou ir a um

atelier. Às vezes comprávamos nossas mercadorias dos caixeiros

viajantes que passavam em nossa porta, mas isso era muito

raramente. Para nós, tais fatores eram um avanço no tempo, pois

mais atrás as pessoas compravam suas mercadorias na forma de

escambo, ou seja, na forma de troca. Era o sistema mais fácil de

adquirir o que precisávamos. Porém, não vigorava mais já em

minha época. Pena...

Graças a Deus as mulheres do meu tempo sabiam

diversas coisas, entre bordar e costurar. Minha mãe, nesse

ponto, era muito prendada. Ensinou-me tudo o que sabia – o que

nos favorecia muito, inclusive porque muitas mulheres como

nós usavam seus dotes de artesãs para ajudar nas finanças. E não

pensem que era como agora, no mundo de vocês: não havia

máquinas, era tudo feito à mão mesmo. Confesso que, apesar de

todo o sufoco e dificuldades, sinto saudades daquele tempo, pois

havia mais poesia e amor no que fazíamos. Mas, é a vida... tudo

tem que caminhar e seguir em frente.

Ficamos dias a fio costurando e bordando minha roupa.

Eu fazia a maioria dos trabalhos domésticos e cuidava das

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gêmeas para aliviar minha mãe e também para que ela pudesse

concentrar-se melhor no meu traje. Finalmente o domingo tão

esperado chegou. Mãe de Deus! Eu estava tão feliz e ansiosa!

Minha roupa ficou magnífica! A saia era negra, e um fino véu

negro bordado de pedras caía sobre ela. A blusa era vermelha,

toda bordada de medalhas douradas. Usei uma sandália de couro

cru que trançava nas minhas pernas até os joelhos. Minha mãe

fez uma tiara dourada para mim, e dela caía sobre a testa uma

correntinha com uma pequena pedra vermelha em forma de

gota. Usei o cordão com a pedra vermelha que Henrico havia me

dado.

Durante o período de espera para a festa, Henrico vinha

ao meu encontro todos os dias e ensinava-me a dançar como o

seu povo. Com isso, aprimorei ainda mais o meu flamenco. Por

várias vezes, peguei minha mãe olhando-nos da janela da sala,

mas ela sempre se esquivava ao perceber que a notávamos. Eu

adorava aquele povo, suas danças, seus costumes, suas

tradições. A cada dia, sentia-me mais cigana do que nunca. Era

apaixonante estar vivendo como eles. Parecia que tinha aquele

povo no meu sangue, nas minhas entranhas...

Fizemos de tudo para que minha mãe nos acompanhasse

à festa, mas ela, como sempre, mantinha-se fiel às ordens de

meu pai. Mesmo quando ele não estava por perto, conseguia

controlá-la. Era como se ele tivesse um aparelho controlador de

mente e, mesmo à distância, dominava-a. Era isso que eu

pensava antes. Hoje, porém, sei que aquele gesto de minha mãe

que me parecia absurdo era nada mais nada menos do que

respeito – o que não acontece nos casamentos atuais...

Fomos para o acampamento do povo de Henrico de

carruagem. Embora eles estivessem acampados perto da vila,

mantinham certa distância para que, assim, evitassem conflitos

com os aldeões. Não era fácil para eles ouvir as ofensas que

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sofriam todos os dias. O meu apelido na vila era Gadijá, que

quer dizer “não cigana”. Eles passaram a me olhar de soslaio e

esquivavam-se quando eu passava com Henrico. Era como se

tivéssemos uma doença contagiosa. Ouvi diversos boatos

maliciosos que as pessoas inventavam a nosso respeito. Porém,

por consideração a meu pai e por conhecerem a fama de

encrenqueiro dele, os boatos findavam-se logo. Com o tempo,

aprendemos a superar esse tipo de coisa. Mas, para os mais

velhos, o nosso relacionamento era abominável: eles não

aceitavam que uma aldeã moradora da vila pudesse estar

envolvida com um homem cigano, pois eles os consideravam

sujos e ladrões. Isso não era verdade, mas o preconceito

imperava e gritava naqueles corações infelizes e amargurados.

Como citei, eu e Henrico aprendemos a conviver com essas

diferenças. Não nos importavam os mexericos e xingamentos. O

mundo era nosso e, onde passávamos, aqueles despeitados

tinham que nos engolir a duras penas.

Era o que pensava naquela época: eu era orgulhosa

demais e arrogante para perceber que as coisas não são como

queremos. Tudo e todos têm o seu tempo. Ninguém é obrigado a

nos aceitar como nós somos. Não podemos sair pelo mundo

impondo nossas vontades e desejos. As coisas só acontecem

quando têm que acontecer, e as pessoas são como têm de ser.

São esses tipos de pensamentos que causam conflitos entre pais

e filhos, pois ambos têm ideias diferentes, ambos tentam impô-

las uns aos outros. Essa guerra, que chamamos de conflito de

gerações, danifica a humanidade de forma que haverá um dia

em que não poderemos sanar estas feridas contidas na alma.

Seria muito mais fácil se uma das partes cedesse, mesmo que

momentaneamente.

A carruagem cigana parou finalmente em frente ao

acampamento. Henrico desceu, estendendo-me a mão para eu

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me apoiar e descer também. Assim que coloquei meus pés no

chão, o murmúrio foi geral. Eles me aclamaram como rainha dos

ciganos, dizendo para Henrico “Esta é a mulher e a cigana mais

linda que já apareceu neste acampamento”. Henrico correu e foi

buscar seu pai, que era o chefe e rei dos ciganos, para nos

apresentar. Ao me ver, ele disse:

– Agora sei por está traindo seus costumes.

Henrico sorriu largamente, respondendo:

– Meu pai, esta é Emanuelizia Gonzáles. Emanuelizia,

este é meu pai, Hermano Lopes Gonçalo, o rei dos ciganos. E

esta bela mulher é a minha mãe, Cândida Hernandes Gonçalo.

Ela me recebeu com um largo sorriso e disse:

– Seja muito bem-vinda, minha filha. Qualquer amigo

ou amiga de meu filho é muito bem-vindo aqui em nosso

humilde acampamento.

Logo depois, Henrico puxou-me em um canto.

– Quero agora que conheça uma pessoa muito

importante para mim, a minha avó.

Ao chegarmos perto dela, percebi que era uma feiticeira

e ela me reconheceu como tal. Olhou-me de cima a baixo, com

um olhar que não identifiquei.

– Você é um diabo loiro. Não gosto de você e não a

quero perto de meu neto.

Depois, disse frases em români, que não consegui

entender ainda. Fiquei perplexa e segurei na mão de Henrico

fortemente. Ele também falava com ela em români e os dois

estavam exaltados. Depois, percebendo que aquele gesto só me

deixava ainda mais assustada, ele falou em espanhol novamente:

– Vó! A senhora está sendo grosseira com a minha

convidada. Exijo que a respeite.

– Não estou não. Estou é vendo uma sombra negra em

volta desta mulher. É melhor que a leve embora daqui antes que,

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no futuro, todos venhamos a nos arrepender. É um diabo loiro e

sei quem ela é: uma maldita bruxa que vai arruinar com a sua

vida.

Henrico ficou estático, sem saber o que dizer. Foi o seu

pai quem nos salvou, puxando-nos para dançar. Durante a

dança, ele disse a mim:

– Não ligue para a nossa nona. Ela está muito velha e

não diz mais coisa com coisa.

Não respondi nada, apenas me deixei levar pela música.

Eu e Henrico dançamos a noite toda sob os olhares curiosos de

muitos ciganos. Uns, já cientes do que a avó dele havia dito,

passaram a nos olhar com receio, medo ou sei lá o quê. Outros,

porém, entorpecidos pela bebida, nada mais queriam além de se

divertir. Houve certa hora que paramos com a bebida, com a

comida e com a dança para ouvirmos as palavras solenes do

ancião dos ciganos. Segundo Henrico, ele era um homem muito

sábio e o que ele dissesse seria acatado como lei. Todos se

reuniram em volta do homem – uns agachados, outros de pé –

até que um grande círculo se formou em volta da fogueira e do

velho sábio, que disse:

– Estamos aqui hoje reunidos para agradecer a mais um

dia de vida e sobrevivência.

Todos concordaram com a cabeça em silêncio, pois o

velho ancião tinha dificuldades em falar muito alto devido à

idade avançada.

– Durante muitos anos, o nosso povo tem sofrido

perseguições. Somos confundidos com bandidos,

sequestradores, mercenários, ladrões, entre tantas coisas

errôneas e injustas. Somos ofendidos e apedrejados em praças

públicas como cães sarnentos. Somos humilhados e caçados

como animais. Fomos obrigados a deixar nossos lares para viver

a vagar pelo mundo, simplesmente porque não aceitam o nosso

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modo de viver. Nossas cabeças são colocadas a prêmio todos os

dias e, por isso, somos obrigados a viver como errantes, tendo,

então, que armar acampamento onde nos permitem e no tempo

que nos permitem. Somos errantes e sem uma pátria, porque

assim nos foi imposto. Mas, mesmo diante de tanta tragédia e

catástrofe que já sofremos, somos gratos ao Criador de todas as

coisas por hoje estarmos aqui comemorando mais um equinócio,

sem sermos expulsos desta terra abençoada, porque os homens

considerados poderosos ainda não nos enxergaram. Que este

Deus tão maravilhoso cegue esses homens por muito tempo para

que aqui consigamos fazer nossa pátria.

Naquele instante, ele começou uma espécie de oração:

– Deus de todas as coisas, salva-nos das mãos do

opressor. Guia-nos segundo a Tua vontade e lembra-Te, meu

Pai, que, embora tratados como Judas, Tu sabes que não fomos

nós que pregamos Teu Filho na cruz, e muito menos fomos os

fabricantes dos pregos que o crucificaram, como dizem os

ignorantes sem coração. Não nos julgues, Senhor, como é

desejo de nossos inimigos, mas julga-nos por nossos

merecimentos. Aceita-nos como Teus filhos, meu Pai, e não nos

vejas como filhos de Caim. Eu agradeço mais uma vez, Pai, por

mais um dia sem perseguições e mortes.

Dizendo isso, o velho calou-se por um minuto e todos

ficaram de cabeça baixa. Depois, todos foram saindo, cada um

para seu canto, continuando com as festividades. Henrico

pegou-me pelas mãos e levou-me até o velho ancião, que me

recebeu com um sorriso sem dentes, mas muito amistoso:

– Seja bem-vinda, filha do fogo! Em que eu, um humilde

servo, posso ajudá-la?

Nada entendi e disse apenas:

– Não entendo o que o senhor me diz, mas agradeço-o

pela hospitalidade.

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Ele riu largamente.

– Entendeu sim, minha querida. Porém, ainda não se

aceita como é.

Henrico, querendo acabar com aquele assunto, disse:

– Leia as cartas para ela, velho, e pare de dizer tolices.

Novamente o velho sorriu:

– Eu, ler as cartas para a rainha dos ciganos? É mais

fácil ela ler para mim.

Fiquei toda encabulada e, sem continuar a entender,

respondi-lhe:

– Senhor, sou mesmo grata por todos esses elogios, mas

peço-lhe humildemente que leia as cartas para mim.

Ele concordou com a cabeça e esticou no chão um pano

negro. Ao desembrulhá-lo, havia um baralho lindíssimo de

madeira. Esticando o pano no chão, ele abriu para mim o tarô

cigano. Seus olhos arregalaram-se ao contemplar os dizeres do

baralho, que até então nada significavam para mim. Em seguida,

respondeu-nos:

– Vocês não vão ficar juntos. Vejo uma sombra negra

entre os dois. Você, meu filho, irá magoar esta mulher onde

nenhum homem deve magoar uma mulher: na alma. Isso irá

transformar esta jovem e delicada flor em um diabo sobre a

Terra. Mesmo depois de sua morte, esta mulher irá caçá-lo por

muitas gerações.

Dizendo aquelas palavras enigmáticas e absurdamente

pavorosas, o velho ficou estático e de suas narinas começaram a

sair sangue sem parar. Henrico gritou aos demais para ajudá-lo,

pois o velho estava tendo um ataque do coração. A mãe de

Henrico veio ao socorro do velho, junto ao esposo. Ela, porém,

fitou o tarô aberto ao chão e, parecendo entender o que dizia as

cartas, falou olhando para mim:

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– Leve-a para casa; aqui não é o lugar dela. Creio que ela já

conseguiu o que queria: arruinar as nossas vidas.

Henrico obedeceu sem dar nem uma palavra. Durante

nosso retorno para casa, dentro da carruagem, fui puxando

conversa e fiz-lhe muitas perguntas sobre o povo cigano. Ele,

porém, parecia muito distante naquele momento. Respondeu-me

entre dentes:

– O povo cigano é um povo muito sensitivo. Por certo

viram alguma coisa em você que não condiz com as nossas leis.

Talvez fosse por isso que se comportaram tão estranhamente

hoje na sua presença. Quero pedir-lhe desculpas por tudo.

– Não precisa pedir-me desculpas, meu amor. Sei que

não foi culpa minha e nem sua. As pessoas de mais idade têm

certas cismas e falam coisas desconexas.

– Não, sinto muito, mas você está errada: as pessoas

mais velhas sabem tudo da vida. Elas são muito sábias no que

dizem, e os mais idosos do meu povo têm uma percepção além

do alcance. Nós, por natureza, já nascemos com o dom de prever

as coisas, Emanuelizia. Sinceramente, o ancião e a minha avó

viram algo malévolo em você, algo que eles não souberam reter

em seus corações a ponto de serem mal educados com você. Por

favor, se você está me escondendo algo, esta é a hora de me

falar a verdade. Eu já lhe disse que não quero nenhum segredo

entre nós. Estamos há oito meses juntos e eu mal sei quem você

é. Tudo o que sei de você é que é uma jovem destemida e

determinada, que não mede as consequências para obter o que

deseja. Percebi isso quando voltei e procurei-a outra vez, e seus

pais disseram-me que você estava sem comer há semanas.

Ele sorriu e prosseguiu:

– Isso é típico de uma jovem mimada que faz pirraça,

que faz de tudo para conseguir o que quer. Não se preocupe: não

estou criticando você, muito pelo contrário, admiro muito a sua

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determinação em querer a qualquer custo ficar comigo. Eu a

amo, Emanuelizia, mas há coisas em você que ainda são uma

incógnita para mim. Você nunca fala sobre religião, e sei que os

cristãos têm essa mania excessiva de falar em Cristo. É como se

eles dependessem disso para provar sua real intenção em salvar

a própria alma. Você nunca fala sobre sua família... Deduzi por

conta própria que não há um relacionamento fraternal entre você

e seus entes. E, se quer saber, parece que eles vivem em guerra!

Existe um clima de hostilidade e medo entre vocês; não há

respeito e amor.

Olhei para ele friamente e de um jeito que nunca fiz

antes.

– Você está me deixando, Henrico? Pois se está, quero

que saiba que desta vez não permitirei. Já chorei muito por você

e agora estou determinada a não deixar ninguém me fazer chorar

novamente, custe o que custar.

– É sobre isso que estou dizendo: você é impulsiva

demais e entende as coisas à sua maneira. Não estou dizendo

que vou deixá-la: só estou dizendo que temos que confiar um no

outro, sermos mais sinceros e sem segredos. É assim que

funciona entre um casal; é assim que o meu povo vive. Não

existem relacionamentos sem amor, confiança e fidelidade.

Você está sendo muito presunçosa, se acha que pode amarrar

um cigano a seus pés... Somos livres, Emanuelizia. Para ser

minha esposa, você terá que entender isso.

– Todavia, eu não havia terminado de falar e você ainda

me chama de presunçosa? Se eu nunca lhe contei sobre minha

religião é porque achei que não fosse necessário! E se não falo

de minha família é porque meu antigo noivo me acusou de

somente me aproximar dele para falar dos problemas da minha

família! Creio que devemos aprender com os nossos erros, e é

somente por isso que não comento sobre minha família. Se for

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para eu ter que vê-lo nos braços de outras mulheres, então

prefiro não o ter como meu esposo. Não saberei ser tão... livre

assim.

– Não estou dizendo que nós, ciganos, traímos nossas

esposas. Vejo que você não entendeu nada do que eu disse. Mas

e quanto à sua religião? Já notei que você usa uma cruz invertida

no pescoço. E essa estranha marca em seu antebraço? O que ela

significa? É disso que estou falando: há muito mistério em você,

muita coisa oculta. Não gosto de segredinhos, Emanuelizia. Para

estar ao meu lado, terá que ser extremamente sincera comigo.

Senão...

– Senão... você me abandona como já fez antes, não é?

Creio, Henrico, que você não pode me cobrar sinceridade, pois

andava comigo e estava comprometido com outra mulher. Você

é quem mentiu para mim; nunca menti para você; sempre lhe fui

sincera.

– Não, Emanuelizia, você nunca é sincera totalmente. E

quanto ao meu antigo relacionamento, terminei para ficar com

você, não foi? Além do mais, foi você quem se ofereceu a mim.

Você é quem se declarou a mim, sem se importar qual era a

minha real condição e disponibilidade. Fui um cavalheiro com

você. Se fosse outro homem, teria se aproveitado da sua

fragilidade e carência aquele dia na praia. É dessas coisas que

estou tentando lhe prevenir, mulher: você é muito impulsiva e

possessiva, sim. A vida não gira em torno de você. Cada um de

nós tem direito de ir e vir. Se terminarmos um dia, quero que

saiba que sofrerei, mas não será o fim do mundo, pois existem

outras pessoas capazes de amá-la e de me amar também. A vida

é feita de escolhas, Emanuelizia. Tenho o direito de ficar com

você, mas tenho também o direito de não querer ficar. Não estou

terminando com você, mas tem hora que o seu amor possessivo

e obsessivo sufoca-me. Se fico um dia sem parecer em sua casa,

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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você já acha que estou com outra mulher. Se preciso sair mais

cedo, você faz de tudo para me atrasar. Emanuelizia, sou um

cigano e, como tal, prezo a liberdade. É assim que somos: livres.

Ninguém nos prende; nada nos prende. Se vamos ficar juntos

para o resto de nossas vidas, é melhor você começar a se

comportar como uma cigana. Nossas mulheres sabem que não

podem nos prender. Às vezes viajamos sem elas e ficamos dias

longe de nossas famílias. É um comportamento normal.

– Isso quer dizer que vocês levam uma vida de solteiro,

mesmo estando casados? Acho que tem razão: não somos feitos

um para o outro. Somos muito diferentes e pensamos muito

diferente. Eu jamais aceitaria que você me abandonasse sozinha

em casa para ficar festejando sabe Deus o quê. Você está me

magoando com suas palavras. Prefiro que parta antes que me

fira na alma e faça valer as previsões do ancião do seu povo.

Quero ter lembranças agradáveis de nós dois. E não se

preocupe: não farei nada para prendê-lo.

– Você está novamente distorcendo minhas palavras

porque é mais fácil você me culpar por algo que não disse do

que contar a mim a verdade que esconde dentro do coração.

Você diz que a estou ofendendo. Saiba, também: ofende-me

com sua falta de sinceridade e confiança.

– Já lhe disse: não lhe estou escondendo absolutamente

nada. – menti.

– Quer dizer então que você vai arriscar me perder

somente porque o que esconde é maior que o seu suposto amor

por mim?!

Calei-me e nada mais disse durante o percurso. Henrico

estava usando uma forma muito baixa de chantagem para me

obrigar a contar-lhe o meu segredo. Em poucas palavras, aquele

homem conseguiu fazer uma reviravolta nos meus sentimentos e

lançou dúvidas dentro da minha alma. Eu estava confusa e sabia

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Adriana Matheus

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que estava perdendo para ele, porque supunha que os meus

sentimentos fossem a única coisa mais importante que existia no

mundo. Henrico usou dessa fragilidade para obter o que ele

queria: que eu confessasse meus segredos a ele.

Dentro de mim, eu sabia que não poderia contar a

Henrico de forma alguma sobre a tradição. Primeiro, porque ele

não era um membro dela. Segundo, porque ele não entenderia.

Mas fui tola como toda mulher e deixei-me render pela força da

paixão carnal. Estava cega de ciúmes, e deixava-me louca

somente a ideia de que Henrico, ao me deixar, estaria nos braços

de outra. Confesso: fui fraca e odeio-me por isso. Era como se

houvesse dentro de mim um mundo à parte, algo surreal, onde

me tornei alguém capaz de amar loucamente e de maneira

prejudicial. Eu mesma não me reconhecia. Precisava me livrar

daquela doença chamada paixão.

Os homens sabem disso... Eles sabem quando nos

tornamos suas escravas. E, depois de conquistarem seus

objetivos, ainda fazem de tudo para conquistar a última coisa

digna em nós: eles dão finalmente o golpe de misericórdia,

descartando-nos em seguida como um monte de sucata sem

utilidade. Eu até acredito que a besta tenha usado de sua

influência espiritual sobre Henrico, mas a escolha foi minha. Eu

tinha nas mãos o poder de não contar. Foi de meu livre arbítrio

quebrar o meu juramento cerimonial. Toda mulher tem nas mãos

a chave de como prender um homem. Porém, somos fracas

quando se trata da paixão carnal. Cedemos muito fácil, sendo

que se um homem estiver mesmo apaixonado, ele nunca fará

uma proposta ou troca com a sua amada. O amor não é troca

de favores ou troca de merecimentos. O amor é algo que

simplesmente nos deixa aceitar uma pessoa do jeito que ela é e

do estado em que ela se encontra. Não se barganha o amor, não

se chantageia no amor. O amor é um sentimento e não um

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objeto descartável. É difícil se explicar o que é o amor, porque

esse sentimento é muito individual. Quando isso acontecer a

você, sinta-o e não se preocupe com outras coisas.

As paixões carnais só nos servem para nos afundar em

um abismo de desconsolo e sofrimentos desnecessários, em que

tudo termina em um vazio de amarguras que, por mais curtas

que sejam, deixam marcas tão profundas que nos fazem

futuramente sermos duros como as pedras – cegando, assim, o

nosso coração para a verdade imediata.

Eu deveria ter entendido que Henrico nunca me amou de

verdade. Ele só estava usando o sentimento que eu tinha por ele

para futuramente fazer de mim sua concubina, e não sua esposa.

Enrubesci de ódio com aquelas palavras. Por certo ele estava,

sim, terminando comigo, mas queria que eu cedesse e contasse a

ele o meu segredo. E eu, por medo de perdê-lo, contei. A

sensação da perda é algo com que o ser humano não saberá

nunca lidar. Sentia ódio de mim mesma e houve uma hora em

que, olhando para fora da carruagem, senti uma lágrima

escorrer-me por saber que estava sendo usada e nada poderia

fazer para me livrar daquela sensação que me consumia por

dentro. Passei o dedo nos olhos, engolindo seco aquele misto de

sentimentos.

Ao chegarmos em frente de minha casa, saí da

carruagem batendo a porta. Não queria vê-lo nunca mais na

minha frente. Ele não me chamou ou disse uma palavra sequer.

Mas Henrico parecia saber que eu voltaria, pois ficou com a

carruagem ainda na frente da minha casa até que eu, ao colocar

as mãos na maçaneta, não sei explicar... Foi como se algo maior

do que eu mesma me levasse a voltar e entrar naquela

carruagem de novo. Uma espécie de voz dentro de mim dizia

que eu iria perder o meu amor para sempre somente por causa

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de um segredo tolo. Saí correndo como uma louca, pulando a

cerca da varanda. Quando cheguei à frente da carruagem, disse:

– Eu conto a você. Mas juro por Deus que depois que lhe

contar, se você me trair, vou persegui-lo até mesmo em outra

vida.

Ele sorriu largamente, não levando a sério a minha jura.

Para ele foram meras palavras de uma jovem imatura... Ele

desceu da carruagem e fomos caminhar à beira-mar. Contei tudo

nos mínimos detalhes, até que, finalmente, cheguei à parte em

que lhe revelei ser uma bruxa. Naquele instante, ele afastou-se

de mim como se eu tivesse uma doença contagiosa e, depois de

respirar profundamente, falou:

– Como foi que você conseguiu esconder de mim esse

segredo durante todos esses meses que estamos juntos?

Emanuelizia, pensei diversas coisas a seu respeito. Confesso que

cheguei a duvidar da sua pureza, mas nunca imaginaria algo tão

melindroso assim.

– Isso quer dizer que eu estava correta quando supus que

você me abandonaria quando soubesse do meu segredo. Fui uma

tola em revelar a você tamanho segredo.

Senti desespero. Eu estava perdendo por falar a verdade.

Ele estava me olhando como se eu fosse uma espécie de

monstro. Comecei a chorar espontaneamente. As lágrimas

saíram numa proporção que eu não as controlava mais. Henrico,

ao ver que eu chorava compulsivamente, prosseguiu:

– Por favor, Emanuelizia, acalme-se. Seus pais, ao vê-la

assim, pensarão que lhe fiz alguma coisa.

– É só com isso que você se preocupa, com que os outros

pensam da minha reputação? E você não se importa com os

meus sentimentos? Olhe para mim, Henrico! Estou morrendo

por dentro! Acabei de trair a minha crença e as minhas

promessas, estou perdendo você e é só com a minha reputação

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que você se importa? Quer dizer que além de me chantagear

para que eu lhe revelasse o meu segredo, você esperava que eu

lhe dissesse que não sou mais virgem? Pensava, então, em tirar

vantagem disso?

– O que você quer que eu pense de você? Olha como

você se veste! Sempre com decotes, e com as saias suspensas,

deixando as pernas à mostra.

– Você me julga pelos meus trajes? E quanto ao meu

caráter, nada significa? Saiba que jamais o julguei por ser um

cigano, ou pelo modo como você e o seu povo se vestem. Não

julgo alguém dessa forma. Primeiro, tento conhecer, e aí, sim,

com a convivência e o tempo, vou saber dizer. Mas vejo que o

tempo não contou para que eu o conhecesse, pois o seu caráter

você esconde bem. Não é a roupa ou a falta dela que faz o

caráter de uma mulher, mas sim a maneira como ela se

comporta e respeita seu homem. Infelizmente, custei a ver o seu

caráter porque o amor que sinto é muito maior e isso acabou

cegando-me. Mas agora já chega: é a terceira vez esta noite que

você põe em dúvida a minha virtude! Saiba que vou sofrer, mas

nunca mais vou permitir que você me humilhe dessa forma.

Agora vá! Você está livre para fazer o que bem quiser de sua

vida, mas me deixe em paz.

Dizendo isso, fui saindo, deixando-o parado, chamando

por mim. Naquele momento, eu estava muito magoada e ferida,

mas confesso: não pensei em me vingar ou em fazer um

sortilégio para que ele voltasse para mim. Eu estava mesmo

disposta a seguir com a minha vida.

Tentei entrar em casa silenciosamente, mas minha mãe

estava acordada e seguiu-me até o meu quarto.

– Isso são horas de chegar em casa? Já passam da uma da

manhã.

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Engraçado como os pais só se preocupam com a

reputação dos filhos, e nunca veem que os filhos são pessoas

individuais, que crescem e que também têm seus problemas...

Caí sobre a cama, de bruços e aos prantos. Foi aí que,

finalmente, ela percebeu que eu estava chorando e veio com

aquela fatídica pergunta novamente:

– O que houve, minha filha? Por que você está

chorando? Aquele animal abusou de você?

Mal consegui falar, mas me sentei na cama e respondi-

lhe, exasperadamente:

– Por que todos estão tão preocupados com a minha

honra? Por que vocês só pensam na minha maldita virtude? Pelo

amor de Deus, mãe, deixe-me em paz! A senhora também? Por

hoje já chega! Quero ficar sozinha, não percebe que estou

arrasada? Mãe, sinto dor... É uma dor que não tem cura... E a

senhora só pensa se alguém tirou a minha virtude? Saiba que

não: ainda sou a mesma pura e santa Emanuelizia que saiu por

esta porta hoje à tarde.

– Graças a Deus! – disse ela, benzendo-se.

Aquelas palavras e sua atitude só serviram para me irritar

ainda mais. Ainda aos prantos, olhei para ela e disse:

– Por favor, mãe, deixe-me ficar sozinha. Amanhã lhe

conto o que aconteceu, mas vá embora daqui agora!

Finalmente ela se retirou e pude colocar os meus

pensamentos em ordem. Eu não sabia o que iria ser da minha

vida daquele momento em diante, mas uma coisa era certa: eu

não voltaria para Henrico. Não poderia ficar com uma pessoa

que duvidava de mim e colocava o tempo todo os meus

sentimentos à prova. Não era justo comigo, depois de tudo o que

eu já tinha passado, arriscar a me envolver com um homem que

poderia ser futuramente a cópia do meu pai? Pois Henrico

demonstrou com aquela atitude que se nos casássemos, ele

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duvidaria da minha virtude o tempo inteiro... Seria como meu

pai, que todas as vezes que brigava com a minha mãe, cobrava-

lhe por não ter visto a prova de sua honra e virtude exposta no

lençol de núpcias. Aquela atitude masculina e machista era

muito humilhante, e eu não pretendia passar por aquilo.

A semana passou tranquila. Meu pai retornou da pesca

mais cedo, e minha mãe, graças a Deus, teve o bom senso de

não lhe contar o que ocorreu comigo, mesmo depois de ter

sabido de tudo que se passou. Passei a me dedicar mais aos

afazeres domésticos e a prendas domiciliares. Aquilo era bom

para mim, pois mantinha a minha mente ocupada. Praticamente

me tornei uma obsessiva em manter a casa limpa. Era uma

espécie de fuga. Continuei caminhando à beira-mar, mas fazia

isso após o almoço e na companhia das gêmeas, para evitar

qualquer proximidade com Henrico. Eu sabia que ele conhecia

os meus itinerários e, por isso, modifiquei-os. Minha vida estava

uma verdadeira desordem emocional, mas eu tinha fé que iria

superar tudo aquilo.

Duas semanas passaram-se e, então, começaram as

chuvas de bilhetes e cartas de Henrico, pedindo-me para voltar.

Confesso que era tentador, pois a saudade que sentia por ele era

muita, mas me mantive forte. Certa manhã, meu pai pegou-o

dormindo na varanda na esperança que eu, ao vê-lo, ficasse com

dó e voltasse. Ele não parava com as chantagens, entre choros e

lamentos. Até serenata ele fez para mim. Meu pai o expulsava e

jurava que o mataria se ele não parasse de nos importunar, mas

nada adiantou: Henrico mantinha-se firme na psicose de que eu

voltaria para ele. Cercava-me de todas as formas possíveis, a

ponto de não poder mais caminhar à beira-mar hora alguma,

pois aonde quer que eu fosse havia um de seus amigos vigiando-

me. Embora eu o amasse muito, estava ficando com medo e

temia por minha segurança. Ainda para piorar a minha vida, que

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já não estava nada fácil, minha irmã havia chegado da Europa e

exigia a presença da minha mãe perto dela quase o tempo todo.

Com isso, eu ficava muitas vezes sozinha com as gêmeas. Era

nesse momento que Henrico aproveitava-se para ficar do lado de

fora da porta, batendo e clamando para que eu o deixasse entrar.

Isso nunca contei a meus pais, pois temia que meu pai fizesse

algo de ruim com Henrico. Mas essa atitude foi prejudicial a

mim no futuro, pois deu a impressão que eu estava conivente

com ele.

Alguns dias depois, meu pai havia ido levar minha mãe

até a casa de Eulália. Só para variar, eu fiquei em casa... Foi

quando uma voz chamou-me do lado de fora. E não era a voz de

Henrico; era Maxuel, que tinha vindo me ver. Confesso que o

que senti foi um misto de sentimentos. Foi como se meu

passado fosse uma sombra e estivesse batendo à minha porta.

Ansiosa e nostálgica, abri a porta imediatamente, sem pensar

duas vezes. Porém, eu não havia percebido que o perigo estava

do lado de fora, vigiando-me. Convidei-o para entrar e tomamos

um chá. Eu e Maxuel conversamos sobre tantas coisas

saudosas... Aquela raiva que havia sentido por ele tinha passado

por completo. Só sobrou um sentimento fraternal. Ele me

convidou para caminharmos à beira-mar. Como já havia algum

tempo que eu não fazia isso, aceitei de imediato, pois aquela

figura masculina passou-me segurança e proteção. Ele me

contou que não era feliz com Eulália, que ambos dormiam em

quartos separados, e o único sentimento que prendia ele a minha

irmã era o afeto que ele aprendeu a ter pela filha, Cristine.

Baixei a cabeça e respondi:

– Sinto por você, mas creio que ambos estamos pagando

pelas consequências de nossos atos impensados e de nossos

impulsos carnais.

– O que você quer dizer com isso, minha prima?

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Contei-lhe, então, nos mínimos detalhes tudo o que

estava acontecendo. Ele, compadecido por me ver chorar,

abraçou-me fraternalmente. Ele parecia querer me falar alguma

coisa, mas foi naquele momento que Henrico chegou como um

louco e deu um soco em Maxuel, que revidou dando uma surra

em Henrico. Tentei impedir aquela barbárie, mas Henrico

provocava Maxuel com palavras chulas. Depois de muito

apanhar, Henrico virou-se para mim e disse:

– Agora sei por que me rejeita: você é amante deste

desgraçado. Acreditei em você e jogou os meus sentimentos no

lixo! Desprezou-me e fez de mim um cachorro! Mas isso não

vai ficar assim: vou me vingar de você.

Maxuel tomou novamente a frente e disse:

– Saia imediatamente daqui, se não quiser tomar outra

surra, seu bastardo bêbado!

Segurei Maxuel pelos braços e Henrico foi-se embora,

cambaleando. Ele realmente estava alcoolizado. Nem parecia o

homem pelo qual eu havia me apaixonado. Estava sujo,

maltrapilho e barbudo. Pedi a Maxuel mil desculpas e pedi-lhe

para não contar a meus pais. Mas, infelizmente, ele se recusou,

dizendo inclusive que daria parte de Henrico à milícia. Eu o

implorei, mas ele estava irredutível.

– Este homem é um bárbaro! Se não fizermos algo para

contê-lo, ele por certo vai matá-la.

Não poderia dizer nada porque temia que ele estivesse

certo. Apenas o levei para casa e fui tratar dos ferimentos em

seu rosto e mãos. Quando meus pais chegaram, ao ver aquela

cena de proximidade entre nós, ficaram espantados, mas Maxuel

explicou-lhes o que acontecera. Meu pai ficou furioso e queria

resolver o problema a qualquer custo, mas minha mãe o

convenceu, alegando que ele não voltaria mais depois da surra

que Maxuel lhe deu. Meu pai foi banhar-se para acalmar os

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nervos. Maxuel despediu-se de mim e tive a sensação de que

não o veria mais. Minha mãe acompanhou Maxuel até a varanda

e os dois ficaram por muito tempo conversando. Fui para o meu

quarto. Estava com medo e precisava orar a Deus e pedi-lo para

proteger a mim e a minha família. Sentia que algo ruim estava

para acontecer. Mas, como estava distante dos meus caminhos,

não pude entender o que poderia ser. Achei que fosse pela

fatídica tarde que passei.

Os dias foram passando e, como não soube de mais

nenhum sinal de Henrico, comecei a acreditar que ele não iria

mais me procurar. Embora os meus instintos de bruxa

estivessem um tanto aguçados, eu não dava importância a isso.

Continuei com a minha vida normalmente. Voltei a caminhar

pela praia. A princípio, só ia por perto. Mas, aos poucos, fui me

afastando cada vez mais da minha casa, até que me senti

totalmente segura para caminhar até as cavernas. Eu ficava

horas por lá, lendo os livros que Eleanor havia me deixado.

Ocupava a minha mente tentando não pensar mais em Henrico.

O amor é o sentimento mais belo do planeta. Mas

quando não dá certo, é melhor não persistirmos no erro. O meu

amor por Henrico foi um grande e grave erro, e eu pretendia não

cometê-lo novamente. Nenhum ser humano, por mais que ame o

outro, merece sofrer por ele ou ser humilhado. É engraçado

como um homem consegue fazer com que uma mulher, em uma

fração de segundos, passe de rainha dos ciganos a uma mera

meretriz, ou simplesmente a transforma em seu capacho

pessoal... É com esse tipo de situação que venho lutando através

dos tempos. Por isso, chamam-me de justiceira das mulheres.

Eu jamais, enquanto Deus me der permissão, permitirei que um

homem maltrate uma mulher. Mas, para isso, é preciso que as

mulheres atuais tomem certa postura de firmeza e honradez. Não

existe homem esperto, existe mulher ingênua. Não existe mulher

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incapaz, existem homens obsessivos e arrogantes, que embutem

em algumas mulheres sentimentos de culpa e até de baixa

autoestima. Mas é lógico que para tudo tem uma exceção:

existem também mulheres capazes de coisas terríveis, mas a

maioria dos crimes hediondos foi cometida por pessoas do sexo

masculino. Vejo a meu modo que a humanidade, embora

caminhe para um enorme precipício sem fim, ainda poderá ter

salvação se parar no meio do caminho percorrido, refletindo

sem olhar para trás e começar outro caminho de novo. Difícil

vai ser fazer a humanidade perceber os seus erros, pois o

homem é orgulhoso demais para tal feito, e o diabo sempre terá

a seu favor a vaidade e a luxúria.

Bom, como eu estava contando antes... Os dias pareciam

normais. Consegui pôr mais ou menos as ideias e os

pensamentos em ordem, porque quando amamos alguém, não é

de uma hora para outra que esquecemos essa pessoa. Afinal,

somos seres humanos, e não animais irracionais. Durante muito

tempo, eu sabia que Henrico permaneceria em minha vida.

Certa manhã, acordei muito feliz. Estava me sentindo

disposta a fazer uma caminhada bem cedo, e queria poder pôr

em prática as magias que aprendera em um dos livros sagrados

que Eleanor havia me deixado. Logo que saí da cama, fui à

janela agradecer a Deus por todas as coisas que ele havia me

concedido de bom, e também pelo aprendizado que ele havia me

ensinado através do sofrimento do amor. Senti o vento agitado e

as vozes começaram a gritar dentro da minha cabeça. Sabe

aquelas vozes que gritam dentro de nós e que muitas vezes

chamamos de consciência? Essas mesmo. Alguma coisa no ar

daquele dia não estava correta. A natureza estava agitada, mas

eu, como uma jovem eufórica que era, não dei muita

importância aos meus sentidos de bruxa. Eu achava que embora

a magia fizesse parte da minha vida, não deveria ficar sempre

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tão cismada com os detalhes. E isso é um enorme engano... Uma

vez dentro da magia, ela estará sempre determinada a nos

mostrar tudo o que vai nos acontecer, inclusive ela sempre

tentará nos prevenir contra algum perigo. A magia está e faz

parte de tudo à nossa volta; basta termos a paciência de observar

– o que eu não tinha. Sempre fui eufórica, como já disse, e

preferi dar ouvidos aos meus impulsos de jovem, esquecendo-

me de que Deus mora nas palavras, mas o diabo mora nos

detalhes. Naquele dia, apenas ouvi as palavras que saíam da

minha boca em forma de oração, esquecendo-me de olhar os

detalhes que estavam presentes na natureza. O vento chegava a

soprar dentro dos meus ouvidos. Seus silvos pareciam vozes

clamando para que eu não saísse naquele dia. Era como uma

súplica. Até mesmo o meu corpo já estava dando sinais: meu

estômago tremia e eu estava ficando enjoada. Mas, mesmo

assim, teimei contra meus instintos.

Arrumei-me e fui fazer o café para que minha mãe não

tivesse muito trabalho ao levantar-se. Dei às gêmeas o desjejum

delas e coloquei-as no cercadinho de madeira, para que ficassem

um pouco livres e não incomodassem meus pais, que ainda

dormiam. Ajeitei toda a casa e quando estava saindo à porta, um

prego rasgou a minha saia. Voltei para o meu quarto para trocá-

la e resolvi colocar meu vestido de renda branco. Permaneci

descalça, pois queria sentir as areias em meus pés.

Quando abri a porta, um enorme cachorro negro estava

sentado em frente à porta da sala. Quando me viu, investiu

contra mim, sem nenhuma explicação. Dei um grito e recuei,

fechando a porta de imediato. Meu pai e minha mãe, ao

escutarem, correram e vieram ver do que se tratava. Contei-lhes

que havia um enorme cachorro que não me deixava sair. Porém,

quando meu pai abriu a porta, não havia nenhum cachorro.

Minha mãe, ainda assustada com meus gritos, disse-me:

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– Filha, aonde vai a esta hora?

– Caminhar, como faço todos os dias, ora!

– Mas é muito cedo ainda. Volte para a cama e deixe

esse passeio para mais tarde; quem sabe até para amanhã.

– De jeito nenhum! O dia está maravilhoso demais para

ser desperdiçado. Não se preocupe: sei me cuidar sozinha.

– Sim, eu sei, mas há algo de errado. Meu coração está

dizendo para pedir a você que não saia.

– Ouça sua mãe, Emanuelizia. Ela sempre tem razão.

Além do mais, não vejo nenhuma sangria desatada para que

você saia tão cedo de casa. Talvez esse suposto cachorro que

você diz ter visto seja um aviso, ou vai ver é um animal com

raiva que fugiu de alguma fazenda da redondeza. Volte para

cama e deixe suas andanças para mais tarde.

Coloquei cada uma de minhas mãos sobre aqueles rostos

preocupados e falei:

– Meus queridos e amados pais, agradeço pela

preocupação dos dois. Sério mesmo. Mas sempre saio antes,

mesmo que o senhor acorde, meu pai. Gosto de caminhar a esta

hora da manhã, fico em paz com o meu coração e ponho as

ideias em ordem. Desculpe, minha mãe, mas a senhora está

sendo protetora demais. Não se preocupe comigo, pois nada irá

me acontecer.

Dizendo isso, saí, deixando minha mãe com o semblante

preocupado e meu pai dando de ombros, voltando novamente

em direção à sua cama. Eu os amava, mas nem mesmo eles

conseguiam colocar-me rédeas – o que é um erro, pois os pais,

por mais inconvenientes que sejam, sempre sabem o que é

melhor para nós. E acreditem: toda mãe tem mesmo um sexto

sentido aguçado quando se trata dos filhos.

Aprendi isso com o tempo, assim como todos os jovens

aprenderão que há tempo para tudo nesta vida e não adianta

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correr querendo antecipar as coisas, pois tudo acontece na hora

e no momento em que tem que ser. Se eu tivesse ouvido o

conselho de minha mãe, ficando em casa naquele dia, nada

teria ocorrido de ruim a mim. Mas não, eu quis correr para

resolver coisas que poderiam muito bem esperar para serem

resolvidas em outra ocasião. A juventude tem o sério problema

de antecipar as situações, correndo contra o tempo que não sai

do lugar. Tolice ou fome de viver intensamente, não sei bem o

que é – mas, com certeza, é um erro.

A manhã estava linda. Gaivotas sobrevoavam o mar em

busca de peixe, dando voos rasantes e certeiros. Observei-as por

momentos a fio, pois aqueles movimentos davam-me enorme

sensação de liberdade. Ao longe, pescadores jogavam suas

redes. Levantei a saia para colocar meus pés sobre as águas

geladas. O mar ia e vinha, trazendo uma grande quantidade de

conchinhas coloridas, deslizando por entre meus dedos. Fiquei

de braços cruzados com as sandálias nas mãos, admirando o

esplendor do nascer do sol daquela manhã de primavera. Seus

raios surtiam um efeito furta-cor, misturando-se com o verde das

montanhas, ao longe. Devia ser cinco e meia da manhã, pois o

sol ainda estava muito longe de despontar totalmente no

horizonte. Nunca poderia imaginar que uma paisagem

harmônica e de magistral beleza pudesse ser o cenário para a

minha degradação como mulher e ser humano. Confesso que

havia horas em que eu sentia como se alguém estivesse me

observando, mas não dei, mais uma vez, valor às minhas

intuições, achando que poderia ser uma autossugestão da minha

mente infantil e ainda assustada pela sombra de Henrico.

Caminhei até bem perto das cavernas, afastando-me cada

vez mais de minha casa e ficando em local deserto,

desprotegida. Sentei-me em um rochedo e deixei que o sol

tocasse meu corpo. Suspendi a saia do meu vestido até as coxas,

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para que o sol também as tocasse. Eu gostava de ter esse contato

com a natureza. Suspendi os braços para cima e fechei os olhos.

Pensava em adormecer um pouco. O silêncio era quase total,

mas ouvia-se ao longe o som das ondas quebrando as pedras,

embalando-me como uma cantiga de ninar. Senti-me leve e em

paz com o mundo. De vez em quando, uma leve brisa tocava o

meu corpo quase desnudo, fazendo-me arrepiar. Isso seria mais

um sinal de alerta, se eu não estivesse tão absorta dentro de mim

mesma! Eu não tinha nenhuma maldade em mente. Não pensava

absolutamente em nada. Só queria viver aquele momento de paz

e solidão, esquecer-me dos meus problemas e descarregar as

energias negativas, jogando-as na natureza e refazendo o meu

xacra. Repor as energias era tudo o que eu precisava, pois minha

vida espiritual e sentimental estava em desordem.

De repente, senti uma mão grossa e áspera tocar em um

dos meus tornozelos. Abri os olhos espontaneamente,

encolhendo as pernas por debaixo das saias, num ato de defesa.

Havia na minha frente um homem completamente

desconhecido. Ele estava sujo e bêbado e, ao ver-me despertar,

falou:

– Que belo par de tornozelos tem a Gadijá. Vou adorar

saborear uma ovelhinha assim tão fresca pela manhã... Acho que

nem vou esperar que meu amo venha e desfrute primeiro.

Assustada, pedi que ele fosse embora. Porém, ele

respondeu sorrindo, com a boca que mais parecia um fóssil, pois

nunca vi em toda a minha vida hálito tão fétido:

– Embora para onde, ovelhinha? Não tenho que ir a lugar

nenhum, Gadijá, agora que estou bem aqui, admirando a beleza

e a formosura da pequena ovelhinha que vou ter o prazer de ter

como prato principal hoje pela manhã... Não tenho a menor

intenção de ir a lugar nenhum.

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Adriana Matheus

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– Se o senhor não for embora, vou gritar e logo virão os

pecadores para me salvar.

– Ninguém poderá ouvi-la, Gadijá! Estamos no meio de

uma encosta deserta. – dizendo isso, ele começou a gritar para

mostrar-me que ninguém podia ouvir-nos.

O homem era horrível: sem dentes, barbudo, camisa

aberta e calças arregaçadas. Fiquei aterrorizada e levantei-me,

tentando fugir daquele homem que tinha nos olhos duas caveiras

em vez do brilho tradicional. Ele era a morte e eu sabia disso.

Deslizei sobre as pedras. Já havia escapado dos rochedos

quando mais dois outros homens cercaram-me.

– Aonde a menina pensa que está indo? – disse um deles,

cujo hálito parecia a maresia do oceano em estado de ressaca.

Eles estavam todos embriagados. Nenhum deles via água

há muito tempo. O mau cheiro de seus corpos dava-me a

impressão de que havia morrido um animal por perto.

Desesperada, perguntei também aos outros dois que tinham

acabado de chegar:

– Por favor, o que vocês querem? Meu pai é conhecido

por toda a vila e logo estará aqui à minha procura. Vão embora

ou deixem-me passar! Eu nada lhes fiz! – disse isso com as

lágrimas presas na garganta.

Um dos homens, que mascava uma espécie de fumo ou

coisa assim, respondeu-me muito mal-humorado:

– Sabemos quem é o senhor seu pai, Gadijá. E também

sabemos que ele acabou de sair para o alto-mar e só vai voltar

daqui seis meses. Também sabemos que a Gadijá gosta de andar

pelas encostas, exibindo e oferecendo-se como uma mundana.

Quando dei por mim, estava cercada pelo homem

barbudo e dois outros. Não sei de onde surgiram mais três

outros. Creio que surgiram do inferno, que é de onde devem ter

saído todos. Era um negro, um que escondia o rosto debaixo de

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uma touca velha e encardida, e um que parecia que havia tido as

faces esfoladas ou algo assim. Seu apelido era Cicatriz. Ele

parecia ser o mais velho de todos. Além das cicatrizes que tinha

nas faces, seu corpo era coberto por inúmeras úlceras.

Eu estava em pânico, encurralada entre as pedras e os

seis homens. Minha voz estava saindo como um fio, pois a

minha garganta estava seca. Eu lhes implorei para me deixarem

ir. Cheguei a ajoelhar na areia, mas de nada adiantou. Apenas

parecia que os excitava ainda mais. Foi quando um deles pegou-

me pelos cabelos e arrastou-me sem mais nem menos pelas

areias. Eu gritava e esperneava, mas não adiantava: estávamos

no meio do nada, muito além da encosta e da população.

Rasgaram-me as vestes de cima e fiquei seminua, exposta a todo

o tipo de barbárie e deboche. Eles fizeram um círculo em volta

de mim e ficaram zombando de mim: horas diziam que era

muito magra, horas diziam que eu estava pronta. Cuspiram em

mim, chutaram-me, jogaram bebida em cima de mim, atiram-me

areia. Debocharam da minha religião, dizendo que uma bruxa

tinha que ser iniciada dentro de um círculo. Foi quando o mais

velho de todos, o que tinha o corpo coberto por úlceras,

aproximou de mim, fazendo-me beber aguardente. Cuspi longe;

não estava acostumada a beber. Ele, porém, fez-me engolir o

líquido de uma só vez, tampando o meu nariz com aquelas mãos

imundas. De repente, minha cabeça começou a girar e me senti

muito mal. Tudo e todos à minha volta começaram a girar e a

minha visão ficou nublada. O homem mais e mais me fazia

beber aquele líquido. Foi quando percebi uma presença amiga e

levantei-me, indo na direção de Henrico. Eu o abracei, dizendo:

– Graças a Deus, meu amor, você está aqui. Salve-me

desses homens; diga-lhes que sou boa pessoa e que não fiz nada

para provocá-los.

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Adriana Matheus

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Todos à minha volta riram das minhas palavras, que

saíram balbuciadas e desconexas por causa da bebida. Henrico

também estava alcoolizado, pois pude sentir em seu hálito. Ele

me pegou pelos ombros brutamente, afastou-me de seu rosto e

disse, sacudindo-me como um saco de estopa:

– Como você quer que eu acredite em você, se está

totalmente nua, andando por uma praia deserta em roupas

íntimas?! Eu a avisei sobre este seu comportamento inadequado

a uma dama. Como você quer que eu proceda mediante a cena

que acabo de presenciar?

Embora estivesse tonta, não conseguia acreditar no que

ele estava dizendo. Afastei-me dele e respondi:

– Eu devia saber que isso era coisa sua! Você está

tentando me humilhar por causa da surra que o meu primo deu

em você. Você não passa de um covarde, Henrico! Esperou o

momento certo para se vingar de mim. Esperou até que eu me

encontrasse indefesa e desprevenida para mostrar suas garras.

Eu o odeio e o desprezo a cada segundo! Você não é um

homem; é um verme.

Enfurecido, Henrico esbofeteou-me, fazendo com que eu

caísse na areia. Enquanto desabotoava a braguilha, ele ia

dizendo:

– Seu primo ou seu amante? Sei muito bem que você me

desprezou porque aquele homem é seu amante. Você gosta mais

dele porque ele é rico e eu sou... apenas um cigano sujo, não é?

Percebendo o que ele iria fazer, supliquei, desesperada:

– Henrico, pense no que você vai fazer. Todos vão caçá-

lo na vila como um animal. Por favor, Henrico, não faça isso...

Você está bêbado! Não acredite no que esses homens colocaram

em sua cabeça! Eles estão errados sobre mim. Eu o amo e foi

você quem me humilhou, Henrico. Por favor, eu suplico em

nome de Deus, não faça isso comigo! Não contarei a ninguém

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sobre o acontecido hoje, mas, por favor, deixe-me ir embora, por

favor!

Nada do que eu disse a Henrico adiantou. Ele estava fora

de si. Talvez eu não devesse tê-lo ofendido ainda mais no estado

em que ele se encontrava. O fato é que Henrico violentou-me na

frente daqueles seis homens, que seguravam os meus braços e

pernas para que eu não me debatesse ou fugisse. Eu nada pude

fazer. O quanto pude lutar, lutei, mas meus arranhões não

surtiam efeitos. Minha boca, certa hora, foi amordaçada, para

que eles próprios não ouvissem meus gritos. Eu vi o rosto de

cada um de meus algozes e jamais me esqueci deles. Enquanto

não me vinguei de um por um, não descansei em paz. Houve

certo momento em que minha mente inconsciente desligou-se do

mundo e dos fatos que estavam ocorrendo. Eu, porém, não perdi

a consciência de imediato: permaneci acordada, mas era como

se aquelas pessoas estivessem muito longe, pois suas vozes às

vezes tinham som de ecos! Quando Henrico acabou de saciar

sua loucura, jogou-me para o lado como um objeto sem nenhum

valor dizendo:

– A vaca era mesmo virgem.

Aí foi a vez dos outros seis marginais que se deleitaram

com meu corpo, até que eu realmente perdesse a consciência. E

assim foi sucessivamente, um por um, até que todos estivessem

saciados. Fui estuprada brutalmente, de todas as formas

possíveis e impossíveis. Alguns deles mordiam meus seios e

membros, chegando a rasgar minhas carnes, como animais

vorazes e famintos. Henrico assistiu a tudo e nada fez. Sete

homens cometeram comigo o mais hediondo de todos os crimes

cometidos contra o ser humano. Eles só pararam quando

pensaram que eu estava morta. Senti minha alma deixar o corpo

e assisti a tudo o que ocorreu comigo. Vi quando um deles

chutou-me para ver se eu reagia. E como isso não aconteceu, ele

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disse a Henrico que eu estava morta. Ele foi tomado por uma

espécie de pânico. Os demais, porém, puxaram Henrico, tirando-

o para fora daquele local. Meu corpo permaneceu ali, jogado ao

vento, e foi despojado como um objeto sem valor. Ninguém viu

o fato ocorrido, porque estávamos em praia deserta. Tive apenas

o sol como testemunha daquela barbárie. Meu espírito estava

demasiadamente apavorado e com medo de voltar para o meu

corpo. Minha alma caminhou sozinha por horas pela praia

deserta, até que vi a besta parada, sorrindo-me:

– Você tem duas opções: ou vem agora como está para

mim, ou vinga-se de seus algozes, chamando-me para que eu a

sirva, minha rainha.

Fiquei desesperada, mas sentia uma fraqueza anormal.

Percebendo o meu estado, a besta disse:

– Não poderá ficar muito tempo fora do seu aparelho,

minha rainha. Faça sua escolha.

Olhei-o nos olhos e respondi:

– Vou me vingar de meus algozes. Espere que voltarei a

chamá-lo. Aí, se realmente ajudar-me em tudo o que eu lhe

pedir, poderá levar para o seu reinado corpo e alma.

A besta deu uma gargalhada que estremeceu o inferno e

desapareceu, dizendo:

– Que assim seja!

Senti meu corpo cansado. De repente, meu espírito foi

puxado de volta para o meu aparelho, estirado como morto ao

chão. Senti as ondas batendo em minhas faces, despertando-me

daquele sono de quase morte. Levantei assustada, meu corpo

todo doía e ardia por causa das águas salgadas do mar que

tocavam nas diversas feridas que tinham em meu corpo. Por

várias vezes, tentei levantar, mas foram inúteis minhas

tentativas, pois estava muito machucada e havia perdido muito

sangue. Pude verificar o meu estado deplorável, olhando-me no

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espelho das águas que se empoçavam entre as pedras. Dei-me

conta de ser outro dia quando o sol tocou fortemente em meus

olhos. Então, pude perceber que eu não havia sonhado: eu havia

feito um acordo com a besta. Ele havia vencido finalmente! Eu

não voltaria atrás e sabia quais seriam as consequências. Estava

disposta a tudo. Tentei levantar-me novamente e vomitei toda a

bebida que estava dentro de mim. Junto a ela saiu sangue.

Chorei desesperada de dor e revolta até que finalmente consegui

forças para ficar de pé. Entrei no mar para lavar aquela vergonha

e o cheiro daqueles malditos que ainda estava impregnado no

meu corpo. Gritei de ódio tão alto quanto pude: queria vingança.

Meu choro e meus gritos se misturavam com o barulho das

ondas do mar. Ele parecia querer absorver a minha cólera.

Voltei para a areia muitas horas depois. Peguei minhas

roupas rasgadas que estavam espalhadas por toda a praia e,

depois de me vestir, caminhei quase me arrastando até a minha

casa. Devo ter demorado umas três horas, até que consegui

chegar lá, finalmente. Minha mãe estava preocupada comigo e

estava me esperando na varanda. Ao ver-me, ela foi correndo ao

meu encontro. Pela primeira vez, não me interrogou, apenas me

socorreu. Levou-me para o meu quarto, tirou minhas roupas e

banhou-me. Cuidou de mim sem uma palavra a dizer. Depois,

quando eu estava mais calma, contei a ela o que me aconteceu.

Ela chorou junto comigo. Jurou-me que nunca iria contar ao

meu pai.

Depois, ela saiu e foi buscar o médico. Ele ficou

horrorizado ao ver-me toda machucada. Doutor Helvécio fez

minha mãe dar parte à milícia. Henrico e seu povo foram

caçados, mas não foram localizados, porque haviam levantado

acampamento dias antes. Ele tinha feito tudo de caso pensado.

Doutor Helvécio, induzido por minha mãe, apenas disse que

fora um ataque e não um estupro. Ela fez isso para evitar que

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meu pai soubesse, pois sabia o quanto os homens eram

machistas e não acreditariam que fui violentada. Diria que eu é

quem era a culpada, e isso poderia me causar transtornos,

porque por certo me acusariam de prostituição. O doutor

continuou indo à minha casa, até que a febre baixou. Em alguns

ferimentos foi preciso dar pontos. Inúmeras cicatrizes ficaram

no meu corpo, mas a da alma era a maior de todas.

Conversando com o doutor Helvécio, ele disse,

percebendo que eu estava envergonhada por ele estar vendo

minhas cicatrizes:

– Não se preocupe, minha filha. Logo elas sumirão,

assim como todos esquecerão esse fato lastimável que ocorreu

com você. Vai ver: o tempo sana até as cicatrizes mais

profundas.

Olhei-o bem fundo nos olhos.

– Engana-se, doutor. Quem bate esquece, mas quem

apanha tem que conviver com as cicatrizes. Ele simplesmente

baixou a cabeça e disse:

– A senhorita está muito amargurada e revoltada. Eu a

entendo, mas tente esquecer, pois o ódio nos cega para as

verdades da vida. Não deixe de viver por causa daqueles

malfeitores. Abra seu coração, que ainda é muito jovem, e verá

que um novo amor aparecerá.

– Não, o senhor não me entende. Nenhum homem pode

entender o que uma mulher sente mediante a situação por que

passei. Acredite, doutor: nem que eu viva por toda a eternidade

não perdoarei aqueles homens.

– Minha filha, eu sei, mas acredite: é melhor para você

mesma tentar superar isso. Eles são homens fora da lei. Deixe

que a justiça se faça e os procure. O que uma jovem frágil como

a senhorita poderá fazer contra tantos homens? É melhor se

acalmar.

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Olhei friamente e sorri entre lábios. Percebendo que não

me convenceria facilmente, ele saiu, deixando-me sozinha. Ouvi

quando ele falou atrás da porta com a minha mãe que eu não

estava bem e que as minhas palavras frias e revoltosas o

preocupavam. Na verdade, ele era como os demais homens –

machista –, pois queria que eu me passasse por uma mulher que

sofria dos nervos. Ele até sugeriu que eu fosse internada em um

hospital para loucos. Como eu queria me vingar de todos

aqueles que me fizeram mal, resolvi, então, agir de forma

cautelosa e conveniente à sociedade machista que me cercava.

Planejei cada detalhe, cada situação. Estudei mais a fio a magia

negra e comecei a colocar em prática os feitiços que ia

aprendendo. Cheguei ao ponto de poder conseguir hipnotizar os

animais e adquiri uns para o meu controle pessoal. Aprendi a

usar o fogo como um aliado. Ele me ouvia e recebia minhas

ordens.

Os dias foram se passando e fui me tornando cada vez

mais e mais uma pessoa possessiva e obstinada. Porém, alguma

coisa em meu corpo estava errada e minha mãe também

começou a notar: eu estava grávida. E precisava esconder aquela

criança antes que meu pai descobrisse. Caso contrário, seria o

fim de tudo, de todos os meus planos de vingança. Durante

algum tempo, minha mãe apertou-me em um espartilho

sufocante. Era horrível ter que andar com aquele instrumento de

tortura usado como uma forma de vaidade. Os enjoos eram mais

preocupantes, pois não eu tinha como escondê-los. Seis meses

se passaram e, finalmente, meu pai chegou do mar. Meu corpo

estava bastante mudado. Ele, logo que chegou, comentou ao ver-

me:

– Parece que alguém andou comendo além da conta

nesta casa. Houve alguma novidade enquanto eu estive fora?

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– Não, José, lógico que não. O que poderia ter

acontecido neste lugar esquecido por Deus? – respondeu minha

mãe, tentando mudar o rumo daquela conversa.

– Não diga tolices, mulher. Nenhum lugar é esquecido

por Deus. Agora, se houve alguma coisa enquanto estive fora, é

melhor que me contem, pois não quero ser o último a saber. Não

gosto de surpresas.

– Ora, pai, o senhor está com cismas, como sempre!

Vamos, levo suas coisas para o quarto.

– Pode ser, mas há algo no ar que não combina com o

cotidiano dessa família. – disse ele, meio desconfiado e dando

continuidade a novidades que chegaram junto com ele.

– Seu irmão Pietro está vindo nos visitar e disse que

Eulália virá e trará a pequenina com ela.

– Que felicidade! Estou morrendo de saudades dos meus

filhos, e estou louca para rever a minha netinha. Quando virão?

Prepararei um almoço de boas-vindas para Pietro – disse minha

mãe, parecendo entusiasmadíssima.

Tratei logo de sair à francesa antes que a atenção se

voltasse para mim novamente. Levei as malas para os aposentos

de meus pais, fugindo também daquela conversa que nada me

interessava. O fato é que eu estava com seis meses de gestação e

não daria muito mais para esconder a barriga, que só crescia. O

quanto mais longe dos olhos de meu pai eu ficasse, melhor seria.

Já que eu não podia mais usar o espartilho, minha mãe usava

faixas muito apertadas em mim. Porém, ficava muito difícil para

eu respirar – o que me causava diversos enjoos, tonturas e muito

mal estar.

Naquele dia, fui para o meu quarto e fiquei olhando a

minha barriga no espelho de metal. Eu estava amando a ideia de

ser mãe, embora estivesse com um ódio de tudo o que ocorrera

comigo. Não queria passar para aquele pequeno inocente nada

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de negativo. Então, resolvi dar uma trégua naquele sentimento

vil.

Passei aqueles seis meses tecendo e costurando

roupinhas para o meu bebê, que seria muito amado ao nascer.

Fiz diversas coisas, entre mantas, camisas e sapatinhos. Eu tinha

certeza que seria uma menina e se chamaria Elizia. Eu faria de

tudo para que aquela criança não passasse peles horrores por que

passei. Estava disposta a protegê-la com a minha vida, se assim

fosse preciso.

Os dias não seguiram tranquilamente, pois eu e minha

mãe tínhamos que falar as coisas escondidas para que meu pai

não nos ouvisse. Ficávamos alerta o tempo todo, com receio de

que, de uma hora para outra, ele descobrisse tudo.

No sábado pela manhã, ele saiu e foi até a cidade buscar

minha irmã, a filha dela e o meu irmão. Eu e minha mãe fomos

para o meu quarto. Ela estava me ajudando a desenrolar a faixa,

pois estava me estrangulando a cintura. E, no exato momento

em que falávamos e apalpávamos a minha barriga, minha irmã

entrou sem pedir licença quarto adentro e, ao ver a cena, ela

parou diante de mim com a filha nos braços e disse,

cinicamente:

– Então não sou mais a única desfrutável da família?!

Pelo menos me casei com o homem que amo. E você? De quem

é esse bastardinho que carrega no ventre? Quem sabe é do meu

marido? Pois fiquei sabendo que ele veio visitá-la... Diga-me,

anda: quem é a suja da família agora?

Indignada com aquela atitude, respondi:

– É muito bom saber que você é feliz à custa da minha

desgraça. Quero que saiba que Maxuel nada tem a ver com o

que aconteceu comigo. Saia do meu quarto, antes que eu a

degole com as próprias mãos, que é o que já deveria ter feito,

sua peste!

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– Creio que não deveria falar desse jeito comigo, minha

irmã. Afinal, aposto que papai não sabe que carrega no ventre

um bastardinho. E quanto ao meu marido, acredito em você,

pois sei o quanto ele me ama e me é fiel. E você, ora, não teria a

capacidade de seduzir homens de classe como o meu marido...

Aposto que esse bastardinho deve ser de algum pobretão sujo

com quem você se misturou.

Passei a mão em um bibelô em forma de dama e na hora

em que eu ia atirar nela, minha mãe me conteve, dizendo:

– Parem já com isso! Eulália, vai me prometer que não

vai contar nada a seu pai. E você, Emanuelizia, que desgraceira!

Poderia ter acertado a pobre criança, que nada tem a ver com a

guerra fria de vocês duas! Então, Eulália? Creio que deva isso a

sua irmã. A única coisa que lhe peço é que fique em silêncio.

Acho que é melhor sair daqui agora. Converso com você lá fora.

– Mas, mãe, não é justo com o papai!

– Você está preocupada com o seu pai? Ora, não gosta de

ninguém, Eulália! E só pensa em si mesma! Saia daqui agora e

espere-me lá fora, que nos falaremos já.

Era a primeira vez que via minha mãe ficar nervosa com

Eulália, que se retirou do quarto, resmungando. Ao menos tive

tempo de respirar aliviada novamente, mesmo que por instantes.

Parecendo perceber a minha preocupação, minha mãe falou:

– Não se preocupe: vou conseguir reverter essa história e

conter Eulália. Ela tem mais a perder do que imagina. Caso fale

alguma coisa, saberei como devo prosseguir.

– Tomara que sim, minha mãe, pois agora estamos as

duas nas mãos dessa cobra que a senhora chama de filha.

– Saberei como agir. Confie em mim pelo menos desta

vez, está bem?

– Está bem.

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Disse isso lhe dando um abraço e colocando ponto final

naquela conversa, que me deixou intrigada, pois fiquei

imaginando como minha mãe poderia ter algo que pudesse

conter a intriga de minha irmã. Ela saiu e fiquei no quarto. Por

certo meu pai pensaria que era devido à presença de Eulália na

casa e, por não querer vê-la, tranquei-me no quarto. Se ele

soubesse... colocar-me-ia para fora de casa como um cão

sarnento. Senti-me impotente mediante a minha frágil situação.

Tive saudades de Maxuel. Ele era a única pessoa que me ouvia.

Senti, naquele momento, certo arrependimento de não tê-lo

aceitado. Talvez a velha bruxa Eleanor estivesse certa: eu nunca

soube o que era o amor, talvez ele estivesse estado ao meu lado

o tempo todo e eu não o enxerguei porque só pensei na minha

família. Arrependia-me amargamente por ter insistido em ter

Henrico. Por trás daquela bela aparência, ele era um monstro.

Eu o odiava, e somente a lembrança de um dia ter sido tocada

por aquelas mãos causava-me náusea. Eu não via a hora de ter o

meu bebê em meus braços. Assim que aquele inocente tivesse a

salvo, eu me vingaria de meus algozes, um a um. Estava presa a

uma mistura de sentimentos entre a nostálgica lembrança de

Maxuel e os horrores que me causaram Henrico e seus

comparsas.

Nunca devemos deixar que as emoções tomem conta da

gente, pois elas nos fazem perder a razão e cegam os nossos

sentidos. As emoções são como cavalos selvagens. Por minha

vez, estava muito longe de saber o que era certo e errado. O ódio

e a cólera estavam impregnando em minhas entranhas e estavam

se espalhando com um vento forte, derrubando todas as coisas

boas que havia dentro de mim. Mesmo que todas as pessoas do

mundo falassem em minha cabeça, mesmo que o céu caísse, eu

não ouviria ninguém e nada. Porque o ódio é assim: ele chega e

abre caminhos em nossa alma e vai crescendo como uma

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pequena semente, e depois se espalha como fel pelo sangue.

Parei com aqueles pensamentos negativos, pois meu bebê havia

chutado e me fez esboçar um largo sorriso de prazer e

satisfação. Aquele pequeno ser era a única coisa de bom que a

vida tinha me reservado. Eu não me importava com quem era o

pai. Apenas sabia que queria amá-la mais que tudo. Aquela

criança, mesmo sem saber, trazia-me esperança e felicidade.

Talvez por ela eu até fosse capaz de esquecer tudo e todos que

me prejudicaram.

Enfaixei novamente a barriga, pois não queria ser pega

de surpresa. Estava com muita fome e minha mãe ainda não

havia trazido a minha refeição no quarto. Então, decidi sair e

almoçar no meio de todos. Quando eu já estava pronta para

pegar na maçaneta, minha mãe entrou, trazendo o almoço para

mim.

– Pensei que havia se esquecido de mim! Estou faminta.

Comeria um leão.

– Estava esperando seu pai ir lá para fora com Maxuel.

Ele foi mostrar o novo barco que está ancorado no cais para

Eulália e Maxuel. Imagine: se desencontraram no meio do

caminho porque Eulália quis vir na frente, antes do marido.

– E Pietro, por que não veio me ver? Aquele ingrato não

se lembra mais de que tem outra irmã? Ficou bem de vida e

esqueceu-me, por certo que é isso.

– Não diga sandices. Seu irmão Pietro só chega no trem

de amanhã. – disse ela, colocando minha refeição sobre a minha

mesinha de cabeceira, parecendo não dar muita importância às

minhas lamúrias.

– Sério? Em que horário o trem dele chega?

– Sim, chega no trem de meio-dia.

– Fico tão feliz por saber que ele vem amanhã! Por que

não veio hoje? Aconteceu alguma coisa?

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– Parece que ele vai trazer a noiva com ele. Como ela

mora em Londres, ele foi buscá-la antes. Os pais dela tinham

que dar uma autorização para que ela viesse junto com ele.

Parece que são de uma família muito rica e tradicional de

Londres. Pietro sempre foi um bom moço. Merece ser feliz.

– Quer dizer que está noivo? Meu Deus, o tempo passou

e não percebi. Sinto tantas saudades do meu irmão!

– Sim, o tempo passou para todos nós, Emanuelizia. Mas

você só se preocupou em sentir ódio em seu coração. É por isso

que não percebeu isso ainda. – disse ela, enquanto ajeitava

minha cama.

Sentei-me em um banquinho que ficava ao lado da

mesinha de cabeceira e comecei a comer. Não retruquei com

minha mãe, pois ela estava certa, como sempre. Enquanto

degustava a comida, fiz-lhe uma pergunta que não queria calar

dentro de mim:

– Mãe, por que a senhora hoje mais cedo disse que sabia

de uma coisa que faria Eulália se calar? Isso é sobre mim?

Porque, ser for, quero que me conte.

– Não é nada demais; apenas uma coisa que pode fazer

Eulália ficar mais preocupada com o casamento dela do que com

o seu... Estado delicado, digamos assim.

– E o que eu tenho a ver com essa história? Porque

percebo que tenho muito a ver com isso.

– Eu não deveria contá-la... – disse ela, parando de

recolher a roupa suja.

Sentou-se calmamente à beira da minha cama e

prosseguiu:

– Percebo que se não lhe contar, não vai me dar sossego

nesta vida, não é? Da última vez em que Maxuel veio visitá-la,

quando ele foi embora, ele ficou uma boa parte do tempo na

varanda comigo. Naquele dia ele me confessou que o casamento

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dele com Eulália não andava bem, que dormem em quartos

separados desde o dia da lua de mel. Ele trata sua irmã apenas

como a progenitora de sua filha e nada mais. Ele me contou que

Eulália, por sua vez, persegue-o com inúmeras acusações e

ciúmes. A vida de Maxuel tornou-se um inferno. Ele diz que

vira e mexe ela toca em seu nome, acusando-a de ser você a

causa de a vida deles não dar certo. Ela a culpa por causa da

praga que lançou naquele fatídico dia, mas essa não é a forma

que usei para conter Eulália.

– E o que a senhora usou para contê-la?

– Maxuel confessou que ainda a ama e que na hora que

você quiser, ele foge com você. Ele veio até a mim para pedir a

minha bênção. Ele disse que iria lhe propor isso. Ele não lhe

comentou nada?

– Não... Acho que sei o porquê: ele me convidou para

caminharmos pela praia. Parecia mesmo estar querendo falar-me

algo, mas eu, como sempre, com essa mania de sempre querer

antecipar as coisas, achando que o que ele queria falar comigo

era sobre ele e Eulália, acabei contando-lhe sobre o meu mau

relacionamento com Henrico e, nesse momento, ele me abraçou,

tentando consolar-me. Foi quando Henrico chegou, ofendendo-

me sem mais e nem menos. Foi aí que Maxuel investiu para

cima dele. O resto a senhora já sabe. Depois desse dia, Maxuel

veio poucas vezes aqui em casa. Mas sempre na sua presença,

ele mal falou comigo novamente e depois sumiu. Achei que ele

não voltou mais porque não queria mais nenhum envolvimento

com aquela história que se passou comigo. Ele comentou

comigo que o casamento dele ia mal. Eu o achei triste, mas

nunca pensei que ele estava disposto a voltar e a fugir comigo!

– Foi melhor assim. Ele tem que tirar da cabeça essa

ideia de querer você só para ele. O que passou e o que está feito,

está feito. O fato é que usei o amor dele por você para conter

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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Eulália. Eu disse a ela que se ela não se preocupasse mais com o

casamento dela e com o sentimento que ainda existia entre

vocês, que ela acabaria perdendo o marido. Confesso que ela

ficou furiosa. Queria saber se eu sabia de alguma coisa entre

vocês. Respondi que não havia nada, mas que se ela não parasse

com toda aquela loucura de querer se vingar de você, o

casamento dela acabaria porque ela só estava colocando mais

lenha na fogueira. Eu disse que se ela contasse ao seu pai, você

aceitaria a proposta que Maxuel lhe fizera, pois ele estava

disposto até a assumir o seu filho. Lógico que ele ainda não sabe

disso, mas ela não precisa saber desse pequeno detalhe.

– Mãe, a senhora é cheia de artimanhas... Nunca

imaginaria uma história como esta para me defender de Eulália!

E depois a bruxa sou eu?

– Não sou uma bruxa, mas também não poderia permitir

que sua irmã cometesse mais uma injustiça com você. Ela já

conseguiu o que queria; já é o bastante. Sei que você não é a

filha que sonhei, porque agora carrega esse pecado consigo. –

disse ela, apontado para o meu ventre – Mas não poderia

permitir que seu pai a pusesse para fora de casa por causa das

intrigas de sua irmã. Você ainda é minha filha e não importa

quantos erros tenha cometido. Não vou julgá-la, porque isso só

cabe a Deus, e sei que lhe ensinei tudo corretamente. Tenho

minha consciência tranquila; sei que você não mentiu para mim

quando disse que foi atacada por aquele bandido e seus amigos.

O que temos de fazer agora é tentar esconder ao máximo de seu

pai, porque aí, sim, ficaremos as duas muito encrencadas.

– Obrigada por tudo, mãe, mas tenho que pensar como

faremos quando o bebê nascer. Não consigo dormir direito mais.

Essa situação está me tirando do sério.

– O melhor a fazer é rezar e pedir muito a Deus que faça

seu pai viajar o quanto antes. Fiquei sabendo que tem uma

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viagem atrasada e que ficarão em terra muito pouco tempo esse

semestre, talvez menos de dois meses. Se isso acontecer,

poderemos dizer que alguém abandonou essa criança em nossa

porta. O fato de ele aceitar ou não já será outra história. Agora,

deite-se um pouco e repouse. Vou levar este prato para a

cozinha e fazer a sala para Maxuel e sua irmã, ou corremos o

risco de seu pai entrar sorrateiramente e ouvir o que falamos.

Encerramos aquela conversa. Deixou-me admirada saber

a esperteza da minha mãe – que, para mim, era até então apenas

uma mulher humilde e submissa, sem voz ativa. Aprendi minha

primeira lição: dar a todos o seu ouvido e a poucos suas

palavras – ou seja, falar somente o que é necessário, quando

assim for necessário.

No dia seguinte, meu irmão Pietro chegou de viagem e

veio nos ver, trazendo consigo a noiva Joaquina. Era uma jovem

muito branca, de olhos azuis e cabelos muito negros, miúda e de

aparência bem frágil. Muito gentil e simpática, ficamos logo

amigas. Não contei a Pietro sobre minha gravidez. Não queria

aborrecê-lo, pois só ficariam uma semana e depois voltariam

para Londres. Aproveitei ao máximo a estadia de Pietro e

conversamos muitas coisas. Ele estava tão feliz! Estava na

faculdade de medicina e estava trabalhando em uma das fábricas

de Maxuel como administrador. No sábado, eu e minha mãe

fomos levá-los à estação de trem. Minha mãe chorou muito ao

vê-los partindo. Meu pai ficou na cidade, enquanto eu e minha

mãe voltamos para casa de charrete. Estava louca para chegar

em casa. O movimento da charrete estava me fazendo muito

mal.

Ao chegarmos em frente de casa, quis ser a primeira a

descer e arrisquei dar um pulinho no chão. Foi quando senti uma

pequena dorzinha ao lado da barriga e percebi que um pingo de

sangue caiu ao chão. Minha mãe correu para dentro comigo,

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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sentou-me à poltrona e foi, em seguida, para a cidade, buscar o

médico. Ele chegou meia hora depois com ela. Eu estava

chorando de tanta dor que senti. Imediatamente, ele disse ao ver-

me:

– A senhorita está grávida e como ousa usar essas

faixas? Está prejudicando a criança.

Ele me levou para o meu quarto, fez-me desenrolar as

faixas e fez toques para saber se o bebê estava bem. Tirou o

estetoscópio do ouvido e disse:

– Sua situação é muito delicada e não poderá mais usar

esta faixa amarrando a barriga.

– Mas, doutor, se meu pai souber, vai me matar! Ou o

que é pior: vai me expulsar de casa, serei banida do meio da

minha família, e o que farei? Sem um teto para morar, com uma

criança nos braços, ninguém vai me dar guarida. Serei

considerada uma mundana, e meu pobre filho será mal visto

também. Desculpe, doutor, não consigo ver outra maneira a não

ser continuar enfaixando a minha barriga para que o meu pai

não descubra que estou grávida. Não posso arriscar ser pega de

surpresa antes que meu pai viaje. Eu e minha mãe temos um

plano. Mas, até lá, essa é a única coisa a ser feita.

– Só tenho a dizer que se você não obedecer às minhas

ordens, matará o seu bebê. Quanto ao seu pai, creio que já

deveria tê-lo contado antes. A pior coisa para um homem é a

sensação de ter sido enganado dentro de sua própria casa.

Talvez se a senhorita tivesse lhe contado, teria evitado danos

futuros. Desculpe-me, mas está sendo egoísta com o seu próprio

filho pensando desta forma. Se a senhorita colocar a faixa

novamente, vai perder este bebê. Pense um pouco em seu filho,

senhorita, porque para mim só está preocupada com a reação do

seu pai. A mim não interessam as reações dele em relação à

senhorita. O que me preocupa neste momento é que a senhorita

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está perdendo muito líquido. Pense um pouco, senhorita: esse é

o preço que terá que pagar por seu erro. Mas o que me importa

agora é a sua saúde e a da criança.

Naquele momento em que eu pensava em qual decisão

teria que tomar, meu pai retornou entrando sorrateiramente no

meu quarto. Ao ver-nos, ele saltou em cima da minha mãe como

um animal enfurecido e raivoso, arrancando-a de perto de mim e

jogando-a ao chão. Ao ver minha mãe ser jogada ao chão como

uma trouxa de roupa suja, arregalei os olhos, porque sabia que

ele viria para cima de mim também. Antes, porém, ele gritou em

alto tom que, por certo, toda a Valença ouviu:

– O que está acontecendo aqui? Eu sabia que havia algo

de errado!

Olhou para a minha barriga, que estava quase desnuda e

prosseguiu:

– Sua infeliz, eu sabia que você me daria essa decepção!

Sua filha do diabo, ele, no mínimo, é o pai desse bastardo que

está carregando aí no ventre.

Ao ver que meu pai partiria para cima de mim, o doutor

segurou-o fortemente, pedindo que eu fugisse do quarto,

enquanto ele tentava conter a fúria do meu pai. Eu ainda sentia

fortes dores abdominais e quase não consegui me levantar.

Mesmo assim, consegui chegar até o corredor. De repente, uma

mão me empurrou pelas costas e caí ao chão, batendo com a

barriga. Não me lembro de muita coisa, só de ver minha mãe

tentando me levantar e o doutor pegando-me ao colo e pondo-

me novamente na cama.

Acordei horas depois e muitas pessoas estavam à minha

volta. Entre elas a parteira, duas escravas da fazenda da senhora

Constância – que vieram ajudar a parteira Serafina –, minha

mãe, o doutor, Maxuel e Eulália. Quando despertei, senti-me

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vazia e apalpei minha barriga. De imediato perguntei, vendo que

aquelas mulheres olhavam-me aterrorizadas:

– O que aconteceu? Onde está o meu bebê?

Todas se entreolharam e minha mãe deixou cair dos

olhos uma lágrima. Mediante aquela situação suspeita, tornei a

repetir a pergunta:

– Onde está o meu bebê? O que aconteceu comigo?

Todas aquelas mulheres saíram uma a uma

sorrateiramente. Inclusive a parteira e o doutor, deixando-me

sozinha com minha mãe. Olhei-a fixamente nos olhos e disse:

– Mãe, há algo de errado aqui e quero saber o que é.

– Filha, você ainda é jovem, linda, e logo terá outra

oportunidade de conhecer um belo rapaz que a fará muito feliz.

Ela começou a chorar, não conseguindo prosseguir com

a conversa. Eu, vendo que algo muito errado estava

acontecendo, chamei aos gritos o doutor, que entrou quase que

imediatamente no meu quarto.

– Quero ver o meu bebê agora! – disse, ao vê-lo.

Ele, porém, aproximou-se de mim e passou a mão sobre

a minha testa, dizendo:

– Sinto muito, minha filha, eu deveria ter dado ouvidos a

você.

– Quero o meu filho aqui perto de mim! O que fizeram

com o meu filho?!

Novamente ele passou a mão em mim. Só que, dessa

vez, nos meus cabelos, dizendo:

– Sinto muito mesmo, mas é impossível que você possa

vê-la. Você tinha razão, era uma menina.

– Por que era? O que houve com o meu bebê? Para

aonde vocês a levaram? Quero que me digam, pois irei buscá-la

imediatamente.

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Ele, porém, olhou para minha mãe com um olhar de

cumplicidade e disse:

– Não poderá buscá-la, não se lembra do acidente?

– Que acidente? Não sofri nenhum acidente.

– Sim, você sofreu. Tropeçou e caiu com a barriga ao

chão. O seu bebê, infelizmente, não resistiu à queda. Ela teve

uma fratura no crânio.

– Isso é mentira! Não sofri acidente nenhum.

Insisti. Minha mãe enxugou as lágrimas que desciam

pelas suas faces e deu continuidade àquela conversa.

– Você ainda é jovem, filha, e poderá se casar com o

senhor Dantas. Ele é mais velho e não se importará com esse

infortúnio que houve em sua vida.

Minha cabeça começou a girar e comecei a me lembrar

do que realmente houve comigo.

Quando saí do meu quarto, deixei o doutor segurando o

meu pai. Então, quando já estava no corredor, ele me alcançou,

puxando-me pelo vestido. Então, consegui escapar e ele veio em

cima de mim, empurrando-me ao chão. Minha cabeça girava e,

no meio daquele monte de tormentas de imagens e sensações, eu

ouvia de longe o doutor dizendo: “Sinto muito, mas nunca mais

poderá ter outro filho...”. E no meio, junto com a voz do doutor,

a voz da minha mãe também falava comigo “Case-se com o

senhor Dantas; ele não se preocupará com o seu infortúnio...”.

Senti que o meu mundo tinha acabado. As pessoas começaram a

entrar no quarto. Eu as via como formas destorcidas, até vi um

túnel escuro se formar à minha frente e, dentro dele, milhares

de pontinhos de luz brilhavam. Fui caindo... caindo... e não ouvi

e vi mais nada.

No dia seguinte, acordei tremendo de frio, com minha

mãe sentada ao meu lado. Assim que percebeu que me

movimentei na cama, ela disse:

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– Que bom que acordou! Estávamos preocupados com

você, minha filha.

– A senhora pode ser que sim, mas o restante... não tenho

certeza.

– Não diga bobagens! Maxuel até se propôs a dormir

aqui. Só não o fez porque sua irmã interveio e o obrigou a ir

para casa, ameaçando-o e proibindo-o de ver a filha.

– E ela deve ter ficado muito feliz ao saber da minha

infelicidade, não é?

– Não, Emanuelizia. Ela sente muito ciúmes de você,

mas se compadeceu com a sua situação. Agora deite mais um

pouco, que irei trazer-lhe algo para comer. Precisa se alimentar

bem. São ordens do doutor, porque perdeu muito sangue.

– Não quero descansar. Quero ver o corpo da minha

filha.

– Deixei por conta do doutor. Ele a levou para que assim

fosse enterrada. Ele não irá contar ao padre que foi um aborto.

Caso contrário, o vigário não irá enterrá-la em solo sagrado. O

doutor irá dizer que a criança nasceu morta e que é de uma de

suas pacientes. Assim, ninguém irá acusá-la de adultério e a

Igreja não vai excomungá-la. Logo você estará melhor e

poderemos conversar sobre o seu futuro. Quero que pense com

carinho na sua união com o senhor Dantas.

– Mãe, não vou me casar com um homem que tem idade

para ser meu avô. Não quero homens de espécie nenhuma em

minha vida. Eu os odeio um a um.

– Não fale assim, filha. Tem que se casar, ou o seu pai

não irá permitir que fique aqui.

– Então, que seja feita a vontade daquele assassino, pois

quero que fique bem claro: não vou me casar contra a minha

vontade.

Naquele exato momento, meu pai entrou, dizendo:

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– Não quero uma mundana em minha casa. Pegue suas

trouxas e saia daqui imediatamente. Se não o fizer por bem, eu

mesmo jogo suas tralhas no meio da rua.

– Não será preciso. Faço isso com muito gosto, pois não

tenho a menor vontade de permanecer ao lado do assassino do

meu bebê.

– Deveria me agradecer de ter lhe poupado o desgosto de

criar o filho da besta.

– O meu filho nunca foi filho da besta. Era filho de um

homem tão inescrupuloso como o senhor é!

Ele avançou para cima de mim para me agredir, mas foi

detido por minha mãe. Eu o olhei nos olhos e falei:

– Deixe que ele venha, minha mãe, pois não tenho mais

medo dele ou de qualquer outra pessoa. Saiba, meu pai: se o

senhor me encostar a mão, terá que me matar. Caso contrário,

mato o senhor.

Ele arregalou os olhos e respondeu, friamente:

– Não sou mais seu pai! E saia da minha casa do jeito

que está, com a roupa do corpo. Eu a amaldiçoo e a renego

como filha.

– Já sou amaldiçoada porque sou a mulher escolhida para

quebrar a maldição da sua raça maldita. E agora, por sua causa,

sou uma árvore seca. Não precisa me amaldiçoar mais, porque

você me tirou o direito de ser mãe para sempre. Não existe

maldição maior do que essa. Mas escreva uma coisa: mesmo

que nunca mais volte a esta cidade, saberei do seu fim onde quer

que eu esteja. Quero que o senhor morra caído como um

mendigo, e que os cães da rua façam pouco de sua carcaça. Mas

não se preocupe: mandarei flores.

Dizendo isso, vir-me-ei para minha mãe, que estava

chorando, e disse:

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– Não se preocupe, minha mãe, não vou morrer de fome.

Aliás, não vou morrer, porque já estou morta para todos vocês.

De hoje em diante, esqueçam-me.

Fui saindo porta afora, trajando apenas uma única roupa

no corpo que estava coberta de sangue. Minha mãe

acompanhou-me até a porta, perguntando para aonde eu iria.

Respondi-lhe:

– Ficarei uns dias nas cavernas até que possa me

recuperar. Não se preocupe comigo, pois estarei bem. Lembre-

se de mim como eu era antes. Agora esta que aqui está não é

mais a sua filha. Sou outra pessoa de agora em diante.

Ela chorou e implorou para que eu não fosse. Dizia que

iria convencer meu pai a voltar atrás. Mas depois do que ele me

fez e conhecendo-o como eu conhecia, sabia que seria inútil

permanecer e conviver com aquele monstro. Pela primeira vez

em minha vida, eu estava sendo fria. Sei que minha mãe caiu ao

chão desmaiando, mas não olhei para trás. Caminhei muito até

que, por fim, cheguei às cavernas. Elas pareciam sombrias e

tristes. Alguma coisa no ar estava mudando – eu e as cavernas

sabíamos disso. Elas sabiam que eu não era mais uma bruxa, e

sim uma feiticeira do mal.

Estava frio naquele dia e caía uma leve garoa fora das

cavernas – o que me fez sentir mais frio ainda. Revirei os baús

de Eleanor e peguei um manto para me agasalhar. Fui à entrada

das cavernas e peguei umas ostras. Fiz um caldo para me

aquecer do frio. Deitei-me na cama de palha de Eleanor, pois

estava muito cansada. Fiquei fitando o teto. Então, percebi que

as lágrimas rolavam em minhas faces. Imediatamente, passei as

mãos sobre os olhos e levantei-me, dizendo:

– Nunca mais, Emanuelizia, você será fraca de chorar

como uma criança mimada.

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Peguei o livro de evocações de Eleanor e comecei a ler

sobre como evocar o demônio. Peguei uma pedra e comecei a

traçar no chão aqueles símbolos estranhos. Fiz um círculo

sagrado e a estrela de seis pontas invertida no meio do círculo.

Acendi velas em volta dele e evoquei a besta, dizendo:

– Zholar, rei das trevas, apareça para mim. Invoco-o para

lhe oferecer minha alma em troca de seus favores.

Não precisei implorar muito, pois a besta abriu o chão da

caverna, fazendo a terra tremer. No meio do chão, uma enorme

fenda abriu-se e eis que a besta surgiu em sua forma original:

um enorme bode negro, com um pentagrama de ouro no meio da

testa. Ao ver-me, ele bateu os cascos no chão e deu uma de suas

costumeiras gargalhadas.

– Finalmente a senhora das profundezas implora por

minha ajuda! Em que posso servi-la, minha rainha? –

reverenciou-me.

– Quero vingar-me de tudo e de todos que me fizeram

mal, e sei que somente o senhor poderá me ajudar.

– Sim, minha rainha, mas o que me oferece em troca?

– Minha alma, meu corpo, minha fidelidade.

A besta deu outra gargalhada.

– Sua alma já tenho, minha rainha. Seu corpo não me

será de muita valia. Quanto à sua fidelidade, é inevitável que

seja fiel a mim.

– Então, ofereço-lhe o meu amor.

Novamente a besta riu, respondendo:

– Não seja tola, minha rainha: ninguém nunca me amou.

Sei que isso será impossível.

– Nada é impossível. Dê-me um voto de sua confiança e

mostro-lhe que nunca mais amarei a nenhum outro homem

sobre a Terra, e que todos os dias de minha vida vou trabalhar

para que meu sentimento por você cresça dentro do meu peito.

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A besta ficou séria e, após me rodear, falou:

– E o que você quer em troca, minha rainha?

– Juventude eterna. E também quero me vingar de todos

os meus algozes.

– Não tenho o poder de mantê-la viva por toda a

eternidade enquanto estiver sobre a Terra, somente quando

estiver ao meu lado, no inferno. Aí, sim, poderá ser bela e jovem

para sempre. Mantê-la-ei jovem enquanto sua vida lhe for

permitida. Quanto ao resto, que seja feita a sua vontade. Está

disposta a fazer, então, um pacto comigo?

– Sim, estou.

– Sabe qual será o meu preço?

– Sim, sei, e estou disposta a pagá-lo.

– Então, que a partir de hoje sua alma e também sua

matéria pertençam a mim.

Dizendo isso, a besta soprou e o ar que saía de sua boca

cheirava a enxofre e me fez adormecer profundamente. Acordei

no dia seguinte e não estava mais sangrando. Mesmo as

cicatrizes que haviam ficado em meu corpo sumiram por

completo. Minha pele estava mais alva e meus cabelos haviam

crescido uns trinta centímetros e caíam sobre os meus ombros,

com enormes cachos. Eu estava completamente nua e não me

lembrava de absolutamente nada que ocorrera comigo. Sentia-

me mais jovem e forte. Olhei para meus seios e eles também

estavam mudados, grandes. Minhas coxas, minha cintura, todo o

meu corpo havia se modificado. Eu era outra mulher, e pude

conferir isso vendo o meu reflexo nas águas cristalinas dos lagos

que se formavam dentro da caverna. Sorri espontaneamente

quando me vi.

Procurei no baú de Eleanor algo para me vestir. Foi

quando achei um vestido vermelho, cor de fogo, e uma cinta de

coro preta, que estavam colocados em cima de um banquinho

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propositalmente: a besta havia me deixado um vestido

lindíssimo e sapatos. E ao lado havia uma mesa posta cheia de

guloseimas. Acabei de me vestir e lambuzei-me com tantas

iguarias. Sorri novamente – afinal, não era tão mal servir à

besta, pois ele tratava muito bem os seus adeptos – pensei.

Voltei para o livro de magia e comecei a praticar a magia do

fogo. Era só eu o ordenar que se levantava e, do nada, acendia,

trazendo suas chamas para me aquecer nas noites frias. Fiquei

por muitos dias na caverna e, para a minha proteção, hipnotizei

uma coruja branca. Ela me guiava à noite, através dos seus

olhos. A besta enviou-me um de seus guardiões, um lobo negro.

Ele me trazia caça para que eu me alimentasse. Assim, segui

durante algum tempo, permanecendo ali, naquela caverna, que

me serviu de abrigo enquanto eu colocava meus planos de

vingança em prática.

Houve, porém, certa manhã em que eu estava à beira-

mar, ouvindo o som silencioso do mundo, e senti uma mão

macia pousar levemente em meu ombro direito. Olhei para trás e

era Maxuel, que me fitou perplexamente, dizendo:

– Emanuelizia, o que foi que aconteceu a você? Pensei

que chegaria aqui e a encontraria...

– Caída? Suja, maltrapilha, passando fome? Acho que

você não me conheceu muito bem, meu querido: caio; mas

quando me levanto, corra de mim. – ri.

– A única coisa que vim fazer aqui é trazer-lhe notícias

de sua mãe, que está muito preocupada com você. Mas, pelo que

percebo, você continua arrogante, como sempre foi. Como você

conseguiu se manter todo esse tempo aqui nesta caverna? Você

arrumou algum amante?

Dei uma enorme gargalhada, que ecoou por toda a

encosta. Se fosse em outros tempos, eu o teria esbofeteado. Mas

eu estava aprendendo a debochar da desgraça. Olhei-o

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firmemente, depois de quase me desmanchar de tanto rir,

respondi-lhe da seguinte forma:

– Vamos dizer que tenho um benfeitor que não é deste

mundo e que nada me deixa faltar.

– Então, é verdade: você se transformou em uma bruxa e

fez um pacto com o demônio?

– Nossa, como correm as notícias neste lugar... Quem foi

o mensageiro que lhe contou tão rapidamente essa notícia?

– Como disse, vim trazer notícias de sua mãe, que não

está nada bem de saúde e pediu, mesmo estando em estado débil

por causa da doença, para lhe dizer que a Inquisição está vindo

capturá-la.

– Como? O que há com minha mãe?

– Ela contraiu a peste, como muitos na vila. Sem querer,

ela, em estado débil por causa da febre muito alta, acabou

contando seu segredo a seu pai, que a entregou à Inquisição. Ela

me mandou chamar quando soube do que seu pai havia feito e

pediu para que eu a ajudasse e não deixasse nada de ruim lhe

acontecer. Imediatamente, prontifiquei-me a ajudá-la. Mas, pelo

que percebo, você já tem um protetor.

– Não é bem assim: ele me protege de outra forma.

– Como, por exemplo?

– Não me deixou passar fome até agora. Sou-lhe grata

por ter vindo até aqui me avisar, mas não sei o que fazer. Não

tenho dinheiro para seguir caminho e fugir.

Ele sorriu.

– Agora quem não me conhece é você! Trouxe comigo

um pequeno obséquio que lhe dará a oportunidade de fugir até a

França. Lá, você poderá começar uma nova vida. Paguei um

cocheiro que a levará até a Marselha, onde daqui a dois meses

nos encontraremos.

– Vamos nos encontrar?

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– Sim. Assim que estiver tudo resolvido aqui, irei para

junto de você e viveremos juntos.

– Mas e sua filha e Eulália?

– Eulália ficará bem de vida, pois deixarei para ela a

fábrica e a casa. Quanto à minha filha, não posso prender-me a

Eulália por causa de uma criança inocente. Minha vida é um

inferno ao lado de sua irmã, e não posso deixar que minha filha

cresça no meio de tantas brigas. Isso não é um ambiente

saudável para ela. Quando ela crescer, escrever-lhe-ei uma carta

contando os motivos pelos quais saí de casa. Tenho certeza de

que ela entenderá.

– Você está mesmo decidido, não é?

– Sim, estou.

– Então, sendo assim, nos veremos em Marselha.

Ele me ajudou a juntar meus objetos e arrumar tudo para

a viagem. Os animais, porém, desapareceram misteriosamente

como se nunca tivessem existido. Na entrada da carruagem que

ele havia conseguido para me levar para a França, beijou-me

pela primeira vez. E foi um beijo diferente, cheio de carinho.

Aquele beijo mexeu comigo, porque eu estava carente.

Voltamos para as cavernas e no amamos. Quando terminamos

de nos saciar, Maxuel novamente levou-me até a carruagem e se

despediu com outro longo beijo. Tudo estaria bem se a besta,

não tivesse percebido meus sentimentos por Maxuel. E garanto,

não ficou nada satisfeito e puniu-me por aquilo.

Eram seis dias de viagem. No terceiro dia, a carruagem

parou fora do costumeiro horário em que parávamos para

almoçar. Achei aquela atitude muito estranha vinda do cocheiro,

que parecia de muita confiança. Estiquei a cabeça para o lado de

fora da carruagem, tentando verificar o que poderia estar

acontecendo. Foi quando o cocheiro abriu de supetão a porta e

puxou-me para fora. Ele roubou o dinheiro que Maxuel havia

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me dado e todo o resto da minha bagagem, só jogando para mim

um pedaço de pão e os livros, que ele julgava não valerem nada

– ou pelo simples fato de não saber ler, o que era mais provável.

Fiquei perdida no meio de uma estrada. Não sabia onde

ela ia dar. Estava no meio do nada, mas, mesmo assim, dei

graças a Deus por ele não ter abusado de mim. Caminhei por

horas a fio até que cheguei a uma pequena província ao norte da

França. E por lá perambulei por dias. Pedi abrigo em uma

taberna e negaram-me. Eu estava cansada e com fome. Foi aí

que uma cortesã, ao ver-me perambulando pelas ruas, parou-me

e disse:

– Olá, pequena! Vejo que está perdida por aqui.

– Sim, estou.

– Parece que não conhece ninguém por essas bandas, não

é?

– Sim, a senhora está certa. Não conheço ninguém.

– Então, precisará de um lugar para ficar, correto?

– Sim, a senhora está correta.

– Mas, para isso, vai precisar trabalhar muito.

– Faço o que for preciso; não sou preguiçosa.

– Com uma cara linda dessas e um corpo desses, não vai

precisar fazer muito. Vai chover homens para você.

– A senhora está falando que terei que me prostituir para

não passar fome?

– Se quer comer e dormir, terá que dar alguma coisa em

troca ou morrerá por essas ruas, minha querida.

– Desculpe, mas não vou fazer esse tipo de coisa. Vou

me ajeitar. Em breve meu noivo vai me achar nessas bandas.

A mulher deu uma enorme gargalhada e disse:

– Seu noivo? Minha pequena, há dias você está

perambulando por essas ruas e até agora o seu noivo não veio

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Adriana Matheus

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buscá-la. Você ainda tem alguma esperança? Minha querida, ele

por certo, se existe mesmo, deve estar com outra.

– Não, ele não sabe que estou aqui.

Contei-lhe a minha história e ela disse:

– Bom, suponhamos que sua historinha triste seja

verdade...

– Mas é, tem que acreditar.

– Suponhamos que ela seja... Creio que precisará comer,

não é? Acho melhor pensar nisso, porque logo não encontrará

mais ninguém que lhe dê um pão para comer. Você ainda pode

conseguir roubar na praça, como a tenho visto fazer, porque está

com as vestes limpas e ainda pode se passar por uma dama. Mas

quando estiver com as vestes sujas e cheirando mal, logo será

repudiada e vagará por essas ruas, como tenho visto muitas

fazerem. As pessoas ainda a olham porque você não se tornou o

opróbrio delas. É assim que funciona a vida: somos o que

podemos oferecer e a aparência que podemos mostrar. Pense

com carinho, minha querida. Afinal, você não estará tirando

nada de ninguém. Muito pelo contrário: estará dando um pouco

de consolo àqueles que estão necessitando. – disse a mulher

fazendo ares de zombaria e seguindo em frente.

Eu estava naquela cidade há dias e até roubar para comer

me vi obrigada a fazer. Fui quase pega por um padeiro enquanto

roubava uma torta. Ela tinha razão: com o tempo, minhas vestes

estariam rasgadas e eu começaria a cheirar mal. Então, acabei

aceitando viver na casa daquela mulher como prostituta. Ela me

ensinou todas as formas de seduzir um homem e todas as

artimanhas de como fazê-los pensarem que estavam deleitando-

se com o meu corpo. Naquela época, isso era muito fácil porque

usávamos muitas saias e alguns homens contentavam-se de pé

mesmo. Com isso, era simples para nós enganá-los. Usei da

magia negra para seduzir cada vez mais homens. Bastava que

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me olhassem nos olhos e estavam rendidos a mim. Não era

preciso roubá-los, pois eles entregavam suas carteiras de boa

vontade com a hipnose.

Os dias foram se passando e fui a prostituta mais

cobiçada daquela província. Muitos nobres procuravam por

meus serviços. Ganhei muito dinheiro, entre outras prendas.

Minha fama correu boa parte da Europa e todos queriam

experimentar dos carinhos da mais nova prostituta de Paris.

Confesso que a maioria daqueles homens nunca tocou realmente

em mim – como citei, valia-me da magia negra e diversas vezes

usei poções para fazê-los adormecer. No dia seguinte, os pobres

coitados acordavam com sensação de terem se deleitado em meu

corpo a noite toda. Só me deitei com os homens que eu escolhia

e pelos quais sentia alguma atração.

O certo é que fiquei tão afamada que, certo dia, um lorde

muito rico de nome Cervantes de La Costa apareceu por aquelas

bandas e quis me conhecer. Preparei-me especialmente para o

afortunado – que apesar de ser um homem de idade avançada,

era limpo e muito rico. Coloquei minha melhor roupa e fui ao

seu encontro. Ao olhar-me nos olhos, o homem ajoelhou-se

mediante a minha beleza e levou-me para o seu castelo, onde fui

descobrir que ele era um conde com muitas terras e muitos bens.

Ele tirou-me da vida em que me encontrava e pediu-me em

casamento. Tornei-me, então, Emanuelizia de La Costa. Fui

preparada para ser apresentada à corte francesa e fui considerada

a mulher mais bonita de toda a corte. Os homens caíam aos

meus pés. Criei em volta de mim um grande círculo de

inimizades femininas, pois as mulheres queriam me matar por

causa de seus maridos. Muitas delas cometeram suicídio por

despeito e raiva de mim. Acreditem ou não, sempre fui fiel ao

meu benfeitor. Mesmo sendo ele um homem de avançada idade,

nunca o traí. Mas sempre me vali de meus poderes para

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conseguir presentes caríssimos, como joias. Até uma tiara de

diamantes me foi dada por um rei que, ao fitar meus olhos, tirou

da cabeça da própria esposa, colocando-a sobre a minha. A

mulher, enfurecida, deixou o baile onde estávamos.

Seis anos mais tarde, meu querido benfeitor e esposo

veio a falecer devido à idade avançada. Muitos dos meus bens

foram confiscados devido as muitas dívidas de meu marido.

Porém, fiquei com um enorme casarão na França, com vinte e

um quartos, entre toaletes e suítes. Obviamente, escondi todas as

minhas joias para que não fossem a leilão. Meu dinheiro estava

acabando. Eu precisava pagar os empregados e, por me ver

novamente em uma situação muito difícil, percebi que o único

caminho a tomar era montar um cabaré. Não um simples cabaré,

mas o maior cabaré que Paris já tivera. Como o cancã estava na

moda, teríamos muitos shows para divertir os clientes. Resgatei

das ruas muitas mulheres que estavam na mesma situação em

que eu me encontrei um dia. Mulheres renegadas pela

sociedade hipócrita, pessoas que as usavam em surdina e depois

as queimavam como Judas. Ao todo, foram setecentas e

cinquenta mulheres que passaram pelo meu bordel. Muitas delas

encontraram bons homens e acabaram se casando. Outras não

queriam sair do cabaré.

Minha casa vivia cheia e, é claro, eu tinha um sótão onde

eu praticava a magia negra constantemente. Aos poucos, os

boatos de que eu era uma feiticeira poderosa espalharam-se por

toda a Paris e muitas senhoras procuravam-me às escondidas

para obter minhas poções do amor. Muitas dessas mulheres

eram da corte francesa, cuja vida conjugal não andava muito

bem. Muitas delas usavam de minhas poções para seduzirem

jovens mancebos que frequentavam a corte. Geralmente,

mulheres muito feias e mal amadas se valiam da minha magia

para conquistarem seus amantes. Criei diversas poções do amor

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para assim satisfazer a diversas clientes. Com isso, minha casa

vivia cheia de homens elegantes: com suas esposas procurando

cada vez mais amantes jovens, os mais velhos e ricos corriam

para nós. Dinheiro para mim nunca foi problema, mas não mais

trabalhava como prostituta. Eu era a rainha do cabaré, a anfitriã

cujos olhares de cobiça renderam-me muitas joias. Recebia

diariamente diversas propostas, mas nunca cedi. Minhas filhas,

como eu as chamava, trabalhavam em meu lugar e eu sempre

tinha novidades para apresentar aos clientes.

Meus antigos animais retornaram certa manhã. Sumiram

do nada e apareceram do nada. Eu os acolhi como tinha que ser

feito. Meu lobo passou a ser o guardião do cabaré, e minha linda

coruja foi substituída por uma águia que descia e pousava em

meu obro quando eu descia os degraus do cabaré durante as

noites de apresentação. Era fabuloso ouvir os aplausos de todos

e os gritos clamando-me “Viva a rainha do cabaré!

Emanuelizia, nossa rainha!”. Foram dias de muita glória.

Confesso que me sinto orgulhosa não da vida que eu levava,

mas por ter conseguido aquele glamour todo, e também por ter

salvado tantas moças que levavam uma vida de miséria. Sei que

a prostituição não é algo de que se orgulhar, mas tirei muitas

daquelas mulheres de uma vida que sua imaginação jamais

alcançará. A mulher que me acolheu nas ruas, de nome Santiara,

uma cigana velha e uma prostituta em decadência, tornou-se

minha governanta e braço direito.

Como disse, acolhi diversas mulheres. Entre elas, uma

cujo nome era o mesmo da minha mestra na magia: Eleanor.

Adorei encontrar essa mulher, bonita, simpática e acima de tudo

muito inteligente, o que era uma raridade no meu meio. Então,

escolhi-a para ser minha discípula. Foi a maneira que encontrei

de homenagear a minha mestra. Isso foi o maior erro que já

cometi sobre a Terra. Eleanor aproveitou-se de certos regalos

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que lhe ofereci e tornou-se extremamente autoritária com as

minhas demais filhas do cabaré. Ela era invejosa e queria tomar

o meu lugar de rainha do cabaré. Muitas coisas deixei passar

despercebidas, porque achava que Eleanor ainda era muito

jovem e imatura – por isso, tinha muito que aprender e o tempo

iria transformar seu caráter. Isso foi um terrível engano, pois

uma vez nascida sem caráter, para sempre será uma sem caráter.

Eleanor chegou a roubar minhas joias e, mesmo assim, perdoei-

a.

Os dias passaram e, percebendo que o caráter daquela

jovem não mudava, expulsei-a do cabaré com muita dor no

peito, porque amava minhas meninas de igual forma. Mas era

algo que tinha que ser feito, pois uma maçã podre prejudica

todo o pomar. Só que meu pomar já estava bastante danificado,

porque quando Eleanor saiu, carregou com ela boa parte das

meninas. Havia se formado dentro do cabaré um complô e quase

fui assassinada enquanto adormecia. Fui salva, porém, por uma

jovem recém-chegada que, passando pela porta do meu quarto,

notou movimentos estranhos e entrou, pegando Eleanor com o

travesseiro tentando sufocar-me durante o sono. Mandei

imediatamente trancar Eleanor e suas comparsas. Na manhã

seguinte, fiz uma reunião informando a todas sobre o fato

acontecido. Não entreguei Eleanor à milícia – o que foi outro

erro gravíssimo da minha parte.

Após a expulsão de vinte jovens junto com Eleanor,

tentamos seguir com nossas vidas. Um monarca muito

conhecido e afamado resolveu dar um grande baile dentro do

meu cabaré para seus amigos e também para seu braço direito.

Essa comemoração foi privada e rendeu-me muito dinheiro.

Porém, entre eles havia certo cavalheiro que era amigo e amante

de Eleanor. Ele entrou em minha casa somente para observar

como tudo funcionava e poder ter acesso livre entre nós. Com

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isso, uma emboscada estava sendo tramada pelas minhas costas

e nunca imaginei que Eleanor chegaria a tal ponto.

Certa manhã, acordei com uma de minhas criadas

batendo à porta do meu quarto. Ela parecia agitada. Porém,

levantei a cabeça calmamente, tirando a venda que cobria meus

olhos.

– Posso saber onde é o incêndio?

– Madame, há um senhor lá embaixo. Ele parece muito

precisado de falar com a senhora.

Deitei-me novamente, julgando ser um cliente fora de

hora. Então, falei:

– Diga a ele que a casa só funciona mais à noite, que

espere como todos.

– Madame, ele disse que é um velho amigo da senhora e

que se chama Maxuel. Ele disse que é seu primo, madame.

Levantei a cabeça imediatamente, respondendo:

– Ora, ora, diga-lhe que já desço. Leve-o para o salão e

ofereça-lhe o que ele desejar. Trate-o com carinho. E diga às

meninas que não as quero perto dele.

Vesti um lindo vestido vermelho encarnado com plumas

negras na gola. Prendi meus cabelos em um coque e coloquei a

tiara de diamantes que me foi dada pelo monarca. Quando sua

esposa saiu do palácio aos gritos histericamente, e percebendo

que de mim só conseguiria um sorriso, fez-me dar a ele uma de

minhas beldades. O monarca escolheu para si a mais jovem e a

mais delicada flor da minha casa: Carmélia, uma moça de

dezoito anos, de cabelos ruivos e olhos muito verdes. Sua pele

mais parecia seda, sua voz era de veludo. O monarca, ao vê-la,

apaixonou-se de imediato, mas queria exclusividade. A jovem

concubina passou a ter todos os regalos sonhados que uma

moça poderia ter, mas mantida sobre a minha proteção, pois ele

não podia deixar a rainha, sua esposa. Muitas delas

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conseguiram esse tipo de apadrinhamento. A maioria não se

casou com seu benfeitor, porque eles eram casados. Cada uma

das minhas meninas tinha uma alcunha. Essa eu chamava de

Esmeralda, por causa dos olhos verdes e da cor de suas vestes.

Outra por quem me afeiçoei muito era uma espanhola de

nome Rosalinda, que sempre se sentava ao meu lado durante os

festejos. Era uma mulher lindíssima que também conseguiu um

apadrinhamento. Porém, seu coração pertencia a um jovem de

origem humilde que nunca a tirou do cabaré por não ter

condições financeiras para sustentá-la. Espanhola, como a

tratávamos, dançava o flamenco como ninguém, girando e

tocando suas castanholas por todo o salão. Muitos homens se

renderam aos seus encantos. Houve até suicídios por sua causa.

Ela era, porém, uma mulher temperamental e de pouco falar.

Quando desejava obter alguma coisa, ninguém a segurava.

Apontei no início da escadaria de mármore branco com

corrimão de ferro negro. Desci calmamente para não ser notada

por Maxuel, que estava de costas. Ele, ao perceber minha

presença, virou-se, olhando-me como se estivesse vendo um

anjo à sua frente. Correu ao meu encontro para me dar a mão,

ajudando-me a descer o último degrau. Estendi a mão direita a

ele. Vendo-o ali, à minha frente, pude perceber como o tempo

havia passado, pois ele estava muito velho e com os cabelos

bem esbranquiçados. Quando tocou minha mão, ele disse:

– Como você está linda! O tempo parece não passar para

você!

– Obrigada... Você continua o mesmo homem gentil de

antes, embora não possa dizer o mesmo de sua aparência...

– São os problemas da vida. Não fui tão afortunado

como você. Mas tem que me contar o segredo por que nunca

envelhece.

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Dei uma gargalhada e levei-o para a sala de jantar. Pedi

que nos servissem o melhor da casa. Com a mesa posta, ofereci-

lhe uma taça de champagne e ele, parecendo surpreso,

respondeu:

– A esta hora da manhã, minha prima? Não acha que é

muito cedo para bebermos champagne?

Sorri.

– E desde quando é muito cedo para se beber

champagne? Existe uma regra para se beber o néctar dos

deuses? Desculpe-me, meu querido primo, champagne não se

bebe quando se tem vontade ou com hora marcada: se bebe

quando se pode. – disse isso levantando a taça em um brinde,

que ele não recusou.

Conversamos muito. Ele me contou que ainda estava

com a minha irmã. Ela estava passando maus bocados com a

filha, que havia se tornado amante de um homem casado.

Contou-me, ainda, que ao chegar a Marselha não me encontrou

no local que havíamos combinado. Então, pensou que eu o havia

abandonado e, revoltado, ele se deitou com todas as prostitutas

que encontrou pelo caminho – gastando, assim, até a última

economia que possuía. Uma das prostitutas havia se tornado sua

amante. Ele a levou para viver em sua casa, junto com sua

mulher. Disse que minha mãe havia morrido com a peste, e que

meu pai havia ficado louco e que, por anos, vagou pelas ruas

como mendigo. Acabou morrendo, caído em uma calçada. Os

cães urinavam nele depois de morto... Meu irmão havia se

casado e estava bem. Mas quando soube da vida que eu levava,

não queria saber notícias sobre mim.

Soltei uma gargalhada tão alta que acordei muitas das

meninas.

– Sinto por minha mãe. Porém, quanto à minha irmã e ao

meu pai, tiveram o que mereceram. Quanto a Pietro, sinto por

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ele também. Espero que tenha uma vida farta e se não quer me

ver, nada posso fazer. Diga-me, o que veio fazer em Paris?

– Vim a negócios e soube da sua fama, que correu até

Valença.

– É mesmo?! Minha nossa, creio que muitas mulheres

devem me odiar por isso, não? Inclusive a sua. – disse

sinicamente.

– Confesso que muitas a odeiam mesmo. E quanto à sua

irmã, às vezes me compadeço dela, pois está passando muitos

problemas com nossa filha.

– Humm... só com a filha? E o que ela acha da amante

que você levou para viver junto a ela?

– Bom, ela trabalha em minha casa. Creio que sua irmã

desconfia, mas não pode falar nada. Até hoje nunca dormimos

juntos.

Novamente soltei uma de minhas gargalhadas.

– Ah, que satisfatório! Quer dizer que depois de você ter

me traído com minha própria irmã, não a tem como esposa em

seu leito? Estou surpresa: o casal parecia tão apaixonado no dia

do casamento, desfilando de mãos dadas na minha frente e

sorrindo debochadamente...

– Não diga isso. Nunca amei sua irmã. Você sabe disso.

Eu teria lhe dado o mundo se você não tivesse escolhido o

caminho que escolheu. Creio que não pode me julgar sendo

você quem é.

– Não julgo ninguém e como pode perceber, não preciso

do seu mundo, pois consegui o meu próprio mundo. – disse isso

abrindo os braços e mostrando tudo ao meu redor.

– Sim, percebo que sim, mas à custa de quê?

– À minha custa. Não devo nada a ninguém. E antes de

falar da minha profissão, saiba que estou nesta vida porque você

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é o culpado. Se não tivesse me deixado sozinha com um ladrão,

jamais estaria aqui agora.

– Não a obriguei a ser uma prostituta.

– Antes de me julgar, olhe para você primeiro. Em

minha profissão, somos obrigadas a nos deitar com quem não

amamos para sobreviver. E você, quando se deitou com minha

irmã, o que lucrou com isso? Creio que somos bem parecidos,

não é?

– Minha mulher a acusa de ter jogado praga em nossa

filha, em nossa vida.

– Eu?! Imagine, primo... Não tenho poder para tanto.

Vivo aqui em Paris, como pode ver. Não estou por lá para

induzir sua filha a se deitar com seu amante. Tenha dó, primo!

Creio que não veio de tão longe somente para me criticar e me

acusar levianamente. Ora, francamente, deixe-me em paz! Já

teve o que queria de mim antes, agora se quiser de novo, terá

que pagar e lhe garanto, custo muito caro.

Levantei e saí andando. Ele se levantou imediatamente

quando percebeu que o estava deixando.

– Não vai querer saber notícias de certo cigano? – disse

alto.

Meu semblante mudou e fiquei furiosa.

– O que você sabe daquele crápula?

– Que seu acampamento está aqui, em uma cidadezinha

parisiense. Mas tenho o meu preço para lhe dar tais informações,

pois soube que paga muito bem a seus informantes.

– Pago o que for necessário, mas pensei que você

estivesse bem das finanças.

– Engana-se: estou passando por maus bocados.

– Então, pago. Mas se não for uma informação precisa,

irei atrás de você. Passei muito tempo procurando por esses

homens. Não quero perder mais tempo.

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– Eles estão acampados na mesma cidade em que você

ficou antes de vir para cá. Porém, o homem que lhe fez mal está

casado com uma francesa não cigana e vive aqui, em Paris.

– É mesmo? Que coincidência... nunca imaginaria!

Levantei-me como uma louca enfurecida, gritando por

Santiara. Ela veio correndo me atender.

– Pague a este senhor o preço que ele cobrar pelos

serviços prestados a mim. Encomenda-me uma coroa de flores,

quero que envie para Valença para o túmulo de meu pai. Depois,

siga para os meus aposentos. Quero falar-lhe imediatamente.

Andei de um lado a outro do quarto, remexendo na pedra

vermelha que Henrico havia me dado e para a qual mandei fazer

um cordão grosso. Aquela pedra o mantinha perto de mim. Era

assim que eu conseguia vê-lo. Só não imaginava que ele

estivesse tão perto! Já sabia que estava com uma mulher. Várias

vezes enfeiticei-a, jogando doenças nela através dos meus

feitiços. Finalmente, Santiara entrou no meu quarto e foi logo

perguntando:

– O que houve, senhora? Nunca a vi de mau humor. Nem

sabia que tinha um pai! Quanto mais que este estivesse morto!

– E não me verá novamente, garanto. Quanto à coroa de

flores, estou apenas cumprindo uma de minhas promessas. Não

quero que toque novamente neste assunto.

– Sim, senhora. Quem era aquele homem? Pois, além de

ter me pedido uma quantia exorbitante, saiu daqui com um ódio

nos olhos...

– É meu primo. Na verdade, ele acha que sou a culpada

por toda a desgraça que acontece na família dele. E também me

culpa por nunca tê-lo escolhido como esposo, depois de tudo o

que ele me fez.

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– E isso é verdade? A senhora é culpada por tudo de mal

que acontece com ele? Porque percebo certa mágoa em seu

coração...

– Em parte, sim. Mas se aconteceu tudo conforme ele

diz, é porque houve merecimento.

– E o que a senhora fez ao pobre?

– Nada demais, só uma praguinha aqui, outra ali... Mas

isso não importa agora.

– Sei... Conhecendo-a como conheço, imagino que essa

praguinha fez da vida desse infeliz um inferno.

– Isso não vem ao caso agora! O fato é que ele me trouxe

notícias daquele maldito cigano e de seus comparsas, e daquela

gente maldita... Agora vou destruí-los, um a um.

– Senhora... Não deveria fazer isso com aquela gente.

Afinal, há muitos inocentes entre eles. Lembre-se de que a

senhora mesma disse ter sentido simpatia pelo meu povo um

dia.

– Não me importo, pois ninguém se importou quando eu

era inocente. Agora, se você quer ficar do lado dessa sua raça de

origem, diga-me de uma vez por todas. Assim, saberei com

quem estou lidando. Não admito mais traições entre minhas

filhas.

– Não é nada disso, senhora. Estou e sempre estarei ao

seu lado. Porém, acho que tanto ódio não lhe faz bem. A

senhora é linda, generosa, e guarda o segredo da juventude

consigo. Qualquer homem neste mundo sentir-se-ia honrado de

tê-la como esposa. A senhora, porém, vem rejeitando diversos

pretendentes por causa desse homem e do ódio que sente por

ele. No fundo, acho que a senhora nunca deixou de amá-lo e,

por estar magoada demais, não percebe isso.

– Está louca?! Esse homem é o causador de toda a minha

desgraça. Jurei vingar-me de todos que me fizeram mal e, com

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certeza, ele não será poupado. É melhor que se cale, pois não

darei ouvidos a nada que venha a falar. Agora vá e chame o

capitão da guarda. Diga-lhe que tenho um favor a pedir. Ele não

me negará, pois tem dívidas comigo.

Santiara saiu pesarosa, mas nada disse para voltar a me

contrariar, pois sabia que eu passaria por cima de quem quer que

fosse para cumprir minha promessa. Algumas horas depois ela

subiu, avisando-me que o capitão da guarda havia chegado.

Desci imediatamente, indo ao seu encontro. Ele era um homem

alto e muito forte. Usava cavanhaque e nutria certa admiração

pela minha pessoa – o que não era novidade, pois a metade da

população masculina francesa também dividia o mesmo

sentimento por mim. Ao ver-me, veio receber-me prazenteiro.

Expliquei exatamente o que eu queria que fosse feito.

Porém, queria olhar nos olhos de cada facínora antes de serem

executados. Dei a ele os motivos para que pudessem ser

acusados. Alguns deles eram levianos, mas não me importei: o

ódio fazia parte da minha alma, eu só via a vingança na minha

frente. Como o capitão da guarda devia-me muitos favores, não

hesitou em atender aquele simples pedido meu. Consegui levar a

fuzilamento três de meus algozes por roubo. Fiz questão de

olhar um a um dentro dos olhos para que soubessem quem foi a

mandante de suas mortes. O plano foi muito bem sucedido e eles

caíram em uma emboscada, sucumbidos pela ambição. Dois

outros foram decapitados em praça pública, acusados de heresia

contra a Igreja, por adorarem ídolos demoníacos. Um foi

queimado vivo por práticas ilegais de magia negra. Mas ainda

faltava Henrico – esse deixei por último. Havia planejado uma

coisa muito especial para aquele crápula. Deixei que a poeira

baixasse por uma semana e, então, fui atrás dele. Descobri o

lugar onde ele morava e comprei a casa diretamente do

proprietário. Então, ele passou a ser meu inquilino. Fiz ele se

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endividar ainda mais em um jogo, pois Henrico tornou-se

viciado em jogos. Um de meus clientes, um banqueiro, ao meu

pedido ofereceu-lhe certa soma exorbitante em dinheiro,

dizendo que não teria pressa para receber o pagamento dele.

Quando Henrico havia gastado todo o dinheiro que possuía em

jogatinas – o que não demorou muito –, apareci em sua casa

com o oficial, o banqueiro e um juiz, que também me devia

favores.

Eram nove horas da noite e eles estavam jantando.

Nunca vou me esquecer do rosto dele ao ver-me! Uma criança

veio abrir a porta. Era uma linda menininha de oito anos, que se

apresentou como Caroline. Em seguida, ela foi chamá-lo a meu

pedido. No instante em que ele me viu, empalideceu e

perguntou:

– Como você?... O que é que você está fazendo aqui?

Como foi que me achou?

– Fico feliz em ver que me reconhece e que está sendo

tão hospitaleiro!

– Saia de minha casa imediatamente! Não tenho nada a

tratar com você.

– Primeiro: não vim visitá-lo, vim a negócios. Segundo,

esta casa é minha e o senhor está devendo seis meses de aluguel,

o que requer que eu o despeje...

– Como esta casa é sua?

– Sim, é minha. Comprei-a de um senhor cujo nome é

Leonel Esteves.

Dizendo isso, estendi-lhe o documento que comprovava

a veracidade de minhas palavras. A mulher dele veio, dando a

mão à pequenina, e perguntou-lhe:

– O que está acontecendo, meu amor? Quem é esta

senhora e de onde você a conhece?

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Naquele meio tempo, o oficial de justiça entrou também.

Junto a ele, o chefe da guarda, o juiz, dois soldados e o

banqueiro. A mulher dele parecia muito assustada e o abraçou

chorando, querendo saber o que estava acontecendo. Ele, porém,

respondeu da seguinte forma:

– Não estou entendendo nada, querida. Deve haver

algum equívoco. Não conheço essa senhora, e muito menos

esses cavalheiros.

Tomei a frente e disse:

– Deixe que eu refresque sua memória, pois percebo que

o senhor sofre, além de falta de caráter, de perda de memória!

Esse homem aqui presente está sendo procurado pela milícia de

Valença por um crime que aconteceu há cerca de dez anos. Esse

senhor e mais seis de seus comparsas estupraram uma jovem

inocente à beira-mar. Esse homem sem caráter deixou-a ao

relento, à mercê de ser devorada por lobos famintos. Esse

homem está me devendo atualmente seis meses de aluguel, e

também deve uma exorbitante quantia em dinheiro a esse

cavalheiro aqui presente. – apontei-lhes o banqueiro, que

confirmou tudo lhes mostrando as promissórias assinadas por

Henrico.

A mulher afastou-se de Henrico apavorada e tremendo,

parecendo não estar acreditando no que acabara de ouvir.

Depois de muito chorar, ela lhe perguntou:

– Isso que essa mulher contou é verdade? Você teve a

coragem de fazer isso que ela disse? Responda! – disse ela,

ligando os fatos.

– Foi há muitos anos... Eu era um jovem impetuoso e

não pensei que ela ainda estivesse viva.

– Você está me dizendo que essa mulher à minha frente é

a mesma da história? Como você pôde? Você ainda diz que

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pensava que ela estivesse morta? Como pôde fazer tal barbárie?

Você é um monstro! Eu o desprezo!

Sorri em ouvi-la dizendo aquelas palavras. O banqueiro,

naquele exato momento, tomou a frente, dizendo:

– Eu nada tenho a ver com essas discussões familiares.

Estou aqui porque quero receber o que esse homem de nome

Cervantes de Moá me deve.

– Engana-se, senhor banqueiro. Esse homem chama-se

Henrico Gonçalo Lopes. Se ele está usando outro nome, está

cometendo outro crime. – eu disse.

O oficial de justiça tomou a palavras, ressaltando:

– Então, se esse homem casou-se com essa mulher

usando um nome falso, creio que não são casados de verdade.

Isso significa que eles estão vivendo em concubinato, e isto é

crime.

Novamente, interpus-me.

– E digo mais, senhores: ele é um cigano foragido da lei.

Há poucas semanas, um de seus comparsas, antes de morrer na

fogueira, entregou-o, jurando sob confissão que ele é um larápio

e também praticante da magia negra. Pergunte ao capitão da

guarda aqui presente, que não me deixa mentir.

– Sim, é verdade. – confirmou o capitão, já em comum

acordo comigo e com os demais.

Henrico reagiu exasperadamente, como eu esperava.

– Essa mulher está mentindo: nunca roubei ninguém.

Confesso que cometi muitos crimes em minha vida, mas nunca

roubei ninguém e nunca pratiquei a magia negra.

– Então, o senhor confessa que cometeu muitos crimes?

E quem garante que não é também um larápio? – disse o oficial

de justiça.

– E quanto às suas origens, é verdade que o senhor é

mesmo um cigano? – perguntou o juiz.

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– Sim, é verdade, mas eu...

– E é verdade que o senhor usa um nome falso? –

perguntou o juiz novamente, interrompendo-o.

– Sim, confesso que sim. – disse ele, baixando a cabeça.

– Para mim, parece uma confissão. Portanto, devo

declará-lo preso imediatamente. Junto com você, a esposa, que

talvez ela seja sua cúmplice e também uma bruxa. – disse o

chefe da guarda afirmativamente.

Tomei a frente da conversa e usei de minhas artimanhas,

dizendo:

– Tenho uma proposta a fazer ao senhor Cervantes, ou

seja lá como se chama: se ele aceitar toda a dívida que tem com

o banqueiro e comigo mesma, a dívida moral será sanada.

– Não tenho acordo a fazer com essa mulher.

– Humm... que bonito! Aprendeu a ter orgulho agora?!

Está bem. Então, levem-no e que seja feita a vontade dele.

– Por favor, marido, ouça o que ela tem a nos dizer. Já

não basta tanto sofrimento?! – disse a mulher, temendo que

fossem levados presos.

– Bom, já que alguém aqui teve um pouco de sensatez –

disse eu, abrindo meu leque e circulando pelo ambiente –,

comprometo-me a quitar todas as dívidas desse senhor,

esquecendo-me até da dívida moral que ele tem comigo, e

inclusive prometo negociar sua liberdade com o juiz. Mas exijo

uma coisa em troca.

Todos olharam para mim, pois esse trunfo não tinha

contado a ninguém.

– E o que eu, em minhas poucas condições, posso ter

para oferecer à senhora?

– Senhora condessa, por favor! Exijo que me trate com o

devido respeito que mereço.

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UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã

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Muito a contragosto, Henrico redigiu a frase, pois sabia

que estava em minhas mãos.

– Não vejo em que eu possa estar retribuindo os favores

da senhora condessa.

Os olhares voltaram-se novamente para mim,

transformando-me no centro das atenções. O que na verdade

aquelas pessoas queriam era ver o que eu iria realmente fazer

com Henrico. Vulgarmente falando, elas nada mais queriam do

que ver o circo pegar fogo. Respondi a tal plateia, tão

fervorosa:

– Quero a sua filha para mim. – disse, apontando o leque

fechado para a menininha, que se agarrava à saia da mãe.

Houve um murmúrio de surpresa. Henrico, porém,

relutou, respondendo-me:

– De maneira alguma darei minha filha para você! Isso

está fora de cogitação! A senhora condessa não tem esse direito.

– Bom, meu querido, então não vejo alternativa além de

ter que despejá-lo daqui e entregá-lo à milícia. Com certeza,

daqui a alguns meses será enforcado como ladrão que você é.

Sua esposa e filha viverão nas ruas a pedir esmolas,

logicamente, se sobreviverem aos inquéritos da Inquisição...

Sem contar que sua amada filha, se sobreviver, será usada pelos

piores maus elementos dessa cidade. E, pensando bem, acho que

já vi esta cena antes: a jovem inocente sendo deflorada por maus

elementos... Ou será que foi um pesadelo que ainda não

despertei?

Ouvindo falar aquelas palavras, a mulher de Henrico

jogou-se ao chão, implorando para que eu não levasse a filha

dela. Eu poderia ter cedido a tal cena tão comovente, mas meu

coração estava endurecido pelo ódio! A mulher agarrava-se à

minha saia, implorando e suplicando – o que só me fazia ficar

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mais antipatizada ainda. Ela, vendo que de nada adiantavam

seus argumentos, disse:

– Senhora, eu a suplico mais uma vez: não faça isso

comigo! Nada tenho a ver com o que houve entre a senhora e

meu marido. Sou uma vítima também, fui enganada até agora.

Eu lhe suplico: não a leve de mim, não posso ter mais filhos.

Empurrei-a com o pé para longe de mim, dizendo:

– Que coincidência: eu também não! Mulher egoísta,

prefere ver a própria filha morrer de fome, perambulando pelas

ruas, do que saber que ela estará a salvo e sendo bem tratada?

– Egoísta? Quem é você para chamar minha esposa

assim? Você vem a nossa casa e exige que ela dê o único bem

que temos para se vingar de mim!

Friamente, respondi-lhe:

– Sua casa? Não, minha casa. Sua esposa? Você nem

sabe qual é o seu nome! Você não passa de um verme mentiroso

e sem caráter. E, se quer saber, estou farta de todos vocês. Que

seja preso e que sua prole pague por seus pecados! Na cadeia,

que você se lembre de cada momento desse dia para saber que,

mais uma vez, você foi o culpado por desgraçar a vida de

alguém. Grite por clemência enquanto estiver sendo enforcado,

vamos ver se alguém virá a seu socorro...

Disse isso e fui saindo porta afora, carregando comigo

meus companheiros, dispostos a emitir um mandado de prisão

para Henrico. Quando eu já estava subindo em minha

carruagem, a mulher de Henrico, aos prantos, puxou-me pelos

babados da saia e falou:

– Por favor, senhora, leve minha filha com você. Não

posso permitir que ela pague pelos erros do pai. Eu a amo mais

que tudo neste mundo e prefiro morrer a vê-la sofrer algum dano

que seja.

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– Está louca, mulher? Nunca mais a veremos. – disse

Henrico, gritando com olhos arregalados. Voltei-me calmamente

para ela e disse:

– Você é uma mulher sábia. Dê-me a menina.

Peguei a pequena nos braços. Ela chorava muito e

gritava pela mãe. Subi na carruagem, dizendo:

– Meus advogados procurá-la-ão. Você não passará

necessidades, prometo. E quanto à pequena, não se preocupe:

será tratada como uma princesa.

Como prometido, meus advogados procuraram a mulher,

dando-lhe um obséquio que a manteve pelo resto da vida.

Henrico passou a beber desordenadamente daquele dia em

diante. A mulher, devido à falta que sentia da filha, acabou

enlouquecendo, sendo trancada em um manicômio, onde acabou

os seus dias. Várias vezes encontrei Henrico perambulando

pelas ruas, pedindo esmolas, pois perdeu todo o dinheiro em

jogatinas. A pequena criança cresceu e transformou-se em uma

linda jovem. Passou a ter afeição por mim. Coloquei-a em um

convento para que ela seguisse um caminho religioso, e não o

meu exemplo de vida.

O tempo passou e meus negócios iam muito bem. Eu

tinha tudo o que uma mulher poderia ter – menos um amor.

Havia me vingado de todos, mas no fundo algo dizia que não era

suficiente e que precisava me vingar mais ainda de Henrico.

Então, coloquei-o para limpar as latrinas e o estábulo de minha

casa. Ele já estava em idade avançada e mal se aguentava de pé,

mas eu o humilhava de todas as formas possíveis.

Certa manhã, acordei com um enorme alarido vindo do

andar de baixo. Levantei-me às pressas e, ao chegar ao corredor,

percebi que toda a casa estava em chamas. Tentei descer para

ajudar a salvar minhas meninas, mas o andar também já havia

sido tomado pelo fogo. As chamas aumentavam em uma

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proporção maior do que o comum. Tentei gritar, mas a fumaça

entorpeceu-me, sufocando-me e fazendo-me desmaiar. Logo as

chamas alcançaram-me e não vi mais nada do que aconteceu.

Acordei em um lugar imundo, onde pessoas maltrapilhas

comiam as próprias fezes. Encontrei Eleanor e ela não podia

falar comigo, apenas rangia os dentes. Vaguei naquele lugar por

muito tempo, clamando por socorro. Mas foi em vão: só

encontrei escuridão e desespero. Estava muito queimada e

minhas feridas estavam cheirando mal, cheias de bichos que me

devoravam viva. A dor era inigualável. Por várias vezes tentei

me matar, mas era em vão: parecia que eu estava condenada a

permanecer eternamente naquele estado. Assim passaram-se os

meus dias, que pareciam meses. E os meus meses pareciam

anos, e os anos nunca findavam... Até que, certo dia, vi uma luz

muito forte e corri para me aproximar e ver quem eram aquelas

pessoas. Até as trevas corriam delas. Estava tão cansada! E

sofrida... naquele momento parecia ser o certo me aproximar

delas.

Eram pessoas sem rostos, porque a luz era muito forte e

não dava para vê-los bem. Vestiam-se de modo simples, com

calça branca de linho e uma túnica branca também de linho.

Eram como anjos, pois se trajavam todos de branco.

Imediatamente, perguntei-lhes:

– Quem são vocês? E como não se sujam neste lugar

maldito e cheio de imundície?

Um deles abriu-me um largo sorriso e falou:

– Somos o socorro e estamos aqui para aqueles que estão

realmente arrependidos. Não nos sujamos porque a sujeira é

uma lembrança das mentes atordoadas pelos delitos que vocês

cometeram.

– Então, leve-me com vocês: estou arrependida do que

fiz.

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– Está sendo realmente sincera? – disse o homem com

voz rouca, mas suave.

– Sim, estou. Preciso e quero sair deste lugar.

Imediatamente eles me levaram em uma maca para um

lugar chamado La Paz. Fiquei dias em repouso, em uma espécie

de sono profundo. Nesse sono é como se apagassem de nós todo

o sofrimento, não a memória, mas o sofrimento. Quando voltei a

mim novamente, quis de imediato sair dali e saber onde estavam

minhas meninas e o que houve com elas. Só responderam-me

essa pergunta muito tempo depois, quando eu estava mais

calma. O jovem que Eleanor havia contratado para me

investigar seduziu uma das minhas meninas com promessas e,

certa noite, quando dormíamos, ele levantou-se de madrugada e

abriu a porta para que os demais entrassem e ateassem fogo em

meu cabaré. Fiquei sabendo que Eleanor, minha ex-discípula,

junto com algumas pessoas da Igreja Católica e a esposa do

monarca que me deu a tiara de diamantes, entraram

sorrateiramente durante a noite e atearam fogo em meu cabaré.

Fiquei feliz por saber que a filha de Henrico estava bem,

no convento onde a coloquei. Henrico encarnou-se e sua esposa

também estava na colônia. Eu e a esposa de Henrico falamo-nos

algumas vezes e pedi-lhe perdão. Ela aceitou por eu não ter

levado sua filha a caminho da perdição. Ela era uma mulher de

bom coração. Encontrei minha mãe e meus avós, que muito me

tentaram aconselhar, embora eu não fosse muito adepta a

conselhos.

Certo dia o mesmo homem que foi meu socorrista cujo

nome é Ângelo Wallejo Moralles, disse-me que eu estava

convidada a me reencarnar novamente, mas a escolha tinha que

ser minha. Optei por encarnar-me novamente e cometi os

mesmos erros de outrora, pois me encontrei novamente com

Henrico, perseguindo-o. Mesmo tendo desencarnado primeiro,

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obsediei-o por muitos anos, fazendo-o cometer inúmeros crimes

e levando-o finalmente ao suicídio. Fui, então, levada a um

julgamento e condenada a vagar pela Terra muitos anos a fio.

Até que me surgiu a oportunidade de ajudar as pessoas. Sou uma

emissária entre os dois mestres, mas vivo no subterrâneo. Se

alguém pedir a um, tenho que conseguir permissão com o outro.

Não faço mal, mas também não faço o bem. Ajudo

somente a quem me for fiel. Sempre peço alguma coisa em

troca, porque sou a rainha dos ciganos e, como tal, somos

mercenários. Sou a rainha dos cabarés, e assim serei lembrada

até que eu tenha conseguido convencer o mestre das trevas a

pedir perdão ao mestre da criação.

Minha rixa com Wallejo é por que ele apostou muito em

mim, arriscou-se para que eu pudesse reencarnar novamente, eu

traí sua confiança, não cumprindo com os desígnios do Cristo.

Eu violei as ordens dos meus superiores, e mesmo reencarnada

fui uma médium relapsa e mercenária. Eu e Wallejo não somos

inimigos. Apenas não falamos a mesma língua. Confesso que

obsediei a pessoa quem vos escreve durante muitos anos, caso

ela não saiba, ela é a reencarnação da Anna Shaara e também a

reencarnação da esposa de Henrico. Hoje trabalhamos juntas e

essa é a minha história...

Se me arrependo de tudo o que fiz? Muito. Mas não

tenho como voltar atrás. Fiz coisas que abalaram as estruturas

do universo. Tudo o que fiz, fiz conscientemente e sabendo que

era errado. Aproveitei-me de meus poderes como bruxa para

valer-me de favores com o mestre das trevas. Magoei muita

gente, fiz muita gente sofrer e chorar. Prostitui-me, embriaguei-

me, prostitui e vendi muitas mulheres, roubei, matei e vivi no

meio do ódio e da perversão. Fui a pior de todas as criaturas,

mas garanto: mesmo estando do lado em que estou, jamais

induzo alguém ao erro. Se alguém disser que faço isso, é

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mentira. Por certo essa pessoa está cheia de obsessores, e posso,

com certeza, dizer: abaixo do pai das trevas existem criaturas

muito piores, criaturas que rastejam a seus pés, criaturas que

falam coisas abomináveis em seus ouvidos. Essas criaturas são

criadas por vocês, seres humanos, que de livre e espontânea

vontade agem contra a lei do Pai Maior. Ninguém os obriga a

fazer nada de errado, assim como nunca fui induzida ou

obrigada a fazer tudo o que fiz... Somos as respostas de tudo o

que praticamos e cometemos de errado. O caminho é livre: siga-

o como bem entender, mas não culpe ninguém pelo erro que

somente você cometeu.

Aqui os deixo saudosamente. Espero que minha história

de vida tenha lhes servido de exemplo para que possam ver que

o ódio e a vingança não são o caminho a se tomar, que o amor

verdadeiro é algo que está muito acima de qualquer poder ou

devaneio que subjuguem a mente humana. Não se pode prender

uma pessoa através dos laços da magia, muito menos obrigá-la a

nos amar de qualquer outra forma. O ser humano é livre e tem o

direito de ir e vir, seja em atitudes, atos ou pensamentos. Se

tentarmos prender alguém de alguma forma é porque não somos

capazes de conquistá-lo. O amor é um sentimento que não se

conquista. Porque quando amamos, por si só já nos rendemos e

nos prendemos a ele. Não precisamos de subterfúgios. Saiba o

que pedir em oração, pois será concedido. Mas muito cuidado:

você pode não estar preparado para pagar o preço. Pensem

nisso!

“Até quando o ser humano viverá de acordo com seus

caprichos? Até que a terra caia, ou até que o céu desça?

Cometemos constantemente erros e crimes contra nossos irmãos

e contra o Pai Maior. Mas será justo, após cometê-los,

pedirmos perdão e logo depois tornar a errar? Prudência, meus

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irmãos... Está na hora de pararmos para pensar que até mesmo

os anjos do céu cansam-se de ajudar-nos a apagar sempre o

mesmo erro”.

Fim.

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Transmissão oral dos ensinamentos ciganos

– O romani é uma língua ágrafa, ou seja, é uma língua

sem idioma e sem forma escrita. Portanto, para sua perpetuação

o romani conta somente com a transmissão oral, de uma geração

para outra, ou seja, de pai para filho. Existem livros de uma

língua que não têm sequer uma apresentação gráfica definitiva,

pois se os ciganos tivessem se originado na Índia, como supõem

muitos estudiosos, teríamos os caracteres sânscritos, mas como

encontramos ciganos em quase todas as partes do mundo, jugo

por mim que o romani pode muito bem ter os caracteres da

escrita russa, egípcia, latina, grega, árabe, espanhola,

portuguesa; entre tantas outras. Ressalto que não é somente o

idioma romani que é passado de geração a geração, toda história

e cultura cigana também são passadas dessa mesma forma para

os seus demais, sendo sempre do mais velho para o mais jovem.

Esse costume entre os ciganos é milenar.

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Pequeno dicionário cigano

Acans: olhos Aruvinhar: chorar Bales: cabelos Baque: sorte, fortuna, felicidade Bato: pai Brichindin: chuva Cabén: comida Cabipe: mentira Cadéns: dinheiro Calin: cigana Calon: cigano Chão : solo Churdar: roubar Dai (ou Bata): mãe Diklô: lenço Dirachin: noite Duvêl: Deus, Nosso Senhor, Cristo Esantardar: prender Lumbre: Fogo Gadjó: não cigano Gajão: brasileiro, senhor Gajin: brasileira, senhora Jalar: ir embora Kachardin: triste Kambulin: amor Murros: lábios Lon: sal Marrão: pão Manzana: maçã Mirinhorôn: viúva

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Naçualão: doente Nazar: flor Paguicerdar: pagar Panin: água Paxivalin: donzela Querdapanin: português Quiraz: queijo Raty: sangue Remedicinar: casar Ron: homem Runin: mulher Salamandra: estufa Sunacai: ouro Suvinhar: dormir Tiráques: sapatos Trup: corpo Urai: imperador ou rei Urdar: vestir Vázes: dedos ou mão Xacas: ervas Xinbire: aguardente Xôres: barbas

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Adriana Matheus

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Sobre a autora: Nascida em Juiz de Fora em 01/10/1970, onde

reside com seus dois filhos, a autora Adriana Matheus escreve desde os 14 anos de idade. Já participou de diversos concursos de literatura, inclusive de poesias, neste ganhou o prêmio de melhor iniciante, em 1999. Já escreveu doze obras: O Segredo dos Girassóis; Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras, Lendas Urbanas; Histórias dos Orixas, Perseu, o Príncipe dos Heróis; Memórias de um Psicopata; A cigana e a Lua, Doriko; Mary Polask; Nasce um pensador (poemas), Cartas de um Inquisidor, ERA UMA VEZ... (infantil). Sendo que O Segredo dos Girassóis é a que mais se destaca por ser uma obra de fácil entendimento e por envolver o leitor na leitura. O Segredo dos Girassóis ganhou neste ano de 2012 (em julho) o selo de boa escolha e o prêmio de excelência em literatura como reconhecimento da editora BOKESS. A autora publica todas as suas obras pela editora Ixtlan (http://www.editoraixtlan.com. A autora faz parte da Academia Luso Brasileira de Letras da cidade de Juiz de Fora-MG e já concorreu a vários prêmios de literatura, inclusive ao prêmio da Lei Murilo Mendes dessa cidade em 2010. Esse prêmio dá ao autor e à obra a chance de um grande reconhecimento nesse município. Contatos da autora:

http://anairdameuslivros.blogspot.com

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FIM