UM PEQUENO ESBOÇO DAS MUDANÇAS NA MENTALIDADE FRANCESA · PDF fileobra As...

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  • UM PEQUENO ESBOO DAS MUDANAS NA MENTALIDADE FRANCESA NO PERIODO PR-REVOLUCIONRIO

    Giuliana Ribeiro Casazza

    A Liberdade Guiando o Povo (1830) - Eugne Delacroix

    Na imagem, Uma mulher representando a Liberdade guia o povo por cima dos corpos dos derrotados, levando a bandeira tricolor da Revoluo francesa em uma mo e brandindo um mosquete com baioneta na outra.

    A Revoluo Francesa, alm de causar grande impacto nas estruturas econmicas, sociais e poltica, proporcionou diversas mudanas tambm no pensamento e nas ideologias da poca e teve um forte carter ecumnico, ou seja, atingiu uma escala mundial. Noes que hoje se tem a respeito de nao e soberania foram herdadas da Revoluo.

    Porm, essas mudanas na mentalidade francesa no ocorreram abruptamente. Foi um processo que se desenvolveu durante todo o sculo XVIII, principalmente em sua ltima dcada, e que forneceu os elementos que, mais tarde, seriam utilizados pelos atores do processo revolucionrio de 1789.

    O objetivo proposto nesta anlise o de traar um pequeno esboo das mudanas na mentalidade francesa ocorridas no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX e tambm o de demonstrar como essas mudanas contriburam, mesmo que indiretamente, para derrubar os mecanismos ideolgicos que sustentavam o Antigo Regime.

  • Alguns autores, como Albert Soboul1, afirmam que antes da revoluo, a sociedade francesa possua forte carter feudal, tanto em suas estruturas polticas e administrativas, quanto econmicas e sociais e era tambm fortemente marcada pela lgica dos privilgios, legitimada atravs da teoria do direito divino. Um exemplo disso seria a nobreza ocupar os melhores postos no exrcito, na justia, no clero e as mais importantes funes administrativas.2

    Imagem satrica que representa o terceiro estado como um homem pobre e idoso, carregando em suas costas um membro do alto clero e o outro da nobreza

    Assim sendo, at que ponto as mudanas na mentalidade francesa insuflaram um ideal revolucionrio? No h como saber ao certo em que medida essas mudanas influenciaram. O que no faz com que elas sejam menos importantes, j que mesmo indiretamente, elas contriburam para desconstruo de muitos dos valores disseminados pela monarquia. A Imprensa surgiu na Frana em meados do sculo XVII e era o meio mais rpido de difuso de informaes e opinies por todo o reino. Entretanto, era uma atividade fortemente controlada pela monarquia, que s permitia a circulao de jornais e folhetins depois de serem previamente inspecionados por censores reais. O mesmo acontecia na literatura, s obras dos escritores se fossem consideradas agressivas e nocivas sociedade eram proibidas. Contudo, muitas dessas obras circulavam dentro da sociedade francesa, a chamada literatura clandestina.

    Nesse ponto importante dialogar com a obra Boemia Literria e Revoluo de Robert Darnton. Nesse livro o autor apresenta sua anlise

    1 Para saber mais ver SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. Edio comemorativa do bicentenrio da

    Revoluo Francesa. 2 PRONNET, Michel. Revoluo Francesa em 50 palavras-chaves

  • atravs de fontes e dados que nos mostram o quo significante era o mercado de livros clandestinos que circulavam aos montes nas periferias parisienses, podendo se falar at mesmo em um comrcio de livros clandestinos. De acordo com Darnton, a partir da segunda metade do sculo XVIII, principalmente nas duas ltimas dcadas, h uma mudana no status de escritor e tambm h certo crescimento no nmero de indivduos leitores. O escritor passa a ser visto com mais prestgio na sociedade francesa o que d origem a uma elite scio-cultural conhecida como Le monde. Desta elite, fazem partes alguns importantes escritores como Voltaire e dAlembert, O Le monde era um fechado e seleto grupo de escritores, chamados de philosophes, que vivam mais custa de penses concedidas pela monarquia do que de seu talento e da venda de seus livros. Portanto, para fazer parte dessa elite era preciso muito mais do que simples talento (salvo as excees) e sim de uma boa lista de contatos e um bom nascimento. Muitos jovens escritores sonhavam em entrar para esse mundo dos philosophes, mas percebiam que o Le monde estava de portas fechadas para eles e que a Repblica das Letras to exaltada por Voltaire, no passava de uma farsa. Muitos desses jovens escritores viviam no interior e decidiam se mudar para Paris, com a esperana de ter uma carreira brilhante e bem sucedida na Repblica das Letras. Porm, ao se depararem com a cruel realidade e por falta de opo, se acomodavam nas periferias parisienses (ou submundo), onde realizavam diversos trabalhos considerados como sujos dentro da carreira literria, como espionar para a polcia, produzir libelos (acusaes ferrenhas monarquia) para os jornais ilegais e tambm divulgar os escndalos de membros da nobreza. Eram ridicularizados por escritores do Le monde que os chamava pejorativamente de escritores de sarjeta, e diziam que eles ocupavam um nvel social inferior at mesmo ao das prostitutas. Atravs das acusaes feitas nos libelos era possvel perceber o dio visceral que sentiam pela monarquia e pela injusta lgica dos privilgios, que os exclua impiedosamente da carreira literria. importante destacar que nessa poca, poucos eram os indivduos na Frana que sabiam ler, a imensa maioria da populao era analfabeta, porm apesar disso, muitos dos jornais e folhetins eram lidos em voz alta em locais pblicos, fazendo com que esses indivduos analfabetos entrassem em contato com essa literatura sediciosa. Apesar dos libelos denegrirem a imagem da monarquia e atacar muitos dos valores difundidos por ela, no se pode afirmar que esses literrios pretendiam uma Revoluo que aniquilasse o Antigo Regime. Porm, esse fenmeno demonstra que alguns segmentos da populao

  • clamavam por mudanas significativas na sociedade francesa. Deste modo, esses literrios contriburam, mesmo que indiretamente, para difundir um ideal mais igualitrio que seria elevado ao mximo pela Revoluo Francesa. Logo, no se pode negar o papel importantssimo desses escritores na Revoluo: As recompensas da nao devem ser ministradas aos que dela so dignos; e agora que desbaratamos os vis bajuladores do despotismo, devemos buscar o mrito que habita os pores e as guas furtadas do stimo andar... O verdadeiro gnio quase sempre sans-culotte. (Henri Grgoire, agosto de 1793) Toda a gente est ansiosa pela repblica; ningum quer nem a pobreza nem a virtude. (Louis Saint-Just) Um exemplo explcito disso que muitos desses literrios do submundo, no perodo revolucionrio foram os responsveis pela destruio das Academias literrias francesas e acabaram integrando tanto o grupo dos jacobinos quanto os dos girondinos. No menos importantes foram as mudanas ocorridas na mentalidade religiosa dos franceses no final do sculo XVIII. Atravs da obra As Origens Culturais da Revoluo Francesa de Roger Chartier, percebemos que houve um significativo afastamento entre os indivduos e a Igreja Catlica nesse perodo. Chartier aborda brilhantemente os fenmenos da descristianizao e secularizao ocorridos de forma gradual na sociedade francesa, buscando desenvolver (at certo ponto) duas questes levantadas por Alexis de Tocqueville: A do crescimento do sentimento anti-religioso entre os franceses e a total rejeio deles a qualquer credo religioso. Com a Reforma Catlica, o clero na tentativa de fortalecer os ideais catlicos, conseguiu impor aos fiis duas coisas: um maior comparecimento s missas e tambm uma escrupulosa execuo dos deveres da Pscoa. Assim sendo, o resultado maior da Reforma foi impor e regulamentar prticas que sculos antes eram executas irregularmente. Entretanto, atravs da anlise documental feita por Chartier e apresentada em sua obra, possvel perceber que esse fortalecimento das prticas religiosas no aconteceu de forma homognea, havia fortes variaes a nveis regionais e geogrficos na Frana. Um indcio importante dessa mutao na mentalidade religiosa seria a forma como grande parte dos indivduos se colocava diante da

  • morte. Na Frana, era comum que os cristos deixassem em seus testamentos algumas somas para financiamento das missas de repouso da alma, para que aps a morte pudessem encontrar a paz. Entretanto, no decorrer do sculo XVIII, essas prticas foram sendo gradativamente abandonadas e as quantias deixadas nos testamentos se tornavam cada vez menores. Em seguida, percebe-se certa indiferena em relao aos locais de sepultamento dos restos mortais, o que demonstra que essas pessoas estavam cada vez mais distantes dos ideais catlicos baseados na crena da salvao divina. O que fica explcito na frase do grande philosophe Voltaire: Deve-se considerao aos vivos; aos mortos apenas se deve a verdade. (Voltaire) Outro forte indicativo dessas mudanas seria o crescente recurso s prticas contraceptivas. A nova moralidade familiar pregada pela Igreja Catlica da Reforma proferia que a funo dos homens na famlia seria a de instruir os filhos pequenos, se empenhando para fornec-los uma vida decente e a de cuidar e proteger as mulheres da gravidez em excesso, o que colocava suas vidas em risco. Deste modo, isso acabou provocando indiretamente uma mudana nas prioridades da famlia, j que o casal para evitar a gravidez aderia s prticas contraceptivas existentes na poca (como o coitus interruptus) reduzindo assim o tamanho das famlias. Esses acontecimentos demonstram que os fiis acabaram se apropriando da retrica da Igreja e a voltaram contra os propsitos dela. necessrio destacar a singularidade da Contra-Re