Um retrato ancestral dos ameríndios

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Abril 2011·N° 182· R$ 9,50 UIS FAPESP UM RETRATO ANCESTRAL DOS AMERíNDIOS Genes e novos achados arqueológicos retraçam o povoamento das Américas

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Pesquisa FAPESP - Ed. 182

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Abril 2011·N° 182· R$ 9,50

•UISFAPESP

UM RETRATOANCESTRAL DOSAMERíNDIOSGenes e novosachadosarqueológicosretraçam opovoamentodas Américas

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fUNDAÇÃO DE AMPARO À PESOUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO ,,~ SOCI[OAOE BRASILEIRA DE OUIM'CA

IIfJAPESP

PROGRAMAÇÃO I Ciclo de Conferências

ANO INTERNACIONAL DA QUíMICA 2011

04 DE ABRIL (13:30 - 18:001FONTES ALTERNATIVAS DE ENERGIAE MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Coordenador:Arnaldo Alves Cardoso IIQ-Unesp,Araraquara, SP]

Conferencistas:Jailson B. de Andrade IIQ-UFBA, Salvador]Carlos Nobre [lnpe, São José dos Campos, SP]Gláucia Mendes Souza [lQ-USP, São Paulo]Luiz Ramos IUFPR, Curitibal

12 DE MAIO (13:30 -18:001NOVOS MATERIAIS

Coordenadora:

Rosário Elida Suman Bretas ICCET-UFSCarl

Conferencistas:Fernando Galembeck IIQ-Unicamp,Campinas, SP]Oswaldo Alves IIQ- Unicamp, Campinas, SP]Henrique Toma IIQ-USP, São Paulo]

08 DE JUNHO (13:30 - 18:001QUíMICA MEDICINAL DESAFIOS EPERSPECTIVAS

Coordenadora:

Eloísa Beraldo IUFGM, Belo Horizonte]

Conferencistas:

Eliezer J. Barreiros ILassbio-UFRJ,Rio de Janeiro]Silvia Regina Rogatto IFM-Unesp, Botucatu, SP]Luiz Carlos Dias IIQ-Unicamp, Campinas, SP]

19 DE JULHO (13:30 -18:001BIODIVERSIDADE & QUíMICA

Coordenadora:Dulce Helena Siqueira Silva IIQ-Unesp,Araraquara, SP]

Conferencistas:Carlos Joly IIB-Unicamp, Campinas, SP]Vanderlan da Silva Bolzani IIQ-Unesp,Araraquara, SP]Anita Marsaioli IIQ-Unicamp, Campinas, SP]

03 DE AGOSTO (13:30 - 18:001A QUíMICA DOCE, AMARGAE PERFUMADA

Coordenador:Norberto Peporine Lopes IUSP-RibeirãoPreto, SP]

Conferencistas:Claudia Rezende IIQ-UFRJ, Rio de Janeiro]Vitor Ferreira IIQ-UFF, Niterói, RJ]Ângelo da Cunha Pinto IIQ-UFRJ,Rio de Janeiro]

14 DE SETEMBRO (13:30 - 18:001DOENÇAS NEGLIGENCIADAS E OSDESAFIOS NODESENVOLVIMENTO DE NOVOSMEDICAMENTOS

Coordenador:

Carlos A. Montanari IIQ-USP, São Carlos, SP]

Conferencistas:Celia Garcia IIB-USP, São Paulo]Glaucius Oliva IIF-USP, São Carlos, SP]'Adriano Andricopulo IIF-USP, São Carlos, SP]

05 DE OUTUBRO (13:30 - 18:001A QUíMICA NO CONTEXTO DAEDUCAÇÃO, CIÊNCIA, TECNOLOGIAE If'.!OVAÇÃO

Coordenador:

Paulo Cezar Vieira IUFSCar, São Cariosl

Conferencistas:

Cezar Zucco IIQ-UFSC, Florianópolis]Carlos Henrique de Brito Cruz IFAPESP,São Paulo]Ronaldo Mota IMCT, Brasilial

19 DE OUTUBRO (13:30 -18:001NOVAS FRONTEIRAS TECNOLÓGICASDA QUíMICA

Coordenador:

José Fernando Perez IRecepta Biopharma, SP]

Conferencistas:

Luiz Eugênio Mello IVale, RJ]Edmundo Aires IBraskem, SP]Carlos Tadeu Fraga IPetrobras/Cenpes, RJ] -a confirmar

09 DE NOVEMBRO (09:00 - 12:001A CONTRIBUiÇÃO DE MARIE CURIEPARA A CIÊNCIA E UM OLHAR SOBREO PAPEL DAS MULHERES CIENTISTAS

Coordenadora:Marília O. F Goulart IDepartamentode Química, UFAL, Maceió]

Conferencistas:Maria Vargas IIQ-UFF, Niterói, Rio]Ana Maria Alfonso-Goldfarb IPUC-SP]Gabriel Pugliese IEscola de Sociologiae Política, São Paulo]

09 DE NOVEMBRO (14:00 - 18:001A QUíMICA INTELIGENTE A SERViÇO DAMEDICINA

Coordenador:

Leandro Helgueira IIQ-USP, São Paulo]

Conferencistas:

Luiz Henrique Catalani IIQ-USP,São Paulo]Jerson Lima Silva IIB-UFRJ,Rio de Janeiro]Sidney de Lima Ribeiro IIQ-Unesp,Araraquara, SP]Etelvino Bechara [Unifesp, Diadema, SP]

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, SPI

Ciclo de Conferências

ANO INTERNACIONALDA QUíMICA 2011

S de 04/04 a 09/11

2011 é o Ano Internacional da Químicano século que tem tudo para ser dela.O Ciclo de Conferências AnoInternacional da Química 2011 NossaVida, Nosso Futuro, realizado pelaSBQ e FAPESP - por meio da revistaPesquisa FAPESP-, vai debateras respostas da Química paraos desafios locais e globais.Em pauta, estarão mudanças climáticas,biodiversidade, fontes alternativasde energia, novos materiais,fármacos, novas fronteiras tecnológicas,inovação, juventude e química,mulheres na ciência e muita inteligência.

RJI-

EAS

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Informações e inscrições:

www.fapesp.br/eventos/aiq

01

QUíMICA:nossa vida. nosso futuro

SPI

'\. ~ ~ tnternatlonaí vear ot

I ANO CHEMISTRVAla ~~~~~~NAL 2011

QUíMICA PARA UM MUNDO MELHOR

Pesq.,~a

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l8 2 I ABRIL 2011

SEÇÕES

6 CARTAS

7 CARTA DA EDITORA

8 MEMÓRIA

24 ESTRATÉGIAS

44 LABORATÓRIO

60 SCIELO

62 LINHA DE PRODUÇÃO

93 LIVROS

94 RESENHA

96 FiCÇÃO

98 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

CAPA16 Grupos indígenas de

todo o continentecompartilham alteraçãogenética que favorece aobesidade e o diabetes

20 Novo estudo diz queprimeiros americanos separeciam com africanose amplia polêmica sobrechegada do homemao continente

ENTREVISTA10 Defensor da energia

nuclear e crítico docorporativismo,ex-ministro José IsraelVargas lembra atrajetória de cientistae criador de políticas

CAPA IMAGEM DE CHICOMECOATL,DEUSA DO MILHO / FOTO PHILlPPEPSAILA / SCIENCE PHOTO LlBRARV

E!DL ÍI.lCA C/Ef';LrIELCALJECNOLÓíJJ CA

28 ENERGIA ATÔMICAAcidente no Japãoreabre debatesobre futuro dapesquisa nuclear

40 INDICADORESListas das melhoresuniversidadesganhampopularidade,apesar daslimitaçõesmetodológicas

48 NEUROFISIOLOGIACorticoides acionammecanismosinflamatórios emalgumas áreasdo cérebro

52 BIOLOGIAAnimais da mesmaespécie têm peçonhasdiferentes

56 MINERALOGIAMaterial radioativopermite traçar aorigem geológica depraias do litoral suldo Rio de Janeiro

34 RECURSOSHUMANOSCursos e serviçosajudam pesquisadoresa redigir um bomtrabalho científico

43 Artigo de químicosda Unicamp ficaentre os maispopulares de 2010da revista Ana/yst

58C~cç(

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TECNOLOGIA HllMANIDADE.J-_

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58 COSMOLOGIAAção de raioscósmicos pode tergerado moléculasque formaramanimais e plantas

72 BIOQuíMICA.Alternativaenergética paragerar eletricidade

80HISTÓRIAApós 50 anos,renúncia de JânioQuadros aindaintriga analistas

66 BIOTECNOLOGIAUSO de microcápsulaspara revestirilhotas do pâncreaspode impulsionartratamento dodiabetes tipo 1

76 NANOTECNOLOGIAGrupo mineirodesenvolve novarota para produzirmateriaisbiomédicos

86HISTÓRIADA CIÊNCIAPesquisadorasbrasileiras encontramuma receita dapedra filosofal naRoyal Society

59 HOMENAGEMO geógrafo HilgardSternberg dedicoua vida a entenderas relações entrehomem e natureza

70 ENGENHARIADE ALIMENTOSNovo ingredienteusado pela indústrianão contémgordura trans

90 LITERATURAProfissionalização,volta do autor efoco na periferiamarcam ficçãobrasileira recente

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FUNDAÇÃODE AMPAROÀ PESQUISADOESTADODE SÃO PAULO

CELSO LAFERPRESIDENTE

EDUARDO MOACYR KRIEGERVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA,HERMAN JACOBUS CORNELlS VOORWALD, MARIA JOSÉ SOARES MENDESGIANNINI, JOSÉ DE SOUZA MARTlNS, JOSÉ TADEU JORGE,LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO,VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTíFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALCARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ (PRESIDENTE), CAIO TÚLlO COSTA,EUGlNIO BUCCI, FERNANDO REINACH, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉEDUARDO KRIEGER, LUIZ DAVIDOVICH, MARCELO KNOBEL, MARCELOLEITE, MARIA HERMfNIA TAVARES DE ALMElDA, MARIZA CORRtA,MAURfclO TUFFANI, MONICA TEIXEIRA

COMITÊ CIENTfFICOLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (PRESIDENTE), CYLON GONÇALVESDA SILVA, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOÃO FURTADO,JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ ROBERTO PARRA, uns AUGUSTOBARBOSA CORTEZ, LUIS FERNANDEZ LOPEZ, MARIE-ANNE VAN SLUYS,MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZOBRENTANI, SÉRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

COORDENADOR CIENTfFICOLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLlN

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRíCIO MARQUES (POLfT/CAl,

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (C/tNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FlORAVANTI, MARCOS PIVETTA

EDITORA ASSISTENTEDINORAH ERENO

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

EDITORA DE ARTELAURA DAVINA E MAYUMI OKUYAMA (COORDENAÇÃO)

ARTEMARIA CECILIA FELLI E JÚLlA CHEREM RODRIGUES

FOTÓGRAFOEDUARDO CESAR

EDITORA ON-LlNE.MARIA GUIMARÃES

WEBMASTERDANIELLE GOMES FORTUNATO

COLABORADORESANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CARLA RODRIGUES,CATARINA BESSELL, DANIELLE MACIEL, EDUARDO SCHENBERG, ESTEVÃOAZEVEDO, MARCOS BUCKERIDGE, MARIO KANNO, NAIAH MENDONÇA,NANA LAHOZ, NELSON PROVAZI, PAULA GABBAI, SHEILA GOLOBOROTKOE YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEMNECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIALDE TEXTOS E FOTOS SEM PREVIA AUTORIZAÇÃO

PARA FALAR COM A REDAÇÃO(11)[email protected]

PARA ANUNCIAR(11)[email protected]

PARA ASSINAR(11)3038-1434taoesocecsoiucoes.corn.brTIRAGEM: 38.000 EXEMPLARES

IMPRESSÃORR DONNELLEY EDITORA E GRÁFICA LTDA.

DISTRIBUiÇÃODINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVAINSTITUTO UNIEMP

PESQUISA FAPESPRUA JOAQUIM ANTUNES, N0 727 - 10° ANDAR, CEP 05415-012PINHEIROS - SÃO PAULO - SP

FAPESPRUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIORGOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

6 • ABRIL DE 2011 • PESQUISA FAPESP 182

EMPRESA QUE APOIA A CIÊNCIA BRASILEIRA

BiOLABFARMACÊUTICA

[email protected]

Cigarro e aquecimento global

A reportagem de Marcos Pivetta "Negarpara não mudar" (edição 175) trata do li-vro Merchants of doubt: how a handful ofscientists obscured the truth on issuesfromtobacco smoke to global warming, de doishistoriadores da ciência norte-america-nos, Naomi Oreskes e Erik M. Conway.Há má-fé na referência aos "mercadoresda dúvida", como é também enganosoo subtítulo, que associa um "punhadode cientistas" à discussão de fenômenostão díspares como aquecimento globale tabaco. Diferentemente do financia-mento da ciência latino-americana, nosEstados Unidos entidades filantrópicase fundações privadas, ONGs e laborató-

I rios industriais têm um papel marcante.Todo pesquisador tem, em algum mo-mento, a carreira marca da por recursosnão governamentais. A referência aos"mercadores da dúvida" é tendenciosaao supor que os autores do livro este-jam livres do mercado e do lucro. NosEstados Unidos; um livro que discutaapenas o aquecimento global esbarra naidolatria do automóvel. Daí a analogiacom a indústria do tabaco, sem defenso-res na população. A matéria refere-se à"tática" de pesquisadores supostamentevendidos a essa indústria que, "a despei-to das crescentes evidências dos malefí-cios do tabaco, negavam e minimizavamas conclusões dos estudos científicos':Houve isso, sem dúvida. No entanto, porque razão os autores silenciam sobre as

táticas da indústria de armas de fogoou de bebidas? Dar destaque ao fato dealgum cientista pedir cautela diante das"certezas" sobre a fumaça ambiental docigarro - o "fumo passivo" - é garantiade sucesso na mídia.

LUIZ ANTONIO DE CASTRO SANTOS

Instituto de Medicina Social/UerjRio de Janeiro, RJ

ZoosParabéns pela edição de março (no181). Desde a capa - criativa - até areportagem sobre este importante as-sunto ("Mais pesquisa, menos bicho").Além disso, os textos estão em redaçãoextremamente agradável. Fantástica!

MARA M. DE ANDRÉA

Instituto BiológicoSão Paulo, SP

Do twitterÉ raro ver uma entrevista com pergun-tas tão inteligentes como as feitas pelarevista @PesquisaFapesp ao maestroIsaac Karabtchevsky. Parabéns.

@TIAGOOOLIVEIRA TIAGO OLIVEIRA

Cartas para esta revista devem ser enviadas parao e-mail [email protected] ou para a rua JoaquimAntunes, 727 - 10° andar - CEP 05415-012 - Pinheiros -São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidaspor motivo de espaço e clareza.

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 7

Ideias para fazer mais e melhor

P esquisa FAPESP tem agora um Conselho Editorial composto por pesquisadores e jornalistas, num total de 12 membros,

presidido pelo diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. Na tarde da terça-feira, 15 de março, em sua primeira reu-nião na sede da FAPESP, os novos conselheiros ouviram de Brito Cruz o que deles se espera: ideias e sugestões para o aperfeiçoamento de uma revista já reconhecida por sua qualidade, mas que, como boa parte das produções intelec-tuais, apresenta-se em larga medida como um campo aberto para múltiplas experiências do fazer melhor. E o aperfeiçoamento de Pesquisa FAPESP, ressalte-se, importa não apenas pelo cultivo da excelência, movido por razões esté-ticas ou éticas. Mais importante ainda ele é por uma necessidade que a Fundação claramente identifica de ampliar o impacto de sua revista nos fóruns e nos meios socioculturais que se-riamente debatem e influenciam os rumos da política de ciência e tecnologia no país. Ou nos ambientes em que se discutem com rigor os me-lhores caminhos institucionais para assegurar a participação brasileira na construção contem-porânea do conhecimento científico, inclusive em suas fronteiras mais avançadas. Ou ainda nos meios que observam com sensibilidade as iniciativas de pesquisa científica e tecnológica capazes de gerar frutos suculentos, de variados tipos, passíveis de apropriação pela sociedade brasileira. Há, de fato, material em abundância nas edições da revista para alimentar debates sobre a melhor produção científica brasileira e sobre os desafios políticos para fazer avançar a produção do conhecimento – e nenhuma razão para que a Fundação aceite que o impacto dessa publicação seja menor do que aquele adequado à importância institucional da própria FAPESP.

Impelidos pelo que lhes disse Brito Cruz e mais o presidente da Fundação, Celso Lafer, para quem Pesquisa FAPESP, entre outros mé-ritos, tem o de promover um profícuo diálogo de culturas (as conversas, digamos, entre tantos campos do conhecimento numa mesma publi-cação), os novos conselheiros apresentaram já nesta primeira reunião suas visões sobre os

méritos e defeitos da revista, alguns diagnósti-cos e uma série de sugestões preliminares pa-ra torná-la ao mesmo tempo mais influente e atraen te. Nos próximos meses iremos falando aos leitores desse caminho de aperfeiçoamento. É tempo, contudo, de contar quem são os nossos conselheiros, todos respeitados profissionais de sua área de competência: no time dos pesqui-sadores, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida e Mariza Corrêa; no time dos jornalistas, Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Marcelo Leite, Mau-rício Tuffani e Mônica Teixeira. Para a equipe de jornalistas que faz Pesquisa FAPESP, é uma honra e um prazer contar com a criatividade desse time brilhante de profissionais na discus-são permanente de como deve ser esta revista, lançada em outubro de 1999, depois de uma fase preliminar de quatro anos como boletim informativo (Notícias FAPESP).

Em paralelo, para manter o rigor técnico-cientí-fico das informações que difunde, a revista con-tinuará a contar com o suporte fundamental de seu antigo conselho editorial, que agora se trans-forma em Comitê Científico, sob a presidência de Luiz Henrique Lopes dos Santos, coor denador científico do projeto da revista desde 2002. Aliás, aproveito a oportunidade para nomear os mem-bros desse comitê, que são, além de dois diretores da Fundação, todos membros da coordenação ad-junta da diretoria científica para diferentes áreas do conhecimento. Aos nomes, então: Joaquim J. de Camargo Engler (diretor administrativo), Ri-cardo Renzo Brentani (diretor presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa Cortez, Luís Fernandes Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner do Amaral e Walter Colli.

Por razões de espaço, não farei meus co-mentários habituais sobre a edição. Sugiro que o leitor investigue os temas que mais lhe atraem começando pelas chamadas da capa. Ela é sempre uma pista poderosa. No próximo mês retomarei os comentários. Boa leitura!

Mariluce Moura - Diretora de Redação

carta da editora

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8 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Aideia de um Brasil colônia sem o menor contato com o conhecimento natural – ou científico, como foi chamado a partir do século XIX – é algo que os historiadores parecem ter deixado para trás. Documentos encontrados nas últimas décadas

indicam que sempre houve gente escrevendo de modo tão objetivo quanto possível sobre plantas e animais brasileiros, registrando o movimento dos astros no céu do hemisfério Sul e estudando matemática e minerais de forma semelhante ao que se fazia na Europa. Esses cientistas do passado que viveram aqui eram poucos e quase sempre estrangeiros, mas existiram. Nos séculos XVII, George Marcgrave, no Recife, e Valentin Stansel, em Salvador, produziram trabalhos publicados, admirados e citados na Europa. No século XVIII, o jesuíta português José Monteiro da Rocha (1734-1819) seguiu esse mesmo caminho e escreveu em 1759 o manuscrito Sistema físico-matemático dos cometas depois de ter observado um cometa em Salvador, onde vivia. Trata-se do célebre Halley, previsto para ser observado a cada 76 anos pelo astrônomo inglês Edmond Halley.

Monteiro era natural da Vila de Canavezes e teria vindo ainda criança para o Brasil trazido por um missionário da Companhia de Jesus. No Colégio de Salvador foi ordenado padre e

Registros de um cometaMatemático escreveu manuscrito sobre a passagem do Halley nos céus brasileiros há 252 anos

Neldson Marcolin

memória

Números e figuras

que constam do livro

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 9

usufruiu de um bom ensino de matemática – marca dos jesuítas daquela época – e de uma biblioteca com títulos atualizados, com obras de Newton, Copérnico, Descartes e Gassendi. Graças à ativa correspondência, ele sabia que o Halley deveria voltar a ser avistado no final de 1758. Mas não teve acesso ao trabalho do francês Alexis-Claude Clairaut, que fez cálculos mais precisos no início desse mesmo ano e concluiu que o cometa retornaria com um mês de atraso, ou seja, no começo de 1759. Monteiro efetivamente o viu pela primeira vez em 20 de março e fez as últimas observações no final de abril. Como não tinha as informações de Clairaut, deixou de notar que se tratava do Halley.

Como consequência dessas observações, ele escreveu o Sistema físico-matemático dos cometas provavelmente ainda em 1759 e enviou o manuscrito para Portugal. Monteiro tinha então 25 anos. Naquele mesmo ano o Marquês de Pombal, título do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, baniu a Companhia de Jesus de todo o reino português. Mas deu aos jesuítas, como opção ao exílio, a renúncia à ordem. O jovem religioso decidiu ficar em Salvador, virou padre secular e professor público de latim e de retórica. Em meados da década de 1760 voltou à terra natal para continuar a estudar.

publicar no Brasil”, conta Ziller. O livro saiu em 2000 editado pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCT), do Rio de Janeiro. “Infelizmente não foi possível rastrear os caminhos que levaram o manuscrito a ficar mais de 200 anos esquecido.”

O historiador atenta para o fato de o tratado de Monteiro sobre astronomia ser também rico de informações sobre a cultura colonial e as atividades eruditas realizadas no período. “Esses aspectos ainda são pouco valorizados”, diz. De acordo com o matemático Ubiratan D’Ambrósio, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a quem Ziller primeiro consultou sobre a importância do religioso naquela época, Monteiro foi bom matemático e um educador influente em Portugal. “Mas ele teve mais brilho na astronomia, onde fez seus trabalhos mais relevantes”, conclui.

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Primeira página do manuscrito e os desenhos geométricos de Monteiro

Halley visto em 1986 no seu retorno após 76 anos

diretor do Observatório Astronômico português.

O manuscrito escrito na juventude por Monteiro da Rocha trata da natureza física dos cometas e do cálculo das efemérides com base na teoria gravitacional de Newton, utilizando um conjunto de técnicas geométricas. O texto permaneceu inédito até 1998, quando o historiador Carlos Ziller Camenietzki, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o descobriu em uma visita de trabalho à Biblioteca Pública de Évora, em Portugal. “Pedi para microfilmarem, me certifiquei de seu ineditismo e consegui

Foi para a Universidade de Coimbra e lá fez carreira como matemático e astrônomo. Seu pendor para as ciências o levou a ser indicado para organizar a nova faculdade de matemática criada pela reforma pombalina de 1772 na mesma universidade, onde ficou responsável pelas cadeiras de mecânica e de hidrodinâmica, e, posteriormente, pela de astronomia. Em 1795 foi nomeado o primeiro

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10 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

José Israel Vargas

Da crise à oportunidadeDefensor da energia nuclear e crítico do corporativismo,ex-ministro lembra a trajetória de cientista e criador de políticas

O mineiro José Israel Vargas, de 83 anos, não é ape-nas testemunha privilegiada da consolidação da ciência brasileira no século XX, como se tornou uma das vozes mais influentes da política cientí-fica e tecnológica do país, do alto de cargos como o de ministro da Ciência e Tecnologia de 1992 a 1998 – ele foi, até hoje, o mais duradouro titular

da pasta. Licenciado em química pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1952, logo se ligou à física, campo em que sua formação se consolidou no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e na Universidade de São Paulo (USP). Doutor em ciências nucleares pela Faculdade de Física e Química da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, foi um dos formuladores da política de energia nuclear do país no início dos anos 1960, atividade interrompida pelo golpe militar de 1964, o que o fez partir, em exílio voluntário, para uma temporada de seis anos e meio como pesquisa-dor do Centro de Estudos Nucleares do Comissariado de Energia Atômica, em Grenoble, na França. Vargas reto-mou a carreira de formulador de políticas com Aureliano Chaves, na época governador de Minas Gerais; mais tarde tornou-se secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, no governo Figueiredo. A ascensão de Itamar Franco à Presidência levou-o ao Ministério da Ciência e Tecnologia, onde continuou no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. “Como sou pé-frio, sempre fui chamado em momentos de crise”, define Vargas, que há três anos reuniu alguns de seus escritos das últimas três dé-cadas no livro Ciência em tempo de crise. Defensor da energia nuclear e crítico do corporativismo na ciência brasileira, Vargas narra sua trajetória na entrevista a seguir.

O senhor é graduado em química, mas sua carreira enve-■nredou para a física. Como foi essa transição?

Os meus amigos brincam que, para os físicos, sou químico ——e, para os químicos, sou físico. Estão querendo dizer que sou igualmente ignorante nas duas áreas, não é? (risos). A área de

Fabrício Marques

entrevista

atração para quase toda a minha geração foi a da física nuclear e a energia nuclear, a maior conquista técnico-científica durante e logo após a Segunda Guerra Mundial. O Brasil tinha tido a ventura de contar com uma geração, a dos anos 1940 na USP, que nos deu uma série de grandes cientistas, formados pela brilhante escola italiana criada por Enrico Fermi. Gleb Wataghin e Giuseppe Occhialini formaram, na USP, Marcelo Damy, Abraão de Moraes, Mário Schönberg, Paulus Aulus Pompeia, César Lattes e Oscar Sala. Meu contato com essa geração começou no período em que fui estudar química na Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG], em 1948. No segundo ano me transferi para a USP, na alameda Glete, onde fiquei quase dois anos. Como todo jovem da época, eu era de es-querda e estive envolvido com a agitação estudantil e a campanha “O petróleo é nos-so”, liderada principalmente pela juventude comunista. Fiz amigos e conhecidos que se tornaram cientistas importantes.

Por exemplo...■nEly Silva, Luís Hildebrando Pereira ——

da Silva, Ernesto e Amélia Hamburger, Fernando Henrique Cardoso, José Gol-demberg, Victor Nussenzweig, com o qual, aliás, fui preso durante a campanha do petróleo. Voltei para Minas inclinado pela física. Tornei-me professor de física do curso secundário, embora continuas-se a estudar química, e fui professor de física num cursinho pré-vestibular na Faculdade de Filosofia da UFMG.

Page 11: Um retrato ancestral dos ameríndios

PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 11

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12 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

americano. À época lecionavam lá vários cientistas como James Chadwick, desco-bridor do nêutron, e Otto Frisch, autor do primeiro modelo da fissão nuclear.

O que fez na volta ao Brasil?■nReassumi minha função no Instituto ——

de Pesquisas Radioativas e na Faculdade de Filosofia, onde exercia interinamen-te a cátedra de físico-química e química superior, depois fui aprovado em con-curso para provimento dessa cátedra. Empenhei-me em conseguir as condi-ções materiais para o trabalho científico, o que era urgente. A partir dessa ocasião me relacionei fortemente com o Marcelo Damy e participei de numerosos grupos de trabalho criados na Cnen [Comissão Nacional de Energia Nuclear], presidida por ele. Fui designado membro da dire-toria da Cnen e nessa função tornei-me suplente dele na Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atô-mica, em Viena, onde integrei diversas comissões, duas das quais merecem re-ferência: a que estabeleceu as regras de salvaguarda para orientar o controle por inspeção das atividades nucleares; e a que foi incumbida de proceder à normaliza-ção internacional dos dados nucleares, até então muito divergentes.

Por que o senhor foi exonerado da Cnen ■n

após o golpe de 64?Naturalmente se recordavam de que ——

eu tinha sido agitador estudantil; a revo-lução tinha uma memória longa. Como todas as revoluções... Fui submetido a uns três inquéritos policiais militares; meu la-boratório foi invadido por destacamento do Exército. Fui exonerado “a pedido” da diretoria da Cnen, mas resolvi não sair do Brasil até que as coisas se esclareces-sem, para evitar que fosse processado in absentia. Em 1964 fui convidado a ir para os Estados Unidos, para a Argentina, pa-ra a Holanda e para a França. Optei pela França, em particular para Grenoble, mas mantendo estreitas relações com o Insti-tuto Nacional de Técnicas Nucleares, que funcionava em Saclay, perto de Paris. Fui para Grenoble porque um dos meus ami-gos da Agência Internacional de Energia Atômica [AIEA], Pierre Balligand, que fora seu diretor de reatores de potência, tornou-se diretor do Centro de Estudos Nucleares de Grenoble, conjuntamente com Louis Néel, prêmio Nobel de Física.

Que relação manteve com o Brasil? ■nEm 1969 ou 1970, fui chamado pela ——

Cnen para vir ao Brasil sugerir políti-

Como foi sua passagem pelo Instituto ■nTecnológico de Aeronáutica?

Durante esse período, o ITA promo-——veu um curso de aperfeiçoamento de professores de física do curso secundá-rio, uma iniciativa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-co e Tecnológico]. Foi organizado pelo Paulus Aulus Pompeia, que era uma das mais importantes figuras do grupo de Occhialini e Wataghin. O Pompeia fo-ra um dos participantes de descoberta marcante da física da época: os chama-dos chuveiros penetrantes, uma das pri-meiras demonstrações de que o núcleo atômico é muito mais complexo do que se imaginava. Nesse curso havia uns 20 e poucos alunos do Brasil todo. A perspec-tiva que a energia nuclear abria à econo-mia mundial e à ciência era formidável. Era natural que os jovens com alguma inclinação científica se encaminhassem para essa área. O curso foi interessante porque o Pompeia mobilizou a fina flor da física brasileira para lecionar e fazer conferências. Também estavam no Brasil naquela época dois grandes físicos norte- -americanos, Richard Feynman e David Bohm, este último refugiado do macar-tismo. Na ocasião, o Abraão de Moraes, que foi um teórico importante da física e da astronomia brasileiras, sugeriu ao Pompeia que me recrutasse para o ITA. Era recém-formado em química, mas fui para o departamento de física.

Como era o ambiente do ITA?■nFiquei no ITA de 1952 a 1954. Foi um ——

período extremamente interessante, por-que o ITA havia recrutado o que havia de melhor no Brasil. Jovens cientistas e engenheiros em várias áreas, sobretudo na de engenharia mecânica, de materiais, de aeronáutica e, é claro, de matemáti-ca. Havia trazido, sobretudo do Massa-chusetts Institute of Technology, o MIT, um grande número de cientistas. Alguns alemães do grupo do Von Braun, além de belgas, franceses, checos e suíços que começaram a trabalhar em projeto para o primeiro avião brasileiro, a semente do que viria a ser a Embraer. O ITA era um local especial, porque oferecia casa, comida, um pequeno salário e uma carga horária mínima, que permitia assistir a diversos cursos no próprio ITA, entre os quais o ministrado pelo Walther Bal-tensperger, originário do Politécnico de Zurich, de quem me tornei amigo fra-ternal. Eu ia além disso a São Paulo uma vez por semana, assistir ao seminário do David Bohm, na USP, hospedando-me

O governo Geisel me nomeou membro do plenário do Conselho nacional de Pesquisa, mas não me dava passaporte para sair do país

frequentemente na casa do Fernando Henrique Cardoso. No mesmo edifício morava o Mário Schönberg, o que mo-tivava longas conversas noturnas. Isso me orientou cada vez mais para a física. Deixei o ITA por doença de meu pai e re-gressei a Belo Horizonte. Abriu-se então um concurso para professor catedrático de física no colégio municipal. Pouco depois foi criado em Belo Horizonte o Instituto de Pesquisas Radioativas [IPR] e fui convidado pelo professor Francisco Magalhães Gomes, organizador do ór-gão, para trabalhar no que eu desejava, a área nuclear.

O passo seguinte foi o doutoramento na ■nUniversidade de Cambridge.

Exatamente. Nessa época, foi organi-——zado no Chile o primeiro curso latino- -americano de química nuclear na Uni-versidade de Concepción, patrocinado pela Universidade de Cambridge e pela Unesco. Ganhei a bolsa do CNPq para esse curso; fomos dois brasileiros apenas. Lá conheci Alfred Maddock, que me pro-pôs fazer o doutorado em Cambridge e se tornaria meu orientador. Iniciei em 1956. A Universidade de Cambridge tinha sido o principal centro do desenvolvimento da ciência nuclear. Na minha época lá havia uns cinco ou seis prêmios Nobel. Os pesquisadores vinham do programa inglês de armamento nuclear e muitos ha-viam participado do projeto Manhattan

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cas, presumivelmente novas. O presi-dente da comissão era o general Uriel Alvim e ele queria discutir a retomada ou não do famoso projeto do tório, que fora iniciado no IPR, em Belo Horizonte. Isso ocorreu num período em que não havia política nuclear brasileira defini-da; nesse contexto, um grupo de jovens engenheiros, físicos e químicos de Belo Horizonte formulou o chamado proje-to do tório, que almejava a construção de uma entre várias opções de reatores, particularmente o chamado reator auto-gerador ou regenerador, que usaria uma mistura de urânio enriquecido e de tório. O projeto perdeu apoio e eu me tornei a ovelha negra do programa. Nunca conse-gui comprovar o fato, mas tenho certeza – por inconfidência de pessoa amiga e informada – de que a nossa Comissão de Energia Nuclear, mediante um ”decreto secreto”, que aparentemente foi de uso corrente no regime de 64, fora proibida de ter relações comigo...

A que o senhor atribui isso?■nO meu grupo, o da administração ——

Damy, sempre propugnou um programa independente, usando urânio natural, mas o governo militar assinou um acor-do com os Estados Unidos e adquiriu um reator pronto, tipo “chave na mão”, alimentado com urânio enriquecido, pa-ra o qual a contribuição da tecnologia nacional seria praticamente nula, o que não aceitávamos. Houve nossa posição independente na Junta de Governadores da AIEA. Recorde-se que a fatalidade de uma terceira guerra mundial era doutri-na corrente na administração brasileira. Posteriormente houve o acordo com a Alemanha, já no governo Geisel, no qual eu tive participação indireta. Por exemplo, a Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte, que eu presidia durante o governo Aureliano Chaves, formulou o programa Pronuclear, a ser adminis-trado pelo CNPq, destinado à formação do pessoal necessário à implementação do acordo nuclear com a Alemanha. O Oscar Sala, o Goldemberg e eu, reticentes quanto ao acordo, fomos convidados a visitar as instalações nucleares alemãs. Achei e continuo achando que o pro-grama nuclear era um instrumento de modernização do país. Eu julgava que o acordo tinha lados positivos. O pro-grama ficou reduzido durante longo período ao reator americano de Angra 1. Trata-se de um reator com o qual não aprenderíamos nenhuma tecnologia, a não ser, para ser justo, a de segurança,

de gestão e de operação. O primeiro rea-tor dos que estavam previstos no acordo nuclear com a Alemanha foi o Angra 2, que finalmente apoiei.

Como foi seu retorno ao Brasil?■nChegou um momento em que tive ——

que decidir. Eu tinha quatro filhas, a mais velha com 12 anos. Continuar na França significaria ficar permanentemente, pois é provável que elas se casassem lá. Voltei em 1972. Foi um momento importante para a ciência brasileira. Em 1972 a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] era dirigida por José Pelúcio Ferreira, uma figura central na promoção entre nós de política científica extremamente ativa e sábia, dispondo de amplos recursos finan-ceiros, originados do BNDES e depois da própria Finep. Eu não conhecia o Pelúcio, mas ele me convidou para conversar. Que-ria que eu fosse uma espécie de consultor. Disse-lhe de minha resistência a qualquer relacionamento com o governo militar e que não estava interessado em seu convite. Já de saída, perguntei quem sugeriu meu nome. “O Celso Furtado”, disse. Eu havia ficado amigo do Celso em Cambridge. Então disse que tudo mudou de figura; se foi do Celso Furtado a sugestão é porque você merece consideração. “Então, o que vamos fazer?”, perguntou-me. Minha pro-posta foi a seguinte: trabalhar sobre mate-riais estratégicos, como níquel, zinco, nió-bio. Nióbio é importante porque temos 90% da reserva mundial e não dispomos de níquel; nossos não ferrosos são todos muito alterados pela intempérie tropical, exigindo tecnologia autônoma. A grande reforma do sistema de ciência e tecnologia brasileiro foi promovida pelo Pelúcio e pelo Reis Velloso, no governo Geisel. E para a minha surpresa fui nomeado mem-bro do plenário do novo Conselho Nacio-nal de Pesquisa, órgão da Presidência da

República que coordenava as atividades de pesquisa e desenvolvimento do país. Ao mesmo tempo não me concediam passaporte para sair do país...

O governo militar teve uma caracterís-■ntica também modernizante, como se vê na aproximação com os cientistas...

Houve essa dubiedade. Havia a opo-——sição de certos grupos e instituições que, um pouco por carreirismo, me viam tal-vez como competidor, mas fui nomeado pelo Geisel. Ao mesmo tempo, o Aure-liano Chaves tinha sido nomeado gover-nador de Minas e me conhecia. Ele me convidou para organizar a Secretaria de Ciência e Tecnologia do governo mineiro. Disse-lhe que não aceitava por não co-nhecer suficientemente o quadro em que deveria atuar; fiquei quase sete anos fora. Ele me disse: “Mas você quer tempo para refletir, pensar, fazer o levantamento?” Aceita esta sugestão, fui nomeado presi-dente da Fundação João Pinheiro. Nessa época também foi criada a Embrapa.

Como foram as discussões que levaram ■nà criação da Embrapa?

Fui contra o projeto tal como se dese-——nhava, até que foi apresentado o progra-ma de formação de recursos humanos. O projeto do Alysson Paulinelli, ministro da Agricultura, consistia em enviar 800 jovens brasileiros para fazer doutorado nas melhores universidades estrangeiras, particularmente em Wisconsin, Purdue, Cornell e outros centros de reputação internacional. Aí eu declarei que estava a favor do projeto. Eu sabia que, desses 800, 10% teriam competência necessá-ria à absorção dos progressos havidos na genética molecular, reorientando os programas da empresa nesse setor estra-tégico. Recordo esse problema porque não há segredo na escolha da rota do

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progresso. São exemplos desse sucesso a sequência de medidas que levaram à Embraer e à Embrapa: recrutamento e formação altamente competente, flexi-bilidade de gestão, independência em relação às instâncias burocráticas. Hoje estamos meio esquecidos disso. A ciência é uma obra de indivíduos, quem faz boa ciência são os bons cientistas, quem faz ótima ciência são os ótimos cientistas. Qual é o papel do governo, da política, da administração? É criar condições para que as pessoas de qualidade possam fazer ciência de qualidade. A segunda exigência é a seguinte: contrariamente à tecnologia, que pode ser local, ligada às condições naturais próprias e aos recursos naturais originais, a ciência é universal, não existe ciência brasileira, existe ciência.

O senhor foi contrário à criação do ■nMCT. Por quê?

Eu sempre fui contra, porque o minis-——tério entra em linha de competição com outras pastas, reconhecidamente mais fortes segundo o ponto de vista dos po-líticos de visão quase sempre muito curta. Então, o Ministério de Ciência e Tecnolo-gia é sempre tratado como sendo de se-gunda ou terceira categoria. Na reforma do Reis Velloso, o Pelúcio pôs a ciência na Presidência da República, garantin-do prioridade e orçamento. É isso o que importa. Por que foi criado o ministério? Por uma razão política. O doutor Ulysses Guimarães pleiteava a nomeação de Re-nato Archer para ministro das Relações Exteriores. Tancredo tinha compromisso com o Olavo Setúbal. Foi então criado o

Ministério de Ciência e Tecnologia para o Archer, que aliás foi bom ministro. Isso mostra o lado vulnerável e desimportante da ciência e tecnologia para a sociedade brasileira. Elas ainda não fazem parte de nosso sistema de valores.

Como o senhor foi convidado para o ■nministério?

O Collor caiu e o Itamar me convidou. ——Eu disse a ele que tinha ficado um pouco escarmentado com o exercício da função de secretário de Tecnologia Industrial no governo Figueiredo. O Itamar me disse, “ah, mas é preciso me ajudar a carregar o andor. Estou tentando fazer um governo de união nacional”. Como sou pé-frio, cheguei em crise, mas fui o ministro de Ciência e Tecnologia que durou mais tem-po até hoje. O Itamar me apoiou muito. O que consegui fazer resultou, inicial-mente, em grande parte, da privatização da Companhia Siderúrgica Nacional. Os recursos puderam dar andamento a uma boa quantidade de obras ou projetos en-gavetados, por falta de fundos...

Por exemplo?■nNão fui lá para inventar a roda e parti ——

do princípio de que meus antecessores não eram imbecis nem malévolos, mas pessoas que deram um balanço na oportunidade ou não de realizar certos projetos e iniciar outros tantos. Então ocupei meu tempo terminando obras que tinham sido lan-çadas. Muitas iniciativas, tanto do regime militar como posteriores, estiolaram com uma decisão desastrosa da Constituição de 1988: o regime jurídico único, que iguala

em salários os professores da UFRJ, da UFMG e da Unifesp; que estabelece as mesmas atribuições e remunerações aos docentes dessas instituições e para os de qualquer dessas universidades que o go-verno Lula criou, a torto e a direito. Havia um dispositivo que praticamente impedia a contratação de cientistas estrangeiros; foram necessários quatro anos de luta para eliminar da Constituição a proibição. Aca-bou tarde e as “panelas” de universidade e o regime jurídico único não permitem regar o país com gente envolvida com pes-quisa em áreas de fronteira.

Como avalia as mudanças na legislação ■nsobre inovação?

O Luís XV ou a Madame Pompadour, ——há divergências a esse respeito, foram os autores da famosa frase “après moi, le dé-luge” (“depois de mim, o dilúvio”). No Brasil é o contrário, é “antes de mim, o dilúvio”. Tudo que foi feito antes deve ser abandonado. Tínhamos duas leis de incentivo para o desenvolvimento da ciên cia e tecnologia com a participação da indústria, extremamente importantes, a 8.248, lei da informática, e a 8.661, que permitia às empresas deduzir até 8% do imposto de renda devido se aplicassem esse percentual em ciência e tecnologia. A lei 8.248 era muito mais generosa, pois incidia sobre o faturamento do setor de informática. Todas as duas foram altera-das. Uma das razões da falta de sucesso das relações da indústria com a uni-versidade e com os órgãos de fomento à pesquisa é que os desenvolvimentos importantes do ponto de vista econô-mico, que geram renda, são protegidos por sigilo. A empresa que quer desen-volver um novo dispositivo não tolera submeter sua ideia inovadora à buro-cracia decisória formada por cientistas da Finep, do CNPq. Não aceita também submeter a seus iguais, porque são pro-váveis competidores. A solução consiste em só conceder o incentivo a posteriori. Uma empresa declara que vai aplicar X em ciência e tecnologia; aplica, contrata com a universidade, faz o que quiser, com cláusula de sigilo. Terminado o projeto, aí é que o governo, demonstrado o que foi feito, concede ou não o incentivo. Parece trivial, não é? Isso é essencial. Como está em contradição com as reivindicações da comunidade científica, que quer ter poder de decisão, engendra-se essa in-compatibilidade entre o setor produtivo e a academia. Uma das mudanças havidas nessa lei foi atribuir papel maior aos ór-gãos decisórios. Foi um erro.

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Qual vai ser o futuro da matriz ener-■ngética brasileira?

Primeiro, a energia hidrelétrica. Todo ——mundo fala em megausina, mas quando se faz o levantamento do potencial hí-drico do Brasil em geral se desconsidera todo o potencial que alcança menos de 20 megawatts. As miniusinas têm um imenso potencial. Acho que precisamos de energia nuclear para substituir a ge-ração de ponta, hoje produzida pelo gás, carvão e óleo combustível de origem fós-sil, que causam o efeito estufa.

A energia nuclear teve uma retração nos ■nanos 1980, por questões de segurança, que pode se repetir agora, após os vazamentos radioativos causados pelo terremoto no Ja-pão. Há tecnologia madura para a energia nuclear substituir ou de fato complemen-tar o que o Brasil precisa?

Não. Nosso país tem pequena chance ——de retomar as atividades da área porque o pessoal especializado de que dispunha envelheceu, pois não houve estímulos pa-ra formar novos especialistas. No gover-no Geisel, há mais de 30 anos, foi criado o programa Pronuclear. Durante sua vi-gência foram enviadas ao exterior mais de 600 pessoas – engenheiros, geólogos, químicos, físicos – para estudos de espe-cialização, principalmente na Alemanha. Esse pessoal envelheceu, se aposentou. A única iniciativa que sobreviveu são os restos do chamado “programa paralelo”, hoje conduzido pelo almirante Otto Pi-nheiro e que constitui um grande sucesso. Graças a esse programa o Brasil domina a tecnologia do enriquecimento isotópico do urânio. Temos uma valiosa moeda de troca nessa área. Embora não disponha de pessoal, é possível, portanto, retomar o setor reanimando-o, sobretudo por via da cooperação internacional.

E a questão da segurança?■nÉ indispensável adotar sistemas regu-——

latórios de radioproteção independentes e eficientes, que garantam a segurança das centrais existentes e das futuras. Parece-me insuficiente o que foi feito nessa área até agora. O Brasil não sepa-ra o licenciamento e a fiscalização das atividades de execução na área nuclear; descumpre portanto recomendação da Agência Internacional de Energia Atô-mica, datada de 2003, aliás aprovada com o voto brasileiro, e a despeito do alerta lançado há anos pela comunida-de científica. Um exemplo irrefutável: o acidente de Goiânia motivou projeto de lei que corrigiria essa anomalia; ele

está engavetado até hoje na Câmara dos Deputados. A inércia seria resultante de pressões corporativistas do funcionalis-mo da Cnen. Não tenho dúvida de que a energia nuclear será fundamental para o atendimento das necessidades energé-ticas do mundo. Naturalmente os acon-tecimentos no Japão irão frear, talvez por longo período, o lançamento de novos projetos. Recentemente tem-se falado no nosso alegado potencial eólico. Na Fran-ça, que gera em centrais nucleares quase 80% da energia que consome, estima-se que a energia eólica proveniente de gera-dores marinhos é quatro vezes mais cara. Maior potencial é o da biomassa, parti-cularmente o do bagaço de cana, seja por queima direta, seja como matéria-prima para utilização nas futuras instalações de hidrólise enzimática da celulose.

Da sua saída do ministério até hoje, ■nalguns indicadores como os de produção científica vêm crescendo progressivamente. Como avalia esses últimos anos?

Infelizmente o sistema científico e ——tecnológico também foi imbuído da ideo-logia oficial de que o Brasil começou há oito anos. Quando cheguei ao ministério, apesar das dificuldades enfrentadas, a in-dispensável participação do setor privado

O sistema científico e tecnológico foi imbuído da ideologia oficial de que o Brasil começou há oito anos. Mas, em termos relativos, aumentou muito pouco o volume de recursos

no orçamento de ciência e tecnologia era de 6%; quando saí, atingia 30%. Quando o Sérgio Rezende deixou o ministério em 2010, esse percentual era de 34%. Triplica-mos o número de doutores, de mil para 3 mil e a administração passada também o triplicou para 10 mil. Em termos relativos aumentou muito pouco; em termos abso-lutos, o volume de recursos cresceu com o PIB. Quando saí do MCT cerca de 1% ou 1,1% do PIB era o que se gastava em ciência e tecnologia; agora está em 1,3%. O PIB aumentou, mas o esforço relativo qua-se não mudou. O indicador das patentes licenciadas continua mau: 90% delas são registradas por não residentes. A produção científica nacional aumentou e o número frequentemente citado é de 19 mil publi-cações anuais. Mas houve uma mudança de base de contagem, hoje mais ampla do que a anterior utilizada pelo ISI.

O número de revistas brasileiras na base ■nde revistas ISI foi de algumas dezenas para mais de uma centena.

Quando mudou a base, o número na-——turalmente aumentou. Em outros termos, não foi um aumento tão grande. Essa ques-tão me leva a referir de novo às dificuldades que enfrentei e a algumas realizações. Uma delas foi a criação do CPTEC [Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, do Inpe], graças ao qual o Brasil passou a ter uma previsão meteorológica de Pri-meiro Mundo. Foi instalado em Petrópolis o Laboratório Nacional de Computação Científica José Pelúcio Ferreira, que saiu do Rio, onde funcionava na Praia Verme-lha, para um novo campus. O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron também co-meçou a funcionar no governo Fernando Henrique, financiado com recursos em parte oriundos da privatização da CSN, durante o governo Itamar. No caso dos chamados fundos setoriais, criou-se, na minha gestão, o fundo de royalties prove-nientes da renda das concessões petrolí-feras, destinando-o à ciência e tecnologia, graças à proposta do então senador Eliseu Resende, que restabeleceu para a União o monopólio do petróleo. Na área espacial, criamos a Agência Espacial Brasileira e fo-ram construídos dois satélites brasileiros no Inpe, além de outros dois em colabora-ção com os chineses. O setor foi considera-velmente favorecido pela continuidade do Programa de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [PADCT] junto ao Banco Mundial e pela criação de fundos para os Núcleos de Excelência, que se tornaram marcos importantes para a presença do Brasil no contexto da ciência mundial. n

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Grupos indígenas de todo o continente compartilham alteração genética que favorece

a obesidade e o diabetes

Ricardo Zorzetto

Herança americana

Os povos nativos das Américas e seus des-cendentes carregam em seus corpos uma característica particular que os distingue das populações dos outros continentes. Há quase 300 gerações suas células abri-

gam uma alteração genética que no passado permitiu a sobrevivência, mas nos últimos 40 anos vem contribuin-do para que adoeçam. A mutação que uma equipe inter-nacional de pesquisadores encontrou em 29 populações indígenas americanas, em especial do México e da Amé-rica Central, aumenta a reserva de energia das células e, em tempos de calorias fartas, favorece o desenvolvimento dos problemas de saúde que mais crescem no mundo: a obesidade, o diabetes e os danos cardiovasculares, que matam 17 milhões de pessoas por ano.

A variação genética detectada até agora apenas em índios americanos contemporâneos e seus descenden-tes afeta um gene conhecido pela sigla ABCA1 e leva à troca de um dos 140 milhões de nucleotídeos (unidades formadoras do DNA) empacotados no cromossomo 9. Comum no organismo, esse tipo de alteração ocorre mi-lhares de vezes enquanto as células duplicam seu material genético antes de se dividirem e quase sempre é corrigido pelos mecanismos de reparo celular. Quando escapa, não costuma interferir no funcionamento do corpo.

Esse, porém, não é o caso dessa falha no ABCA1. A subs-tituição de um único nucleotídeo nesse gene modifica a es-trutura de uma proteína da membrana celular que controla o nível de colesterol nas células. Como resultado, as células acumulam 30% mais colesterol, que entra na composição de hormônios e serve como estoque de energia.

“Essa não é a primeira alteração observada nesse gene, nem a única característica de nativos americanos”, conta Victor Acuña-Alonzo, pesquisador do Instituto Nacional de Arqueologia e História (INAH), no México, primeiro autor do artigo que descreveu a frequência dessa muta-ção entre os ameríndios na Human Molecular Genetics de julho de 2010. “Mas, até onde sabemos, é a primeira mutação que, além de exclusiva desses povos, foi sele-cionada por condições ambientais, se disseminou pelo continente e afeta o funcionamento do organismo.”

Membro da equipe do bioquímico Samuel Canizales- -Quinteros, que estuda os efeitos dessa alteração na popu-lação mexicana, Victor vem trabalhando com pesquisado-res do Brasil e de outros países para ma-pear essa variação gênica no continente. Em sua primeira visita ao país em 2008 contava apenas com amostras de sangue de indígenas do México e da América Central. Na Universidade Federal do

Maias da Guatemala: um dos povos portadores da mutação

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Rio Grande do Sul conheceu os geneti-cistas Francisco Salzano e Maria Cátira Bortolini, que dispunham do material genético de 5 mil índios sul-americanos e lhe propuseram uma colaboração. No mesmo ano Tábita Hünemeier, que fa-zia doutorado sob orientação de Maria Cátira, passou dois meses na Unam e de-pois seguiu para o laboratório de Andrés Ruiz-Linares, na University College Lon-don, onde caracterizou o gene ABCA1 de índios dos Andes e do Canadá.

T ábita, Victor e Teresa Flores Do-rantes analisaram informações genéticas de 4.405 indivíduos

de 38 povos indígenas americanos e compararam com as de 863 membros de populações da Ásia, da Europa e da África. Constataram que a alteração genética no ABCA1 que leva à substi-tuição de um aminoácido arginina por uma cisteína inexiste nos outros con-tinentes – ao menos, não nos grupos estudados – e afeta em média 15% dos nativos americanos. Mas sua frequên-cia varia muito. Nenhum indivíduo do povo Seri, do noroeste do México, apresentou a alteração, encontrada em 29% dos índios Cora, 21% dos Zapote-ca e 20% dos Maia, na Mesoamérica. Na América do Sul, a mutação não foi de-

Tábita e Maria Cátira, que assinam com Victor e Canizales outro artigo ainda não publicado, acreditam mais em uma segunda explicação, a chama-da hipótese do gene frugal. Segundo essa teoria, proposta em 1962 pelo ge-neticista norte-americano James Neel, características genéticas que de algum modo se mostrem vantajosas seriam mantidas numa população. Na lingua-gem dos bió logos, passariam por um processo de seleção positiva. Nesse caso, a redução no fluxo de colesterol para fora das células implicaria maior acú-mulo de energia, fundamental em pe-ríodos de escassez de alimento como os que os primeiros habitantes da América – e de outras partes do globo – devem ter enfrentado com frequência antes que a agricultura se tornasse estável e animais fossem domesticados.

As pesquisadoras gaúchas veem na domesticação do milho o provável fator que catalisou a dispersão dessa forma alterada do ABCA1 na população ame-ríndia, em especial na Mesoamérica. Dados arqueológicos recentes indicam que o ancestral selvagem do milho – uma gramínea chamada teosinte, que produz vagens como as do amendoim – começou a ser cultivado há 8.700 anos no vale do rio Balsas, sul do México. Ali

tectada entre os Jamamandi e Karitiana, da Amazônia, ou os Mapuche, do Chile e da Argentina, mas é comum entre os Xavante (31%), do Mato Grosso.

Apesar das diferenças, há um padrão nos dados: a distribuição dessa variante gênica é mais homogênea no México e na América Central, baixa nos Andes e oscila nas terras mais baixas da América do Sul, onde está o Brasil. No artigo da Human Molecular Genetics, os pesquisa-dores propõem duas explicações.

A primeira é que a mutação deve ter favorecido a sobrevivência dos indiví-duos por ter um efeito protetor contra doenças infecciosas. Vírus como o da febre amarela e da dengue e o parasita causador da malária parecem necessitar de colesterol para invadir o organismo e se reproduzir. E seriam prejudicados por essa alteração no gene ABCA1. Experimentos da equipe de Canizales mostraram que as células com a forma alterada do gene liberam 30% menos colesterol para o sangue. Com menos colesterol à disposição dos agentes in-fecciosos, mais pessoas sobreviveriam e transmitiriam às gerações seguintes o gene alterado. Um dado apoia essa ideia: os povos em que a mutação no ABCA1 é mais comum vivem nas regiões onde é maior a incidência dessas infecções.

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A prêmio Nobel

Rigoberta Menchú,

descendente dos Maia

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foram encontrados artefatos de pedra e microfósseis de milho, que, estima-se, tenha sido a fonte de 70% das calorias consumidas pelos povos da Mesoamé-rica e ainda é base da dieta na região.

Analisando alterações ao redor do ABCA1, Tábita e Maria Cátira estimam que a variante que favorece o acúmulo de colesterol nas células surgiu há 8.300 anos, quase 10 mil anos depois de os primeiros seres humanos chegarem à América (ver texto na página 20).

E ssa data coincide com a da do-mesticação do milho e fortalece a ideia de que o cereal pode ter

contribuído para a seleção positiva des-sa mutação. Na opinião de John Doe-bley, da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, estudioso da domesti-cação do milho, é razoável pensar que o início da agricultura na América tenha influenciado a seleção da forma mutada do ABCA1, assim como o consumo de leite e domesticação de boi levaram ao aumento da frequência na Europa e na África da variante genética que permite aos adultos digerir a lactose.

Mas o que havia sido uma vantagem evolutiva no passado se manteria após o início da agricultura? É provável que sim. Os pesquisadores imaginam que, depois de identificar o milho como alimento e aprender a plantá-lo, os in-dígenas tenham se tornado sedentários e a população, multiplicado. Christo-pher Gignoux, da Universidade Stan-ford, usou dados genéticos de povos que praticavam agricultura e grupos de caçadores-coletores para estimar o ritmo de crescimento populacional. Em estudo a ser publicado na revista PNAS, ele conclui que o surgimento da agricultura elevou em cinco vezes a taxa de crescimento das populações na Europa, na Ásia e na África.

Grupos antes formados por dezenas de pessoas passaram a abrigar milha-res. Cresceu o número de braços para produzir, e o de bocas para saciar. “Ima-gina-se que, no início, a agricultura te-nha proporcionado um sucesso apenas parcial”, diz Maria Cátira. Informações arqueológicas – calcula-se o grau de desnutrição analisando dentes e ossos – sugerem que períodos de escassez de alimento (e alta mortalidade) foram frequentes nos primeiros milhares de anos, antes de a produção estabilizar.

Só quem conseguisse armazenar energia e suportar a fome por mais tempo seria capaz de atravessar esses períodos. “Nessas épocas até 80% das pessoas que sobreviveram deveriam ser portadoras de ao menos uma cópia da forma alterada do ABCA1”, calcula Tá-bita. Se comprovada a hipótese de que a domesticação do milho contribuiu para espalhar a mutação na América, esse se-rá o primeiro caso registrado de seleção natural influenciada pela agricultura entre povos nativos americanos. Mas, por ora, é só hipótese. A única convic-ção dos pesquisadores é que, no México e na América Central, a dispersão do gene alterado não se deu ao acaso. Já na América do Sul, em especial no Brasil, pode ter sido diferente, já que o milho não teve a mesma importância nem há evidências consistentes de terem existi-do grupos populacionais grandes.

Seja qual for a explicação, o certo é que o fator que permitiu atravessar tempos de fome hoje agrava a saúde dos ameríndios. Canizales e sua equipe mostraram anos atrás que essa alteração no ABCA1, presente em 20% da popu-

lação mexicana, é mais comum entre pessoas obesas, com diabetes e taxas anormais de colesterol (dislipidemia). Notaram ainda que ela contribui para a obesidade, o diabetes e dislipidemias, fatores de risco para problemas cardio-vasculares. Agora, ao cruzar dados ge-néticos com informações sobre altura, peso e nível de lipídeos e açúcares de 1.729 pessoas, o grupo viu que, entre as alterações conhecidas do ABCA1, a mutação que leva à troca da arginina pela cisteína é a que mais contribui para reduzir os níveis de HDL, a forma de dislipidemia mais comum no México.

“Embora aparentemente ausentes em outras populações, essas mutações típicas de grupos específicos podem ter um efeito funcional importante, nesse caso, sobre o metabolismo”, explica a geneticista Carla D’Angelo, da Univer-sidade de São Paulo. “Como a alteração é compartilhada por outros povos da América, acredito que possa influenciar a saúde de pessoas no Equador, no Peru e na Bolívia, onde é grande a compo-nente indígena da população”, afirma Victor. “A partir de agora”, diz Maria Cátira, “não é mais possível compreen-der os problemas metabólicos dos povos nativos das Américas sem considerar o papel dessa alteração genética.” n

Teosinte, acima: ancestral selvagemdo milho

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Novo estudo diz que primeiros americanos se pareciam com africanos e amplia polêmica sobre chegada do homem ao continente

OHomo sapiens não teria se diferenciado em raças ou tipos físicos distintos antes de se estabelecer em todos os continentes, inclusive nas Américas, o último grande bloco de terra, com exceção da gélida An-

tártida, conquistado pela espécie. A leva inicial de caça-dores-coletores que aqui entrou, há mais de 15 mil anos, vinda da Ásia por um caminho hoje ocupado pelo estreito de Bering, teria uma estrutura anatômica muito similar à da primeira população de humanos modernos emigrada da África, entre 70 mil e 55 mil anos atrás. Depois de deixar o berço da humanidade, o homem penetrou na Ásia, que primeiramente serviu de base para a conquista de outros dois pontos importantes do globo, a Europa e a Austrália, e mais tarde de um terceiro, as Américas. “Até uns 10 mil anos atrás, todos os Homo sapiens presentes em qualquer continente tinham uma morfologia craniana de padrão africano”, diz o bioantropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). “O processo de raciação ainda não havia começado.” O surgimento de tipos físicos, como os caucasianos ou os mongoloides (asiáticos de olhos puxados e face plana), seria um fenômeno biológico muito recente e teria ocorrido apenas depois de o homem ter se espalhado por praticamente toda a Terra.

O pesquisador defende essa hipótese, polêmica, num artigo científico publicado na edição de março do Ameri-can Journal of Physical Anthropology. No trabalho, Neves e outros dois antropólogos físicos – o brasileiro Mark Hubbe, que trabalha no Instituto de Investigação Arqueológica e Museu da Universidade Católica do Norte, no Chile, e a grega Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, na Alemanha – comparam 24 características anatômicas presentes nos crânios de seres humanos que viveram entre 10 mil e 40 mil anos atrás na América do Sul, Europa e leste da Ásia e de indivíduos da época atual oriundos dessas três regiões, além da África Subsaariana, Oceania e Polinésia. Ao todo, foram confrontados 48 esqueletos antigos (32 da América do Sul, 2 da Ásia e 14 da Europa) e 2 mil atuais. “Independentemente da origem geográfica, os membros das populações antigas se assemelham mais a seus con-temporâneos do passado do que aos humanos de hoje”, comenta Hubbe. Em outras palavras, os traços físicos do homem que abandonou a África e, 40 mil anos mais tarde, desbravou as Américas eram praticamente os mesmos. De acordo com essa visão, a conquista do mundo foi um fenômeno tão rápido – o Homo sapiens teria usado rotas costeiras, menos difíceis de serem vencidas – que não deu tempo para o homem desenvolver de imediato adaptações físicas aos novos ambientes.

Os resultados do estudo amparam o modelo de povoa-mento de nosso continente defendido há mais de duas dé-cadas por Neves, cujos trabalhos são financiados em grande parte pela FAPESP. Segundo essa hipótese, as Américas foram colonizadas por duas ondas migratórias promovidas por povos distintos que cruzaram em momentos diferentes o estreito de Bering. A primeira teria sido composta por hu-manos que, há uns 15 mil anos, ainda exibiam essa morfo-

Marcos Pivetta

Crânios de Lagoa Santa: americanos com traços africanos

Page 22: Um retrato ancestral dos ameríndios

22 n abril DE 2011 n pESQUISA FApESp 182

logia “pan-africana”, para usar um termo empregado pelo pesquisador da USP. Os membros desse bando inicial de caçado-res-coletores deveriam ser parecidos com Luzia, o famoso crânio feminino de 11 mil anos resgatado na região mineira de Lagoa Santa. Tinham nariz e órbitas ocu-lares largos, face projetada para a frente e cabeça estreita e alongada. Embora seja impossível determinar com certeza a cor de sua pele, eram provavelmente negros. Todos os seus descendentes desaparece-ram misteriosamente em algum ponto da Pré-história por motivos ignorados e não deixaram representantes entre as tribos hoje presentes no continente.

O s humanos com traços africa-nos foram, sempre de acordo com as ideias de Neves, ma-

joritariamente substituídos por indi-víduos que vieram em um segundo movimento migratório da Ásia para as Américas. O novo grupo teria entrado no Novo Mundo mais recentemente, entre 9 mil e 10 mil anos atrás, e inclui-ria apenas indivíduos com característi-cas físicas dos chamados povos mon-goloides, como os atuais orientais e as tribos indígenas encontradas até hoje em nosso continente. Seres humanos com essa aparência mais asiática, surgi-da possivelmente como uma adaptação ao clima extremamente frio da Sibéria e eventualmente do Ártico, não podem ter participado da primeira leva migra-

tória para as Américas simplesmente porque esse tipo físico ainda não havia surgido na Terra. Pelo menos é o que dizem Neves, Hubbe e Harvati.

Essa teoria sobre o povoamento das Américas está longe de ser consensual. Análises do DNA extraído de popula-ções extintas e vivas de indígenas do continente, em especial das sequências contidas nos genomas da mitocôndria (de linhagem materna) e do cromosomo Y (herdado do pai), contam uma histó-ria distinta. Favorecem a hipótese de que houve apenas um movimento de en-trada de indivíduos da Ásia em direção ao Novo Mundo e de que essa travessia ocorreu alguns milhares de anos antes do sugerido pelas evidências arqueoló-gicas. “Praticamente toda a diversidade

biológica dos atuais tipos humanos já estava presente na única leva migrató-ria que entrou nas Américas”, diz o ge-neticista Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Apenas os esquimós, população que representa o caso mais extremo e tardio da chamada morfologia mongo-loide, ainda não tinham se originado e não participaram dessa leva.”

Ao lado de colegas brasileiros e da Ar-gentina, Bonatto publicou em outubro de 2008 um artigo científico no American Journal of Physical Anthropology, a mesma revista em que saiu o trabalho de Neves. O estudo analisou 10 mil informações genéticas e a anatomia de 576 crânios de populações extintas e atuais encontradas de norte a sul nas Américas. Segundo o artigo, há aproximadamente 18 mil anos, um grupo fisicamente já bastante hete-rogêneo de caçadores-coletores saiu da Sibéria e se instalou no Alasca. Faziam parte desse bando primordial pessoas com feições do tipo asiático e também com traços mais africanos. O modelo também se diferencia das ideias de Neves e Hubbe porque sustenta ainda que, antes de entrar no Novo Mundo, esse grupo de colonizadores fez uma longa pausa for-çada na Beríngia, antiga porção de terra firme que conectava a Ásia às Américas. Hoje submersa pelo mar, a Beríngia deu lugar ao estreito de Bering.

A parada na divisa dos dois continen-tes teria ocorrido entre 26 mil e 18 mil

origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica iii – nº 2004/01321-6

modAlIdAdE

projeto temático

Co or dE nA dor

Walter neves – instituto de biociências da usp

InvEStImEnto

r$ 1.555.665,94 (fapEsp)

O prOjetO

Três visões da chegada às Américas

UmA mIgrAção

Uma única leva de humanos deixa a Sibéria e entra no Alasca. Indivíduos de tipos físicos distintos, alguns mais africanos, outros mais asiáticos, compõem o grupo

pElo AtlântICo

O homem chega ao nordeste brasileiro vindo da África. Vem navegando de ilha em ilha numa época em que o mar estava mais baixo. A ideia é defendida por Niède Guidon

dUAS mIgrAçõES

Migrantes de feições africanas cruzam Bering e aqui se estabelecem. Mais tarde uma nova leva de colonizadores, com traços asiáticos, penetra nas Américas e se torna dominante

100 MIL ANOS

15 MIL ANOS

10 MIL ANOS

18 mil anos

quilômetros

0 5.000

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pESQUISA FApESp 182 n abril DE 2011 n 23

anos atrás, período em que a presença de grandes geleiras bloqueava a entrada das Américas. Quando a rota para o Novo Mundo se abriu, a migração se efetivou. Mas a escala obrigatória na Beríngia, se-gundo essa hipótese, produziu mutações específicas no DNA da população de mi-grantes aprisionada na fronteira dos dois blocos de terra. Essas alterações genéticas não estão presentes nos povos da Ásia, mas foram repassadas aos descendentes dos primeiros americanos. Um estudo recente, com a participação de brasileiros, sugere que uma dessas mutações favore-ce o acúmulo de colesterol em índios do continente (ver texto na página 16).

O s dois modelos descritos, que não são os únicos a tratar da questão do povoamento das

Américas, parecem irreconciliáveis. Mas o antropólogo físico argentino Rolando González-José, do Centro Nacional Patagónico, de Puerto Ma-dryn, que já escreveu artigos científi-cos com Neves, Bonatto e outros bra-sileiros, vê pontos fortes e fracos em ambas as abordagens. “Concordo que muitas variações presentes no crânio do homem têm uma origem recente, mas é preciso dizer também que as po-pulações antigas podiam ser bastante heterogêneas”, afirma González-José. “O modelo de Neves não é totalmente incorreto, mas o dado genético é difícil de ser contestado e mostra que todos os índios americanos descendem de uma única população.”

Há outras visões sobre o processo de povoamento das Américas, algu-mas ainda mais controversas. Para a arqueóloga Niède Guidon, fundadora e presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que administra o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, o homem já estava no nordeste brasileiro há 100 mil anos. Veio da África, navegando de ilha em ilha, aproveitando-se de momentos em que o mar estava bem mais baixo do que hoje. “A navegação é muito mais antiga do que se pensa”, diz Niède. “Não acredito que o Homo sapiens colonizou as Américas pelo estreito de Bering.”

Com cerca de 1.300 sítios pré-histó-ricos, recheados de belas pinturas rupes-tres, o parque já forneceu 33 esqueletos humanos e mais de 700 mil peças líticas para o acervo da instituição. As data-

Artigo científico

HUBBE, M. et al. Paleoamerican Morphology in the Context of European and East Asian Late Pleistocene Variation: Implication for Human Dispersion Into the New World. American Journal of Physical Anthropology. v. 50, n. 3, p. 442-53. mar. 2011.

Uma peça nova e importante do complicado quebra-cabeça que tenta reconstituir quando o Homo sapiens entrou nas Américas apareceu no final de março. Uma equipe de pesquisadores, liderada por Michael Waters, da Universidade Texas A&M, divulgou a descoberta do mais antigo vestígio da presença humana na América do Norte. Situado na localidade de Buttermilk Creek, no Texas, o sítio Debra L. Friedkin abriga cerca de 15,5 mil artefatos feitos pela mão do homem há estimados 15.500 anos. Trata-se basicamente de lâminas, muitas inacabadas, algumas com dupla face, feitas com um tipo de quartzo. “O sítio fica no centro do estado e deve ter levado algum tempo para o homem encontrar esse local”, diz Waters, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “É possível que ele tenha chegado às Américas antes dessa época. Quanto antes, eu não saberia afirmar. Só o tempo e mais trabalho duro podem dizer.”

A datação dos artefatos foi obtida pela técnica da luminescência. O método mede a energia dos últimos raios de Sol (ou da derradeira exposição a um calor intenso) que foi aprisionada nos sedimentos da camada geológia de 20 centímetros em que as peças do sítio arqueólogico foram achadas. Nenhuma ossada foi resgatada do local,

mas os cientistas dizem que os objetos foram inequivocamente talhados pelo Homo sapiens e poderiam ser usados como facas ou pontas de lança. Talvez fizessem até parte de um kit que os antigos humanos carregavam em suas andanças.

O estudo foi divulgado com alarde. Afinal, os antigos habitantes de Buttermilk Creek viveram 2.500 anos antes da chamada cultura Clovis, definida a partir de um sítio arqueológico do Novo México onde foram encontradas há cerca de 80 anos pontas de lança líticas com idade de 13 mil anos. Até os anos 1980, predominou sem muito questionamento a ideia de que essa cultura seria a mais antiga das Américas. Mas a descoberta nas últimas décadas de outros sítios com idade tão ou mais avançada do que Clovis, tanto na América do Norte como na América Central e do Sul, minou cada vez mais essa teoria. Os novos achados no Texas parecem sepultar de vez as aspirações de que o antigos habitantes do Novo México foram os primeiros a se instalar no continente. Como as lâminas do sítio Debra L. Friedkin foram encontradas perto de vestígios de pontas do estilo Clovis, e os dois tipos de peças têm similaridades, os pesquisadores acreditam que a segunda cultura pode derivar da primeira.

O mais antigo sítio dos EUA

ções divulgadas pela arqueóloga, que apontam para uma presença humana no nordeste há pelo menos 50 mil anos, são contestadas por muitos de seus pa-res. Niède não arrisca dizer como seria a aparência física dos responsáveis pelos desenhos pré-históricos da serra da Ca-pivara, embora alguns estudos prelimi-nares sugiram que eles possam ter sido semelhantes ao povo de Luzia. n

Pedras laminadas do Texasmic

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24 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

Estratégias mundo

bancos de dados em busca de prédios atacados em áreas rebeldes e cemitérios”, disse à revista Nature Susan Wolfinbarger do projeto Tecnologias Geoespaciais e Direitos Humanos, da Associação Americana para o Avanço da Ciência. Um dos maiores problemas na documentação de abusos na Líbia, diz Susan, é que os observadores não têm acesso às cidades.

GuErra vista Do céu

Pesquisadores e ativistas de direitos humanos estão usando imagens de satélite e sistemas de informação geográfica para documentar abusos cometidos contra a população civil pelo ditador da Líbia, Muamar Kadhafi, na repressão aos protestos de opositores. “Comparamos imagens recentes com nossos

a china Do baixo carbono

A China planeja reduzir sua dependência de car-

vão, ampliando a utilização de combustíveis não

fósseis. O premiê chinês Wen Jiabao anunciou

uma série de metas para aumentar a eficiência no

uso de energia e conter as emissões de carbono.

Nos últimos cinco anos o país reduziu sua inten-

sidade energética – que é a relação entre o con-

sumo de energia e a produção econômica do país

– em 19,1%. A estratégia para os próximos cinco

anos prevê uma redução adicional de 16%. O plano

inclui metas para as emissões de carbono, a serem

reduzidas em 17%, e o consumo total de energia.

“As metas são ambiciosas”, disse à revista Nature

Antony Froggatt, do centro de estudos londrino

Chatham House. Como as importações do país de

petróleo e gás aumentam a cada ano, diz Froggatt, as metas

são cruciais para a China manter sua competitividade. O país

também pretende aumentar a proporção de sua energia pro-

veniente de combustíveis não fósseis – como energia eólica,

hidrelétrica e nuclear. O governo espera que o aumento dos

investimentos em pesquisa e desenvolvimento para 2,2% do

PIB traga inovações no campo da energia limpa.

Carvão chinês: redução

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Benghazi em fotode satélite

“Mas com as imagens de satélite estamos documentando a destruição em áreas civis.” O acesso ao serviço Google Earth,

que disponibiliza imagens de satélite em alta resolução, é uma das ferramentas que ajuda a registrar os abusos. O mesmo expediente já foi usado em conflitos no Zimbábue, na Geórgia e em Darfur, e as imagens colhidas foram anexadas aos processos em cortes internacionais.

cacau Por caféna África

A indústria de cacau da Libéria, destruída numa recente guerra civil, vai ser revitalizada com

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PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 25

a colaboração de Gana, um dos maiores produtores do fruto. Representantes dos dois países da África Ocidental assinaram um memorando para intensificar atividades de pesquisa. O Instituto de Pesquisa em Cacau de Gana e o Instituto de Pesquisa Agrícola Central da Libéria vão realizar projetos conjuntos e promover intercâmbio de pesquisadores, além de oferecer assistência técnica para produtores. O governo dos Estados Unidos participará da iniciativa financiando a produção de mudas. Num segundo momento, a Libéria deverá ajudar Gana a dar impulso à produção de café, fornecendo variedades de que dispõe. “A colaboração vai impulsionar a agricultura dos dois países por meio da transferência de tecnologia”, disse à agência SciDev.Net Derrick Mills, dirigente do Centro de Informação e Negócios das Associações de Agricultura de Gana.

sEm EsPErar PEla nasa

A Agência Espacial Europeia (ESA) decidiu seguir

adiante sem o apoio da Nasa, que vive crise or-

çamentária, em sua próxima grande empreitada

espacial. Três projetos da ESA disputam a primazia

de ir ao espaço até 2020: o International X-ray

Observatory (IXO), um telescópio para observar

buracos negros e a formação de galáxias; o Laser

Interferometer Space Antenna (Lisa), capaz de

detectar ondas gravitacionais; e o Europa Jupi-

ter System Mission (EJSM-Laplace), em que duas

sondas gêmeas visitariam as luas de Júpiter Euro-

pa e Ganimedes. O vencedor seria conhecido em

junho, mas a ESA adiou a decisão para fevereiro

de 2012 depois de tomar uma atitude drástica.

Mandou os responsáveis pelos projetos cortarem

entre 40% e 50% do orçamento, uma vez que o

dinheiro prometido pelos Estados Unidos não virá.

“Foi uma decisão difícil, mas a Nasa não poderia cumprir o

nosso calendário de lançamento”, disse à revista Nature David

Southwood, diretor de exploração científica da ESA. A redução

de custos vai afetar os objetivos científicos de cada projeto,

mas os responsáveis mantêm o otimismo. Joel Bregman, da

equipe do IXO, diz que mesmo se o telescópio for construído

com um espelho menor que o previsto e só com dois ou três

instrumentos, em vez dos seis propostos, ainda estará um

passo à frente das missões existentes. Ronald Greeley, do

EJSM-Laplace, diz que a tarefa é fácil para o seu grupo. Basta

abandonar uma das duas sondas gêmeas.

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para gerar células nervosas a partir de células-tronco embrionárias. Brüstle perdeu, mas recorreu e o caso foi parar no tribunal europeu. O juiz Yves Bot, responsável pelo caso, concluiu que

a técnica não é patenteável, pois o uso industrial dos embriões humanos “seria contrário à ética e à ordem pública”. O parecer ainda será analisado pelo conjunto de juízes do tribunal. “Sem proteger invenções não conseguiremos competir na corrida por terapias capazes de reparar danos cerebrais”, diz Brüstle. Teme-se que a decisão inspire um endurecimento na legislação de países europeus. “Um parecer jurídico em nível europeu certamente terá repercussão”, diz Hans Scholer, diretor do Instituto Max Planck de Biomedicina Molecular.

Células-tronco:rejeição apatenteamento

Es

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Missão IXO:orçamentoreduzido

rEvés na PEsquisa

Cientistas europeus estão preocupados com o parecer de um juiz do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia que questiona a ética de pesquisas com células-tronco. “Esse foi o pior resultado possível”, disse à revista Nature Oliver Brüstle, diretor do Instituto de Neurobiologia Reconstrutiva da Universidade de Bonn, na Alemanha. A discussão jurídica teve início com a contestação a um pedido de patente feito por Brüstle de uma técnica

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26 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

Estratégias brasil

FôlEgo FEminino

Das 19.678 solicitações iniciais de

apoio à pesquisa apresentadas à

FAPESP em 2010, 42% partiram de

mulheres. O percentual tem crescido

continuamente desde 1992, quando

era de 30%. Segundo levantamento

divulgado em março pela FAPESP, a

taxa de sucesso global, definida como

o número de propostas aprovadas divi-

dido pelo de propostas analisadas, foi,

em 2010, de 61% para as mulheres e

de 60% para os homens. Para as áreas

de Ciências da Saúde, Agrárias e En-

genharias, houve forte crescimento na

proporção de mulheres. Em Ciências

da Saúde, avançou de 34% em 1992

para 54% em 2010; em Ciências Agrá-

rias, foi de 23% a 40%. No caso das

Engenharias, a participação feminina quase triplicou, passando

de 8% para 22% no período. Nas áreas de Ciências da Saúde,

Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes mais da metade

dos solicitantes é do sexo feminino. Em Ciências Biológicas, a

tendência é de crescimento na participação das mulheres, que

passou de 42% em 1992 para 48% em 2010. Entretanto, há

um decréscimo do número de solicitantes mulheres nas áreas

tradicionalmente com forte presença feminina, como Ciências

Humanas, que caiu de 56% em 1992 para 52% em 2010, e

Linguística, Letras e Artes, que passou de 57% para 52% no

período. Mais informações sobre o levantamento estão disponí-

veis em www.fapesp.br/publicacoes/indicadores/032011b.pdf.

Evolução na fração de solicitações apresentadas por pesquisadoras à FAPESP (em %)

1990 1994 1998 2002 2006 2010

70

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50

40

30

20

10

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■ linguistica, letras e artes

■ Ciências da Saúde

■ Ciências Humanas

■ Ciências biológicas

■ Ciências agrárias

■ Ciências Sociais aplicadas

■ Ciências Exatas e da Terra

■ Engenharias

será distribuído entre as bibliotecas dos 21 polos de apoio do curso de graduação em pedagogia, situados em campi da Unesp. Serão investidos R$ 450 mil nesta primeira etapa de aquisição. O curso é a primeira graduação a distância da Univesp e atende preferencialmente professores de educação básica da rede de ensino estadual. O acervo estará

biblioTECa DEHumaniDaDES

A Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) vão financiar a compra de mais 9 mil títulos da área de humanidades para as bibliotecas do curso semipresencial de pedagogia oferecido em parceria pelas duas instituições. O material

disponível também para os demais alunos da Unesp e para a comunidade. Em dezembro de 2010, as bibliotecas haviam recebido mais de 1,3 mil livros. A previsão é que até 2013 cerca de R$ 1 milhão seja destinado para a compra de títulos.

ToCanTinS ganHa FunDação

A Assembleia Legislativa de Tocantins aprovou a lei que cria a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado. O objetivo, segundo o secretário de Ciência e Tecnologia de Tocantins, Luiz Carlos Borges da Silveira, é dotar o estado de mais mestres e doutores e abrir novas perspectivas de convênios federais e internacionais. “A fundação vai dar mais

agilidade ao financiamento a estudos científicos”, afirmou. Outra meta da secretaria ainda para este ano, segundo Borges da Silveira, é a implantação do Instituto de Pesquisa de Energias Renováveis do Estado do Tocantins. Com a criação da fundação, chega a 25 a rede de FAPs. Apenas Roraima e Rondônia ainda não têm as suas fundações de amparo à pesquisa.

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PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 27

Joly aSSumE Cargo Em braSília

Carlos Alfredo Joly, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do programa Biota-FAPESP, é o novo diretor do Departamento de Políticas e Programas Temáticos (DPPT) da Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento (Seped) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A Seped é coordenada por Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. À frente do DPPT, Joly será responsável por coordenar os programas e as iniciativas da Seped nas áreas de biodiversidade e biotecnologia. Entre eles estão o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), a Rede de Pesquisas para o Uso Sustentável e Conservação do Cerrado (Rede ComCerrado) e a Rede de Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal (Rede Bionorte).

a Solução DE umgranDE problEma

O Museu Exploratório de Ciências da Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp) lançou o 5º Grande Desafio, ativida-

de que busca incentivar o público em geral a desdobrar os

conhecimentos adquiridos na escola e no dia a dia. Na edição

de 2011, os participantes devem retirar, com segurança, um

estoque de catalisador automotivo de um prédio em risco de

desabamento. Os interessados têm até 3 de julho, quando

será realizado o Grande Dia, para planejar, construir e operar

o equipamento inventado. O Grande Desafio é uma atividade

da Oficina Desafio, desenvolvida pelo museu em parceria com

o Instituto Sangari. Neste ano, o evento conta também com o

apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq). Para participar

do 5º Grande Desafio basta reunir os amigos em

equipes de até seis membros e começar a plane-

jar o protótipo capaz de simular a resolução do

problema. São quatro categorias de participação:

fundamental A (até o 7º ano), fundamental B (8º

e 9º anos), ensino médio e categoria livre. As ins-

crições podem ser realizadas até 19 de junho, mas

quem se inscrever até 22 de maio pagará taxas de

inscrição mais baratas. Segundo o Museu Explo-

ratório de Ciências, no Grande Desafio a solução

é aberta, ou seja, não existe modelo padrão para

desenvolver cada engenhoca.

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Carlos Joly: políticas e programas temáticos

Uma das ações que pretende conduzir será a continuidade da integração das diferentes iniciativas do MCT em bancos de dados. “Há uma série de iniciativas que estão de certa forma isoladas porque não possuem ferramentas que permitam a integração de seus dados”, disse Joly à Agência FAPESP. O desafio é semelhante ao enfrentado no Biota-FAPESP, que reuniu iniciativas fragmentadas, apesar de já serem programas e redes de pesquisa consolidados.

núClEoS DEExCElênCia

A FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançaram chamada de propostas no âmbito do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex). O total de recursos oferecidos é de R$ 18 milhões, sendo 50% oferecidos pela FAPESP e 50% pelo CNPq. Podem participar pesquisadores vinculados a instituições de ensino superior e de pesquisa no estado de São Paulo. A chamada busca selecionar projetos de pesquisa

fundamental e aplicada, de classe mundial, relacionados às mais diversas áreas do conhecimento. A ambição do Pronex é organizar grupos de pesquisadores e técnicos de alto nível que atuem como fonte geradora e transformadora de conhecimento para aplicação em projetos que impulsionem o desenvolvimento do país. As propostas devem ser apresentadas na modalidade Auxílio à Pesquisa – Projetos Temáticos da FAPESP. As propostas serão recebidas até o dia 13 de maio de 2011. Mais informações estão disponíveis em www.fapesp.br/materia/6165.

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Segurança na berlinda

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política científica e tecnológica

[ EnERgiA ATômiCA ]

Acidente no Japão reabre debate sobre futuro da pesquisa nuclear

Fabrício Marques e Carlos Fioravanti

Explosão em Fukushima: colapso após terremoto e tsunami

Assim que for superada a situação de emer-gência em torno do vazamento radioativo em Fukushima, no Japão, uma revisão completa das normas de segurança de usinas nucleares será promovida pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A revisão é necessária porque algo inconcebível para as normas atuais

aconteceu no dia 11 de março: um terremoto de grande magnitude e um subsequente tsunami causaram pane num conjunto de rea tores e provocaram o maior vaza-mento nuclear desde Chernobyl, na ex-União Soviética, em 1986. “Nosso papel em matéria de segurança nuclear e nossas normas precisarão ser reexaminados”, disse o diretor-geral da agência, Yukiya Amano. “Nessa revisão a participação crítica de pesquisadores terá um papel fundamental”, afirmou.

A reação dos 30 países que reúnem as 448 usinas do planeta oscilou entre o medo e a prudência. A Alemanha anunciou a aposentadoria antecipada de todas as usinas construídas antes de 1980. O governo da França, país cuja matriz energética é predominantemente nuclear, prometeu rediscutir com rigor as normas de segurança dos reatores. O Brasil anunciou que seguirá erguendo sua terceira usina nuclear, a de Angra 3, atualmente com 2,3 mil operários em seu canteiro de obras, e mantém planos para construir pelo menos outras quatro usinas até 2030. Mas o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Merca-dante, avisou que não há pressa. “Os novos protocolos de segurança seguramente vão exigir procedimentos mais rigorosos. É preciso aprender com os erros”, afirmou.

É certo que os acidentes nas usinas de Three Mile Island, nos Estados Unidos, em 1979, e Chernobyl, 1986, transformaram as normas de segurança. “Depois de Three Mile Island se implantou o conceito de defesa em pro-fundidade, que consiste em criar várias barreiras entre o material radioativo e o ambiente para evitar danos. E depois de Chernobyl se implantou o conceito de cultura de segurança. Esses conceitos já estão incorporados em Angra 1 e Angra 2”, diz o físico Laércio Vinhas, diretor de radioproteção e segurança nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Um desafio que se coloca ao futuro da energia atômica é de natureza econômica. A rigidez das normas após os dois acidentes históricos fez triplicar o custo de construção de uma usina nos últimos anos. A depender das conclusões sobre o acidente japonês, os novos projetos poderão inflar seus orçamentos, levan-tando obstáculos à viabilidade econômica. “Quem tiver outras opções certamente recorrerá a elas”, diz o físico José Goldemberg. “É possível fazer um projeto imune

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a terremotos de grandes proporções, mas o custo de construção vai subir, o que pode tornar as usinas inviáveis”, diz o físico Ricardo Galvão, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Centro Brasileiro de Pes-quisas Físicas (CBPF). O lançamento de novas usinas deverá ser retardado, mas ninguém espera uma moratória dessa matriz energética. “A importân-cia da energia, em particular nos países mais desenvolvidos, pode ser avaliada pelo número de reatores nucleares em operação”, afirma Lauro Tomio, pro-fessor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Quanto à questão se vale o risco, ela deverá ser respondida diretamente pela população, beneficiada e/ou prejudi-cada, desses países onde já ocorreram desastres relacionados à produção de energia através de reatores nucleares.”

S e o Japão, que é um símbolo de tecnologia avançada, foi pego de surpresa, quem está seguro? A

pergunta que correu o mundo após o vazamento nuclear mobilizou governos e especialistas. No caso do Brasil, logo se soube que a tecnologia dos reato-res de Angra dos Reis é diferente da de Fukushima. O projeto japonês utiliza água fervente. O vapor produzido pelo aquecimento das reações de fissão toca a turbina, que gera energia. Conhecida como BWR, sigla para Boiling Water Reactor (reator de água fervente), a tecnologia começou a ser desenvolvi-da nos anos 1950 pela General Electric. Já os reatores instalados no Brasil, com tecnologia PWR (reator de água pres-surizada), utilizam um sistema mais complexo, em que a água quente é sub-metida a uma pressão três vezes maior do que a do BWR e, por isso, não ferve. A água circula num sistema primário e troca calor com um sistema secundário, que, este sim, aciona a turbina.

As barras de comando que interrom-pem as reações nucleares são acionadas de modo diferente nas duas tecnologias. No BWR de Fukushima são introduzidas por baixo do reator. Já no PWR, de cima para baixo. Avalia-se que, se o reator de Fukushima tivesse a tecnologia PWR, as chances de um vazamento seriam meno-res, uma vez que seu sistema de conten-ção é reforçado para suportar a pressão mais alta. A explosão em um reator na

usina de Three Mile Island, que utiliza a mesma tecnologia PWR de Angra dos Reis, resultou em danos reduzidos ao am-biente. Um informe da Cnen sustentou, ainda, que os técnicos de Angra teriam mais tempo para evitar o superaqueci-mento. No caso de um maremoto, as usinas do Brasil foram concebidas para suportar inundações superiores ao maior nível avaliado como possível.

Os problemas da usina de Angra se-riam de outra natureza. “Na minha ava-liação, a localização não é boa. Se ocorrer um acidente, pode haver problemas de dispersão da radiação, que em vez de ir para o oceano pode subir a serra do Mar e atingir as cidades do Vale do Paraíba, ao contrário do que ocorre no Japão, onde o vento leste tende a levar as partículas para o Pacífico”, afirma Ricardo Galvão. A proximidade da área urbana de An-

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gra dos Reis é outro problema. “Se for preciso ampliar de 5 para 20 quilôme-tros a área de proteção, já atingiria áreas bastante populosas”, afirma. Angra 1 teve sua construção iniciada em 1972, com tecnologia norte-americana da empresa Westinghouse, mas só entrou em operação em 1984. Já Angra 2, com reator alemão da Siemens, começou a ser construída em 1981 e a operar em 2000. Angra 3, também com tecnolo-gia alemã, teve a construção paralisada nos anos 1980 e retomada recentemente. Laércio Vinhas, da Cnen, garante que a situação de segurança de Angra 1 e 2 é boa. “Não existe risco zero, mas o projeto dos equipamentos e os procedi-mentos de segurança foram feitos para reduzir ou eliminar riscos”, afirma. De todo modo, a Eletronuclear, empresa que opera as usinas de Angra, anunciou

2. SEgUrAnçA As barras de controle para desligamento do reator de Fukushima precisam ser acionadas de baixo para cima, enquanto no modelo alemão de Angra as barras caem automaticamente com a força da gravidade sem precisar de energia.

REATOR

1. TECnOLOgIA Em Fukushima, o vapor produzido pelo aquecimento das reações de fissão toca diretamente a turbina, que gera energia. Já em Angra, a água quente é submetida a uma pressão três vezes maior e não ferve. A água circula num sistema primário e troca calor com um sistema secundário, que, este sim, aciona a turbina.

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que vai contratar uma consultoria exter-na para reavaliar riscos de deslizamentos nas encostas em torno das usinas, à luz da recente tragédia na região serrana do Rio de Janeiro.

O físico Ricardo Galvão ressalta que, apesar da diferença nos concei-tos BWR e PWR, não se pode afirmar que os rea tores de Fukushima fossem inseguros ou que o desastre se deva a um problema de projeto. “O que acon-teceu lá foi um terremoto de imensa magnitude, seguido de um tsunami. E todo o sistema de segurança do reator funcionou adequadamente”, expli-ca. Como o reator, mesmo desligado, continua a produzir 7% de potência residual, necessita ser resfriado com água. As reações foram interrompidas no momento do sismo e o sistema de resfriamento acionado. “Por incrível

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que pareça, o que faltou foi óleo die-sel no gerador que aciona o sistema emergencial de resfriamento. Não se sabe se o combustível foi levado pelo maremoto ou se o terremoto danificou os geradores”, afirma. A temperatura começou a subir e foi necessário aliviar a pressão, fazendo a usina liberar vapor. Foi quando ocorreu a explosão. “Acima de 2.200 graus Celsius (ºC), o oxigênio e o hidrogênio da água se separam. Foi o hidrogênio que provocou a explosão, ampliando o vazamento de radiação.” A sequência de problemas na usina que seguiu o terremoto havia sido prevista em estudos de segurança. “Mas se jul-gou que um evento dessa natureza seria altamente improvável. Ocorre que o al-tamente improvável pode acontecer: há sempre alguém que ganha sozinho na mega-sena”, diz Galvão. Na avaliação de

AngRA O FuTuROREATOR DE águA PRESSuRizADA

TECnOlOgiAS Em FASE DE PESquiSA

Peeble Bed reactor (PBr)

Reator nuclear arrefecido a gás que utiliza urânio em grãozinhos dentro de esferas de grafite piro-lítica. A grafite conduz calor facil-mente. Se o reator parar, o calor residual é conduzido sozinho para fora e pode ser absorvido pela corrente de ar. Sem a necessida-de de um sistema de resfriamen-to, a temperatura dentro do rea-tor não ultrapassa 1.600 graus, evitando o perigo de liberação de radioatividade.

3. COnTEnçãO A pressão no reator PWR, como o de Angra, é três vezes maior do que no BWR de Fukushima. Por isso, o edifício do reator é mais resistente, composto de uma contenção de aço envolta em outra contenção de concreto, e uma cúpula arredondada. O reator BWR fica num prédio mais simples, em forma quadrada.

ADS

Conhecidos como Accelerator Driven Systems, são sistemas avançados de geração de calor que utilizam feixes de altíssima energia para queimar, além do urânio, também o plutônio, redu-zindo significativamente os rejeitos radioativos.

Fusão nuclear

Utiliza temperaturas altíssimas, superiores a 600 milhões de graus Celsius, para fundir dois átomos considerados leves – deu-tério e trítio, ambos isótopos do hidrogênio – e gerar energia sem rejeitos radioativos. O Iter, sigla para International Thermonuclear Experimental Reactor, protótipo de pesquisa de reator de fusão, será construído na França. Pode processar o calor com elevada eficiência permitindo a produção de electricidade e hidrogênio.

Usinas menores

O desenvolvimento de usinas de menor potência já foi aventado após o acidente de Chernobyl. A vantagem é que, em caso de aci-dente, a extensão do dano seria proporcionalmente menor. A difi-culdade em obter licenciamento ambiental para construir um número maior de usinas é aponta-da como um entrave para a ideia.

REATOR

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Nilson Dias Vieira Júnior, superinten-dente do Instituto de Pesquisas Ener-géticas e Nucleares (Ipen), a extensão controlada dos dados em Fukushima, em face do cataclismo que ocorreu, é uma mostra da segurança das usinas nucleares. “Se ocorresse um terremoto dessa magnitude no Brasil, a hidrelétri-ca de Itaipu provavelmente romperia”, afirma. Leonam dos Santos Guimarães, assistente da presidência da Eletronu-clear, considera que a resistência das quatro outras usinas japonesas também atingidas pelo terremoto e o tsunami atesta a capacidade dessas construções de suportar catástrofes. “Mas usinas lo-calizadas em áreas de risco sísmico de-verão ser reavaliadas e, eventualmente, reforçadas”, afirma.

A pesquisa nas usinas de quarta gera-ção, também chamadas de “intrin-secamente seguras”, promete ga-

nhar impulso após Fukushima. Trata-se de um conjunto de projetos de reatores nucleares em fase de desenvolvimento, que não devem ter aplicação comercial antes de 2030. Um exemplo é o Peeble Bed Reactor (PBR), um reator nuclear arrefecido a gás que utiliza urânio em grãozinhos dentro de esferas de gra-fite pirolítica. A grafite conduz calor facilmente. Se o reator parar, o calor residual é conduzido sozinho para fora e pode ser absorvido pela corrente de ar. Sem a necessidade de um sistema de resfriamento, a temperatura dentro do reator não ultrapassa 1.600oC, evitando o perigo de liberação de radioatividade. Outra frente de pesquisas são os siste-mas avançados de geração de calor que utilizam feixes de altíssima energia para queimar, além do urânio, também o plu-tônio, reduzindo os rejeitos radioativos. Esse sistema é conhecido como ADS (Accelerator Driven Systems). No longo prazo, a aposta continua sendo a fusão nuclear, que utiliza temperaturas al-tíssimas, superiores a 600 milhões de graus Celsius, para fundir dois átomos considerados leves – deutério e trítio, ambos isótopos do hidrogênio – e ge-rar energia sem rejeitos radioativos.

A pesquisa brasileira vem se dedi-cando a novas tecnologias nucleares, mas de forma ainda desarticulada. O Brasil, por meio do Ipen, participava de redes internacionais de pesquisa sobre as tecnologias de quarta geração e do

sistema ADS, mas, alguns anos atrás, in-terrompeu o trabalho para investir em outras frentes. “O problema da descon-tinuidade é lamentável. Em certas áreas, a articulação continua por iniciativa pessoal de pesquisadores e incentiva-mos muito isso”, diz Nilson Dias Vieira Júnior, do Ipen. Em contrapartida, teve avanços a aposta do governo em fusão nuclear, com a criação da Rede Nacio-nal de Fusão (RNF), formada por 15 instituições de pesquisa e 70 cientistas, com recursos da ordem de R$ 1 milhão. Um laboratório nacional de fusão será construído em Cachoeira Paulista e um acordo permitirá que brasileiros partici-pem do maior experimento de fusão do mundo, ainda que o país não faça parte oficialmente do programa. O consórcio Iter, sigla para International Thermo-nuclear Experimental Reactor, é o res-ponsável pela idealização e construção do primeiro reator de fusão em escala industrial, avaliado em US$ 13 bilhões, e já em obras em Cadarache (França). Um grupo de pesquisadores da USP vem tra-balhando na caracterização de materiais

ultrarresistentes que serão utilizados na construção do reator. Hugo Sandim, da Escola de Engenharia de Lorena, e Ân-gelo Padilha, da Escola Politécnica, vêm participando dos testes com dois aços da família Eurofer, para avaliar a estabilida-de de suas microestruturas após ensaios de envelhecimento acelerado. O objetivo é simular condições próximas às previs-tas para a utilização desses materiais no futuro reator. “O trabalho iniciado em 2007 já resultou na publicação de pelo menos quatro artigos internacionais, uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado”, diz Sandim. “Além de possibilitar a formação de recursos humanos numa área emergente, trata-se de uma chance única de participarmos de um campo de pesquisa novo. Dentro de seis meses devem sair as primeiras chamadas para que grupos industriais forneçam os materiais escolhidos para a construção do reator, que deve gerar o primeiro plasma em 2019”, afirma.

Ainda no campo da pesquisa em segurança nuclear, o CBPF está desen-volvendo o protótipo de um detector

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de antineutrinos que será instalado nas usinas de Angra dos Reis. O detector será capaz de monitorar on-line fatores relacionados à atividade de rea tores nu-cleares, como a composição do combus-tível e a potência térmica instantânea liberada pelo reator. “Tais parâmetros são cruciais para verificação de itens das salvaguardas ditadas pela AIEA para não proliferação de armas nucleares, além de contribuir com informações que podem otimizar o processo de ge-ração de energia elétrica”, diz o físico João dos Anjos, pesquisador do CBPF. “Para o Brasil, que não tem interesse em produzir armas nucleares, é uma forma de mostrar transparência.” A tecnologia só está disponível nos Estados Unidos e na França. O protótipo brasileiro deve estar operando em 2012.

Mas a novidade em investimento em pesquisa nuclear vai acontecer em São Paulo, com a construção

do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), do Ipen. Ele será constru-ído em Iperó, a 130 quilômetros de

São Paulo, num terreno vizinho ao do Centro Experimental de Aramar, onde a Marinha brasileira desenvolve há duas décadas o sistema de propul-são do primeiro submarino nuclear brasileiro. Ele terá entre 20 e 30 me-gawatts de potência e capacidade de triplicar a produção do Ipen de ra-diofármacos, compostos radioativos usados em exames de diagnóstico ou como medicamentos. Desde 1958, o Ipen fornece vários tipos de radio-fármacos para médicos e hospitais e também participa do desenvolvimento de novos compostos, em parceria com instituições de pesquisa. “Atendemos 1,5 milhão de pacientes que dependem de radiofármacos, mas a demanda é crescente e podemos triplicar nossa produção atual”, diz Nilson Dias Vieira Júnior, do Ipen. O reator é denomina-do multipropósito porque será usado no desenvolvimento de materiais para o projeto do submarino nuclear, de-senvolvido pela Marinha, e também será uma plataforma para estudos de novos materiais utilizando feixes de

nêutrons, em conjunto com o Labo-ratório Nacional de Luz Síncrotron. O custo é de R$ 850 milhões, em recursos dos governos federal e de São Paulo.

O debate no Brasil sobre o que ocor-reu em Fukushima teve ainda o condão de reavivar antigas críticas à política nuclear do país. O Brasil não separa, no âmbito da Cnen, as atividades de execução na área nuclear do trabalho de licenciamento e fiscalização, como recomenda a AIEA e a comunidade científica. Após o acidente com uma cápsula de césio em 1987, começou a tramitar no Congresso um projeto de lei para separar quem fiscaliza e quem opera, mas ele acabou engavetado. “As promessas das autoridades de rever to-do o sistema de segurança do sistema nuclear, em face do ocorrido no Japão, deveriam ser efetivadas com urgência”, diz o ex-ministro da Ciência e Tecno-logia José Israel Vargas (ver entrevista na página 10).

Um desafio do Brasil está relacio-nado à formação de recursos hu-manos. Na década de 1970 houve

um esforço para desenvolver tecnolo-gia nuclear no país. Num programa denominado Pronuclear, mais de 600 pesquisadores receberam formação no exterior, principalmente na Alemanha. Com a crise econômica dos anos 1980, o investimento perdeu fôlego. Havia também um programa paralelo, volta-do para o domínio do enriquecimento de urânio, e criticado, no governo mili-tar, por ter inspirações bélicas. Resistiu à falta de investimento um subproduto do programa paralelo, que é o projeto do submarino nuclear desenvolvido pela Marinha. “A falta de investimento em pesquisa de energia nuclear atrapa-lha a renovação dos recursos humanos. Quando converso com um potencial aluno de doutorado, a primeira coi-sa que ele pergunta é qual é a política do país para o setor, para saber se terá emprego. E essa política ainda é desar-ticulada”, diz Ricardo Galvão, do CBPF. Para Nilson Dias Vieira, o interesse está ressurgindo. “Vamos ampliar as vagas nos cursos de pós-graduação do Ipen, na USP, e há outras instituições fazen-do o mesmo. Há uma sinalização de que haverá mais empregos, com a cons-trução de Angra 3 e outros projetos, e o interesse ressurge”, afirma. n

A pesquisa de

usinas de quarta

geração, também

chamadas de

“intrinsecamente

seguras”, deve

ganhar impulso

Usinas de Angra dos Reis: obras continuam

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34 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Escreva bem ou pereçaCursos e serviços ajudam pesquisadores a redigir um bom trabalho científico

Pressionados a produzir conhecimento e a publicá-lo em revistas especializadas, os pesquisadores brasileiros são con-tinuamente desafiados a demonstrar uma habilidade que vai além do talento científico: a capacidade de escrever de forma lógica e correta – e em inglês,

que é a língua da ciência. A novidade é que está crescendo a oferta de serviços e iniciativas talhados para ajudar os pesquisadores nessa tarefa – na forma de workshops promovidos por especialistas, serviços de tradução e revi-são e programas de computador capazes de dar forma a artigos científicos.

O exemplo que melhor representa essa ten-dência talvez seja o da empresa Publicase, que, além de oferecer serviços de tradução e revisão de artigos, também criou oficinas e cursos de treinamento para orientar pesquisadores inte-ressados em colocar seus achados no papel. A empresa tem como sócias as biólogas Marcia Triunfol Elblink e Andrea Kaufmann-Zeh, que trabalharam como pesquisadoras no exterior e depois enveredaram para a comunicação cientí-fica. No início da década passada, atuaram como editoras, respectivamente, das revistas Science e Nature. A Publicase foi criada em 2007 e já

Fabrício Marquesilustrações Nelson Provazi

prestou serviço a muitas instituições. Agora, com apoio da FAPESP, está promovendo uma série de workshops nas universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp).

Em seus cursos, um pequeno grupo de pes-quisadores passa uma semana debruçado sobre a tarefa de escrever um artigo. “Trabalhamos com dois ou três alunos dedicados a cada paper. Começamos na segunda-feira e na sexta o artigo está escrito. Em geral são manuscritos que es-tavam na gaveta”, diz Andrea. O trabalho se dá em dois planos: na organização estratégica do texto e na correção do inglês. “Percebemos que a questão principal não tem a ver com o inglês, mas com a argumentação do artigo. Discutimos, então, como torná-lo interessante para buscar a publicação de mais alto impacto nos limites do seu conteúdo”, afirma. Um gargalo comum, segundo Andrea, remete a uma discussão exis-tencial: qual, afinal, é a pergunta daquele paper? “Muita gente não consegue definir com clareza qual é a sua pergunta”, diz. “Nosso trabalho é resgatar e ressaltar a relevância das perguntas e dos resultados. Chamamos isso de marketing científico”, define. Nos workshops, de duração mais curta, a Publicase oferece uma coleção de dicas sobre, por exemplo, o formato adequado

[ rECursos humanos ]

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 35

USP, contratou a Publicase para verter ao inglês um artigo sobre os efeitos de dois antibióticos no sistema hematológico de ratos. As sugestões de mudança reduziram o tamanho do texto. “Recomendaram que eu retirasse referências sem relação direta com o meu achado. Não fiz a conta, mas tive a sensação de que o artigo ficou 30% mais curto”, afirma Flávia, que já submeteu o artigo a uma revista.

Outra dica está relacionada à carta ao editor, uma espécie de bilhete de apresentação anexado ao artigo. É comum, segundo Marcia Triunfol Elblink, que os autores tratem o bilhete de mo-do lacônico e burocrático. “É um erro, pois a carta pode ajudar a salvar um artigo da gave-ta”, diz. “O autor pode ressaltar o resultado de sua pesquisa de forma mais coloquial e ousada do que fez no artigo”, afirma. A carta também pode evitar que o artigo caia nas mãos de um revisor preconceituoso. “O pesquisador pode pe-dir que o paper não seja enviado para avaliação de competidores ou desafetos, citando-os”, diz Marcia. Fabio Klamt, professor de bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ficou impressionado com a carta de apresen-tação que Marcia o ajudou a reescrever, num artigo que seu grupo publicou na revista Cancer.

de cada tipo de artigo ou o modo de escolher a publicação com maior prestígio possível. Se-gundo Andrea, um paper com uma grande no-vidade permite sonhar com revistas de grande impacto. Mas se o passo dado pelo pesquisador, embora interessante, é pequeno, pode valer a pena escolher um formato enxuto. “A saída po-de ser produzir o chamado short communication e colocar todo o foco no achado. Assim, fica mais fácil cativar o editor”, diz.

Amáxima atribuída a Ernest Hemingway, se-gundo a qual um escritor deve “cortar todo o resto e ficar no essencial”, ajuda a preve-

nir acidentes na redação científica. Um pecado comum apontado pelas sócias da Publicase é o uso do que elas chamam de “frases suicidas” nos artigos. “É quando o autor resolve contar que outros artigos já chegaram à mesma conclusão. Se o editor concluir que não há novidade, vai se desinteressar”, diz Andrea. “É mais produtivo dizer qual é o forte daquele artigo. Por exemplo, que ele fez experiência com doentes e não com voluntários saudáveis como em artigos anterio-res.” A farmacêutica-bioquímica Flávia Paina, que acaba de concluir o doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da

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36 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

“O texto fez uma defesa poderosa do meu achado e o artigo foi aceito para publicação”, afirma. “Eu havia escrito: esse é o trabalho com seguinte título, muito obrigado. Ela sugeriu uma forma mais arrojada: seus leitores vão gostar do artigo porque ele diz o seguinte...” O artigo tratava do desenvolvimento de um marcador molecular para câncer de pulmão. O paper mais importan-te da carreira de Klamt, segundo sua avaliação, não é o da Cancer, mas um anterior publicado na Nature Cell Bio-logy, resultado de um pós-doutorado que ele fez nos Estados Unidos. Daquela vez teve ajuda de sua supervisora norte- -americana. Agora solicitou assessoria da Publicase.

Omercado de serviços para autores de artigos científicos cresce no mun-do inteiro. Desde 2008, a Nature

Publishing Group (NPG), editora que publica a revista Nature, disponibiliza um serviço de edição de papers. O NPG Language Editing é dividido em duas categorias. No serviço ouro, o texto é retrabalhado por dois editores especia-listas no assunto e revisto por outros dois profissionais. No serviço prata, há um editor a menos no processo. A NPG não faz traduções – e deixa claro que o serviço não implica compromisso de aceitação do artigo pelas revistas da edi-tora. Outro exemplo é a empresa norte- -americana American Journal Experts (AJE), que reúne uma rede de doutores em vários campos do conhecimento. A AJE começou a operar em 2004 com ênfase na edição, tradução e revisão de artigos escritos por pesquisadores que não têm o inglês como língua nativa. Hoje presta serviços mais amplos, como a recomendação de periódicos talhados para cada tipo de artigo, e até uma si-mulação de peer review, na qual o paper é submetido a um especialista que tenta antecipar as críticas que o revisor poderá fazer. “Nossas recomendações permitem que o autor faça mudanças no manus-crito e aumente as chances de aceitação”, afirma Lisa Pautler, diretora da AJE. A empresa traduz manuscritos em seis idiomas, mas as traduções do português para o inglês são as mais requisitadas, segundo Lisa. “Os textos são traduzidos por um editor especialista na área e de-pois revistos por outro pesquisador que tem o inglês como língua nativa.” A Else-

vier, uma das maiores editoras de livros e revistas científicas, com sede na Ho-landa, criou um programa internacional de workshops para editores de revistas científicas e também para autores de ar-tigos, levado a vários países. “Os eventos fazem parte da parceria da Elsevier com as instituições de pesquisa clientes”, diz Ana Heredia, editora de publicações científicas da Elsevier no Brasil. Só no ano passado, promoveu esses workshops na Costa Rica, Panamá, Colômbia, Peru, Chile, Uruguai e Brasil.

Nas universidades norte-america-nas é comum que os grupos de pesqui-sa sejam assessorados por especialistas em redação científica, que os ajudam a formatar artigos, refinar traduções, preparar figuras e organizar referên-cias. Emilio Moran, diretor do Cen-tro Antropológico para Treinamento e Pesquisa em Mudanças Ambientais Globais da Universidade de Indiana, conta que tem sido importante para a produtividade de seu grupo a ajuda de uma profissional incumbida inclu-sive de redigir a versão final de artigos científicos. “Ela ajuda em várias frentes, como a parte gramatical e a revisão do inglês, mas é comum que pegue o ras-cunho feito pelo pesquisador com suas

Roteiro para escrever um bom artigo

Planeje na fase do projeto

Escolha revistas em que sua

pesquisa poderia ser publicada

e analise nelas artigos de pes-

quisadores com o mesmo per-

fil que você tem – afinal, eles

viveram as mesmas dificulda-

des para publicar que você

enfrentará. Estude as exigên-

cias de um trabalho desse

tipo e tente adequar seu

projeto de pesquisa a elas.

Organize as ideias

antes de começar a escrever,

analise os dados e veja a que

conclusões você pode efetiva-

mente chegar. Exponha oral-

mente aos colegas e faça isso

até constatar que seu traba-

lho está claro. Escreva primei-

ro o resumo, para garantir

que tem o domínio sobre

o conjunto dos dados e está

pronto para iniciar a redação.

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 37

FOnte: GilsOn VOlPatO, UnesP

Nas universidades

norte-americanas

os writing centers

ajudam a elaborar

não apenas artigos

mas também

projetos de pesquisa

ideias gerais e transforme num artigo científico”, diz Moran, que já chegou a compartilhar os serviços dessa redatora até com a Nobel de Economia de 2009 Elinor Ostrom, docente da Universida-de de Indiana. “Quem produz muito acaba não tendo tempo para cuidar dos detalhes da preparação de um artigo.” Os serviços de apoio não eximem os pesquisadores de aprender a escrever. O próprio Moran leciona uma disciplina que exige dos alunos de pós-graduação, como trabalho final, a redação de um projeto de verdade a ser apresentado a agências de fomento.

Universidades norte-americanas vêm investindo em writing centers e escritórios de editoração, iniciativas que ajudam desde alunos de gradua-ção interessados em desenvolver o talento da escrita até pesquisadores que buscam aumentar suas chances de publicação. “Entre as motivações, existe a preocupação de formar pro-fissionais com maior autonomia para argumentar ideias num texto científi-co em inglês, que é inclusive o idioma nativo de muitos dos que recorrem aos serviços desses centros”, afirma Sonia Vasconcelos, pesquisadora do Progra-ma de Educação, Gestão e Difusão em

Biociências do Instituto de Bioquími-ca Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de uma tese de doutorado sobre a barreira do idioma na comunicação científica.

N o Brasil esse tipo de iniciativa começa a vicejar, mas por ora se restringe ao problema mais pre-

mente, que são a tradução e a revisão do inglês. É o caso do Espaço da Escrita da Unicamp, escritório criado em 2006 para ajudar pesquisadores das áreas de humanidades e de engenharias a publi-car trabalhos em outros idiomas. Um total de 1.007 trabalhos já foram tradu-zidos e revisados com a intermediação do escritório. “Havia o diagnóstico de que pesquisadores das áreas de física, química e medicina publicavam bas-tante no exterior e não precisavam de ajuda. Nosso foco eram as áreas com menor inserção internacional”, diz Alcir Pecora, professor de teoria literária da Unicamp e coordenador do Espaço da Escrita. O saldo do trabalho foi bastante positivo nas engenharias. A Faculdade de Engenharia de Alimentos responde por 23% dos artigos traduzidos, se-guida pela Faculdade de Engenharia Agrícola, com 14%. Já no campo das

escreva de trás para frente

Comece pelas conclusões,

destacando o que o artigo

traz de novo. Em seguida

escolha as figuras e redija

apenas os resultados que

usou para chegar às conclu-

sões. Depois parta para os

procedimentos e a discussão.

ao final, faça a introdução,

que deve justificar os objeti-

vos. Por fim, cuide do título.

Capriche na carta ao editor

a apresentação do artigo ao

editor é uma chance de usar

uma abordagem menos for-

mal para defender as conclu-

sões de seu artigo e cativar o

editor e não deve ser menos-

prezada como ferramenta de

divulgação. muitos pesquisa-

dores perdem essa chance ao

fazer apresentações burocrá-

ticas e desinteressantes.

aprenda com fracassos

se o manuscrito for rejeita-

do, tente descobrir os moti-

vos. o feedback do fracasso

é essencial para poder cor-

rigir os erros do artigo ou

pelo menos para não repe-

ti-los na pesquisa seguinte.

Esse expediente também

ajuda a aprimorar a reda-

ção e a aprender a escolher

o periódico adequado.

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38 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

humanidades e ciências sociais o resul-tado foi mais tímido. Usuária do Espaço da Escrita, a professora Antonia Banko-ff, da Faculdade de Educação Física da Unicamp, elogia a agilidade nas tradu-ções. “Consegui publicar mais e colocar uma quantidade maior de estudos em congressos internacionais”, afirma.

Os dois funcionários do escritório treinados para ajudar os pesquisadores a selecionar boas revistas só fazem essa tarefa por demanda. “Queríamos fazer mais, mas a avaliação da qualidade das traduções monopoliza o nosso tempo”, afirma Pecora. A Unicamp prepara re-forços na estratégia de aperfeiçoar as habilidades de redação científica de pesquisadores. Nesse ano, vai oferecer novos workshops com a Publicase e um seminário com Carl Schwarz, diretor da editora Elsevier, para atingir estudantes de pós-graduação. “A intenção é ampliar as iniciativas para um público cada vez maior dentro da universidade”, diz Ed-gar de Decca, vice-reitor da Unicamp.

A USP prepara um programa abran-gente para ajudar os pesquisadores a publicarem mais e melhor. Se-

gundo Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, diretora técnica do Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi), a iniciativa terá, a princípio, duas frentes. Uma é a pro-moção, em parceria com a Pró-Reitoria de Pesquisa, de sete workhops neste ano organizados pela Publicase. A segunda é a oferta de ferramentas computacio-nais capazes, por exemplo, de ajudar os pesquisadores a organizar a bibliografia de seu artigo e formatá-lo. No futuro, a USP vai adquirir softwares que auxi-liem os editores de revistas científicas da universidade a detectar plágios, além de automatizar o fluxo editorial e gerar es-tatísticas de acesso e download. Também deverá oferecer serviços de tradução e revisão gramatical, além de criar um writing center. “E, quando tudo estiver implementado, vamos investir também em ferramentas que nos ajudem a medir o impacto da produção científica gerada por essas iniciativas”, diz Sueli.

A Universidade Estadual Paulista (Unesp) criou, dentro do seu progra-ma de internacionalização, um edital que oferece continuamente auxílio fi-nanceiro para a revisão e a tradução de artigos e o eventual pagamento de taxas de publicação em revistas cientí-

ficas internacionais e em congressos. A iniciativa teve início em 2001 e, desde então, cerca de 200 docentes utilizam o auxílio a cada ano. Dos 2 mil artigos traduzidos ou revisados, 75% foram aceitos para publicação. De acordo com o professor Erivaldo da Silva, que coordena o programa na Pró-Reitoria de Pesquisa da Unesp, 90% das tradu-ções ou revisões são para o inglês. No universo de pedidos, 65% são para tra-duções completas e 35% para revisões. “Os pedidos de tradução completa vêm principalmente das engenharias e das humanidades, enquanto em áreas como física e química são mais comuns os pedidos para revisões”, afirma. Carlos Alberto Sampaio Barbosa, professor do Departamento de História da Faculda-de de Ciências e Letras de Assis, utilizou o edital para verter para o espanhol um capítulo de livro sobre a repercussão da Revolução Mexicana no Brasil. “O im-pacto de uma publicação em inglês ou espanhol é muito maior. E, na minha área, poucos colegas do exterior leem em português”, afirma.

A utilização de serviços de tradução e de revisão do idioma é comum entre

os pesquisadores brasileiros, uma vez que incorreções no texto costumam servir de argumento para a rejeição de artigos, independentemente de seu mérito. Carlos Eduardo Ambrosio, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, em Pirassununga, já usou os serviços da Publicase e da American Journal Ex-perts para fazer revisões do inglês de seus artigos científicos. O expediente tem um duplo objetivo: evitar questio-namentos sobre a correção da língua e ajudá-lo em seu trabalho de editor da revista científica nacional Pesquisa Veterinária Brasileira. “É bom que um nativo no idioma inglês aponte os er-ros. Muitas vezes os editores não fazem isso e você fica sem saber se há mesmo um erro ou se é preconceito”, afirma. Ambrosio fez parte de seu mestrado nos Estados Unidos e continua a estu-dar inglês. “Mas ainda cometo erros”, afirma. “Tem gente que não gosta de fa-lar isso, mas eu não tive uma educação bilíngue. Essa é uma realidade brasilei-ra. Quem se expressa bem em inglês, em geral, teve a chance de passar uma boa temporada fora. Por isso preten-

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Os recentes casos de plágio científico em geral se associam à má conduta e à pressão para publicar a qualquer custo, mas há pelo menos uma face do problema que se vincula à falta de habilidade dos pesquisadores de escrever. em 2007 um caso de plágio envolvendo um artigo publicado na revista Nature pôs a questão em evidência. Os acusados, um grupo de cientistas turcos, defenderam-se na própria Nature argumentando que copiaram, sim, trechos do texto de outros trabalhos em inglês, mas não consideravam haver cometido plágio. argumentaram que os trechos copiados foram usados na introdução do artigo, não nas conclusões. “Para aqueles como nós, que não têm o inglês como língua materna, usar frases bonitas publicadas em outros estudos na introdução dos nossos textos não é incomum”, disse ihsan Yilmaz, um dos autores do estudo.

se há pouco espaço para discussão quando o plágio se vincula à cópia de dados, entra-se num terreno difuso quando se trata de um empréstimo textual num artigo científico. De modo geral, considera-se que uma referência ao texto de outra pessoa deve estar marcada entre aspas. Ou então usa-se a paráfrase, que consiste em explicar a ideia do outro com as próprias palavras. “Ocorre que pode ser muito difícil desenvolver ideias com as próprias palavras num idioma que não é o seu. isso atinge bastante os chineses, cuja estrutura linguística

é muito diferente da anglo-saxônica”, afirma sonia Vasconcelos, estudiosa dos plágios científicos, que abordou o problema, em dezembro passado, no 1º encontro Brasileiro sobre integridade na Pesquisa Científica e Ética em Publicações, realizado no Rio de Janeiro e em são Paulo. “na dificuldade de escrever, e com medo de deturpar a ideia original, muitos pesquisadores se tornam escravos das palavras do outro. além da exposição indesejável que uma possível acusação de plágio pode trazer a esses autores, muitos deles acabam se tornando escritores acadêmicos dependentes da expressão e copiadores do padrão de argumentação de outros.” sonia ressalta que estabelecer regras e utilizar softwares para detectar cópias de trechos, como faz a maioria das revistas científicas, não é suficiente para prevenir o problema. “Precisamos formar pesquisadores que tenham autonomia para argumentar em seu idioma e em inglês, seja no contexto de publicações ou não. no Brasil, fortalecer o desenvolvimento dessa habilidade em nossos alunos é também uma questão de soberania”, afirma. num artigo publicado em janeiro, os especialistas em ética elizabeth Heitman, da Universidade Vanderbilt, e sergio litewka, da Universidade de Miami, sugerem que cientistas norte-americanos mudem a estratégia de prevenção de plágios em trabalhos de alunos estrangeiros que não dominam bem o inglês. a sugestão é que invistam no treinamento das habilidades de redação dos estudantes, em vez de apenas divulgar normas.

do fazer pós-doutorado no exterior”, afirma o pesquisador, que aos 34 anos é livre-docente da USP e teve bolsa do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, da FAPESP.

T raduções esmeradas e argumen-tações afiadas não são suficien-tes, como se pode imaginar, para

transformar um manuscrito redun-dante ou equivocado em algo publi-cável. Gilson Volpato, professor do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu, autor de vários livros so-bre redação científica e ministrante de cursos e oficinas nessa área desde 1986, chama a atenção para vícios da comunidade científica brasileira que comprometem a qualidade da produ-ção em vários campos. “O problema começa nos projetos de pesquisa. Se um projeto não for inovador e não ti-ver base teórica sólida, é impossível ge-rar artigos de alto impacto mais tarde”, afirma o professor, que ministrou um curso on-line de redação científica no portal da Unesp (disponível em http:// propgdb.unesp.br/redacao_cientifica/ index.php). Qualidade científica neces-sita ideia inovadora, robustez metodo-lógica, resultados evidentes e apresen-tação impecável, prega Volpato.

Ele observa que algumas revistas nacionais, mesmo publicadas em in-glês, divulgam artigos de baixa quali-dade – e isso atrapalha o aprendizado dos jovens autores. “As revistas brasi-leiras precisam dar um salto de quali-dade. Em certas áreas, as revistas são razoáveis. Mas em outras publicam-se artigos com amostras pequenas, con-clusões equivocadas e recortes regionais que não seriam aceitos em outros luga-res.” O mais preocupante, diz Volpato, é a chamada cultura de repetição. “Já vi orientador sugerir para o aluno não es-tudar um determinado assunto porque não existia nada publicado a respeito. Falta uma cultura empreendedora na ciência brasileira, no sentido de bus-car o novo e o desconhecido”, afirma o professor. Para ele, os pesquisadores só têm a ganhar se tentarem publicar em revistas in ternacionais. “E têm de escrever em inglês, pois, em português, pouca gente vai ler e o pesquisador não recebe rá críticas de cientistas renoma-dos, que é o que faz o seu trabalho ser aperfei çoado”, conclui. n

Faço minhas as suas palavrasQuando o plágio tem vínculo com a dificuldade em escrever

PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 39

Page 40: Um retrato ancestral dos ameríndios

40 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

O fascínio dos rankingslistas das melhores

universidades ganham popularidade,

apesar das limitações metodológicas

Uma contradição permeia os mais de 10 rankings inter-nacionais de universidades adotados atualmente como referência: estas listas nun-ca foram tão populares e influentes como agora, mas

também avança a percepção de que, por limitações metodológicas, nenhum ranking oferece isoladamente um re-trato perfeito da excelência científica e acadêmica. Um debate realizado no dia 11 de março em Hong Kong, numa conferência organizada pelo British Council, reuniu os responsáveis por dois desses rankings e pesquisadores críticos da metodologia adotada por eles. O que se viu foi uma exposição das utilidades e limites dos rankings. Dzulkifli Abdul Razak, vice-reitor da Universidade Sains Malásia, por exem-plo, criticou os rankings por desviarem a atenção das universidades de suas missões primordiais, como encontrar soluções para combater a fome ou os efeitos das mudanças climáticas. Phil Baty, editor do ranking do suplemen-to Times Higher Education (THE), e John Molony, do ranking QS, ambos do Reino Unido, admitiram a neces-sidade de aperfeiçoar metodologias, mas ressaltaram que as listas trouxe-ram objetividade para a comparação das instituições, antes avaliadas apenas

com base em sua reputação. “Ficou claro no debate que os rankings são imprecisos e não devem ser usados pa-ra formular políticas científicas”, diz o físico Leandro Tessler, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que assistiu ao debate em Hong Kong. “Mas, desde que se enten-dam suas limitações, eles podem ser uma ferramenta para encontrar novos caminhos para as universidades.”

A divulgação no mês passado dos resultados de uma pesquisa de reputa-ção que abastece o ranking do THE evi-denciou o paradoxo. Os dados indicam que não há latino-americanas no rol das 200 universidades mais respeitadas do mundo, que é dominado por instituições dos Estados Unidos e da Inglaterra (Har-vard é a primeira e Cambridge, a sexta). A Universidade de São Paulo (USP) por pouco não apareceu na lista, segundo os organizadores do ranking, e se situa pouco acima do 200o lugar. Os dados deflagraram um debate na imprensa e na academia sobre as mazelas das uni-versidades brasileiras, enquanto países como Rússia, Índia e China conseguiram um lugar entre as melhores.

Outros rankings, contudo, mostram retratos diferentes. Tomando-se o caso da USP, ela estaria entre as 100 melho-res quando se avalia sua capacidade de formar presidentes de grandes corpo-

[ inDicaDorEs ]

rações (19o lugar no ranking da École de Mines de Paris e da revista Fortune). Também se destaca na produção de ar-tigos científicos (19o lugar no ranking SCImago, baseado no volume de pu-blicações, sua qualidade e colaborações internacionais), é pródiga em expor sua produção acadêmica na internet (51o lugar no ranking Webometrics) e tem uma pesquisa médica clínica de classe mundial (96o lugar no ranking desse campo do conhecimento da Universida-de Shangai Jiao Tong). Em outros quesi-tos sua situação é mais vulnerável, caso, por exemplo, do impacto da pesquisa (451o lugar no ranking de citações da Universidade Leiden, da Holanda). “Cla-ro que a USP tem bastante espaço para melhorar, como em sua relação com o setor produtivo e com o governo, mas o saldo desses rankings é favorável para a universidade”, diz Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP.

Para Hernan Chaimovich, professor aposentado do Instituto de Química da USP, a universidade deveria discu-tir o que quer para o futuro: “Para se tornar um ator global, cabe à USP, por exemplo, participar da definição dos padrões globais de qualidade científica e acadêmica, em vez de assistir passiva-mente à divulgação de resultados dos rankings”, diz Chaimovich, que também é coordenador dos Centros de Pesquisa,

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 41

terações e adaptações a cada ano. A pes-quisa tem peso primordial no somatório. O volume de artigos e o investimento de cada instituição, bem como a pesqui-sa de reputação divulgada em março, rea lizada com 13.388 pesquisadores de 131 países feita pela empresa Thomson Reuters, têm 30% de peso. O impacto da pesquisa, medida por indicadores de citação de artigos, vale outros 32,5%. O ambiente de aprendizado tem peso de 30% e contempla vários indicadores. A presença de professores e alunos de outras nacionalidades, que indicam o grau de internacionalização, vale 5%. Por fim, 2,5% do peso está relacionado à inovação, medida pelo investimento em pesquisa feito pela indústria.

Nobel – Já a metodologia do ranking da Universidade Shangai Jiao Tong combina indicadores de pesquisa, co-mo volume de pesquisa e citações, com dados de qualidade, como quantidade de pesquisadores vencedores do Prêmio Nobel ou da Medalha Fields, ou cien-tistas com artigos altamente citados. “São critérios que retratam as univer-sidades Ivy League dos Estados Unidos”, diz Valdemar Sguissardi, professor do programa de pós-graduação em edu-cação da Universidade Metodista de Piracicaba. “Num mundo globalizado, os rankings são uma realidade, mas é

Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP e superintendente-geral da Fundação Butantan. Segundo o professor, alguns critérios adotados nos levantamentos, como pesquisas de reputação, têm ser-ventia limitada. “Que importância tem para a USP se ela é desconhecida de um pesquisador entrevistado da Suí-ça?”, indaga. Para Marco Antonio Zago, os rankings são úteis para comparar as instituições, mas há fatores privilegia-dos por essas listas que não interes-sam à USP. “Alguns deles valorizam a quantidade de alunos estrangeiros de gradua ção. Esse contingente, que é de cerca de 2% na USP, poderia aumentar, mas nunca chegar aos 30% de uma uni-versidade britânica, que depende de re-crutar alunos de fora para se financiar. No nosso caso, isso significaria usar o dinheiro do contribuinte paulista para formar mais estrangeiros, o que não faria sentido.”

Cada ranking tem uma metodolo-gia própria. “É preciso considerar que esses rankings são heterogêneos, e não só pela metodologia”, diz Zago. “Alguns buscam dados na web, outros pedem in-formações às instituições, mas não é só isso. Também os parâmetros e pesos são diferentes – e alguns desses parâmetros ainda mudam de um ano para outro”, afirma. O ranking do THE é composto por uma salada de critérios, que sofre al-

preciso relativizar seus dados. Quan-do privilegiam citações de artigos, têm inequivocamente um viés anglo-saxão, porque favorecem pesquisadores de países em que se fala inglês. Já outras listas privilegiam indicadores cientí-ficos das áreas ‘duras’, prejudicando universidades fortes em ciências so-ciais e humanidades”, diz Sguissardi. Ele lembra também que a função inicial de vários rankings era servir de referência para alunos interessados em estudar no exterior. “É preciso ter em mente que esses rankings fazem parte da lógica de um grande negócio. Imagine-se o impacto nas finanças da Universidade de Cambridge de sua posição privile-giada nos rankings, quando cerca de 40% de seus alunos são estrangeiros e estes, com exceção dos oriundos da União Europeia, pagam integralmente as anuidades universitárias.”

Em artigo publicado no jornal The Cronicle of Higher Education, Ellen Ha-zelkorn, vice-presidente da pesquisa do Instituto de Tecnologia de Dublin, resumiu as dificuldades dos rankings: “A disputa entre as organizações de classificação não resolveu uma ques-tão fundamental: é possível medir ou comparar instituições como um todo, contemplando suas diferentes missões e os contextos nacionais e financeiros?”. Apesar dessa limitação, ela observa,

THE

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42 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

países como China, Finlândia, França, Alemanha, Índia, Japão, Malásia, Rús-sia, Espanha, Coreia do Sul, Taiwan e Vietnã introduziram políticas volta-das para criar as suas “universidades de classe mundial”, usando definições inspiradas nos rankings.

O reitor da Unicamp, Fernando Costa, considera importante acompa-nhar o que dizem os rankings. “A ques-tão não é escolher um deles e querer estar entre os 100 primeiros, mas usar esses levantamentos para refletir sobre as qualidades de uma universidade de classe mundial”, afirma. “Há critérios, evidentemente, que embora desejá-veis infelizmente ainda são distantes da realidade brasileira, como ter ven-cedores do Nobel ou da Medalha Fiel-ds.” Segundo o reitor, as universidades estaduais paulistas reúnem vários dos requisitos das melhores universidades do mundo e têm sinalizado disposição para avançar nesse terreno. “Temos, por exemplo, recursos regulares e suficien-tes, ainda que num nível inferior ao das universidades norte-americanas. Temos também uma grande preocupação em recompensar os professores por seu mérito, mas as características das nos-sas instituições não permitem a mesma abordagem que se vê em universidades norte-americanas”, diz. A Unicamp tem

se esforçado, nas últimas duas décadas, em avaliar o desempenho de seus pro-fessores. A cada três anos, todo docen-te precisa fazer relatório de atividades. “Quem tem desempenho insatisfatório não pode ser demitido, pois tem estabi-lidade, mas pode ter o salário reduzido. Vários professores perderam o regime de tempo integral por desempenho não suficiente”, afirma. Outra frente é a da internacionalização, por meio da atração de estudantes e professores de outros países. “Nos esforçamos para trazer bons pesquisadores para o Brasil e temos vários professores estrangei-ros, mas há limitações. O sistema de ingresso é por concurso e não é simples convencer um estrangeiro a submeter- -se a ele. Agora estamos dando a opor-tunidade de um estágio e a possibili-dade de realizar o concurso em inglês, para facilitar esse caminho”, afirma.

Reconhecimento – Para o reitor da Universidade Estadual Paulista, Julio Cezar Durigan, os rankings são impor-tantes por dar visibilidade a universi-dades que criaram excelência científica mas são pouco conhecidas. “No nosso caso, permitiu que a Unesp ganhasse reconhecimento internacional e nos in-centivou a melhorar”, diz, referindo-se ao desempenho da instituição no levan- Fabrício Marques

tamento da Universidade Shangai Jiao Tong, que subiu mais de 100 posições nos últimos dois anos: atualmente a Unesp está no pelotão das 350 melhores do mundo. “Avançamos bastante na for-mação de doutores: são 800 formados por ano, mais do que muitas universida-des norte-americanas. Temos ainda um longo caminho a percorrer, no campo da internacionalização da pesquisa e da inovação. Uma de nossas metas é enviar para estágios no exterior pelo menos 20% dos nossos alunos; hoje temos 6% deles estudando fora”, afirma Durigan.

Hernan Chaimovich, da USP, chama a atenção para a definição de univer-sidade de classe mundial. “Trata-se de uma tautologia”, declara. “Existe clare-za de que as 10 que lideram a maioria dos rankings são universidades de classe mundial. Nas demais, não se sabe se o termo significa algo ou se é ferramenta de marketing.” Segundo ele, nem sempre há conexão entre as qualidades de uma grande universidade e os critérios con-templados por essas listas. “Os fatores avaliados pelos rankings são a pesquisa, o número de citações de artigos e a ex-posição pública da instituição. Carecem de uma metodologia para avaliação de processos de ensino e aprendizagem, que precisam ser desenvolvidos”, diz.

Chaimovich afirma que gostaria, sim, de ter uma Harvard no Brasil “e de preferência sem ter de esperar os 500 anos que ela levou para se tornar a melhor”. Mas cita uma série de caracte-rísticas de Harvard que não se aplicam à realidade das universidades públicas brasileiras. “Numa universidade de classe mundial, os professores não são selecionados em concursos. Harvard seleciona seus docentes pensando no futuro, para desenvolver frentes do co-nhecimento prioritárias. Não conheço universidade de classe mundial que es-colha reitor por voto ou que não pres-tigie a meritocracia de modo visível, na forma de salário, espaço no laboratório ou poder. Não conheço universidade de classe mundial que não olhe para seu país, ainda que reúna as melhores cabe-ças para pensar o mundo. E não conhe-ço universidade de classe mundial que não se preocupe profundamente com a graduação, que é uma grande fonte de prestígio”, afirma o professor. n

Vários países

adotaram políticas

para criar

“universidades

de classe mundial”

utilizando definições

dos rankings

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 43

Na boca dos cientistasartigo de químicos da Unicamp fica entre os mais populares da revista Analyst

Um artigo produzido no Instituto de Quí-mica da Universidade Estadual de Cam-pinas (IQ/Unicamp) sobre uma nova técnica de espectrometria de massas e seu uso para checar a autenticidade de documentos e notas de dinheiro ganhou a capa da revista Analyst, da

inglesa Royal Society of Chemistry, em outubro de 2010. Em novembro foi notícia em Pesquisa FAPESP (edição nº 177). Agora entrou para a lista dos hot 5 da Analyst, o que significa que ficou entre os cinco artigos mais acessados do ano passado no site da publicação especializada em química analí-tica. “Como dois dos cinco papers são de revisão e não contam, porque são naturalmente mais lidos, nosso trabalho ficou em 2010 entre os três mais atrativos”, comemora o químico Marcos Eberlin, fundador e coordenador do Laboratório ThoMSon de Espectrometria de Massas do IQ/Unicamp.

Apresentar uma lista anual dos artigos cien-tíficos que mais interessaram aos leitores é uma prática comum entre os periódicos do exterior. Com os textos on-line fica fácil saber quantas vezes cada um deles tem o resumo lido e quantas pessoas real mente baixam o artigo inteiro. Fazer parte do seleto grupo dos cinco artigos mais acessados du-rante o ano em uma revista de grande tradição e alto impacto como a Analyst é animador também porque, provavelmente, terá influência no número de citações do trabalho lido. “Mas não dá para ter certeza, é preciso esperar de cinco a 10 anos para ter essa medida. Embora a expectativa de que o artigo será muito citado por outros pesquisadores seja positiva”, diz Eberlin. Outro fator interessante é que o artigo foi acessado a partir de outubro, ou seja, apenas nos últimos meses do ano.

Os estudos proporcionados pela técnica Easi-MS (Easy Ambient Sonic-Spray Ionization Mass Spec-trometry), criada por Eberlin em 2006, têm obtido reconhecimento no meio científico. Já foram produ-

A capa de outubro com o artigo sobre a técnica Easi

zidos 30 artigos e só em 2010 a equipe da Unicamp publicou 11 deles em revistas internacionais como Analyst, Analytical Chemistry e Analytical & Bioanalytical Chemistry. O trabalho que está entre os cinco mais populares mostra como a Easi foi eficaz em diferenciar notas falsas e verdadeiras de real, euro e dólar. O resultado sai na hora, enquanto as téc-nicas de análise normais demoram dias e exigem pessoal altamente qualificado. O método é parte de uma nova geração de técnicas de espectrometria de massas capazes de, com simplicidade, identifi-car e quantificar cada tipo de molécula presente em misturas complexas e dis-criminar quais átomos formam essas moléculas e como eles estão arranjados. A rapidez, simplicidade e precisão para identificar tintas, material impresso, be-bidas e derivados de petróleo falsificados levaram a Polícia Federal e a Polícia Civil a firmar convênios com o laboratório do IQ/Unicamp.

Eberlin diz que tal situação era ini-maginável há 20 anos. “Íamos ao exte-rior e ficávamos deslumbrados com os recursos e estrutura dos laboratórios, enquanto no IQ, por exemplo, só ha-via um ou outro equipamento antigo de identificação de moléculas”, conta. Hoje há mais de 20 deles no instituto, entre os melhores e mais atuais dispo-níveis, no mundo. “Em duas décadas viramos o jogo, de expectadores a líde-res em ciência e tecnologia, graças ao investimento da FAPESP e, pelo menos em química analítica, conseguimos pu-blicar em quantidade e qualidade nas melhores revistas do mundo”, diz. n

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44 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

laboratório mundo

CaDa vEz mEnos abElhas

Já registrado nos últimos anos nos Estados Unidos e na Europa, o declínio das populações de abelhas pode estar se tornando um fenômeno global (The Independent, 10 de março). De acordo com o relatório de um grupo de cientistas a serviço do Programa Ambiental das Nações Unidas (Unep), uma queda significativa das populações de abelhas polinizadoras, principalmente a Apis mellifera, foi observada também em regiões mais distantes como a China e o Japão. Além disso, sinais iniciais desse fenômeno foram registrados no Egito. As causas podem ser a redução das plantas com flores, o uso de inseticidas e a poluição. A consequência do desaparecimento dos

FontEs DE muita EnErgia

A imagem ao lado vem de um remanescente da

supernova Tycho, produzida pela explosão de

uma estrela do tipo anã branca em nossa galáxia.

Raios X de baixa energia, em vermelho na imagem,

mostram os destroços da explosão da supernova

e os raios X de alta energia, em azul, revelam uma

onda de elétrons extremamente energéticos e um

padrão de faixas de raios X nunca antes observado

(Nasa). Essas faixas representam um sinal de que

as remanescentes de supernovas podem acelerar

partículas a energias centenas de vezes mais altas

que o mais poderoso acelerador da Terra, o Large

Hadron Collider (LHC). As faixas, prováveis regiões

de turbulência e campos magnéticos intensos que

atraem partículas atômicas, podem também expli-

car como são produzidos os raios cósmicos, partí-

culas extremamente energéticas que bombardeiam

a Terra constantemente. Essa supernova, a 13 mil

anos-luz da Terra, ganhou esse nome em homenagem ao as-

trônomo holandês Tycho Brahe, que foi o primeiro a registrar

essa supernova, em 1572, quando era tão brilhante que podia

ser vista durante o dia mesmo sem telescópio.

na

sa

Supernovas, berçário deraios cósmicos

outras FrutasComo a banana

Pesquisadores dos Estados Unidos e da Espanha podem ter descoberto como cultivar pinhas e outras frutas sem sementes.

enxames pode ser uma queda na produção agrícola, como já aconteceu nos Estados Unidos, já que 70 das 100 principais culturas agrícolas são polinizadas por abelhas. Os cientistas sugerem aos fazendeiros que restaurem ou ampliem os ambientes naturais procurados pelas abelhas e tomem mais cuidado com a aplicação de inseticidas e outros produtos químicos.

Se conseguirem, poderão produzir frutas como a banana, cujas sementes foram eliminadas nas variedades comerciais (PNAS, 14 de março). Por enquanto, apenas identificaram o gene que produz óvulos sem revestimento externo e é encontrado em maçãs normais, mas sem sementes. Esse gene existe também na Arabidopsis thaliana, usada para estudos em genética. A Arabidopsis que carrega esse gene não tem sementes ou frutos. A expectativa é valorizar esse gene para produzir maçãs, pinhas, melancias e outras frutas sem semente.

Menos sementepode ser bom

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PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 45

Por quE as PlaCas DEslizam

O quartzo pode ser decisivo para iniciar a cadeia de eventos

geológicos que culminam com os movimentos das placas

tectônicas, terremotos e tsunamis, como os que abalaram

o Japão em março. As equipes de Tony Lowry, da Universi-

dade do Estado de Utah, Estados Unidos, e de Marta Pérez-

Gussinyé, da Universidade de Londres, concluíram que os

cinturões de quartzo ao longo das Mon-

tanhas Rochosas, dos Estados Unidos, por

exemplo, podem ajudar a acionar os movi-

mentos de blocos de rochas que formam

as montanhas ou resultam em terremo-

tos. Os blocos de rochas podem deslizar

mais facilmente onde há quartzo, o elo

mais fraco, água e temperaturas elevadas.

Avaliar a quantidade de quartzo pode se

tornar, portanto, uma forma de estimar a

deformação e os movimentos das placas

tectônicas (Nature, 17 de março).

uvas Próximas,mas DiFErEntEs

Ao examinarem 190 pontos de um vinhedo da Espanha, especialistas do Instituto Basco para Pesquisa Agrícola e Desenvolvimento verificaram que, dentro de uma mesma área cultivada, há trechos com solos de características diferentes a ponto de interferir na quantidade e na qualidade das uvas colhidas. À medida que conhecerem melhor essas propriedades do solo, os produtores poderão definir com mais precisão as necessidades de adubação ou irrigação de cada parte do terreno ou produzir uvas com características distintas. Conduzido pela bióloga Olatz Unamunzaga, esse estudo promove a melhoria da qualidade dos vinhos por meio do melhor gerenciamento do solo, do clima e das condições

uma Causa DointErEssE sExual

Um neurotransmissor, a serotonina, pode estar associado à preferência sexual e regular a escolha do parceiro, concluíram pesquisadores da China e dos Estados Unidos após uma série de experimentos com camundongos (Nature, 22 de março). Em laboratório, camundongos machos de uma linhagem cujo cérebro não reagia à serotonina perderam

de cultivo. Os solos com maior capacidade de retenção de água, como os argilosos, poderiam produzir uvas mais robustas. A disponibilidade de água afetou a produção de vinho e o número de ramos das videiras, embora tenha havido uma queda considerável nessas variáveis depois de um ano de alta produção e número de ramos. O maior teor de álcool foi observado nos anos ou períodos mais secos e maior oferta de água durante o amadurecimento da uva, entre agosto e setembro. A temperatura no mês de setembro, pouco antes da colheita, foi o que mais influenciou o teor de ácido málico, já que altas temperaturas favorecem a combustão e, portanto, a perda desse componente do vinho.

a preferência por fêmeas. Quando apenas um macho com níveis normais de serotonina era colocado nas gaiolas, os machos da linhagem sem serotonina tentavam se acasalar com ele e emitiam sons como quando animais normais encontram as fêmeas. O mesmo resultado foi obtido com animais em que o gene da enzima triptofano hidroxilase 2, necessário para a fabricação da serotonina, havia sido desativado. A preferência por fêmeas retornou após a aplicação de serotonina no cérebro dos machos. Em um depoimento à BBC, Keith Kendrick, neurocientista do Instituto Babraham, em Cambridge, Inglaterra, alertou que pode ser precipitado concluir que a serotonina pode ter esse mesmo efeito também em seres humanos.

Quartzo, facilitandoterremotos

O sabor depende do solo

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46 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

laboratório brasil

Outra lEvEDura para O EtanOl

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em Lorena e da Universidade do Minho, Portugal, estão utilizando uma linhagem de Pichia stipitis, uma espécie de levedura, para produzir etanol a partir de xilose, um tipo de açúcar abundante nas plantas, encontrado em resíduos ainda pouco aproveitados como bagaço e palha de cana. Hoje é a Saccharomyces cerevisiae, uma espécie próxima, que transforma o caldo de cana- -de-açúcar em combustível,

bEla E ESpinHOSa

A vitória-régia, embora seja um símbolo da Ama-

zônia, quase não foi estudada em detalhes. Ago-

ra botânicos do Instituto Nacional de Pesquisas

da Amazônia (Inpa) e da Universidade Estadual

de Maringá apresentam um estudo minucioso da

flor, dos frutos e de outras estruturas reprodutivas

da vitória-régia, que ganhou esse nome em ho-

menagem à rainha Victoria da Inglaterra. O fruto

cresce debaixo da água, emergindo apenas depois

de maduro, que exala um odor desagradável por

conter restos florais apodrecidos. Toda a planta

tem muitos espinhos, uma das razões pelas quais

pode ter sido pouco estudada. As sementes se

dispersam na água, principalmente em julho, no

auge da inundação, de acordo com o estudo desen-

volvido por Sônia Maciel da Rosa-Osman, do Inpa

(Acta Amazonica, março). A também chamada de

rainha-dos-lagos ou Victoria amazonica é uma das plantas da

Amazônia mais conhecidas do mundo e bastante valorizada

em jardins botânicos da Europa e da América do Norte. O suco

da folha serve para tingir o cabelo de preto e curtir couros.

A semente, do tamanho de um grão de ervilha, é comestível

e estoura com o calor como pipoca.

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embora não consiga processar a xilose. O Pichia stipitis tem sido muito estudado no mundo inteiro por causa de sua capacidade de converter xilose em etanol, superando essa limitação da S. cerevisiae.

Planta amazônica:folhas de 33 centímetros

A Saccharomyces:ainda imbatível

Os pesquisadores variaram as condições de oxigenação e de agitação da solução com xilose, usando a linhagem NRRL Y-7124 de Pichia em um reator de 1,6 litro, e obtiveram uma eficiência de conversão de até 63% (Brazilian Journal of Chemical Engineering, março). Apesar de promissor, esse resultado ainda está aquém do obtido com a Saccharomyces, capaz de transformar açúcar em álcool combustível com uma eficiência de cerca de 90%.

ElES atacam à nOitE

Má notícia para quem sonha com uma boa noite de sono: os percevejos estão reaparecendo. No Brasil esse problema ainda não está dimensionado, mas esses insetos de até 5 milímetros de comprimento já infestaram casas na Coreia, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e Austrália. Sua propagação resulta do aumento das viagens internacionais, imigração e resistência a inseticidas, de acordo com um estudo coordenado por Paulo Ricardo Criado, da USP (Brazilian Journal of Infectious Diseases, fevereiro de 2011). As picadas podem causar lesões cutâneas, inflamações ou reações alérgicas. Só em casos de infestação intensa os Cimex lectularius são encontrados nas próprias pessoas.

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PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 47

com colaboradores das universidades federais do Rio Grande do Norte e do Pará e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, verificou que as rochas desse cinturão, principalmente basaltos e gabros, formaram-se em ambientes de colisão de placas tectônicas, como o das ilhas japonesas, e foram depois deformadas como resultado da colisão com blocos continentais (Gondwana Research, abril). Essa colisão final provocou escapes laterais de enormes blocos de rocha e gerou feições similares às hoje vistas no sudeste da Ásia, que resultam da colisão do antigo continente da Índia com a Ásia formando a cordilheira do Himalaia.

rOcHaS DEfOrmaDaS

Já houve muita agitação em uma região hoje calma da Bahia e de Minas Gerais conhecida como cráton São Francisco, um dos blocos de rochas mais antigos do país. Por muito tempo, a intensa fragmentação do cráton representou um quebra-cabeça que só nos últimos anos os geólogos começaram a resolver. Agora datações precisas de minerais detalham as etapas da formação de um trecho do norte do cráton conhecido como cinturão vulcano-sedimentar- -plutônico do rio Capim, que começou a se formar há 2,1 bilhões de anos. Elson Oliveira, da Unicamp,

QuanDO amaré um prOblEma

Depressões profundas e, por vezes,

tendências suicidas podem resultar do

ciúme excessivo e do amor patológico,

dois distúrbios mentais identificados

há poucos anos que estão ganhando

mais atenção. Em um estudo recém-

-concluído no Instituto de Psiquiatria

do Hospital das Clínicas da Faculdade

de Medicina da Universidade de São

Paulo, Andrea Lorena da Costa, sob

orientação de Monica Levit Zilberman,

avaliou a frequência de comportamen-

tos excessivos e as características

do relacionamento amoroso em 32

pessoas com ciúme excessivo, 33 com amor patológico e 31

saudáveis. Mais danoso que o amor patológico, o ciúme exa-

cerbado pode ser alimentado por situações reais ou imaginá-

rias e combinar raiva, humilhação, medo, tristeza, depressão,

insegurança, ansiedade, angústia, traição, rejeição e medo de

perder o parceiro ou parceira de modo tão intenso a ponto de

causar alterações neurológicas. Pode também ser um efeito

adicional do alcoolismo ou do uso de drogas psicoativas.

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Tomates: gases incapazes de espantar ácaros

tOmatES inDEfESOS

Os tomateiros liberam dois compostos químicos – os ácidos salicílico e jasmônico – que servem para repelir insetos e microrganismos que se alimentam de plantas. Mas um inseto, o ácaro-vermelho Tetranychus evansi, consegue sobrepor-se a essas defesas. Pesquisadores da Universidade Federal de Tocantins (UFT),

de Viçosa e de Amsterdã (UvA), Holanda, verificaram que esse ácaro pode interferir nos mecanismos de produção desses dois compostos de defesa, reduzindo-os bastante (Ecology Letters, março de 2011). Renato de Almeida Sarmento, da UFT, sob a orientação de Angelo Pallini, da UFV, e de Arne Janssen, de Amsterdã, observou que as plantas ocupadas pelos ácaros se tornaram melhores fontes de alimento e mais atrativas que as que não sofreram ataques desses insetos. O Tetranychus evansi e uma espécie próxima, o T. urticae, podem eventualmente matar tomateiros, não só por consumi-los com avidez, mas também por causa de sua rápida proliferação. Antes restritos à América do Sul, hoje podem ser encontrados em plantações também da África e Europa, reduzindo a produção de tomates, já que não pode ser combatido por meio de predadores naturais.

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[ Neurofisiologia ]

Corticoides acionam mecanismos inflamatórios em algumas áreas do cérebro

Aparcela de 1% da populacão mundial que convive com as terríveis dores da artri-te reumatoide, uma inflamação crônica que provoca a degeneração das articula-ções, sabe bem quão importantes são os corticoides para melhorar sua qualidade de vida. Mas não apenas ela: milhões de

portadores de alergias respiratórias, de doenças da pele, vítimas de tumores cerebrais e pacientes de variadas outras condições em que a resposta inflamatória do corpo se torna exagerada têm se beneficiado nas últimas décadas da potente ação anti-inflamatoria desses compostos, em geral deri-vados sintéticos da cortisona, o principal corticoide secretado pelas adrenais humanas.

Identificados no início do século passado por Edward Calvin Kendall e Philip Showalter Hen-ch, descoberta que lhes valeu o Nobel de Medi-cina de 1950, os corticoides, entretanto, nem sempre funcionam na direção desejada – pelo menos quando se trata dos hormônios sintéticos. Em algumas regiões do cérebro eles podem pro-vocar exatamente o efeito oposto ao esperado e aumentar a inflamação, sugere estudo dos pes-quisadores Carolina Demarchi Munhoz e Cris-

toforo Scavone, da Universidade de São Paulo (USP), e Robert Sapolsky, da Universidade de Stanford, Estados Unidos, publicado no Journal of Neuroscience no final de 2010.

Por meio de injeção intravenosa de fragmentos de bactérias, o grupo de pesquisadores induziu res-postas inflamatórias em ratos de laboratório para avaliar o poder dos corticoides na modulacão de reações bioquímicas provocadas por inflamações no cérebro, como a que ocorre em caso de tumores ou mesmo de um acidente vascular cerebral (AVC). A resposta natural do organismo diante de uma inflamação é, sabidamente, secretar corticoides – e a adrenal dos ratos produz corticosterona, hormô-nio similar à cortisona humana.

Antes de provocar a inflamação, Carolina reti-rou as glândulas adrenais dos ratos (adrenalecto-mia) e implantou sob sua pele cápsulas de corti-costerona que liberariam a substância lentamente. Assim, controlando as doses, ela poderia investigar se a ação anti-inflamatória variava com diferen-tes níveis de corticoides no sangue dos animais, separados em três grupos – cada um com uma dose diferente do hormônio. O primeiro recebeu nível baixo de corticosterona, equivalente à pro-

Efeito inesperado

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PESQUISA FAPESP 182 n abril De 2011 n 49

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duzida naturalmente pelos roedores; o segundo, uma dose intermediária, semelhante à encontrada no organismo em casos de estresse leve, como o susto provocado pela batida inesperada de uma porta; e o último, uma quantidade elevada, que corresponde a níveis moderados de estresse, a exemplo do despertado pela preocupação de não conseguir pagar as contas no final do mês. Um quarto grupo, com as adrenais mantidas, foi usado como controle.

A relação entre nível de corticoides no sangue e grau de estresse é importante porque essa rea-ção adaptativa do organismo a situações novas ou ameaçadoras também faz as adrenais liberarem corticoides. E o grupo de pesquisadores já havia demonstrado anos antes que o estresse crônico e imprevisível pode causar inflamação cerebral (ver Pesquisa FAPESP nº 129). A questão agora era descobrir se o efeito era mediado pelos corticoides e de que maneira acontecia.

Por meio de técnicas de imunologia e bio-logia molecular, eles avaliaram o que diferentes taxas de corticoides causavam em duas regiões do cérebro dos ratos: o hipocampo, envolvido com a memória, a aprendizagem e, em situações

patológicas, com o desenvolvimento da epilepsia; e o córtex frontal, associado a processos cogni-tivos superiores, como a tomada de decisões. E observaram um complexo padrão de respostas dos genes analisados.

A depender da dosagem, alguns genes apre-sentaram o mesmo padrão de funcionamento nas duas regiões – por exemplo, foram acionados ou desativados em ambas –, enquanto outros apre-sentaram funcionamento distinto: estavam ativos em uma e desligados na outra. Essas alterações decorrem do controle da atividade do fator nuclear kappaB (NF-kappaB), molécula de comunicação intracelular central no processo bioquímico que regula a resposta inflamatória.

Até então se pensava que o NF-kappaB fosse sempre bloqueado pelos corticoides, que assim te-riam efeito anti-inflamatório. Na dose mais elevada, os corticoides diminuíram a atividade do NF-kap-paB e reduziram a inflamação no hipocampo. Mas, nos níveis baixo e médio, aumentaram a ação do NF-kappaB e, portanto, a sinalização que dispara a inflamação. No córtex frontal a relação foi diferente: a dose alta de corticosterona foi anti-inflamatória, enquanto a intermediária agravou a inflamação.

CiênCia

Page 50: Um retrato ancestral dos ameríndios

50 n abril De 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Apesar de se tratar de resultados ex-perimentais, eles podem ter importân-cia clínica, em especial para a neurologia e a psiquiatria, que lidam com as infla-mações cerebrais e suas consequências. Segundo Carolina, as doses usadas nos testes com os ratos são próximas das adotadas em estudos com seres hu-manos. Ela propõe, no entanto, que os dados sejam olhados com cautela: “Mostramos que a ação dos corticoides, mesmo com doses adequadas, não é apenas anti-inflamatória, mas”, ressalta, “o trabalho foi feito com ratos e usando o corticoide natural deles”.

I sso pode fazer uma grande diferença. Os corticoides que o organismo pro-duz funcionam de modo distinto dos

sintéticos, usados como medicamento. Uma das diferenças é que só 10% da quantidade de corticoides secretados pelas glândulas adrenais se encontra livre no sangue e pronta para atuar tanto nos tecidos periféricos quanto no sistema nervoso central. Já os sin-téticos ficam totalmente disponíveis para agir nos tecidos periféricos, mas são, em boa parte, filtrados ao chegar à circulação cerebral – uma barreira especial (hematoencefálica) reveste os vasos sanguíneos no cérebro e controla a passagem de vários compostos.

Por essa razão, quando têm de tra-tar inflamações cerebrais, os médicos aumentam a dose do medicamento, na expectativa de que uma proporção maior ultrapasse a barreira hematoen-cefálica, que funciona como uma ca-pa de chuva semipermeável: quando a chuva é fraca, evita a passagem da água e que a pessoa se molhe, mas, se a água é muita, certo tanto atravessa os poros do tecido.

Por causa desse mecanismo, o ní-vel de corticoides sintéticos no sangue periférico pode ser substancialmente diferente do que alcança o cérebro. As-sim, o que os médicos calculam como dose alta talvez seja, de fato, elevada na periferia, mas intermediária no tecido cerebral. Como foram as doses interme-diárias que aumentaram a sinalização inflamatória no hipocampo e no córtex frontal, os resultados servem de alerta para o uso médico desses compostos quando o alvo é o sistema nervoso cen-tral. Mas ainda faltam experimentos, que Carolina e Scavone pretendem ini-

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1. Estresse e a sinalização intracelular na inflamação desencadeada pelo LPS no sistema nervoso central: participação dos glicocorticoides e da via glutamato-nO na modulação do fator de transcrição nF-KB – nº 2002/02298-22. Participação das map kinases, proteínas de choque térmico e da via de apoptose nos efeitos adversos dos glicocorticoides no sistema nervoso central – nº 2004/11041-03. avaliação do envolvimento da via de sinalização Wnt na fisiopatologia de transtorno afetivo bipolar – nº 2008/08191-1

modAlIdAdE

1, 2 e 3. auxílio regular a Projeto de Pesquisa

Co or dE nA dorES

1 e 2. Cristoforo scavone – iCb/usP3. beny lafer – fM/usP

InvEStImEnto

1. r$ 191.086,25 (faPesP) 2. r$ 229.197,46 (faPesP)3. r$ 57.564,57 (faPesP)

OsprOjetOs

ciar em breve, para determinar se os corticoides sintéticos agem no cérebro do mesmo modo que os naturais. “Esses dados servem de alerta para ressaltar que há variáveis ainda não compreen-didas sobre o funcionamento dos cor-ticoides”, diz Scavone.

transtornos de humor – Recentemen-te Scavone iniciou uma colaboração com a equipe de Beny Lafer, do Depar-tamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, com o objetivo de identificar a possível influência de processos inflamatórios sobre o desen-volvimento de problemas psiquiá tricos. Em especial, Lafer está interessado em ver se alterações bioquímicas associadas à inflamação podem afetar o equilíbrio das células e induzi-las a morrer em pessoas com transtorno bipolar, mar-cado por alternância de episódios de depressão e de mania (euforia).

Descrito há quase 2 mil anos por Areteu da Capadócia, esse transtorno mental, antes chamado de psicose ma-níaco-depressiva, atinge em sua forma mais grave (tipo 1) cerca de 1% da po-pulação e vem sendo tratado de modo relativamente eficiente nas últimas dé-cadas. Mas sua origem biológica per-manece incerta. Nos anos 1990 estudos internacionais identificaram diminui-ção considerável no número de células (neurônios e células gliais) e redução dos mecanismos de proteção celular no cérebro de pessoas com transtorno

Afetados no transtorno bipolar:

neurônios, em verde, e células da

glia, em azul

Page 51: Um retrato ancestral dos ameríndios

PESQUISA FAPESP 182 n abril De 2011 n 51

bipolar. Associada à inflamação, essa perda celular, que se intensifica nas cri-ses de mania e depressão, afeta o córtex frontal e, possivelmente, o hipocampo, duas das regiões estudadas por Caro-lina e Scavone – a perda ou disfunção de neurônios no córtex frontal talvez ajude a explicar a dificuldade dos pa-cientes de controlar os impulsos nos episódios de mania.

Em um trabalho de revisão publi-cado este ano na revista Progress in Neuro-Psychopharmacology & Biolo-gical Psychiatry, ele e Scavone propõem um modelo tentando explicar como os mecanismos inflamatórios podem alterar uma via de sinalização intrace-lular acionada pela Wnt, proteína que regula a proliferação, a migração e a especialização das células. Todos esses processos aparentam estar, em maior ou menor grau, comprometidos nos transtornos de humor, como o bipo-lar e a depressão. Uma forte evidência de que nesses problemas psiquiátricos algo está errado na cadeia de reações químicas disparada por essa proteína é o fato de que dois dos medicamen-tos mais usados para tratar o trans-torno bipolar – o lítio e o valproato – atuam sobre essa via de comunica-ção intracelular, restabelecendo esse canal de transmissão de informações e eventualmente evitando a morte de neurônios. “As descobertas sobre os mecanismos de ação dos estabiliza-dores de humor mudaram o foco de pesquisas dos receptores nas membra-nas celulares e dos neurotransmissores que se ligam a esses receptores para o que ocorre no universo intracelular”, explica Beny Lafer.

E ssa nova forma de compreender os problemas psiquiátricos aproximou a equipe de Scavone e a de Lafer e

talvez gere novos tratamentos. Dentre as moléculas que, no futuro, podem se tornar um bom alvo terapêutico para o transtorno bipolar, Lafer destaca o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF). Entre seus muitos papéis, essa molécula regula a sobrevivência e a ra-mificação dos neurônios, funções que envolvem a sinalização pela Wnt e de alguma maneira se encontram desregu-ladas durante a depressão e a mania.

Parece mesmo haver um elo mole-cular entre os transtornos de humor, a

Em concentrações

moderadas,

corticoides agravam

inflamação no

hipocampo

e no córtex frontal

Artigos científicos

1. MUNHOz, C. D. et al. Glucocorticoids exacerbate lipopolysaccharide-induced sig-naling in the frontal cortex and hippocam-pus in a dose-dependent manner. Journal of Neuroscience. v. 30(41), p. 13.690-8. 13 out. 2010.2. HU, L.W. et al. The role of Wnt signaling and its interaction with diverse mechanisms of cellular apoptosis in the pathophysiology of bipolar disorder. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry. v. 35(1), p. 11-17. 15 jan. 2011.

ação dos corticoides e a influência do estresse, embora ele ainda não tenha sido definido. Os pesquisadores suspei-tam que esse elo seja o NF-kappaB, en-volvido tanto na resposta cerebral aos corticoides quanto na sinalização da Wnt, alterada no transtorno bipolar.

Em busca de resposta para essas questões – e, se possível, de novas for-mas de tratamento –, Lafer e sua aluna de doutorado Li Wen Hu, em parceria com Eliza Kawamoto, investigam as alterações que ocorrem na via da Wnt. Eles querem comparar o nível de pro-teínas dessa cadeia bioquímica achado no sangue de pessoas com transtorno bipolar que recebem medicação (lítio) desde o início da pesquisa com o de pes-soas com transtorno que não usam lítio e com o de indivíduos saudáveis. Até o momento, eles conseguiram coletar amostras de 20 integrantes do primeiro grupo, 17 do segundo e 36 do terceiro. “Ainda não sabemos se a disfunção nos processos inflamatórios é causa ou con-sequência dos episódios da doença, que melhoram com o uso de estabilizadores de humor”, afirma Lafer.

A suspeita de que os corticoides agravem a inflamação cerebral vem da observação clínica. Pacientes bipolares que tomam corticoides para comba-ter inflamações apresentam piora do quadro psiquiátrico. Além disso, en-contra-se em fase inicial de testes o uso de medicamentos com ação contrária à dos corticoides para tratar depressão. Ainda que o lítio apresente mecanismo de ação diferente daquele dos corticoi-des, os pesquisadores não descartam que possam atuar sobre alguns alvos intracelulares em comum. Mas é difí-cil saber. “Trata-se de uma complexa cascata bioquímica finamente regu-lada pelo organismo em resposta ao estresse e a processos inflamatórios”, comenta Scavone. “Interferir nesse sis-tema pode desencadear consequências ainda desconhecidas.” n

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52 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

[ biologia ]

Venenos mutantes

animais da mesma espécie têm peçonhas diferentes

Carlos Fioravanti

Uma mesma espécie de sapo, a Rhinela granulosa, produz venenos diferentes quando vive na caatinga ou em flores-tas como a mata atlântica. Uma jara-raca da região amazônica, a Bothrops atrox, fabrica venenos de composição distinta no Maranhão ou no noroeste

do Amazonas. Em um mesmo local, jararacas machos e fêmeas injetam em suas presas vene-nos com componentes distintos. A composição e, portanto, a letalidade dos venenos podem variar em um mesmo animal: uma espécie de anfíbio – a cobra-cega Siphonops annulatus – produz toxinas diferentes na cabeça e na cau-da, por onde é mais atacada quando se enterra ou entra em buracos. Já as abelhas produzem venenos com cheiro que lembra o de mel e in-gredientes que variam de acordo com a tempe-ratura e a estação do ano.

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 53

Esqueleto e veneno

(ao lado) de cascavel

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Antes pouco diferenciadas, essas misturas de toxinas estão ganhando identidades próprias, à medida que seus ingredientes e as prováveis funções biológicas de cada um deles se tornam mais conhecidos nos laboratórios do Institu-to Butantan, o centro nacional de referência na produção de soros contra animais peçonhentos. A eficácia dos tratamentos, agora está claro, poderá ser ampliada à medida que se agregarem informa-ções sobre a origem, o ambiente, a idade e a dieta do animal peçonhento: o soro para a picada de uma jararaca de São Paulo pode não servir para aplacar totalmente os efeitos da picada de uma espécie do norte do país. As Bothrops respondem por cerca de 80% dos 20 mil acidentes com cobras registrados por ano no Brasil, com uma mortalidade de 10% entre as pessoas que não tomaram soro, enquanto as cascavéis são responsáveis por cerca de 10% dos casos, embora com 75% de mortalidade.

O conhecimento crescente sobre os compo-nentes dos venenos pode ser útil para tratar até mesmo acidentes com animais menos perigosos como os ouriços-do-mar Echinometra lucunter, causa comum de ferimentos no litoral. “O veneno desse ouriço não mata, mas merece respeito”, diz Daniel Carvalho Pimenta, pesquisador do Butan-tan. Sob sua orientação, Juliana Sciani analisou o veneno liberado pelo espinho do ouriço e verifi-cou que o inchaço – ou granuloma – do local da espetada é um sinal de uma reação inflamatória intensa, que pode durar dias, embora geralmente não mereça muita atenção. Por essa razão, diz ele, “receitar um anti-inflamatório e um analgésico pode ajudar muito depois da picada”.

Para os animais, os venenos expressam as estratégias de sobrevivência. “O veneno facili-ta a vida das cobras venenosas, que podem ser magrinhas, enquanto as jiboias, que não são

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54 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

peçonhentas, têm mais trabalho pa-ra se alimentar: elas matam as presas enrolando-se nelas e sufocando-as”, observa Carlos Jared, biólogo do Bu-tantan que há duas décadas investiga a origem e as prováveis funções dessas misturas de toxinas que representam a continuidade da vida para uns e o fim da vida – ou ao menos muita dor – para outros.

Matar ou apenas espantar – Jared sabe bem o que uma cobra pode cau-sar: já foi picado três vezes, na primeira por uma cascavel e nas outras duas por jararacas. Por sorte, estava no próprio Butantan e o atendimento foi rápido. Em 1984, ele demonstrava para um grupo de visitantes como um par de botas recém-importadas poderia evitar a picada de uma cascavel. Ele esticou a perna, a cascavel atacou, mas a bota não barrou a picada, como todos es-peravam. “Senti os dentes da cascavel injetando o veneno na minha perna. Eu sempre dizia que temos de manter a calma nessas horas, mas naquele mo-mento não consegui. Nunca corri tão rápido até o hospital.”

O veneno é uma forma de defesa de que muitos animais se valem pa-ra caçar ou evitar que sejam caçados. Enquanto cobras, escorpiões e aranhas atacam ao menor sinal de perigo ou de

te na boca do predador, causando taquicardia e vômitos. Uma perereca- -verde do grupo das Phyllomedusa ado-ta uma tática defensiva mais refinada: ela se deixa comer e, enquanto o pre-dador a engole, libera substâncias que provocam o vômito; em menos de um minuto a perereca sai pulando enquan-to o predador permanece entorpecido e faminto.

Às vezes o veneno depende da dieta. Os dendrobates – rãs de pele de cor azul, verde ou amarela de no máximo três centrímetros que vivem principalmen-te na Amazônia – se alimentam de for-migas, besouros ou ácaros que, por sua vez, se alimentam de fungos venenosos. Os dendrobates sequestram esse veneno, que se acumula nas glândulas da pele. É assim que uma espécie de dendroba-tes, a Phyllobates terribilis, incorpora a poderosa batracotoxina, produzida por besouros e talvez por outros insetos. Jared comparou a letalidade dos vene-nos da Phyllobates e da jararaca e con-cluiu que o primeiro, da rã, é 8.750 vezes mais letal. Um pássaro da Papua-Nova Guiné, o Pitohui dichrous, também come desses besouros e libera essa toxina pe-

Por mecanismos

ainda pouco

conhecidos, um

gambá brasileiro

é imune ao veneno

da jararaca e

parcialmente imune

ao da cascavel

abelhas: composição do

veneno varia ao longo do ano

alimento por perto, os anfíbios – sapos, rãs e pererecas – preferem afugentar em vez de matar, adotando o que Jared chama de veneno pedagógico. Jared e sua equipe têm visto que as Rhinella, diante de possíveis predadores, enchem os pulmões de ar, estufam o corpo e deixam as glândulas chamadas paro-toides prontas para esguichar vene-no. Ao morder os sapos, os animais da floresta ou os cães domesticados apertam as glândulas, que liberam um líquido leitoso tóxico diretamen-

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fontE: DaniEl c. PimEnta / instituto butantan

Variação mensal da produção de melitina e fosfolipase A2

valor médio

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la pele e penas. Se a alimentação muda, o veneno desaparece. Os dendrobates mantidos nos viveiros do Butantan, que comem baratinhas, são inócuos. “Na verdade”, diz Jared, “eles eram veneno-sos, mas não estão venenosos”.

Nem sempre é assim. Pimenta ana-lisou o veneno de cinco grupos de es-pécies-irmãs das Rhinella, que viviam na caatinga, na Amazônia ou em cati-veiro. Externamente, todos são amare-lados, com uma consistência próxima à do látex da seringueira, e secam rapi-damente. A composição geral era a mes-ma. Já as abelhas Apis mellifera, prova-velmente em resposta a variações de temperatura, produzem venenos de composição distinta no inverno e no verão, podendo causar diferentes tipos de reações alérgicas. Somente no inver-no é que fazem uma variante – ou iso-forma – do antígeno predominante, a melitina, em uma proporção maior que os principais componentes do veneno de verão. “Os soros experimentais con-tra as picadas de Apis só funcionam às vezes, talvez por não levarem em conta essas variações”, diz Pimenta.

Dos gosmentos aos diáfanos – A com-posição do veneno de dois representan-tes da mesma espécie de jararaca, uma do Maranhão e outra do Amazonas, também pode variar e induzir à produ-ção de diferentes grupos de anticorpos, de acordo com um estudo de Maria de Fátima Furtado e outros pesquisadores do instituto paulista. Como explicar as variações de venenos em seres da mes-ma espécie que vivem em lugares dife-rentes? “Esse pode ser um sinal de que o bicho está mudando e outra espécie se formando”, comenta Jared. “Em alguns milhares de anos, talvez sejam espécies completamente distintas.”

Pimenta está vendo que venenos evoluem, passando de misturas ru-dimentares como a gosma amarela-da e insolúvel de um anfíbio como a cobra-cega para líquidos transparentes e cristalinos como o veneno de perere-cas, aranhas e escorpiões. “Os venenos dos animais mais primitivos consistem principalmente de proteínas, cuja pro-dução exige um alto custo energético, e de alcaloides, moléculas bem menores que as proteínas”, diz ele. É o caso do veneno da jararaca, amarelo viscoso por causa da elevada quantidade de

Artigos científicos

1. JArEd, C. et al. Parotoid macroglands in toad (Rhinella jimi): their structure and functioning in passive defense. Toxicon, v. 54, p. 197-207. 2009.2. FUrtAdO, M.F. et al. Antigenic cross-reactivity and immunogenicity of Bothrops venoms from snakes of the Amazon region. Toxicon. v. 55, p. 881-7. 2010.3. FErrEirA Jr., r.S. et al. Africanized honey bee (Apis mellifera) venom profiling: Sea so nal variation of melittin and phospholi-pase A2 levels. Toxicon. v. 56, p. 355-62. 2010.

proteínas. “Na outra ponta, temos venenos com muitos peptídeos, de custo energético menor, e esteroides, cuja estrutura química permite muitas variações”, acrescenta, exemplificando com o veneno de escorpião, líquido incolor e fluido, formado principal-mente por peptídeos.

Ainda não há regras claras sobre a variabilidade química dos venenos den-tro das mesmas espécies. O da casca-vel varia pouco e apresenta cerca de 10 componentes básicos, principalmente enzimas que, em segundos, paralisam os músculos e o sistema nervoso de ou-tros animais, de acordo com um estudo de Airton Lourenço Jr., da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com base em 112 amostras, colhidas de serpentes jovens e adultas de diferentes regiões do país ou de cativeiro.

No entanto, verificou Pimenta, o da jararaca é uma mistura de centenas de componentes de proporção variável, principalmente peptídeos e enzimas que corroem a pele e o tecido conjun-tivo das presas, iniciando a digestão. “A composição dos venenos pode ser redundante, com muitas moléculas com a mesma função, de modo a com-pensar as variações dos mecanismos de defesa das presas”, diz ele. Às vezes aparecem moléculas sem uma função biológica clara. Podem ser resquícios de outros tempos, na avaliação de Osval-do Augusto Sant’Anna, pesquisador do Butantan e coordenador do instituto Nacional de Ciência e tecnologia em toxinas. “Componentes dos venenos hoje sem uma função biológica apa-rente podem ter sido essenciais para a sobrevivência de uma espécie, tendo

se conservado ao longo da evolução, e talvez um dia voltem a ser necessários”, diz ele. “do mesmo modo que reconhe-cemos a diversidade entre os Homo sa-piens, identificando os indivíduos com suas características próprias, devemos reconhecer que há diversidade em uma mesma espécie de Bothrops.”

Os mecanismos de defesa que per-mitem a aves, às próprias cobras e a al-guns mamíferos resistir a venenos nor-malmente letais também permanecem incertos. A boipeva (Xenodon merre-mii), uma serpente agressiva, embora não venenosa, especializou-se em comer sapos venenosos, os corpulentos sapos- -cururus, do gênero Rhinella, antes cha-mado de Bufo. Um gambá brasileiro, o Didelphis aurita, da mata atlântica, é totalmente imune ao veneno das jara-racas e parcialmente imune ao da cas-cavel. Quando não têm imunidade, os animais adotam outro comportamento. Os quatis (Nasua nasua) escalpelam os sapos, raspando-os em pedras até tira-rem a pele com as glândulas de veneno, comendo só a carcaça – mesmo quando estão em viveiros, longe da mata. n

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56 n ABRIL DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

[ MInERALogIA ]

O passado em grãos de areiaMaterial radioativo permite traçar a origem geológica de praias do litoral sul do Rio de Janeiro

Ricardo Zorzetto

As praias de areia clara mesclada com manchas de areia negra nem sempre moldaram o litoral sul do Rio de Janeiro. Elas foram assumindo a for-ma atual nos últimos 10 mil anos, em uma lenta troca de carícias entre o oceano e o continente. E apenas parte da areia dessas praias veio do fundo do mar. Um bom tanto dos sedimentos

que hoje formam a orla de Angra dos Reis e Parati foi trazido de longe por rios que escavam a serra do Mar.

A equipe do físico Roberto Meigikos dos Anjos che-gou a essa conclusão depois de analisar quase 600 amos-tras de areia de um trecho de 25 quilômetros de praias que se estendem entre os municípios de Angra dos Reis e de Parati, na Costa Verde fluminense. Arrastados por rios como o Mambucaba, que separa os dois municípios, sedimentos de rochas cristalinas muito antigas da serra do Mar chegam continuamente ao oceano, onde vagam ao sabor das ondas antes de se depositarem na orla.

Meigikos e a física Carla Carvalho, sua ex-aluna de doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), só encontraram a origem desses sedimentos depois de decifrar a história registrada na composição química dos grãos de areia. Usando um aparelho que mede a concentração de elementos radioativos, eles calcularam a proporção de potássio, tório e urânio naturalmente encontrados nos sedimentos.

Esses elementos são instáveis e tendem a se transfor-mar em outros, emitindo raios gama. Por meio de reações químicas e processos físicos, átomos desses elementos se combinam com outros mais estáveis e são incorpo-rados na estrutura molecular dos minerais. Minerais leves (quartzo e feldspato) são de cor clara e ricos em potássio radioativo. Já os pesados, como a monazita e a ilmenita, contêm mais urânio e tório, que lhes conferem, respectivamente, coloração avermelhada ou negra.

Meigikos e Carla notaram que os sedimentos mais escuros se acumulavam ao norte da foz do Mambucaba

– em especial nas praias Histórica e das Goiabeiras, além da face da ilha do Algodão voltada para o continente –, ao passo que os mais claros eram mais comuns nas demais praias. O mesmo padrão foi encontrado a 10 quilômetros ao sul dali, na praia de Tarituba, onde os sedimentos ricos em tório e urânio se concentravam nas faixas de areia a norte de onde deságua o rio São Gonçalo.

Nas praias claras e nas escuras o teor de tório e urânio varia com a distância da linha-d’água. Há uma explica-ção. “O oceano funciona como um filtro, que carrega os sedimentos mais leves e deixa os mais pesados na orla”, conta Meigikos, coordenador de um projeto que recria a história geológica dos 2 mil quilômetros de praias do sudeste brasileiro (ver Pesquisa FAPESP no 138).

Enquanto trabalhavam em Angra e Parati, os pes-quisadores não se limitaram a investigar a composição da areia das praias e traçaram o caminho inverso ao dos grãos: coletaram sedimentos do Mambucaba até próximo à nascente, em Arapeí, no alto da serra do Mar, já no estado de São Paulo. Comparando a composição dos sedimentos, eles concluíram em artigo publicado este ano no Journal of Environmental Radioactivity que a areia da orla sul fluminense só poderia ter vindo das rochas cristalinas da serra do Mar, formadas há 500 mi-lhões de anos. “Os rios Mambucaba e São Gonçalo são importantes meios de transporte dos minerais pesados que compõem a areia dessas praias”, diz Meigikos.

A análise dos níveis de sódio, tório e urânio radioati-vos, proposta em 2006 por Meigikos como estratégia para rastrear a origem de sedimentos, vem sendo útil não só à geologia. Ela também tem ajudado os arqueó logos a re-contar a história da ocupação humana da costa brasileira. Bem antes da chegada dos europeus em 1500, descenden-tes dos primeiros habitantes da América do Sul já haviam atravessado savanas e florestas e se instalado no litoral do que viria a ser o Brasil. A prova disso são os sambaquis: montes de até 30 metros de altura e 200 de extensão for-

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PESQUISA FAPESP 182 n ABRIL DE 2011 n 57

mados pelo acúmulo de pedras, areia, conchas e restos de crustáceos, que, se imagina, só podem ter sido construídos por seres humanos.

Em 1981 a arqueóloga Lina Kneip, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, datou em 7.950 anos a idade do sambaqui da praia de Camboinhas, em Niterói. Ou-tra arqueóloga do Museu Nacional, Ta-nia Lima, estimou em 2002, também a partir da análise do carbono radioativo, que o sambaqui da ilha do Algodão, em Angra, teria 7.860 anos. Se os dados es-tivessem corretos, esses seriam dois dos sambaquis mais antigos do país.

Mas muitos duvidavam. Dados geo-lógicos sugeriam que naquele período o mar estaria cinco metros acima do nível atual – e assim teria permanecido por 3 mil anos, impossibilitando a ocupação da área. Depois de percorrer 200 quilô-metros do litoral fluminense e coletar areia de 16 praias, Meigikos e sua equi-pe no Laboratório de Radioecologia da UFF conseguiram novas evidências de que Lina e Tania estavam certas.

A análise radiométrica indicou que tanto em Camboinhas como na ilha do Algodão o mar esteve mais alto, sim, mas não a ponto de encobrir as terras onde estavam os sambaquis. “A com-paração dos níveis de tório e urânio permite ter uma ideia do tempo que os sedimentos ficaram sob a água”, explica Meigikos. “Naquela época essas áreas foram no máximo alagadiças, criando um ambiente propício à ocupação.”

Mas o que sobreviveu às águas não resistiu aos seres humanos. O sambaqui de Niterói foi destruído pelo avanço da cidade. O da ilha do Algodão, protegida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ganhou a compa-nhia de um hotel que jamais poderia ter sido construído ali. n

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Artigos científicos

1. CARVALHO, C. et al. Application of radiometric analysis in the study of prove-nance and transport processes of Brazilian coastal sediments. Journal of Environmental Radioactivity. v. 102, p. 185-92. fev. 2011.2. ANJOS, R.M. et al. Correlations between radiometric analysis of Quaternary deposits and the chronology of prehistoric settle-ments from the southeastern Brazilian coast. Journal of Environmental Radioactivity. v. 101, p. 75-81. jan. 2010.

Praia da Costa Verde: areia vinda da serra do Mar

Page 58: Um retrato ancestral dos ameríndios

58 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

[ COSMOlOGia ]

Sementes da vida no espaço

ação de raios cósmicos pode ter gerado moléculas que formaram animais e plantas

Carlos Fioravanti

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Partes do DNA e de outras mo-léculas essenciais dos seres vivos podem ter se formado no espaço há bilhões de anos e chegado à Terra de carona em cometas ou meteoritos. Uma hipótese que agora ganha novos argumentos

é que os fragmentos dessas moléculas podem ter se originado em nuvens galác-ticas bombardeadas por raios cósmicos, partículas muito energéticas abundantes desde o início do Universo. Essas nuvens são muito frias e constituídas por grãos de água sólida e gases condensados como o monóxido de carbono, o dióxido de carbono, a amônia e o metano.

Físicos brasileiros e franceses chega-ram a essas conclusões por meio de expe-rimentos em aceleradores de partículas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e na Univer-sidade de Caen-Baixa Normandia, em Caen, noroeste da França. Os feixes de íons produzidos nessas máquinas inte-ragem com gelos mantidos em tempe-raturas de até -260o Celsius, produzindo efeitos similares aos da interação de raios cósmicos com as nuvens galácticas.

“Estamos reconstruindo as condi-ções de surgimento dos primeiros pas-sos da vida”, diz o físico Enio Silveira, da PUC-Rio. “Queremos descobrir o que resulta do bombardeio por raios cósmi-cos do gelo do espaço sideral.” Segundo ele, o encontro de raios cósmicos com as nuvens de gelo assemelha-se a um jato de areia atirado contra uma parede: os

grãos de areia erodem a superfície da parede. Outra possibilidade é que as moléculas orgânicas possam ter se for-mado a partir da interação com outro tipo de feixe de partículas elementares, os elétrons, mais abundantes, mas me-nos energéticos que os raios cósmicos.

Os experimentos da equipe da PUC-Rio e de Caen indicaram que a água pode se decompor e formar peróxido de hidrogênio (água oxigenada, H2O2), ozônio (O3) ou radicais químicos com alta afinidade por moléculas com carga elétrica oposta. Em 2009 e 2010, como parte de seu doutorado, o astrônomo Eduardo Seperuelo Duarte, da PUC, trabalhou durante 18 meses com Ali-cja Domaracka no Grande Acelerador Nacional de Íons Pesados (Ganil) em Caen para determinar quais as novas espécies químicas que saem das nuvens congeladas de monóxido ou dióxido de carbono (CO ou CO2) bombardeadas por íons de níquel. “Raios cósmicos for-mados por elementos de massa atômi-

ca elevada como o níquel são raros no Universo, mas seu efeito é devastador, como o produzido em uma guerra por um tiro de canhão em relação ao dos muito mais abundantes tiros de metra-lhadora”, compara Silveira. Em outros testes feitos em dezembro no Ganil, a física Ana Lúcia Barros, do grupo de Silveira, verificou que cinco molécu-las diferentes, como CH3 e C2H4, for-mam-se nas nuvens de metano (CH4) bombardeadas por feixes de íons que simulam os raios cósmicos.

“Os raios cósmicos podem induzir a síntese de novas moléculas se a exposição das nuvens de gelo a eles for temporária”, comenta Silveira. “Bombardeamentos prolongados impedem a formação de macromoléculas.” Em dezembro de 2009 Alicja Domaracka esteve no Brasil e tra-balhou com Silveira no acelerador da PUC bombardeando cristais de fluoreto de lítio, que se estilhaçavam de modo semelhante às nuvens de gelo.

“Nosso planeta foi muito bombar-deado por cometas, que trouxeram a água que forma parte dos oceanos”, afir-ma Silveira. “A vida surgiu aqui relati-vamente em pouco tempo, apenas cerca de 1 bilhão de anos depois de a Terra ter se formado.” Se essa hipótese estiver correta, os cometas podem ter levado as moléculas orgânicas para qualquer canto do Universo, reforçando a possi-bilidade de vida extraterrestre. n

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PESQUISA FAPESP 182 n abril 2011 n 59

[ homenagem ]

Além da geografia

hilgard Sternberg dedicou a vida a entender as relações entre homem e natureza

Maria Guimarães

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Apesar do nome com tons estrangeiros e da carreira construída desde 1964 na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, Hilgard O’Reilly Sternberg foi e nunca deixou de ser um geógrafo brasileiro. No dia 2 de março, aos 93 anos, ele faleceu deixando uma

obra em que investigou a geografia, a ecologia e a antropologia da região que abriga a maior floresta tropical e a maior bacia fluvial do mundo.

Desde que se encantou com o vasto mundo das águas amazônicas, nos anos 1940, Sternberg jamais deixou de percorrer os meandros desses rios. Sua tese A água e o homem na várzea do Careiro, concluída em 1956 e publicada apenas em 1998 pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, foi pioneira em chamar atenção para a dependência entre as populações ribeirinhas e os cursos d’água. Ele investigou também as consequências dessa relação para os rios, que se tornam graves quando o desmatamento aumenta o fluxo de água e re-duz a calha dos rios por acúmulo de sedimentos, causando enchentes letais para as comunidades que vivem às suas margens.

Foi um trabalho fundamental, avalia o geó-grafo Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, da Universidade de São Paulo (USP). Ele ressalta também um estudo sobre enchentes no Vale do Paraíba, no interior paulista. “Sternberg fez uma análise meteorológica, examinou o povoamento, o uso desregrado do solo”, conta. “É uma abordagem que tem todo um dinamismo e evoca também o passado histórico.” Essa visão integrada destaca o trabalho de Sternberg na geografia brasileira.

Filho de imigrantes – um alemão e uma irlan-desa –, Sternberg nasceu em 1917 no Rio de Janei-ro, onde foi presidente da Sociedade de Geografia do Brasil de 1944 a 1964 e fundou o Centro de Investigação em Geografia do Brasil. Em 1956, foi um dos responsáveis pela realização do Congresso Internacional de Geografia, o primeiro num país tropical. Foi professor na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ele era jovem e talentoso, praticava uma geografia muito dinâmica e era um professor exigente e um grande incentivador”, lembra Monteiro. E aterrorizou uma geração de diplomatas em for-mação com sua rigorosa disciplina no Instituto Rio Branco: para ele, os representantes brasileiros no exterior também precisavam ser geógrafos.

Em sua casa nas colinas de Berkeley, onde vivia com sua mulher, Carolina, Sternberg construiu um labirinto de livros e mapas onde estava lon-ge de se perder. “Carolina mantinha tudo aquilo organizado”, conta Monteiro, “e ainda fazia uma feijoada para os alunos do curso que ele dava so-bre o Brasil em Berkeley”.

Mesmo longe da realidade do Amazonas, co-mo quando deixava o carro no estacionamento da Universidade de Berkeley com vagas reserva-das a ganhadores do Prêmio Nobel para almoçar no clube dos professores, até os últimos anos ele nunca deixou de estudar e falar com paixão sobre os descaminhos gerados pelo mau uso do solo e da biodiversidade. A herança deixada por Stern-berg nas gerações de geógrafos que formou e in-fluenciou continua atual na relação cada vez mais conturbada entre a natureza e o ser humano. n

Cocar e geógrafo: apaixonado pela Amazônia

Page 60: Um retrato ancestral dos ameríndios

Biblioteca de revistas Científicas disponível na internet | www.scielo.org

NOTÍCIAS

www.scielo.org

\\ pSiQuiAtriA

sinais neurológicos sutis

O objetivo do trabalho “Sinais neurológicos sutis: uma re-visão” é discutir o signifi cado desses sinais e a relevância para a pesquisa em psiquiatria, com ênfase na esquizofrenia e no transtorno bipolar (TB). Realizou-se para isso uma revisão da literatura nas bases de dados Medline e Bireme. Sinais neurológicos sutis são alterações no exame neurológico que compreendem funções diversas como integração sensorial, coordenação motora, sequenciamento motor e presença de refl exos primitivos. Os sinais indicam disfunção cerebral não focal, podendo se apresentar como fatores de risco para trans-tornos psiquiátricos. Podem indicar endofenótipos relaciona-dos a disfunções em circuitos neurais específi cos, fornecendo informações relevantes para fi siopatologia desses transtornos. Apesar disso, há poucos trabalhos sobre o tema na literatura nacional. A observação de sinais neurológicos sutis aponta para o potencial de o exame neurológico preencher uma lacuna entre a pesquisa neurobiológica e a prática clínica. O estudo foi realizado por Vinicius Sousa Pietra Pedroso, do Instituto de Psiquiatria Raul Soares, de Belo Horizonte, João Vinícius Salgado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Antônio Lúcio Teixeira, Hospital das Clínicas da UFMG.

Jornal Brasileiro de Psiquiatria – vol. 59 – nº 3 – Rio de Janeiro – 2010

\\ trAuMAtiSMO

Avaliação neuropsicológica

Traumatismo craniencefálico (TCE) é uma das causas mais frequentes de lesão cerebral. São relatados na literatura défi cits cognitivos após TCE moderado-grave relacionados à memória, linguagem, funções executivas, atenção e velocidade de pro-cessamento de informações. Estudos em pacientes com TCE leve são escassos embora alterações neuropsicológicas sejam encontradas nestes pacientes. A pesquisa “Alterações neuropsi-cológicas em pacientes com traumatismo cranioencefálico leve--moderado” investigou o funcionamento cognitivo de pacientes com TCE leve e moderado através de um protocolo abrangente (PN01) de testes neuropsicológicos. Foram avaliados 12 pa-cientes com TCE leve e moderado e identifi cados défi cits graves de memória episódica verbal para evocação imediata, tardia e de reconhecimento, de memória episódica visuoespacial para evocação imediata e tardia, nomeação, fl uência verbal nominal

e velocidade de processamento de informações. Os resultados do estudo argumentam a favor da importância de avaliação neuropsicológica abrangente mesmo em casos de TCE leve a fi m de identifi car funções comprometidas e preservadas, pro-porcionando condutas e programas de reabilitação adequados a cada caso. Os pesquisadores responsáveis pelo trabalho são: Eliane Correa Miotto, Fernanda Zanetti Cinalli, Valéria Trunkl Serrao, Glaucia Guerra Benute, Mara Cristina Souza Lucia e Milberto Scaff, da Universidade de São Paulo .

Arquivos de Neuro-Psiquiatria – vol. 68 – nº 6 – São Paulo – dez. 2010

\\ cOMunicAçÃO

Primeiro periódico paulistano

O estudo “Informação e política nos primórdios da imprensa paulista: O Farol Paulistano (1827-1831)”, de Carlos Eduardo

França de Oliveira, da Univer-sidade de São Paulo, analisa o primeiro periódico impresso na então província de São Paulo. A abordagem do autor parte da dis-cussão sobre a estrutura formal do jornal e a atuação política que a folha paulistana exerceu durante o Primeiro Reinado e o início do período regencial, época decisiva para a formação do Estado brasi-leiro em moldes liberais.

História – vol. 29 – nº 2 – Franca – dez. 2010

\\ educAçÃO

Letramento digital

O artigo “Letramento digital e formação de professores”, de Maria Teresa Freitas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, aborda o letramento digital no interior da discussão sobre a formação de professores, reportando-se às experiências cons-truídas em um grupo de pesquisa orientado pela perspectiva psicológica histórico-cultural. A pesquisadora apresenta algu-mas defi nições de letramento digital e refl ete sobre os desafi os

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Page 61: Um retrato ancestral dos ameríndios

postos à escola pelo confronto com as novas práticas de leitura e escrita propiciadas pelos usos do computador e da internet. Em seguida, a autora analisa como, em sua formação inicial e continuada, os professores são preparados para a inserção dessas tecnologias em suas práticas pedagógicas e para compreenderem o letramento digital de seus alunos. Ao final, situa-se o professor na era da internet, em seu lugar insubstituível de mediador do conhecimento, que adota uma posição aberta e ao mesmo tempo crítica diante do que essa tecnologia digital oferece.

Educação em Revista – vol. 26 – nº 3 – Belo Horizonte – dez. 2010

\\ AgriculturA

Cultivo de cana na Amazônia

O cultivo da cana-de-açúcar alcança recentemente espaços agrícolas localizados na Amazônia brasileira. O texto “A inser-ção recente da cana-de-açúcar no sudoeste da Amazônia: novos indícios da instabilidade do território em Rondônia e Acre”, de Mirlei Fachini Vicente Pereira, da Universidade Federal de Uberlândia, avalia algumas experiências de inserção recente desse cultivo nos estados de Rondônia e Acre, reconhecendo fragilidades e novas instabilidades territoriais advindas do cul-tivo da cana e da instalação de usinas por grupos externos.

Interações (Campo Grande) – vol. 11 – nº 2 – Campo Gran-de – jul./dez. 2010

\\ SAúde públicA

Automedicação e baixa renda

O trabalho “Automedicação em adultos de baixa renda no município de São Paulo”, de Bianca Schmid, Regina Bernal, Nilza Nunes Silva, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, objetivou estimar a proporção de automedicação e identificar fatores associados. Foram utilizados dados de inquérito populacional realizado no município de São Paulo em 2005, cujo plano amostral incluiu dois domínios, favela e não favela, com amostragem por conglomerados em dois estágios, totalizando 3.226 indivíduos elegíveis. Além de características sociodemográ-ficas e econômicas, foram analisados: uso de medicamentos nos 15 dias anteriores à entrevista, tipo de acesso (gratuito, comprado ou outra) aos medicamentos e os tipos de morbidades (crônicas ou agudas) tratadas, em análise de regressão logística múltipla. A proporção de automedicação foi de 27% a 32%. Automedicação esteve fortemente associada à morbidade aguda, ao acesso ao medicamento por compra, à idade menor que 47 anos e medi-camentos do grupo terapêutico que atuam no sistema nervoso central. O grupo que atua no sistema nervoso central foi o mais utilizado na automedicação. O acesso gratuito aos medicamentos

\\ O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis

no site de Pesquisa FaPesP, www.revistapesquisa.fapesp.br

mostrou-se fator de proteção para a automedicação. A distri-buição de medicamentos e o atendimento adequado devem ser considerados para orientação e redução dos riscos que o uso irracional de medicamentos pode gerar à saúde.

Revista de Saúde Pública – vol. 44 – nº 6 – São Paulo – dez. 2010

\\ MudAnçAS cliMáticAS

Efeitos sobre a mata atlântica

Nos últimos 500 anos de ocupa-ção da costa brasileira, de um total de 1.300.000 quilômetros quadrados, apenas cerca de 8% da cobertura original da mata atlântica (na foto, árvore desse bioma) foi preservada. Os poucos fragmentos restantes dessa devastação apresentam diversos ta-manhos, formas, estádios de sucessão e situação de conservação. Cerca de metade dos remanescentes flores-

tais de grande extensão está protegida na forma de Unidades de Conservação. A maioria desses fragmentos se encontra hoje nas regiões serranas. No estudo “Mata atlântica lato sensu: a mais antiga das florestas brasileiras, e um hotspot de biodiversidade, está altamente ameaçada pelas mudanças climáticas”, de A.F. Co-lombo e C.A. Joly, da Universidade Estadual de Campinas, são usadas técnicas de modelagem para determinar a distribuição geográfica presente e futura de 38 espécies arbóreas típicas da mata atlântica, considerando dois cenários de aquecimento global. O cenário otimista prevê uma taxa anual de 0,5% de aumento na concentração de CO2 na atmosfera e um crescimento médio da temperatura inferior a 2oC. O pessimista prevê uma taxa anual de 1% de aumento na concentração de CO2 e um aumento mé-dio da temperatura superior a 3oC. Usando estes parâmetros, os pontos de ocorrência atual das espécies e o algoritmo genético para previsões baseadas em regras preestabelecidas, os autores desenvolveram modelos da distribuição futura das espécies es-tudadas, considerando as temperaturas projetadas para 2050. Os resultados obtidos mostraram uma alarmante redução na área que essas espécies poderão ocupar, bem como um deslocamento da ocorrência atual em direção ao sul do Brasil. Na média, com o cenário otimista, a redução da área potencial de ocorrência é de 25%, enquanto no cenário pessimista este patamar é da ordem de 50%. As espécies que sofrerão a maior redução na área de ocor-rência são: Euterpe edulis, Mollinedia schottiana, Virola bicuhyba, Inga sessilis e Vochysia magnifica.

Brazilian Journal of Biology – vol. 70 – nº 3 – supl. 0 – São Carlos – out. 2010

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Page 62: Um retrato ancestral dos ameríndios

62 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

linha de produção mundo

EspErança robótica

Pernas robóticas capazes de devolver

o movimento de pessoas paraplégi­

cas estão em teste em Israel, Estados

Unidos e alguns países europeus. A

inovação, criada pela empresa israe­

lense Argo Medical Technologies e

batizada de ReWalk, consiste de um

conjunto de estruturas de alumínio re­

cobertas por plástico, unidas por mo­

tores atuadores, que funcionam como

músculos e são amarrados às pernas

e à cintura. Um conjunto de sensores

distribuídos ao longo da estrutura e

ao redor do corpo envia informações

para um computador – armazenado

na mochila instalada nas costas da

pessoa – que é o responsável por acio­

nar os atuadores. O usuário precisa

antes informar ao computador que

movimento pretende realizar como

ficar em pé, andar, subir ou descer

escadas. Algoritmos desenvolvidos pelo engenheiro Amit

Goffer, responsável pelo ReWalk, analisam os dados dos

sensores e usam os resultados para operar os atuadores. A

Argo criou dois modelos do ReWalk. Um para recuperação

de paraplégicos em hospitais e clínicas ortopédicas – já

disponível na Europa por € 87,5 mil (cerca de R$ 210 mil)

– e outro para uso cotidiano. Essa segunda versão deverá

ficar pronta até o final do ano.

rosas maisDurávEis

Um buquê de rosas que dure mais tempo nos vasos é o objetivo de um experimento que está sendo realizado na Universidade do Estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Os pesquisadores John Dole e John Williamson desenvolveram uma rosa transgênica que recebeu um gene de aipo para combater naturalmente o manitol, um composto de açúcar responsável por não deixar a rosa bloquear a ferrugem da pétala, enfermidade que acelera a degradação da flor logo após o corte. O manitol, produzido por fungos,

HiDrogênio armazEnaDo

Uma boa notícia no campo das energias limpas e renováveis: pesquisadores do Laboratório Nacional Los Alamos, nos Estados Unidos, criaram um novo processo para armazenamento e geração de hidrogênio, que, no futuro, poderá ser usado comercialmente em células a combustível para mover veículos. Eles desenvolveram uma técnica para reciclar o borano de amônia, uma substância química que contém quase 20% de hidrogênio. Essa elevada taxa significa que um volume relativamente pequeno da substância, na forma de pó, armazena grande quantidade de hidrogênio. A liberação do gás do borano de amônia já é um processo conhecido e estabelecido, mas o principal empecilho para a utilização em larga escala é a inexistência de processos eficientes para reintroduzir o hidrogênio no combustível usado. Até essa descoberta, depois da liberação de hidrogênio o borano de amônia não podia ser reciclado com eficiência. A novidade, divulgada em artigo na revista Science (18 de março), poderá tornar mais próxima a meta estabelecida pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos de que carros movidos a hidrogênio alcancem autonomia de cerca de 500 quilômetros com um único tanque de combustível em 2015.

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é oxidado nas rosas transgênicas pelo gene do aipo, que codifica a síntese da enzima manitol desidrogenase. Segundo os pesquisadores, com essa manipulação genética, as flores poderão durar até um mês após o corte. O estudo é financiado pelas empresas Dole Food Company e American Floral Endowment.

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Page 63: Um retrato ancestral dos ameríndios

PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 63

avião voa comElEtriciDaDE

O voo inaugural do monomo­

tor Elektra One, em 19 de mar­

ço, foi um momento impor­

tante na história recente da

aviação. Isso porque, no lugar

de utilizar combustível fóssil

para mover seu motor, como

fazem os milhares de aviões

comerciais que cruzam os

céus do planeta, a aeronave

usa eletricidade. Em seu voo

inaugural, o Elektra One de­

colou do pequeno aeroporto

de Augsburgo, na Alemanha,

subiu a mais de 500 metros

e sobrevoou a região por 30

minutos. Nesse período gas­

tou cerca de 3 kWh de energia,

o que representou a metade

da carga estocada em suas

baterias. A aeronave, desen­

volvida por Calin Gologan,

dono da empresa PC­Aero, pesa apenas 100 quilos (kg) e tem

capacidade para levar outros 200 kg, sendo 100 kg de baterias.

A autonomia prevista é de 400 quilômetros. O empresário,

que também planeja a construção de hangares dotados de

painéis solares para recarregar as baterias, pretende vender

o “pacote” formado pelo avião, hangar e fonte de energia por

menos de € 100 mil (cerca de R$ 235 mil).

catEtErmultifuncional

As técnicas não invasivas que utilizam cateteres para tratar problemas cardíacos, como desobstruir vasos com excesso de placas de gordura, representaram um importante avanço da medicina, mas esses procedimentos ainda são dolorosos e demorados. Os médicos manipulam vários tipos de cateteres de acordo com a necessidade do paciente. Agora uma equipe multidisciplinar formada

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Na Alemanha,primeiro voo doElektra One

por cientistas de materiais, engenheiros mecânicos e médicos da Escola de Medicina de Harvard e das universidades Northwestern e de Illinois, em Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, criaram uma espécie de balão inflável multifuncional capaz de executar várias tarefas simultaneamente, eliminando a necessidade de troca de cateteres. O equipamento conta com uma série de sensores que medem a temperatura local e o fluxo sanguíneo, um

conjunto de eletrodos que eliminam os coágulos e impedem a livre circulação do sangue e até um eletrocardiograma para registrar a atividade elétrica do músculo cardíaco. O dispositivo ainda se encontra em fase de testes e não foi usado em humanos, mas apresentou bons resultados em animais.

intErnEt mais rápiDa

O alto crescimento do uso da internet, com o aumento das transmissões de vídeos e a computação em nuvem, começa a exigir equipamentos mais rápidos para as redes de transmissão. Uma solução importante foi apresentada pela empresa norte-americana Infinera na Optical Fiber Conference, realizada em março, em Los Angeles, nos Estados Unidos. É um circuito integrado fotônico capaz de transmitir dados a 1 terabit por segundo (Tb/s) por meio de laser. Esse circuito, que deverá ser integrado a equipamentos ao longo das linhas de transmissão ópticas, poderá agrupar 10 canais de 100 gigabits por segundo (Gb/s), algo que vai permitir ao consumidor final baixar da internet filmes em alta definição em um quinto de segundo, ou ainda dar suporte a milhões de videoconferências simultâneas. O circuito ainda na fase de protótipo deverá estar no mercado, em uma versão de 500 Gb/s, em 2012.

Detalhe dossensores nobalão inflável

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64 ■ abril DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 182

linha de produção brasil

DisputaintErnacional

Nove projetos nas áreas de biológicas, exa-

tas, humanas e saúde irão representar o

Brasil na 62ª edição da Feira Internacional

de Ciências e Engenharia da Intel (Intel

Isef), de 8 a 13 de maio em Los Angeles,

nos Estados Unidos, onde estarão reunidos

jovens cientistas de mais de 50 países. Os

15 estudantes selecionados estiveram na

9ª edição da Feira Brasileira de Ciências

e Engenharia (Febrace), realizada de 22 a

24 de março na Universidade de São Paulo, com promoção

da Escola Politécnica por meio do Laboratório de Sistemas

Integráveis, que contou com a participação de 300 projetos

finalistas. Entre os escolhidos para a Intel Isef encontram-se

desde projetos que tratam da avaliação de parâmetros físico-

-químicos e dos aspectos ambientais no desenvolvimento de

um carvão alternativo, de Carlos Guilherme Lopes Grotto, de

Imperatriz (MA), passando pela pesquisa da ação larvicida do

melão-de-são-caetano, de Rafael Carmo da Costa, de Abaete-

tuba (PA), até TouchingNotes II - música para os sentidos, de

Vinícius Guilherme Müller, de Novo Hamburgo (RS). A lista dos

projetos selecionados está no site www.febrace.org.br.

tomógrafoprEmiaDo

O médico Marcelo Amato, responsável pelo Laboratório de Pneumologia Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, venceu a 10a edição do Prêmio Péter Murányi 2011 – Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo desenvolvimento de um tomógrafo que monitora em tempo real a condição dos pulmões, o que ajuda a reduzir a mortalidade na UTI (ver Pesquisa FAPESP

no 151). O tomógrafo, que faz 50 imagens por segundo dos pulmões de pacientes submetidos à respiração artificial, usa uma corrente elétrica para atravessar

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chuva artificialbrasilEira

Uma tecnologia de produção de chuvas desenvolvida pela empresa ModClima, de Bragança Paulista, no interior paulista, foi apresentada como destaque na Convenção das Nações Unidas (ONU) para o Combate à Desertificação, em fevereiro na Alemanha. O método, que vem sendo empregado desde 2001 pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), consiste em borrifar gotículas de água com tamanho exato em nuvens com potencial de chuva, selecionadas por software, para induzir a precipitação. O processo de formação de nuvens artificiais não é novo, mas diferentemente das outras técnicas empregadas, baseadas no bombardeio de produtos químicos nas nuvens, a tecnologia brasileira utiliza apenas água potável lançada por aeronaves.

Pulmões vistos em tempo real

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os tecidos. As correntes elétricas são geradas por 32 eletrodos fixados no tórax do paciente e ligados a um monitor que mostra as reações do órgão por meio de imagens, captadas pela emissão dos pulsos elétricos. A pesquisa recebeu apoio da FAPESP no valor de R$ 4.947.662,98 e da Financiadora de Estudos e Projetos de R$ 898.600,00. A partir de junho, a Philips, que em 2008 comprou a Dixtal Biomédica, parceira do projeto, vai começar a produzir em Manaus 10 tomógrafos por mês, que serão vendidos na América Latina.

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PESQUISA FAPESP 182 ■ abril DE 2011 ■ 65

DiagnósticosimplificaDo

O diagnóstico de doenças respiratórias em regiões distantes dos grandes centros urbanos poderá ser feito via internet com um software denominado scanRX, desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Computação de Alto Desempenho do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a coordenação do professor Amit Bhaya. O scanRX monta automaticamente a imagem de um filme de raios X, após ela ter sido escaneada em partes, e a comprime para viabilizar sua transmissão pela internet, mesmo em

conhEcimEnto lúDico

Um jogo chamado Ludoeducativo, acessado via web e destina-

do a ampliar o conhecimento de estudantes que vão prestar

vestibular, já atingiu 380 mil acessos desde o seu lançamento

em agosto de 2010. A partir de sugestão dos próprios jogado-

res e professores, o jogo com questões de múltipla escolha, de-

senvolvido por pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência

e Tecnologia dos Materiais em Nanotecnologia e Centro Multi-

disciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, foi

adaptado para funcionar em redes

sociais como o Facebook e contem-

plar também questões do primeiro e

segundo ciclos do ensino fundamen-

tal. São 4 mil questões relacionadas

ao conteúdo do ensino médio e mais

3 mil questões do fundamental nas

disciplinas de geografia, história,

ciências e matemática. Para diferen-

ciar as abordagens, o Ludoeducati-

vo ganhou três versões: Vestibular,

para o ensino médio, Ação, para o

fundamental ciclo 1 (do 2º ao 5º ano),

e Radical, para o fundamental ciclo

2 (6º ao 9º ano).

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Jogo de múltipla escolha via web

locais de conexão lenta. A transmissão das imagens digitalizadas será feita por um sistema que permitirá a médicos radiologistas de hospitais universitários do Rio de Janeiro emitirem um relatório de segunda opinião para médicos de outras especialidades. Pela rapidez e eficiência no diagnóstico, o sistema tem potencial para ser implantado no Programa Telessaúde Brasil, do Ministério da Saúde. Como sua operação é bastante simples, pode ser usado tanto pelos médicos como pelos técnicos das unidades de saúde. Um projeto piloto foi instalado na cidade fluminense de Piraí, para diagnóstico e tratamento da tuberculose.

rEsíDuofiltrantE

Com um material tão prosaico como cascas de banana, pesquisadores do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, no interior paulista, conseguiram obter um filtro que retira cobre, chumbo e outros metais pesados de águas contaminadas. “A casca foi seca, triturada e depois fracionada em pequenas partículas”, diz o professor Gustavo Rocha de Castro, coordenador do estudo,

publicado em 16 de fevereiro na revista Industrial & Engineering Chemistry Research. As partículas ficaram com tamanho entre 35 e 45 micrômetros – unidade de medida equivalente à milionésima parte do milímetro. A escolha da casca de banana não foi aleatória. “Ela tem bastante enxofre e nitrogênio, indicativos de que o material pode ser usado como extrator de metais.” Além desses elementos, compostos como os ácidos carboxílicos estão presentes na biomassa. Mas para que estejam disponíveis é preciso quebrar a casca em pequenos fragmentos. “Quanto menor o tamanho da partícula, maior a eficiência”, diz Castro. A grande vantagem do material está no baixo custo, produzido sem geração de resíduos tóxicos. “Pode ser uma aplicação bastante interessante para tratamento de efluentes industriais em países pobres”, ressalta.

Cascas filtrammetais pesados

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tecnologia[ biotEcnologia ]

A proteção das esferas

Uso de microcápsulas para revestir ilhotas do pâncreas pode impulsionar tratamento do diabetes

Marcos Pivetta

Em 16 de dezembro passado houve motivo para comemoração antecipada no Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel) da Universidade de São Paulo (USP) embora ainda faltassem no­ve dias para o Natal. A CellProtect, uma jovem empresa de biotecnologia originada de pesqui­sas iniciadas no Nucel, uma spin-off no jargão

econômico, depositou seu primeiro pedido de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O alvo da proteção intelectual é uma nova formulação de microcápsulas que talvez possa elevar o transplante de ilhotas do pâncreas, hoje um procedimento de uso experimental e sujeito a inúmeras restrições, à condição de tratamento eficaz e seguro para pacientes do diabetes, em especial os do tipo 1, incapazes de produzir insulina e dependentes de injeções regulares do hormônio para controlar a doença. Feitas à base de alginato, material obtido de algas marrons, as cápsulas podem ser usadas para revestir as ilhotas e, assim, permitir a realização de transplantes sem a necessidade de reduzir as defesas imunológicas do receptor com o emprego de drogas.

O primeiro problema desse tipo de implante, que envolve células obtidas a partir do pâncreas de um doa­dor humano recém­falecido, é justamente controlar a rejeição. Derrubar o sistema imunológico do receptor de um implante é um procedimento caro e delicado, que fragiliza o doente e o predispõe a pegar infecções. O segundo é manter as ilhotas, onde ficam as células beta responsáveis pela produção da insulina, funcionando a contento por um bom tempo. De acordo com os pesqui­sadores da universidade e da empresa, que desenvolveram conjuntamente as microcápsulas, esses dois empecilhos são contornados com o emprego de implantes de ilhotas revestidas. “Controlamos o diabetes em camundongos que receberam o transplante e as ilhotas estão produzin­do insulina há mais de 300 dias”, afirma a bióloga Mari Sogayar, professora titular do Instituto de Química da USP, coordenadora do Nucel e consultora da CellProtect. “Agora gostaríamos de testar a abordagem em animais maiores e, se tudo der certo, em pacientes humanos.”

Graças aos esforços da equipe de Mari Sogayar, cujo laboratório foi o primeiro e ainda é o único do Brasil n

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Microcápsulas com ilhotas do pâncreas: sem imunossupressão

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capaz de isolar ilhotas humanas, cinco pacientes diabéticos já receberam im­plantes de células do pâncreas desde dezembro de 2002. Mas, em todos os procedimentos feitos no país, o material biológico injetado não estava protegido por um revestimento. Agora, em par­ceria com a CellProtect, que ajudou a fundar ao lado de outros pesquisadores e ex­alunos da pós­graduação, a biólo­ga quer dar um passo adiante e passar a usar as microcápsulas nos transplantes. “Com elas, conseguimos controlar os compostos que podem entrar e sair dos poros desse revestimento”, diz o médico e pesquisador mineiro Thiago Rennó dos Mares Guia, presidente da CellPro­tect e colaborador do Nucel. “As células beta são muito delicadas e precisam de um suprimento adequado de nutrien­tes e oxigênio para se manter vivas.”

Por provocar poucas reações do sistema imunológico, o alginato é um composto de base comumente usado

em revestimentos destinados a serem implantados em seres humanos. Sua presença nas microcápsulas da Cell­Protect/Nucel não representa grande novidade. O diferencial do biomaterial brasileiro são, segundo os pesquisado­res, suas propriedades físicas e quími­cas singulares. “É como fazer um bolo”, compara a bióloga Ana Carolina Vale Campos­Lisbôa, que fez doutorado com a professora Mari Sogayar e é uma das sócias da CellProtect. “A forma co­mo cada pessoa usa os ingredientes tor­na uma receita única.” O alginato, que, aliás, também é fartamente usado na culinária em gelatinas e emulsificações, é formado pela combinação de dois ácidos, o gulurônico e o manurônico. Misturadas em proporções diferentes, essas substâncias resultam em alginatos com características distintas. A elastici­dade, a resistência e a porosidade desse biomaterial variam de acordo com a “receita” adotada.

As ilhotas do pâncreas não preci­sam ser colocadas dentro das micro­cápsulas. São embebidas numa solução viscosa de alginato e íons de cálcio e bário e, em seguida, gotejadas numa torneira especial, de onde saem envol­vidas por uma esfera do biomaterial. O diâ metro de cada microcápsula ob­tida pela CellProtect/Nucel oscila en­tre 600 e 800 micrômetros, grande o suficiente para abrigar com certa folga um grupo de ilhotas em seu interior. O tamanho exato de seus poros é um dos segredos da equipe brasileira. De­vido a suas dimensões e propriedades fisico­químicas, os diminutos furinhos nas paredes das esferas de alginato fun­cionam como uma membrana seletiva. Evitam a entrada nas microcápsulas de elementos nocivos, como os anticorpos e os macrófagos (células que engolem elementos estranhos ao organismo), mas deixam passar a glicose, o oxigênio e outros nutrientes indispensáveis para a manutenção das células beta. Permi­tem ainda, e isso é fundamental, que a insulina fabricada pelas ilhotas seja expulsa do interior do invólucro (ver figura). Dessa forma, o hormônio que estava em falta no organismo chega à corrente sanguínea do diabético.

Corrida internacional – Empresas de biotecnologia de várias partes do mun­do resolveram investir no desenvolvi­mento de materiais biocompatíveis que poderiam ser utilizados para revestir implantes de ilhotas do pâncreas desti­nados a tratar o diabetes tipo 1. Como o encapsulamento das células neutraliza a reação imunológica do organismo sem a necessidade de se recorrer a drogas, esse tipo de transplante pode, em tese, ser feito com ilhotas saudáveis, capa­zes de produzir insulina, oriundas das mais diversas fontes: doadores huma­nos, animais ou obtidas em laboratório de células­tronco. A companhia neoze­landesa Living Cell Technologies é uma das mais avançadas nos experimentos com essa abordagem contra o diabetes. Está realizando testes clínicos da fase 2, cujo objetivo é verificar se o procedi­mento funciona e se causa efeitos co­laterais, em seres humanos com um kit celular denominado Diabecell, que contém ilhotas suínas encapsuladas. A ViaCyte, uma firma de biotecnologia de San Diego, Califórnia, é outro com­

Como funciona a microcápsulaPoros regulam a entrada e saída de células e compostos

macrófago

insUlinaalginato

anticorpo

glicosE, oxigênio E oUtros nUtriEntEs

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ilhota Do pâncrEas

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petidor forte desse mercado. A partir de células­tronco humanas, a empresa produziu e encapsulou as células beta de ilhotas do pâncreas e pretende testar em breve um implante em pacientes.

A corrida nessa direção é motivada pela percepção de que, sem o auxílio do encapsulamento, o emprego dos transplantes de ilhotas permanecerá uma alternativa excessivamente res­trita e não terá grande futuro. Não há, nem de longe, pâncreas humanos de doadores em número suficiente para atender à enorme quantidade de diabé­ticos do tipo 1, que representam cerca de 10% dos pacientes com a doença. Como frequentemente são necessários dois ou três pâncreas de doadores para isolar o volume de ilhotas destinadas ao implante em um único receptor, a técnica se mostra de difícil aplicação na vida real. Para tornar o quadro ain­da mais complicado, o procedimento tem de ser repetido depois de alguns anos na maior parte dos doentes. Com o passar do tempo, as ilhotas morrem e deixam de produzir insulina. Então é necessário realizar uma nova interven­ção, que consiste em inserir um cateter no abdome e injetar as células na veia porta do fígado. “A vida útil das ilhotas encapsuladas com nosso biomaterial é muito maior”, diz Mares Guia. “E o microencapsulamento reduz o custo do implante, pois se elimina o gasto com as drogas imunossupressoras.”

Ilhotas do pâncreas derivadas de células-tronco no interior de um aparelho subcutâneo da empresa ViaCyte

Criada em 2008, a CellProtect é uma empresa pequena, nascida no seio da universidade. É formada por três sócios, dois consultores e quatro bolsistas do Conselho Nacional de De­senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa é feita nas instala­ções do Nucel e da empresa. Até janeiro do ano passado, o quartel­general da CellProtect era uma sala no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecno­logia (Cietec), incubadora de empresas situada na Cidade Universitária, onde fica a USP. Hoje, ainda sem sede pró­pria, a spin-off aluga uma sala na capi­tal paulista e conta com uma secretária para atender o telefone. Essa estrutura é

suficiente para competir com as empre­sas do exterior que também investem no transplante de ilhotas encapsuladas? Mares Guia acredita que sim. “Nossa formulação de encapsulamento é su­perior às demais”, diz ele. “Se o FDA (órgão que regula o uso de remédios e procedimentos clínicos nos Estados Unidos) aprovar o emprego do trans­plante de ilhotas microencapsuladas para tratar diabetes, estaremos prontos para oferecer uma boa alternativa com tecnologia nacional.”

Quando (e se) tiverem o sinal verde para testar em humanos o transplante de ilhotas encapsuladas, os pesquisa­dores do Nucel e da CellProtect já es­peram estar próximos de ter em mãos um pequeno dispositivo que poderia ser implantado debaixo da pele do pa­ciente e recarregado periodicamente com um novo suprimento de células produtoras de insulina. Dessa forma, assim que o material implantado co­meçasse a perder sua eficácia, meses ou anos depois do transplante inicial, não seria necessário injetar no abdome dos doentes uma nova dose de ilhotas reves­tidas. Bastaria retirar as células mortas e repor o refil do aparelho com ilhotas saudáveis encapsuladas. Tudo simples e sem a necessidade de hospitalização. Seria o fim também das injeções diárias de insulina, das quais dependem os dia­béticos do tipo 1 para se manter vivos.

A ideia parece um sonho, mas os cientistas dizem que é factível. Eles pretendem criar um protótipo do dispositivo ainda neste ano. Esperam também que, com o desenvolvimento de novos biomateriais e o avanço das técnicas de encapsulamento, a necessi­dade de repor o conteúdo do implante seja cada vez mais rara. “Os primeiros marca­passos eram enormes e preci­savam ser trocados em poucos meses”, lembra Mari Sogayar. “Agora duram anos. Acreditamos que o mesmo pode ocorrer com os implantes de ilhotas.” No segundo semestre, o Nucel deve inaugurar uma nova sede, com 2 mil metros quadrados. Na obra foram in­vestidos R$ 1 milhão da Financiadora de Projetos e Estudos (Finep) e mais de R$ 5 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O prédio vai beneficiar as pesquisas do núcleo, inclusive as feitas em parceria com a CellProtect. n

Ilhotas encapsuladas

podem ser

transplantadas

sem a necessidade

de suprimir o

sistema imunológico

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70 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Biscoitos mais magros

Novo ingrediente usado pela indústria não contém gordura trans

Pesquisadores da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a empresa Cargill Agrícola, desenvolveram uma gordura com baixo teor de ácidos gra-xos saturados e isenta de áci-

dos graxos trans, que já é utilizada pela indústria alimentícia como recheio de biscoitos e na formulação de diversos produtos. Desde agosto de 2009 a gor-dura, com depósito de patente no Brasil e no exterior, está sendo fabricada e co-mercializada pela Cargill. As matérias- -primas usadas para a obtenção do pro-duto, provenientes de fontes vegetais, não são novas. “Elas são utilizadas em produtos já estabelecidos no comércio brasileiro”, diz a professora Lireny Apa-recida Guaraldo Gonçalves, do laborató-rio de Óleos e Gorduras da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp (FEA), que coordenou a pesquisa em parceria com o pesquisador Renato Gri-maldi, do mesmo laboratório. “A novi-dade é o processo de cristalização, que atende a uma necessidade tecnológica da indústria.” Ou seja, os pequisadores conseguiram obter um produto com menor teor de ácidos graxos saturados

[ ENgENharia DE alimENtos ]

Produção de gordura low trans e sua aplicação em alimentos – nº 2005/54796-4

modAlIdAdE

auxílio regular a Projeto de Pesquisa

Co or dE nA dorA

lireny guaraldo gonçalves – Unicamp

InvEStImEnto

r$ 267.760,00 (FaPEsP)

O PrOjetO

e isento de gorduras trans sem perder as características sensoriais, de textura e de estabilidade. Além disso, para sua fabricação não foi necessária nenhuma mudança nas linhas de produção.

As pesquisas que resultaram na nova gordura tiveram início ainda na década de 1990. “Na época não havia nenhum levantamento de como era essa distri-buição de gordura trans no mercado alimentício, nem tampouco se fazia sua quantificação”, diz Lireny. As primei-ras pesquisas na Unicamp abrangeram metodologias para quantificação por diferentes técnicas analíticas, que já se mostravam eficientes na literatura internacional. “Com o domínio dessas técnicas, foram avaliados os teores de trans das gorduras hidrogenadas, que reinavam absolutas no mercado nacio-nal, produzidas por grandes indústrias”, relata Grimaldi. Essas indústrias prepa-ravam gorduras endereçadas a indús-trias processadoras de alimentos com teores que variavam de 20% a 50% de gorduras trans. A metodologia univer-sal para obtenção desses produtos era a hidrogenação parcial, em que o óleo insaturado proveniente de soja, milho, algodão, canola e outras fontes vegetais

Dinorah Ereno

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 71

com diferentes perfis de derretimento, consistência, textura e estabilidade. A partir do caminho aberto por Gioielli, diferentes propostas foram criadas e testadas, entre as quais a dos pesqui-sadores da Unicamp. Em 2008, após avanços na pesquisa, houve interesse industrial pelo trabalho desenvolvido na Faculdade de Engenharia de Alimen-tos. Foi então estabelecido um convênio de cooperação industrial em parceria com a Agência de Inovação (Inova) e a Fundação de Desenvolvimento (Fun-camp), ambas da Unicamp.

Azeite de dendê – A necessidade de declarar, a partir de julho de 2006, as gorduras trans, gorduras saturadas e ou-tros nutrientes nos rótulos de alimentos embalados fez com que as empresas in-vestissem em novos processos de produ-ção. No caso da gordura saturada e dos ácidos graxos trans os valores declarados como “zero” ou “não contém” devem ser menores ou iguais a 0,2 grama do componente por porção do alimento. Um dos produtos que mais têm sido uti-lizados em substituição à gordura trans é o óleo de palma, também conhecido como azeite de dendê. O grande entra-

ve para o uso em larga escala do óleo de palma é que a produção brasileira, concentrada principalmente no estado do Pará, é insuficiente para atender à demanda do produto utilizado tanto pela indústria alimentícia como pela cosmética. Os grandes fabricantes e fornecedores mundiais são a Malásia e a Indonésia, mas importar o óleo vege-tal para uso geral no Brasil encareceria muito a fabricação desses produtos. Por isso as gorduras interesterificadas têm se mostrado como uma interessante alter-nativa ao uso do óleo de palma.

“Dados divulgados pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) indicam que, desde 2006, quan-do começou a vigorar a legislação, até 2010, a redução de ácidos graxos trans na alimentação do povo brasileiro foi excelente do ponto de vista nutricional”, diz Lireny. Um estudo divulgado pela Abia em novembro de 2010 apontou que, dentro das categorias de produtos analisadas, 94,6% das empresas associa-das, em média, conseguiram reduzir o índice de gordura trans para o patamar estabelecido como meta em 2008 duran-te a 2a Reunião do Fórum da Alimen-tação Saudável, instituído por meio do Acordo de Cooperação Técnica firmado entre a entidade e o Ministério da Saú-de. As metas de redução tiveram como base a recomendação da Organização Pan-americana da Saúde, que estabelece um limite de 5% de presença de gordura trans sobre o total de gorduras em ali-mentos processados e 2% do total em óleos e margarinas.

O estudo foi realizado entre março e outubro do ano passado, dentro do universo de empresas associadas, que representam 73% da produção de ali-mentos no Brasil. Foram avaliadas 12 categorias de alimentos, que incluíram salgadinhos, massas instantâneas, sorve-tes, caldos, chocolates, sopas, panetones, óleos, pratos prontos, biscoitos e bolos, além de margarinas e cremes vegetais. A escolha se deu em função de serem os grupos de alimentos que apresentavam teores mais elevados de gorduras trans. Fabricantes de salgadinhos, massas ins-tantâneas e panetones alcançaram inte-gralmente a meta estabelecida, seguidos pelas indústrias de sorvetes, com 99,7%, e caldos e sopas, com 98,8%. Nas demais categorias, sete empresas alcançaram en-tre 90% e 99,7% da meta. n

se transforma em uma massa pastosa, com o auxílio de gás hidrogênio.

Os processos de interesterificação química, alternativa para a produção de gorduras sem trans, já eram conhecidos na ocasião. “A interesterificação baseia- -se na reação de óleos com um catalisa-dor para produzir gorduras novas, em que há uma alteração da posição quí-mica dos ácidos graxos”, diz Lireny. Um dos pioneiros nesses estudos no Brasil e hoje parceiro de pesquisa do grupo da Unicamp é o professor Luiz Anto-nio Gioielli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, responsável pela seleção de vá-rias matérias-primas que contribuíram na busca de novas gorduras sem trans. “Uma solução proposta por Gioielli é o uso de gorduras que são intereste-rificadas a partir da mistura de óleos líquidos interesterificados com óleos totalmente hidrogenados”, diz Lireny. Como esses produtos obtidos são mais consistentes, eles se destinam apenas a aplicações específicas, como o merca-do de cobertura de sorvetes e frituras. E representam muito pouco perto das necessidades do mercado, que preci-sa de uma grande gama de produtos l

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Caldo de cana em biocélulasAlternativa energética para produzir eletricidade

Marcos de Oliveira

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Ocaldo de cana, companheiro de pastéis em feiras livres, é um forte candidato a produzir energia elétrica em uma pequena caixa plástica para funcionar como baterias de celulares, tocadores de MP3 ou mesmo note-books. O dispositivo onde os açúcares

da garapa agem como combustível, chamado de biocélula, é uma das promessas mais re-centes no campo das fontes energéticas alter-nativas. Em 2007 a Sony mostrou um desses protótipos – existem vários no mundo – para suprir um pequeno tocador de música alimen-tado com glicose. Além dos açúcares, outros combustíveis podem ser utilizados como eta-nol, metanol e água de esgoto. Em relação ao caldo de cana, a primeira demonstração foi de um grupo de pesquisa da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André, na Região metropolitana de São Paulo. A produção de eletricidade a partir do caldo foi possível com a síntese de uma enzima em laboratório que potencializa a reação química responsável por converter o açúcar em eletricidade.

As biocélulas a combustível têm apresen-tado uma crescente importância científica e

[ BioquímicA ]

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tecnológica nos últimos anos. Os estudos que envolvem esses dispositivos, desde o início dos anos 1990, pularam de cinco artigos publica-dos em revistas científicas em 1989 para 240 em 2010, segundo levantamento da professora Adalgisa de Andrade, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). São estudos normalmente feitos em parceria com várias instituições. Adalgisa, por exemplo, que desenvolve biocé-lulas que utilizam o etanol como combustível, mantém colaboração com a professora Chelley Minteer, da Universidade de Utah, Estados Unidos, coordenadora de um grupo que já produziu vários trabalhos nessa área. Frank Nelson Crespilho, coordenador do Grupo de Materiais e Métodos Avançados da UFABC que utiliza o caldo de cana em suas biocélulas, possui parcerias com a Universidade da Coreia do Sul, a Universidade de Grenoble, na França, e, dentro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Eletrônica Orgânica (Ineo), a Universidade Federal do Piauí.

Um dos focos desses estudos relacionados com biocélulas a combustível é a potência que

Biocélula com caldo de cana passa por medição em laboratório da UFABC

ainda é muito baixa, o que se transforma num impedimento para a sua implementação co-mercial. A elaborada na UFABC, com caldo de cana e a nova enzima, gera 60 miliwatts (mW) por centímetro quadrado (cm2) operando a uma tensão de 0,39 volt (V), o que representa 26% da voltagem de uma pilha do tipo AAA, com 1,5 V. “A voltagem pode ser aumentada colocando-se várias células funcionando em série”, afirma o professor Frank Crespilho, coordenador do estudo. Foi essa a fórmula encontrada pela Sony em seu protótipo que gerou 1,5 miliwatt por cm2 e 0,8 V no total. O experimento da empresa teve apoio científico do professor Kenji Kano da Universidade de Kyoto, do Japão.

A corrida tecnológica atual é justamente aumentar a potência e o tempo de funciona-mento desses equipamentos que já atingem mais de 10 horas. Outras vertentes dos estu-dos são a geração de energia a partir de esgo-tos ao retirar elétrons da matéria orgânica e a miniaturização que permitiria a instalação dessas células no próprio organismo humano. O combustível, no caso, em vez do caldo de cana, poderia ser a própria glicose do sangue.

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“Um dos desafios atuais em relação às biocélulas a combustível é trazê-las para microchips, fazer uma microbiocélula ou nanobiocélula implantável para funcio-nar como uma bateria de marca-passo, para liberar medicamentos no organis-mo ou para detectar níveis de glicose”, diz o professor Crespilho, que, aos 32 anos, é também chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFABC. Para medir correntes muito baixas das biocé-lulas extremamente pequenas, Crespilho e sua equipe desenvolveram um software e compraram com financiamento da FAPESP um equipamento para eliminar ruídos de cabos de aparelhos eletrônicos e tratar sinais do ambiente.

Alta eficiência – As biocélulas funcio-nam de forma semelhante a uma bate-ria, convertendo energia química em eletricidade e de forma muito parecida com as células a combustível que pro-duzem energia elétrica – equipamen-tos já fabricados sob encomenda por algumas empresas, inclusive no Brasil – e têm o hidrogênio como principal combustível. São equipamentos que normalmente possuem mais de cinco quilowatts de potência, suficiente para suprir de eletricidade uma casa confor-tável para quatro pessoas. As biocélulas a combustível que estão no nível de pes-quisa científica e tecnológica são uma

1. Interação entre biomoléculas e sistemas celulares com nanoestruturas OD, 1D, 2D utilizando métodos eletroquímicos n. 2009/15558-12. Desenvolvimento de uma biocélula a combustível utilizando enzimas álcool dehidrogenase imobilizadas por automontagemn. 2008/05124-1

modAlIdAdE

1 e 2 – Auxílio regular a Projeto de Pesquisa

Co or dE nA dorES

1. frank Nelson crespilho – ufABc2. Adalgisa rodrigues de Andrade – usP

InvEStImEnto

1. r$ 92.262,80 e us$ 50.821,57 (fAPesP)2. r$ 73.622,30 e us$ 29.031,76 (fAPesP)

OS PROJETOS

A vantagem que se vislumbra com esses pequenos aparelhos é o aspecto biológico presente nos catalisadores, de origem orgânica, produzidos com enzi-mas ou microrganismos. Eles promo-vem a reação química necessária para a produção de eletricidade, no lugar, por exemplo, da platina nas células a com-bustível que é muito cara. Assim, a equi-pe coordenada por Crespilho conseguiu desenvolver uma enzima sintetizada na forma de um compósito formado por nanoestruturas de oxi-hidróxidos de ferro e um polímero orgânico chama-do de polidialidimetilamônio (PDAC), que são aplicados no catodo, um dos polos de um sistema eletrolítico, como uma bateria, que produz ou deixa fluir os elétrons, no caso extraídos dos açú-cares do caldo de cana, no lado anodo (ver ilustração). Outro ganho do grupo foi o uso de poliamida na estrutura da célula, um produto barato e escolhido quase por acaso na visita a uma fábrica de plásticos em Santo André.

Para entender esse estudo bioele-troquímico, que com a adoção de com-postos nanotecnológicos está sendo chamado de nanobioeletroquímica, é preciso lembrar que as células a com-bustível – e mesmo as bio – precisam de elementos oxidantes e redutores, para perder e ganhar elétrons. Nas células é instalada uma membrana polimérica chamada de membrana de troca de

Biocélula com membranaeletrodos com microrganismo e enzima mergulhados em caldo de cana e solução

promessa de produção de energia elétri-ca alternativa porque, a exemplo de suas primas maiores, possuem alta eficiência energética ao gastar pouco combustível na conversão de energia em comparação com motores a gasolina ou a diesel, por exemplo. Tudo isso de forma silenciosa e sem deixar grande quantidade de gases ou resíduos poluentes.

solução fisiológicA

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prótons ensanduichada entre os lados anodo e catodo da biocélula. Como a corrente é contínua, os elétrons fluem para o outro lado sendo recebidos no outro polo. Na membrana passam ape-nas os átomos sem elétrons, os prótons. Crespilho também estuda biocélulas sem membranas entre os dois polos. “Nesse caso, produzimos uma em que os eletrodos são mergulhados numa so-lução com glicose, água, peróxido de hidrogênio (H2O2), mais conhecido co-mo água oxigenada, e dois tipos de en-zima, uma glicose oxidase e a outra foi a nossa enzima com nanopartículas de óxido de ferro. A biocélula se mostrou eficaz com uma maior velocidade da reação eletroquímica que algumas mos-tradas na literatura”, diz Crespilho.

“A enzima sintética que desenvolve-mos mimetiza um mecanismo natural de enzimas da classe das peroxidases. Assim, enquanto os elétrons são extraí-dos dos açúcares para o anodo, outros elétrons são injetados no catodo e a enzima sintética acelera a quebra das moléculas de peróxido de hidrogênio.” Uma enzima biomimética é mais ba-rata, estável e eficiente que as naturais, segundo os pesquisadores. O trabalho desenvolvido pelo aluno de doutorado Marccus Victor Martins consistiu em envolver o óxido de ferro com uma camada do polímero orgânico sinteti-zados na forma de agulhas. A enzima

imobilizada sobre um eletrodo conten-do fibras de tecido de carbono é mer-gulhada em meio salino, com o caldo de cana e outros aditivos que formam o ambiente natural da enzima. “O pro-blema maior é manter a estabilidade dela por mais de 10 horas. Se a enzima degrada, a corrente cai”, diz Crespilho, que lidera o grupo há três anos na uni-versidade inaugurada há cinco anos.

Sem perturbar – Os experimentos do grupo de Crespilho também recaem sobre outra possibilidade no mundo das biocélulas, o uso de microrganis-mos como a levedura Saccharomyces cerevisiae, a mesma presente na fer-mentação do etanol, do pão e da cer-veja. “Eles digerem o açúcar”, diz Cres-pilho. “A maior dificuldade é extrair elétrons sem perturbar ou matar a Sac-charomyces.” Por meio de uma série de estratégias químicas, os pesquisadores conseguiram tanto manter o microrga-nismo como produzir eletricidade com ele imobilizado em um eletrodo de carbono. Mais de 20 microrganismos, principalmente bactérias, já foram uti-lizados com sucesso em experimentos com biocélulas, segundo a literatura científica.

O uso de eletrodos com microrga-nismos não está no campo de estudos da professora Adalgisa de Andrade, da USP de Ribeirão Preto, que escreveu

um artigo em que faz um resumo das atividades relacionadas às biocélulas enzimáticas em todo o mundo em 2010. Ela desenvolve biocélulas, que usam o etanol como combustível, com-postas por enzimas que quebram esse álcool como as desidrogenases encon-tradas inclusive no fígado para digestão de bebidas alcoólicas. O mais recente resultado do grupo que ela lidera é o desenvolvimento de anodos com na-noestruturas imobilizadas, contendo polímeros orgânicos e desidrogenases mais estáveis que apresentam maior densidade de corrente elétrica e que funcionam até por 90 dias.

“Fizemos um trabalho de misturar enzimas e polímeros e colocá-los em ci-ma da superfície de carbono preparado para receber elétrons, além de orien-tar essas camadas para que o eletrodo se torne mais estável e com potência maior”, diz Adalgisa, que contou nos estudos com a pós-doutoranda Juliane Forti. Com esses novos arranjos, o gru-po dela conseguiu que uma biocélula com potência de 0,28 miliwatts por cm2 funcionasse com etanol. Adalgisa e Frank Crespilho fazem parte de um seleto grupo de pesquisadores que her-daram o desenvolvimento das biocélu-las do professor Michael Potter, da Uni-versidade de Durham, no Reino Unido, que em 1912 demonstrou a produção de eletricidade por bactérias Escheri-chia coli em um substrato orgânico. A primeira biocélula apenas com enzi-mas foi apresentada mais de 50 anos depois, em 1964, por um grupo de pes-quisadores da empresa Space-General Corporation, da Califórnia, nos Esta-dos Unidos. Um longo caminho que poderá resultar em alguns anos numa nova alternativa energética. n

Artigos científicos

1. MARTINS, M.V.A.; BONFIM, C.; SILVA, W.C.; CRESPILHO, F.N. Iron (III) nanocom-posites for enzyme-less biomimetic cathode: A promising material for use in biofuel cells. Electrochemistry Communications. v.12, n.11, p. 1.509-12. 2010.2. AQUINO NETO, S.; FORTI, J.C.; ZUCOLOTTO, V.; CIANCAGLINI, P.; DE ANDRADE, A. R. Development of nanos-tructured bioanodes containing dendrimers and dehydrogenases enzymes for application in ethanol biofuel cells. Biosensors and Bioelectronics. v. 26, p. 2.922-26. 2011.

Sem membranasolução com eletrodos e enzimas produz eletricidade

solução fisiológicA

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76 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Magnetismo paratratar câncer

Grupo mineiro desenvolve nova rota para produzir materiais biomédicos

Pesquisadores mineiros desenvolveram uma nova rota para produção de um material formado por nanopartículas magnéticas de óxido de ferro que poderá ser útil no tratamento de vários tipos de câncer. Esse sistema biomédico, que está na pauta dos grandes centros de pesquisa nano-tecnológica e médica do mundo, é resultado

de um extenso trabalho que envolveu pesquisadores do Departamento de Química e do Centro de Microscopia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CDTN/Cnen), localizado em Belo Horizonte. A pesquisa publicada em 2010 na revista científica Journal of Sol-Gel Science and Technology, alcançou grande repercussão no meio aca-dêmico. “Em função da potencialidade de nosso trabalho e de seus bons resultados, recebemos de grupos relacio-nados com medicina e oncologia vários convites para divulgação em publicações científicas e para participação em congressos”, diz a física Nelcy Della Mohallem, pro-fessora da UFMG e coordenadora da pesquisa.

Os materiais magnéticos nanoestruturados, como os constituídos por diferentes formas de óxidos de ferro, já são empregados em procedimentos de diagnósticos, como ressonância magnética nuclear (RMN), e estão sendo testados como carreadores magnéticos de drogas e em tratamentos oncológicos com uso de hipertermia, terapia baseada no aquecimento do tumor mediante aplicação de um campo magnético de corrente elétrica para matar as células cancerígenas. Essas terapêuticas exploram duas grandes vantagens dos óxidos de ferro: a baixa toxicidade em seres humanos e a possibilidade de

Yuri Vasconcelos

[ nanotEcnoloGia ]

Imagem de nanocompósito com partículasmagnéticas

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 77

Artigocientífico

SOUzA, K.C.; MOHAllEM, N. D. S.; SOUSA, E.M.B. Mesoporous silica- magnetite nanocomposite: facile synthesis route for application in hyperthermia. Journal of Sol-Gel Science and Technology. v. 53, n. 2, p. 418-27. 2010.

controlar sua magnetização. Formado por nanopartículas de magnetita – es-se material magnético é composto por óxidos de ferro – inseridas em uma ma-triz de sílica, o nanocompósito é sinte-tizado na forma de pó ou de monólito, pequena peça usada em implantes em ossos atingidos por tumores. O material possui poros regulares, que variam de 2 a 50 nanômetros de diâmetro – por isso é chamado de mesoporoso –, que po-dem ser preenchidos com vários tipos de fármaco. Uma etapa importante do desenvolvimento é o dimensionamento dos poros, adequado ao tamanho da molécula da droga. Os pesquisadores mineiros estão testando no material uma droga chamada doxorrubicina, antibiótico injetável usado na quimio-terapia de diversos tipos de câncer. “O encapsulamento de uma droga desse tipo é importante por causa de sua to-xicidade. Ao ser encapsulada e liberada de maneira controlada, conseguimos diminuir os efeitos colaterais no pa-ciente”, diz Nelcy.

Campo externo – Nos tratamentos com hipertermia, o nanocompósito não precisa ser necessariamente preen-chido com fármacos porque o combate ao tumor pode ser feito pelo aumen-to da temperatura no local. O modo de ação é simples. Quando o material atinge o tumor, o paciente recebe um campo magnético externo, que é gerado por um aparelho específico para esse fim. Dependendo do local da lesão, o material pode ser injetado com uma agulha ou conduzido pelo sangue com auxílio de magnetismo externo. O cam-po magnético faz com que as partículas magnéticas presentes no nanocompó-sito comecem a vibrar e se aqueçam. “Temperaturas de 5 graus Celsius (ºC) acima da temperatura do corpo hu-mano são suficientes para matar um tumor sem afetar as células vizinhas”, afirma Nelcy. “Mas o compósito precisa ser bem controlado, porque partícu-las como a magnetita podem aquecer 20o C acima da temperatura do cor-po humano quando submetidas a um campo magnético, causando danos nas células saudáveis”, diz ela. Para ser efi-

ciente e aumentar a temperatura dentro dos níveis desejados, o nanocompósito precisa ser impregnado com partículas de magnetita com tamanho, distribui-ção e concentração bem definidos.

Na liberação controlada de drogas, a ação é um pouco diferente. Quando o medicamento chega ao tumor, o cam-po magnético é aplicado e a vibração das partículas magnéticas provoca a li-beração gradual da droga contida em seus poros. Em alguns casos, os dois tratamentos podem ser aplicados si-multaneamente. O calor ataca as células do câncer, enquanto a droga age para evitar uma rejeição do material ou para prevenir uma infecção. “Os nossos na-nocompósitos são revestidos de sílica e, por isso, são metabolizados pelo fígado e expelidos pelo organismo.”

Um dos avanços do grupo é a rota de síntese do material adotada pelo grupo, composto também pela pesquisado-ra Edésia de Sousa, do CDTN/Cnen,

e pela química Karynne Souza, dou-toranda do laboratório de Materiais Nanoestruturados da UFMG. “Trata-se de uma rota simples e muito eficiente. Testamos o material e ele funcionou muito bem na faixa de temperatura desejada para tratamento de câncer”, diz Nelcy. O nanocompósito foi feito impregnando a sílica mesoporosa SBA-15 com uma solução contendo sulfato férrico, Fe2(SO4)3. Até o momento fo-ram realizados testes in vitro. O grupo espera iniciar em breve ensaios com animais, que deverão ser seguidos de testes clínicos em humanos. “Nossa ideia é repassar o processo e o nano-compósito para uma indústria farma-cêutica, porque uma empresa spin off – que nós até poderíamos criar – teria muita dificuldade de colocar o produto no mercado”, diz Nelcy. Todos os proce-dimentos são de alto custo e necessitam de elevados investimentos. n

Sílica impregnada com óxido de ferro e, acima, representação dos poros

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80 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

Fê-lo porque quis o quê?após 50 anos, renúncia de Jânio Quadros ainda intriga analistas

Carlos Haag

E m 25 de agosto de 1961, após sete meses à frente da Presidência, Jânio Quadros (1917-1992) re-nunciou, jogando o país numa crise institucional e, segundo analistas, preparando caminho para

o golpe de 1964. Apesar das várias versões sobre os motivos que o levaram a deixar o cargo, as razões da renúncia per-manecem obscuras. O jornalista Joel Silveira contava como o ex-presidente gostava de convidá-lo para entrevistas e, quando perguntado sobre a questão, “tomava um gole de uísque, dava uma longa pausa e dizia: ‘Para você, Joel, eu conto’, sempre dando uma versão completamente diferente a cada vez”. “A natureza pouco convincente dos motivos levou vários especialistas à certeza de que se tratava de um golpe. A obscuridade do episódio sempre interessou ao próprio Jânio, que a usou até o final para reacender a mística do homem justo e inflexível: ‘Prefiro quebrar a vergar’. Com isso, ele conseguiu tirar proveito da renúncia, reinterpretan-do e reforçando o lado heroico da sua figura que, ‘vencida’, prometia voltar um dia ao combate contra os poderosos”, observa a cientista política Maria Teresa Sadek, diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais e professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), autora do estudo A trajetória política de Jânio Quadros.

“Ele criou um modelo de marketing político individual que ainda hoje atrai e influencia muitos políticos brasileiros. Era um novo estilo, muito pessoal, de liderança política, apoiado num marketing que reunia um sistema de comunica-ção baseado na autovalorização, nas denúncias das irregula-ridades administrativas, no desprezo pelo Parlamento e pela política e no uso sistemático da imprensa, com um discurso sedutor para vários setores da sociedade. Quando, porém, ele levou esse estilo para a Presidência, desprezando o Legis-lativo e usando elementos dos partidos para ocupar cargos

[ História ]

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 81

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82 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

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políticos, o sistema havia mudado. O Legislativo se fortalecia e o Executivo ficou isolado, um momento político desfavorável para que ele governasse como gostava”, avalia a cientista políti-ca Vera Chaia, coordenadora do Núcleo de Estudos de Arte, Mídia e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de A liderança política de Jânio Quadros (Humanida-des). “O mais importante é entender que o império da vassoura preparou o caminho para o domínio da espada. A política de Jânio de ‘governar é punir’ transformou o país num imenso quartel de Inquisição. Seu governo foi decisivo para reforçar o papel das Forças Arma-das, como foi o pós-1964. Seu estilo e sua renúncia contribuíram, também, para desmoralizar o processo eleitoral e a participação democrática. A descrença de que ‘o povo não sabe votar’ virou, a partir dele, uma arma ideológica para incutir no povo uma percepção negati-va de seus direitos políticos de cidadão. Se seu voto não vale nada, por que vo-tar?”, analisa a socióloga Maria Victoria

Benevides, professora titular da Facul-dade de Educação da USP e autora de O governo Jânio Quadros (Brasiliense). Jânio morreu sem nunca ter explicado as razões da sua renúncia. O mais pró-ximo que temos é a suposta conversa que teve com o neto, Jânio Quadros Neto, no leito de morte, revelada por este em 1996 em Jânio Quadros: me-morial à história do Brasil (Rideel): “A minha renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca imaginei que ela fosse de fato aceita. Renunciei à can-didatura à Presidência em 1960 e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. O ato de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo. Também foi o maior erro político da história republicana do país. O maior erro que eu já cometi. Renunciei no Dia do Soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir o apoio deles. O Jango, na época, era inaceitável para as elites e achei que todos iam implorar para eu ficar. Era para ter criado um clima político e imaginei que o povo e os militares sairiam às ruas para me

A renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca achei que fossem aceitar de verdade, disse Jânio

Em desfile, no dia exato da renúncia

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 83

chamar de volta. O brasileiro é muito passivo. Ninguém reagiu. As forças ter-ríveis eram tudo aquilo que mandava na democracia prostituída que governava o Brasil. Sem dúvida, o Congresso era a pior. Fui prefeito e governador e conse-gui administrar o Legislativo. Achei que Brasília seria uma continuidade, mas aquelas pressões não são nada compa-radas com a Presidência”.

V erdade ou mais uma das “ver-sões” após um gole de uísque? Talvez, passados 50 anos da re-

núncia, seja mais importante entender o “fenômeno” janista, suas consequên-cias e, acima de tudo, a permanência de valores explorados magistralmente por ele que ainda permanecem na visão po-lítica brasileira. “Seu repúdio aos par-tidos políticos e aos compromissos da vida pública refletem qualidades ainda socialmente valorizadas e constituem a esperança de que as transformações almejadas dependem de um líder cora-joso, independente e disposto a chefiar uma verdadeira cruzada redentora. Esse diagnóstico sobre a sociedade brasileira, da existência de uma ‘crise moral’, é bas-tante persuasivo”, nota Maria Teresa. “A força de Jânio se deveu à simplificação que ele fez no mundo político, dividido entre bem e mal, e a aparente eficácia das soluções moralizantes. Responsabi-lizando os políticos e os ‘tubarões’ por todos os infortúnios do passado e do presente, ele aparecia como diferente dos modelos conhecidos.”

O estudo recente A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas, coordenado pelo cientista político José Álvaro Moisés, apoiado pela FAPESP, revela, por exemplo, que quase dois terços dos brasileiros não confiam em parlamentos, políticos e governos. “Há um profundo descrédito da opinião pú-blica sobre partidos e o Congresso que reforça a tradição brasileira de perso-nalização das relações políticas, em que lideranças individuais se sobrepõem às instituições de representação. Existe ho-je, no país, uma preferência por uma ‘democracia sem Congresso e sem parti-dos políticos’. As consequên cias disso já são visíveis em vários países da América Latina com governos que têm apoio da massa, são governos personalistas que ampliam sua legitimidade com ataques diretos contra partidos e contra o Parla-

mento”, diz Moisés. “É particularmente brasileira a manipulação populista da corrupção política como tema central do debate político num país tão ca-rente de discussões públicas de fundo sobre escolhas coletivas fundamentais”, observa o sociólogo Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Democracia e subjetividade (Liberdade de Expressão).

“O apelo fundamental do discurso janista era o moralismo, se traduzin-do na denúncia da política, vista como ‘politicagem’, e dos partidos políticos, vistos como camarilhas interessadas apenas nas benesses do Estado, ata-cando mesmo o seu próprio partido. Ele se dizia independente, fiel apenas a

seus princípios”, lembra Maria Teresa. Segundo a pesquisadora, apresentava- -se, desde a eleição como prefeito, em 1953, como uma liderança acima do bem e do mal, com força para o com-bate contra o “nefasto”. “Ele deixava entrever o modelo de uma sociedade atomizada, sem nenhum tipo de orga-nização partidária, bastando para guiá- -la um líder forte o bastante para extir-par o mal. Não apresentava programas de governo e centrava sua plataforma no binômio ‘honestidade e trabalho’, prometendo varrer a corrupção, mora-lizando a administração”, explica Maria Teresa. “Desde o início, como vereador em 1947, foi construindo a imagem de um político diferente e sua plata-

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Incapaz de agradar esquerda e direita

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84 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

forma, então, atraía setores da classe trabalhadora. Fazia visitas aos bairros periféricos, sempre acompanhado por jornalistas que documentavam essas passagens para que ele as usasse como material de seus discursos na Câmara”, lembra Vera. “Jânio estava sempre nas manchetes diárias dos jornais. Quando não havia fatos políticos, ele mesmo os criava, com grande habilidade, desde os ‘bilhetinhos’ até seus trajes incomuns na Presidência. Sua agenda foi repleta de medidas bombásticas mesmo nas questões nas quais governos não se imiscuem, mas que rendiam manche-tes, como rinhas, uso de lança-perfu-mes e de biquínis nas praias. Chegou ao cúmulo de ditar regras de moralidade em concursos de beleza feminina”, no-ta Maria Teresa. “Era um moralismo que não distingue as esferas pública e privada, exaltando, ao mesmo tem-po, como plataforma política, a moral conservadora dos bons costumes e pre-gando a moralização pública baseada em regras de funcionamento racionais e modernas. Um moralismo ambíguo na distância entre discurso e prática”, completa Vera Chaia.

E nquanto isso, em seus discur-sos, transmitia a ideia de que os políticos e os partidos eram

ineficazes e desnecessários e que a “boa política” seria exercida por homens não comprometidos com ideologias. “O es-tilo autoritário, moralista e personifica-do de Jânio evocava um ‘populismo de direita’, militarista, antiparlamentarista e associado ao grande capital. Dirigido ‘a todas as classes e ao conjunto da na-ção’, acabava diluindo o significado de povo e massa. Ele não significou apenas a falência do sistema partidário como o populismo levado à sua contradição mais extrema e que se volta contra si próprio”, acredita Maria Victoria Be-nevides. Não sem razão, o mote do ja-nismo, observa Vera Chaia, era a forte presença da autoridade governamental confundida e identificada com as ideias e ações de um único homem, a quem se confere o poder de ordenar, decidir e fazer obedecer respeitando as leis de forma singular, já que imprime a mar-ca inconfundível da vontade pessoal. “Nesse contexto, o sistema partidário e o Congresso são peças perturbadoras da ordem, e o pluralismo intolerável,

já que legitimaria posturas como a da esquerda”, fala Vera. No lugar dos parti-dos, Jânio tinha o seu staff administra-tivo, grupo de apoio que aceita o poder concentrado nas mãos do líder. Eles é que estabeleciam a relação entre ele e os partidos, a imprensa, outros centros de poder e a sociedade civil. “Tudo se concentrava numa forma autoritária de exercer o poder, entender a sociedade brasileira como um organismo desorde-nado e incapaz de se estruturar a partir de movimentos da sociedade civil e da opinião pública, o que exigiria uma for-te autoridade governamental. A política, para Jânio, era entendida por ele como uma técnica administrativa, orientada por critérios pragmáticos de eficiência, concebida de forma antipolítica.”

O notável na ascensão de Jânio é de como ele soube se beneficiar do desen-volvimento da sociedade brasileira após as conquistas do governo de Juscelino Kubitscheck. “O desenvolvimento do governo JK despertou camadas sociais para demandas que não se exprimiam apenas em obras públicas ou empre-gos, mas no alargamento efetivo dos limites da participação política”, nota Maria Victoria. “Havia uma crescente insatisfação política de vários setores sociais com a alta do custo de vida, des-pertados para a participação política e para a reivindicação justamente pelos frutos do desenvolvimento num gover-no politicamente aberto”, continua a pesquisadora. Esse descontentamento, porém, não se traduzia numa “esperan-ça de proteção pessoal”, mas de justiça,

pois o que contava para ele não é a ex-pectativa de favores, mas a capacidade de trabalho e o mérito.

“Este ideal de justiça é permeado por um conteúdo moralista. O elei-tor de Jânio acredita que o principal problema da sociedade é a corrupção e que para combatê-la basta um líder que se proponha a varrê-la, uma cru-zada redentora”, nota Maria Teresa. “Essa varredura, porém, tinha várias versões de ‘sujeira’. Podia ser a ‘sujeira da corrupção’ como também da ‘ple-be’, que quer se mostrar, em toda a sua ‘sujeira’, participar, reivindicar e ‘sujar’ o palco”, lembra Maria Victoria. Assim, ao mesmo tempo que era o paladino do “tostão contra o milhão”, o homem que comia sanduíche de mortadela nos comícios, feitos mesmo à luz de velas, Jânio foi, desde os primeiros passos na política, apoiado financeiramente pelas grandes corporações, em especial pela indústria farmacêutica e pelos meios de comunicação, contando ainda com o apoio dos grandes proprietários rurais, como Auro de Moura Andrade.

O mesmo, segundo analistas, pode ser dito de sua maior ousadia política, a política externa independente, que o aproximava de países socialistas, dan-do munição para seus inimigos, como Carlos Lacerda. “Ele quis cortejar as esquerdas com um presente de grego e comprou, sem necessidade e sem lucros, uma briga com a Igreja, os militares e os setores mais conservadores do país”, afirma Benevides. Afinal, continua a professora, ao mesmo tempo que se-guia para o Leste a Missão Dantas, o embaixador Roberto Campos corria ao Oeste Europeu e o embaixador Walter Moreira Salles para os EUA a fim de ne-

a desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas – nº 2004/07952-8

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Projeto temático

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José Álvaro moisés – usP

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r$ 224.161,00

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A varredura janista podia ser tanto da corrupção quanto da participação do povo na cena política

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 85

Estilo popular durante as campanhas

gociar dívidas e levantar empréstimos, bem como para tranquilizar os aliados sobre a permanência do Brasil no bloco capitalista. “Forçado a atender às exi-gências do FMI e convencido de que os EUA, por causa da crise cubana, seriam mais benevolentes quando confronta-dos com um clima de urgência interna-cional, Jânio fez o que podia para criar alarme sobre os rumos de seu governo e aumentar o poder de barganha nas mesas de negociação”, escreveu o soció-logo Carlos Estevam Martins em seu artigo “Brasil-Estados Unidos dos anos 60 aos 70” (Cadernos Cebrap).

D a mesma forma oportunista, Jânio tentou repetir fórmulas bem-sucedidas em seus gover-

nos paulistas no exercício da Presidên-cia e na política nacional. “Ele tinha a pretensão de independência em relação às forças que o apoiaram e logo surgi-ram as desavenças com a UDN con-centradas no fogo de Lacerda contra sua gestão. A clara dissonância de suas políticas interna e externa estimula-va descontentamentos à esquerda e à direita. Boa parte da classe política se sentia abandonada, traída, incapaz de

controlar as idiossincrasias do presi-dente. Um sentimento que, no entanto, não era compartilhado pela população, para quem a popularidade de Jânio era elevada”, diz Maria Teresa. Fruto de uma estratégia janista que funcionava ainda mais com o progresso. “Por estar em Brasília [foi o primeiro presidente a tomar posse na nova capital], o contato com o povo e os comícios em praça pública ficaram inviabilizados. Jânio, então, para se comunicar com o povo passou a usar os meios de comunicação de massa: rádio e televisão”, diz Vera. Apesar disso, não houve o movimento de massas esperado por ele com sua renúncia, apenas os desdobramentos graves para a democracia nacional. “Seu desprezo pelas instituições, em espe-cial pelo Congresso, em favor de um respeito exagerado pelos militares: não estariam aí fatores importantes da crise que se ‘resolveria’ em 1964, com um re-gime autoritário, repressivo e vingador? Não se pode negar a responsabilidade do presidente, com sua renúncia, que quis governar acima dos partidos e com apoio dos militares. O personalismo autoritário de Jânio, o seu bonapartis-mo, o moralismo que retoma o tema do

Artigo científico

MARTINS, CARLOS ESTEVAM. Brasil-Estados Unidos: dos anos 60 aos 70. Cadernos Cebrap. n. 9. 1975.

golpismo, atenuado durante a segunda metade do governo JK, contribuíram para o golpe”, acredita Maria Victoria. “Ele consolidou a intervenção militar na cena política; exacerbou a extrema direita que se organizou e mobilizou por conta de sua política externa; por fim, sua renúncia radicalizou os seto-res populares e da esquerda que, sem ter suas demandas de transformação social cumpridas, sobrecarregaram o governo Goulart com demandas insus-tentáveis para a sociedade oligárquica da época”, analisa a pesquisadora. O janismo, como nota Vera Chaia, pode ter desaparecido com Jânio, mas sua influência ainda coloca a questão que encerra a pesquisa de Álvaro Moisés sobre o Brasil recente: “Esse processo de progressiva deslegitimação das ins-tituições básicas da democracia repre-sentativa poderá ser usado, a médio ou longo prazos, para alimentar alternati-vas antidemocráticas?”. n

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PESQUISA FAPESP 182 n abril DE 2011 n 87

[ hiStÓria Da ciÊncia ]

Pesquisadoras brasileiras encontram uma receita da pedra filosofal na royal Society

Alquimista em seu laboratório

Foi levando ao pé da letra o lema da Royal So­ciety, Nullius in verba, ou seja, “não acredite na palavra de ninguém”, um aviso de que, em ciên­cia, é essencial “colocar a mão na massa”, que as pesquisadoras Ana Maria Alfonso­Goldfarb e Márcia Ferraz, ambas do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima), da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC­SP), fizeram uma descoberta surpreendente em 2008. Vascu­lhando montanhas de documentos da instituição inglesa, elas acharam a “receita” do alkahest, suposto “solvente universal” alquímico que poderia dissolver qualquer subs­tância, reduzindo­a a seus componentes primários (ver Pesquisa FAPESP nº 154). Havia, porém, algumas lacunas para “fechar o caso”, em especial revelar quem fora o autor da cópia da receita encontrada. De volta aos arquivos, as pesquisadoras encerraram um mistério apenas para abrir outro, ainda mais instigante: a descoberta de uma receita da famigerada pedra filosofal que, segundo se acreditava, transmutaria metais “vis” em ouro.

“Foi uma grande surpresa e, até certo ponto, descon­fortável, porque, como historiadoras da ciência, é difícil verificar, cada vez mais, como a alquimia foi importante na consolidação da nova ciência em pleno século XVIII. Mas é importante ressaltar que essa permanência da busca pela transmutação era pensada mais no sentido químico, em especial como um instrumento de avanço da medi­cina, do que em seu caráter esotérico. Isso é notável nas preocupações de homens como Boyle ou Newton, entre outros nomes de peso, que acreditavam na existência da pedra filosofal”, explica Ana Maria. As professoras consideram que os trabalhos com a pedra filosofal eram realizados no âmbito da ciência da época, embora existam outras visões. “O baconismo entrou na Royal Society distorcido pelo prisma de um grupo ligado a Samuel Hartlib, um dos fundadores da instituição. Esse círculo levava ao limite os preceitos de Bacon de estudar ‘o novo, o raro e o estranho’ na natureza, misturando­os com um interesse persistente em descobrir invenções ‘úteis’, sem deixar de lado as ideias herméticas, retomando obras de Paracelso e Helmont. Basta ver como Boyle mantinha

Documentos que valem ouro

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88 n abril DE 2011 n PESQUISA FAPESP 182

um interesse no mínimo embaraçoso em questões de filosofia natural e esta­va disposto a aceitar qualquer tipo de fenômeno, desde que pudesse ser expli­cado em linhas mecânicas. Isso incluía a pedra filosofal. Newton, em carta a Henry Oldenburg, secretário da Royal Society, chega a reclamar que o colega deveria ‘manter silêncio’ e não divulgar ‘segredos de um verdadeiro filósofo her­mético’”, observa o historiador Theo­dore Hoppen, professor da University of Hull e autor do estudo The nature of the early Royal Society.

Latim – Oldenburg, aliás, está no centro do novo mistério revelado pelas pesqui­sadoras brasileiras. Ao tentarem identi­ficar a letra da receita do alkahest, após várias tentativas, se depararam com um documento escrito em latim que con­tinha observações em francês em suas margens. “A letra nos pareceu conheci­da e vimos que era de Oldenburg, que escrevia, em suas anotações pessoais, em francês. Aquilo estava soluciona­do: foi ele que transcreveu a receita do alkahest. Quando, porém, fomos ler o texto em latim escrito em outra letra, vimos que se tratava de uma receita da pedra filosofal”, contam as profes­soras. O título do texto, que consegui­ram datar como sendo de 1659, era:

“Processus de bois”. De início, as duas acreditavam que se tratava de experi­mentos com a queima de madeiras (bois é madeira em francês), mas ao verificar a presença de elementos da pedra filosofal viram que se tratava do nome de uma pessoa. Na França, buscaram quem, chamado Du Bois, teria algo a ver com a célebre transmutação e descobriram, após uma busca detetivesca, a história de Noel Picard, dito Du Bois, que em 1637 fora enforcado na Bastilha por ordem

do cardeal Richelieu. O motivo? Tentara enganar o poderoso ministro de Luís XIII dizendo­se capaz de produzir ouro a partir de chumbo. Após uma vida ro­cambolesca de viagens e conversões de padre capuchinho a luterano, Du Bois, de volta a Paris, caiu nas graças do pa­dre Joseph, confessor de Richelieu. “O cardeal viu nisso a chance de aumentar a riqueza da França e resolver os proble­mas financeiros por que passava o reino. Chamou, então, Du Bois para que, com seu ‘pó de projeção’, fabricasse ouro na presença do rei, da rainha e de outros convidados notáveis, entre os quais o próprio Richelieu”, conta Márcia. Com uma cupela e um cadinho, Du Bois foi ao Louvre e se pôs a trabalhar, pedindo a guardas que lhe trouxessem balas de mosquete, as quais aqueceu, aspergindo um pó, cobrindo­as, em seguida, com cinzas. O rei, entusiasmado, fez ques­tão de ele mesmo assoprar a mistura, deixando sua real figura, a da rainha e dos presentes cobertos de fuligem. Mas a comoção compensava tudo, pois via­ ­se no fundo da panela ouro. Luís XIII abraçou o pobre Du Bois, fez dele nobre in loco e ainda lhe concedeu o privilé­gio de caçar nas terras reais. Puxando o padre Joseph num canto, Richelieu, feliz, acenou­lhe com um futuro chapéu cardinalício. Não afetou o ânimo geral que ourives da corte verificassem que se tratava de ouro 22 quilates. Du Bois respondeu­lhes que era apenas uma amostra das possibilidades.

Richelieu avisou­o de que o rei ne­cessitava “apenas” de 800 mil francos semanais em ouro e deu­lhe 20 dias para iniciar a produção que, avisou ao monarca, ia permitir que não se cobrasse mais imposto do povo e que o rei iria ser o mais poderoso cetro da Europa. Du Bois, porém, usou o prazo para caçar com seus amigos. Desconfiado, o cardeal mandou vigiá­lo e, por fim, irritado com a demora, construiu um laboratório pa­ra que o suposto alquimista realizasse, dessa vez como prisioneiro, a “grande obra” no castelo de Vincennes. Novo insucesso e o “nobre” foi conduzido à Bastilha, onde foi torturado e morto por não ter fornecido a receita da pedra filo­sofal. O notável é que, ainda assim, seus algozes acreditavam que ele realmente era capaz de produzir ouro, mas tentava esconder o segredo. Vinte anos mais tar­de, em 1659, Oldenburg encontrava­se

Na Royal Society

do século XVII,

homens brilhantes

criam na existência

da pedra filosofal

para ‘abrir o ouro’,

diz Ana

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A preparação da pedra filosofal

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essa preocupação medicinal”, observa o historiador da química Paulo Alves Porto, professor do Instituto de Quí­mica da Universidade de São Paulo. “O significado da química, entre os séculos XVI e XVIII, deve ser buscado na sua relação com a medicina, ainda que a transmutação se mantivesse como uma constante até o Iluminismo, mesmo quando já se operava a separação entre química e medicina”, escreve o histo­riador americano Allen Debus em seu artigo “Alchemy and iatrochemistry”. Segundo ele, de início a relação se dá na rivalidade com os galenistas para avançar no interesse das explicações químicas de processos fisiológicos, base da obra de Van Helmont, o que acabou por levar à separação entre química e medicina para outros fins que não os farmacêuticos. “O trabalho de Lavoisier não precisou se dirigir a uma química baseada na medicina por causa desse longo processo. A impor­tância que a medicina teve na ascen­

são da ciência moderna era algo pouco discutido”, completa Debus. Apenas em fins do século XVIII é que a transmuta­ção perderá algo de sua força. “Houve um movimento que partiu da Acade­mie Royale de Sciences, em Paris, para deixar a prática de lado a fim de do­mesticar a química numa disciplina profissional respeitável que adentrou a academia. Era preciso romper de vez com o passado alquímico e começar tudo do zero para dar à química uma nova identidade e status. Ainda assim, isso não foi totalmente bem­sucedido”, analisa o historiador Lawrence Princi­pe, da Johns Hopkins University, autor de Alchemy tried in the fire. “A rede de documentos e pessoas intimamente li­gadas à transmutação que a nossa pes­quisa vem expondo ganha a cada dia mais dados e ramificações. Isso pode ser a ponta de um grande iceberg docu­mental”, acredita Ana Goldfarb. n

na França onde acabou se deparando com a receita de Du Bois e a envia para a Inglaterra , onde parece que foi recebida de forma exultante. “Na Royal Society, em pleno século XVII, aqueles homens brilhantes acreditavam que Du Bois ha­via realmente conseguido ‘abrir o ouro’, ou seja, dissolvê­lo para preparar outros materiais, função atribuiída à pedra fi­losofal”, conta Ana.

Pedras – “No centro de tudo estava a preocupação em resolver problemas de saúde, em especial a dissolução de pe­dras do organismo, uma das causas principais de óbitos naqueles tempos. Acreditava­se que a solução ideal era dissolvê­las com ácidos minerais, mas sem que isso matasse o paciente. Era preciso encontrar algo com o poder do ácido sem os seus problemas. Aí é que entram o alkahest e a pedra filosofal que, combinados, seriam o remédio ideal”, explica Ana. O primeiro suavi­zaria os efeitos negativos do ácido e a pedra era o complemento perfeito, pois era potente para dissolver um metal nobre e resistente como ouro, ao mes­mo tempo “fraco” contra o organismo. “Isso, é claro, não impedia que se pen­sasse na pedra como capaz de produzir ouro por razões financeiras, embora as razões pecuniárias não fossem as úni­cas, nem mesmo as mais importantes”, diz Márcia. Tudo se interligava. Se a pedra tinha o poder de “aperfeiçoar” metais, convertendo­os em ouro, como conse quência da crença dos alquimistas na unidade da matéria, essa “medicina” dos metais poderia ser estendida à me­dicina dos homens, que poderia, igual­mente, ser “aperfeiçoada”. Daí muitos se referirem à pedra como o elixir da vida ou o grande elixir, uma panaceia para todas as doenças e capaz de pro­longar a vida. Como o ouro, como me­tal, não era corroído, ele passou a ser visto como símbolo da imortalidade, o que levou, como decorrência, a se pen­sar no seu uso na medicina dos antigos e na alquimia chinesa que buscava o elixir da longevidade.

“Os trabalhos de Paracelso e Van Helmont, entre outros, desenvolveram­ ­se num tempo em que se questionava a medicina galênica. Também havia novas doenças que exigiam outras soluções mais efetivas. A procura de­les pelo alkahest, por exemplo, revela

Visão irônica da tentativa de fazer a “grande obra”

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Carlos Haag

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A nova voz dos novos escritores

Profissionalização, volta do autor e foco na periferia marcam ficção brasileira recente

Carla Rodrigues

ilustrações Paula Gabbai

Inicialmente, a ‘Geração 90’ foi um golpe publicitá-rio muito bem armado.” A frase, extraída de Ficção brasileira contemporânea (Civilização Brasileira), tem a força de um petardo, mas entra discreta no pequeno – nem por isso menor – e recente livro de Karl Erik Schollhammer, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) e teórico

da literatura brasileira. “O título de Geração 90 designa um grupo preferencialmente de homens paulistas, todos de uma mesma orientação literária. Foi uma maneira de dar manifestação a autores que não tinham conquistado visibilidade”, identifica Schollhammer. A nova geração também é tema do novo livro do escritor Carlos Nejar, História da literatura brasileira (Editora Leya/Biblioteca Nacional), membro da Academia Brasileira de Letras.

O descrédito do termo geração vem acompanhado da percepção de que diferentes estilos de escrita se preten-deram sob o mesmo guarda-chuva geracional: o hiper- -realismo de obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, o novo regionalismo, cuja principal expressão estaria no trabalho de Ronaldo Brito, o miniconto e a literatura marginal – principalmente a que emerge nas periferias de São Paulo – são algumas das correntes que estariam abarcadas num conceito de geração tão amplo quanto forjado por interesses de mercado. “Geração é um termo útil publicitariamente”, diz o professor Arnaldo Franco Júnior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Para ele, uma das principais marcas da literatura bra-sileira a partir do final dos anos 1970 é a radical profis-sionalização do escritor, que produz diferentes efeitos: aumento exponencial do número de editoras e conse-quente expansão do mercado editorial, o jornalismo se torna muito presente na prosa brasileira e o escritor e o profissional da escrita ficam cada vez mais próximos.

[ literatura ]

Page 91: Um retrato ancestral dos ameríndios

“Como no Brasil não há apoio ao es-critor, nossos grandes autores eram diplomatas”, lembra Schollhammer, se referindo a nomes como Guima-rães Rosa, cujo ofício de escritor era sustentado pelo trabalho no Itamaraty. “Há pessoas que querem viver de escre-ver. A literatura passa a ter um olho no mercado editorial, e isso significa fazer concessões”, identifica Franco Júnior. Desde que, em 1968, o filósofo Roland Barthes anunciou a morte do autor, a teoria literária, o pós-estruturalismo e o pensamento da desconstrução discutem a controversa questão do lugar do autor na produção textual. A ideia de que o autor não está presente para garantir o sentido de seu texto, a importância da relação entre autor e leitor para a significação de um texto e a abertura do texto às múltiplas interpretações fizeram com que a propagada morte do autor tivesse sido defendida, como ruptura com a literatura tradicional. Afinal, eram os anos 1970 na França e quebrar paradigmas tradicionais estava na ordem do dia.

Hoje a volta do autor está não so-mente no culto à personalidade do escritor de livros, como também no retorno das chamadas “escritas de si”. “Embora ninguém queira ser um au-tor identificado com o realismo dos anos 1930 nem como o século XIX, o

fato é que há uma grande constância do realismo na literatura brasileira”, defende Schollhammer. Ele percebe em blogs testemunhais, livros autobiográ-ficos e depoimentos em primeira pes-soa uma sobreposição entre autores e personagens que fazem parte desses dois movimentos: a manutenção do realismo, para ele a marca mais estável na história da literatura brasileira, e a volta do autor.

Festas – Schollhammer identifica a volta do autor também na popularida-de das festas literárias. “A Flip equiva-le ao Festival de Cannes, mas existem outras, algumas anteriores, como a de Passo Fundo, e todas apostam na vol-ta do autor”, acredita o professor. Já a volta ao realismo não interessa aos autores brasileiros. “Hoje todo mundo quer ser Rubem Fonseca”, argumenta ele. Num ponto, no entanto, os jovens autores brasileiros diferem do estilo de Fonseca: enquanto o escritor é conhe-cido por ser reservado e silencioso, os autores contemporâneos querem ter o estilo – e, por que não, o sucesso – de Fonseca, mas sem a mesma exigência de reclusão, hoje já nem tão rigorosa assim. Recentemente ele participou da perfomance do lançamento do li-vro de sua discípula, a jovem escri-tora Paula Parisot, cuja estreia teve

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lançamento público em São Paulo também com a presença do padrinho Fonseca. “Nem Fonseca é mais reclu-so”, brinca Schollhammer.

A partir da expansão do mercado editorial e de sua profissionalização, escritores são postos diante da tarefa de negociar com o mercado. “A pola-rização entre arte e mercado é pobre. Mas é ponto de partida para pensar a narrativa na literatura contemporânea”, argumenta Franco Júnior. “O que se vê, de 1990 em diante, é a tomada da pa-lavra literária por segmentos que não tinham voz”, diz ele, se referindo ao que se conven-cionou chamar de literatura marginal, mas que ele chama de “marginal mesmo”, para di-ferenciar do grupo de poetas da década de 1970 que rodava seus poemas em mimeógrafos. Até porque, nos anos 1990, a li-teratura marginal ganha espaço no mercado editorial, torna-se produto de consumo da indústria cul-tural e autores da periferia são lançados por grandes editoras como Cidade de Deus, de Paulo Lins.

Ao mesmo tempo que estão no mercado, são textos que desafiam a ta-refa da crítica literária, acostumada até então a pensar sobre valores eruditos. A literatura marginal vem desarrumar os padrões estéticos. “São textos que abrem mão do belo, do poético e cau-sam choques perturbadores”, diz Fran-co Júnior, citando Antonio Candido, o primeiro a perceber as dificuldades que se apresentam a partir do momento em que, pela primeira vez, o outro, o dife-rente, se inscreve – ou se escreve – no horizonte da literatura ocidental.

Entra em cena, assim, o esvazia-mento do papel da crítica acadêmica, situação que levou a professora Flo-ra Sussekind, da Uni-Rio, às páginas do caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo. Num artigo intitulado “A crítica como papel de bala” (24 de abril de 2010), ela protestava contra o que chamou de “apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da di-mensão social da literatura no país nas últimas décadas”. Fatores como o fim dos suplementos literários dedicados exclusivamente às resenhas e a perda de espaço do discurso acadêmico nas

páginas dos jornais estão forjando, nas últimas duas décadas, um modelo de debate literário ou superficial – no qual, segundo Flora, estaria faltando a valorização da dimensão social da li-teratura –, ou exclusivamente pautado por interesses de mercado. Desse diag-nóstico discorda Nejar: “Tantas vezes ouvimos a anunciação do fim da crítica e mesmo da poesia e o espírito huma-no sempre se renova e o que parece terminar, começa”. Já Schollhammer concorda com Flora, mas atribui a re-novação à percepção de que a mudança do lugar da literatura na sociedade é uma condição e um desafio.

Autonomia – “Ainda é muito precária a compreensão da crítica sobre a falta de autonomia da literatura de hoje. Hoje a literatura não interage mais com a so-ciedade de forma autônoma”, diz Schol-lhammer. Dele discorda o imortal Car-los Nejar. “A literatura jamais perderá o seu lugar preponderante na sociedade enquanto existirem autores capazes de se debruçar sobre a condição humana com grandeza.” O professor acredita que os autores argentinos têm mais reflexão sobre esse novo lugar para a literatura. “Eles veem a literatura como uma et-nografia do presente, em que a criação da ficção também é uma maneira de expor outras realidades”, diz.

Schollhammer propõe pensar a lite-ratura dentro do que chama de “campo expandido”, em que entram em cena objetos, materialidades, novas formas estéticas e relação com outras formas narrativas, como cinema e TV. “Não se trata mais de olhar apenas para a litera-tura, mas de tudo que se relaciona com ela”, explica. Na França revolucionária do século XIX escritores assumiram o papel de erguer as bandeiras dos valores modernos – a tríade liberdade, igual-dade e fraternidade –, estavam, a seu modo, unindo literatura e exposição de outras realidades. Naquele momento eram os ideais da democracia que inspi-ravam autores, numa sociedade em que escrever era privilégio de poucos. Hoje não só as novas tecnologias colocam ao alcance da mão novas ferramentas de publicação, como estão encurtadas as distâncias entre autor e editor.

Em 1856, Gustave Flaubert pôs o ponto final em Madame Bovary e foi parar nos tribunais franceses sob acu-sação de ter escrito uma obra indecente. Ao longo do século XX, além de perder autonomia, a literatura perde também seu caráter revolucionário – tanto e a tal ponto que um manifesto de geração se dá como uma jogada de mercado. “O que Flaubert fez foi muito mais revo-lucionário do que se pode fazer hoje”, reconhece Schollhammer. n

Hoje a literatura não interage mais

com a sociedade de forma autônoma,

avalia Schollhammer

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livros

Cores de rosa – Ensaios sobre Guimarães rosaAdélia Bezerra de Meneses Ateliê Editorial 240 páginas, R$ 49,00

A partir da frase de Goethe, “As cores são ações da luz. Ações e paixões”, é que a autora irá se debruçar em seu livro de ensaios sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Além de um esforço interpretativo que busca “colori-zar” o poético universo roseano, o livro tam-bém traz as cores através das fotografias de Germano Neto, que funcionam como suporte imagético para ilustrar o mundo do sertão.

ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

Cartas sobre arquiteturaRafael; Luciano Migliaccio (org.) Editora Unicamp / Editora Unifesp 168 páginas, R$ 40,00

O livro trata da estreita relação entre a obra de Rafael (Raffaello Sanzio) como grande pintor da Renascença e como arquiteto, fato redescoberto apenas nas últimas décadas. As cartas do artista reunidas neste livro, inéditas em português, são contribuições interessan-tes para o debate sobre a interpretação da ar-quitetura antiga no Renascimento e a difusão internacional dos modelos italianos.

Editora Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br

Editora Unifesp (11) 2368-4022www.fapunifesp.edu.br/editora

lira, mito e erotismo – Afrodite na poesia mélica grega e arcaicaGiuliana Ragusa Editora Unicamp 664 páginas, R$ 52,00

Parte de estudos sobre a representação de Afrodite na lírica ou mélica grega arcaica volta-se desta vez aos poetas Álcman, Alceu e Anacreonte. O livro amplia uma análise sobre a deusa tão celebrada na linguagem ocidental, abordando gêneros poéticos pa-ra além do mélico e um universo cultural enredado pelos mitos e o erotismo.

Editora Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br

intérpretes da metrópoleHeloisa Pontes Edusp / FAPESP 464 páginas, R$ 89,00

Heloisa Pontes aborda as relações entre a cidade, a vida intelectual, a universidade e o teatro, sob a ótica da história da cultura e das relações de gênero. A autora tenta entender a cena intelectual em São Paulo (de 1940 a 1960) fazendo um estudo comparativo entre os intelectuais paulistas da revista Clima, os “nova-iorquinos” da Partisan Review e as trajetórias de três importantes críticas de cultura e escritoras: Lúcia Miguel Pereira, Patrícia Galvão e Gilda de Mello e Souza.

Edusp (11) 3091-2911 www.edusp.com.br

o dia em que adiaram o CarnavalLuís Cláudio V. G. Santos Editora Unesp 280 páginas, R$ 40,00

A morte do Barão do Rio Branco, na vés-pera do Carnaval de 1912, e o consequente adiamento das festividades populares da-quele ano foram o ponto de partida para o diplomata e pesquisador Luís Cláudio Santos. O livro aborda as ligações entre a identidade nacional e as relações externas brasileiras, já que, segundo o autor, a refe-rência ao que seriam as diretrizes do Barão ainda é um dos eixos inevitáveis da retórica sobre a política externa do país.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Transfigurações Sandra Nitrini Editora Hucitec / FAPESP 206 páginas, R$ 43,00

De acordo com Alfredo Bosi, que apresenta o livro, o trabalho de Nitrini se propõe a traçar um “retrato de corpo inteiro” do es-critor Osman Lins. A autora registra dados da biografia do romancista relacionando-os com seu percurso de viajante pelo mundo dos livros e das cidades.

Editora Hucitec (11) 5093-0856 www.huciteceditora.com.brfo

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resenha

O intelectual italiano Norberto Bo-bbio, em seu livro Os intelectuais e o poder, diz que “... na medida em

que se faz político, o intelectual trai a cultura; na medida em que se recusa a fazer-se político, a inutiliza”.

Para um cientista, esta é uma deci-são muito difícil. Porém, o que aconte-ce depois que se toma a decisão de trair nossa própria cultura pode compensar, pelo menos no âmbito coletivo e no longo prazo. Este é o caso do professor Paulo Nogueira-Neto, ao qual passarei a me referir como PNN, como ele mes-mo faz em seu livro intitulado Uma trajetória ambientalista – Diário de Paulo Nogueira-Neto.

À primeira vista o livro assusta pelo tamanho. São 880 páginas em que PNN apresenta uma parte de sua trajetória intelectual na forma de ano-tações curtas que ele iniciou na década de 1970 e vão até os anos 2000. O susto passa ao se começar a leitura. De fato, ela se torna realmente divertida e por isso difícil de largar, especialmente se o leitor dá importância às questões ambientais e se deseja entender por que o Brasil é o que é hoje em termos de meio ambiente.

PNN traiu a sua cultura ao pensar que o meio ambiente poderia ser algo importante. Sua traição foi doar a sua vida e carreira para ajudar a organizar o Brasil em relação às questões ambien-tais e, ao fazer isso, acabar convencendo os outros de que valia a pena lutar para preservar os biomas do país, poluir me-nos as águas e utilizar energia renová-vel, entre outros objetivos.

O resultado do trabalho de pessoas como PNN e outros pioneiros desde a década de 1970 é que o Brasil hoje em

dia é um dos países considerados como ícones do ambien-talismo mundial. Temos a matriz energética com a maior parcela de combustíveis renováveis do planeta e desenvol-vemos programas de pesquisa de recuperação de florestas que são exemplos para muitos países. Acima de tudo e talvez mais importante é o fato de que hoje em dia muitas de nossas crianças já demonstram uma consciência ambiental cada vez mais forte. Como cientista e um espectador da evolução do ambientalismo no Brasil, tenho acompanhado essa evolu-ção – as mudanças drásticas de atitude da nossa população em relação ao meio ambiente – que considero espetacular para um país como o nosso. O livro de PNN mostra que tal mudança não se faz da noite para o dia. Tampouco se faz sem que intelectuais influentes – e também traidores no senso bobbiano – exerçam influência nesse sentido.

Como PNN nasceu em 1922, o livro não pode ser consi-derado uma autobiografia comum, mas uma autobiografia intelectual. Isso porque as anotações se iniciam quando ele já era um cientista maduro e importante no cenário nacio-nal – é um dos mais respeitados especialistas em abelhas do país e fundador do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Mais do que explicar como um intelectual chegou a influenciar profun-damente a consciência ambiental nacional, PNN é humilde e corajoso em publicar suas anotações pessoais, obviamente selecionadas a dedo, para mostrar o que me parece uma mescla de espectador e ao mesmo tempo um dos atores da história, que nos conta como o ambientalismo foi forjado no Brasil e chegou ao que hoje vemos.

Entre 1970 e 2000 PNN parece ter escrito quase que dia-riamente pequenas notas, por vezes explicativas e por outras críticas – sempre elegantes – sobre reuniões, telefonemas de ministros, encontros para formar institutos e secretarias em Brasília, em São Paulo e também em reuniões no exterior em que participou de eventos-chave para o ambientalis-mo mundial. Suas notas mesclam dropes divertidos com notas de viagens, às vezes tristes porque algo está indo no caminho errado e outras vezes com um ou até três “vivas” quando via que um novo caminho importante fora aberto no ambientalismo mundial ou brasileiro.

É interessante ver como as questões energéticas, de polui-ção e preservação de florestas, por exemplo, andaram juntas e nortearam as ações do país. Por um lado, PNN mostra suas

Paulo nogueira-neto, um “traidor”ambientalista publica diário com 30 anos de trajetória na vida pública

Uma trajetória ambientalista – Diário de Paulo Nogueira-Neto

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Marcos Buckeridge

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anotações sobre a criação da Secretaria de Meio Ambiente da Presidência da República (Sema), da qual foi titular de 1973 a 1985. Em outra seção há anotações surpreendentes do início da década de 1970 sobre discussões em torno de energia renovável e poluição por automóveis que mostram como a pujança do etanol em nossos tanques e seus efeitos benéficos ao ambiente e à saúde foram desenhados por essas ações muito antes do que imaginamos.

O mesmo acontece em relação às mudanças climáticas globais. Hoje é normal ouvir que este assunto apareceu nos anos 2000, mas há anotações de PNN do início da década de 1990 em que a preocupação com o excesso de emissões de CO2 já era cogitada como um problema para o Brasil e para o mundo. O mesmo vale para a ideia de sustentabilidade, termo tão ouvido e empregado nos dias atuais. Ao ler as anotações de PNN, se vê que a ideia já existia. Ele tem um conjunto de notas, que começam na página 617 com o título “Diálogos em prol do ambiente ecologicamente equilibra-do”, em que a ideia central é a sustentabilidade.

É claro que o livro, sendo escrito hoje, permite que as anotações então feitas numa sequência cronológica tenham sido agrupadas por assuntos que são agora relevantes. Isso foi realmente bem feito no livro e não invalida a ideia de que essas questões já eram discutidas, mesmo que talvez não o tivessem sido de maneira tão organizada.

Questões pessoais também foram colocadas no livro. A tristeza de perder a companheira de toda a vida, Lucia, é co-movente e nos faz pensar sobre como nossas relações pessoais, nossos amores e paixões, são importantes na vida. PNN é tão corajoso que registrou numa parte do livro sua visão religiosa, algo nem sempre visto com muita paciência por cientistas e dessa forma se coloca de modo desprotegido sob o julgamento de leitores nem sempre amigáveis no que se refere ao assunto. Com isso, é possível ver o intelectual PNN de forma mais completa e traz ao livro uma visão mais ampla do que somente os lados científico e político.

Com suas 880 páginas, o livro de PNN é tão rico que cada um que o ler poderá escolher pontos de vista diferentes e apreciar a evolução do ambientalismo no Brasil em perío-dos diferentes. Portanto, não há necessidade de seguir uma ordem. O leitor pode ir direto ao assunto que achar mais interessante. A principal riqueza da obra está no fato de que PNN participou das principais decisões sobre políticas

ambientais em geral, sobre problemas no mar, sobre energia renovável, como preservar os principais biomas brasileiros, parques nacionais e vários outros.

O conjunto formado pelo livro mostra a extrema impor-tância desse tipo de anotações autobiográficas. Elas devem ser amplamente divulgadas para que os que não viveram aquela época possam compreender o que ocorreu. Conse-quentemente, jovens intelectuais poderão obter inspiração e aprender como se pode mudar a direção de um país. No caso de PNN, o sucesso é óbvio e mostra que há heróis brasileiros que não são somente aqueles que vemos no es-porte nacional.

Pessoas como PNN e vários outros brasileiros de quilate similar são homens e mulheres de coragem e como tal de-vem publicar suas biografias e deixar suas opiniões sobre a história, usando pontos de vista próprios. Deveriam explicar como suas traições levaram as coisas a melhorar para as pessoas, de forma que, no futuro, isso venha a iluminar o caminho dos mais jovens.

Tomara que cientistas brasileiros de todas as áreas do conhecimento façam o mesmo. As gerações de cientistas por vir certamente se beneficiarão muito desse exemplo inspirado, pois talvez vejam que muitas vezes vale a pena “trair” a cultura, em vez de inutilizá-la, em benefício de um futuro melhor.

Marcos Buckeridge é professor do Instituto de Biociências da USP e diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE).

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ficção

Pequeno conto de amor e morte

Durante a permanência, absolutamente nada lhes faltará, eu zelarei pessoalmente para que estejam confortáveis. Depois de um ano, eu os matarei, os dois.”

Já haviam notado que não adiantaria fugir. Ao anúncio não se seguiu suspiro, comoção ou choro. Não trocaram sequer um olhar. Permaneceram atentos como para não perder de sua sorte nenhuma vírgula, que poderia lhes faltar no tempo que restava. A promessa era cumprida com esmero. Na cozinha, banheiro e quarto dispunham de todos os itens necessários – até mesmo os supérfluos – para que os dias se sucedessem sem privações e com os prazeres possíveis naquele espaço. Comida, bebida, jogos, livros, revistas, filmes. Um ano sempre parecera muito tempo, e por isso a percepção de que nesse ano nada alteraria seu destino, de que cada ontem os aproximava do momento fatal, essa perspectiva tardou a angustiar-lhes. Mas um dia o fez. Era passado pouco mais de um mês quando se viram abraçados, calados, percebendo já a falta que faria a sensação do contato do corpo de um no corpo do outro e, mais ainda, a falta que qualquer sensação lhes faria. Es-tariam mortos. Foi depois desse dia que a esposa começou a ter dificuldades para dormir e pediu ao homem que lhe trouxesse remédios, ao que o homem gentilmente atendeu, municiando as prateleiras do armário do banheiro com três marcas, para que ela escolhesse a que mais lhe agradava. Ela voltou a dormir um sono tranquilo, mas no fim do

Estevão Azevedo

segundo mês o medo de inexistir os assomava quase que ininterruptamente. Não deixariam nenhum rastro. Da an-gústia em que a passagem do tempo – agora cada vez mais escasso – os mergulhava, um contínuo aumento do desejo começou a se fazer notar, como se de alguma maneira o en-trelaçamento das carnes, um corpo a imiscuir-se no outro até a dissolução da própria identidade, os preparasse para a morte inevitável e, paradoxalmente, os fizesse sentir-se mais vivos. No segundo dia após essa mudança radical da rotina, uma ideia surgiu de entre os lençóis. Que tivessem um filho, o primeiro e único, e que esse filho fosse a continuidade que eles já não mais poderiam ter. O decreto fora claro: morreriam os dois. Sabiam que nada seria descumprido, a criança viveria. E não tardou a obcecar-lhes a ideia, muito mais ao marido, talvez porque à esposa coubesse o ônus dos enjoos e limitações nos nove meses que o plano exigiria até concretizar-se. Até completar-se o ano, restavam-lhe dez meses. Aquela chance única tinha uma rígida data de validade, ditada pela natureza e seus ciclos. Agora, além da súbita aparição de uma libido que já ameaçava dominá-los, havia também a esperança da fuga, se não deles mesmos, ao menos de seus nomes, suas memórias. Amaram-se con-tínua e furiosamente, várias vezes ao dia, e sempre que o marido se acreditara capaz. Quinze dias depois, embora não houvesse como o comprovar, a mulher estava certa de que nenhuma semente a havia inoculado. Não dizia nada ao marido, semeava a dúvida para preservá-lo, ele que se

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apegara demais ao plano. Ela temia pela sanidade do ma-rido na extensão dos meses que viriam se, no dia-limite, não pudesse afirmar que carregava em si a salvação que eles haviam sonhado juntos, mas que ele levara muito além da esfera dos sonhos. No penúltimo dia em que a concep-ção poderia ocorrer para que a criança nascesse a tempo, com seus conhecimentos de mulher ela já sabia que não seria possível engravidar. Se engravidasse depois, sofreria ainda mais com a perspectiva de entregar-se ao algoz, no dia estipulado, carregando no ventre um filho que por questão de poucas semanas estaria também condenado a morrer. Entristeceu-se. Mais ainda o marido, ao perceber o recado que a tristeza da mulher lhe enviava. Ela, ao ver o marido sofrer, enterneceu-se e ofereceu-lhe um remédio para dormir. Misturou à água uma dose muito maior do que a que costumava tomar. O marido dormiu um sono profundo, sem sonhos, e acordou muito tempo depois. A mulher o vigiava, mirando-o fixamente, com algumas lágrimas a escorrer e um sorriso sereno no rosto.

“Eu já não acreditava mais, mas não tenho dúvidas... estou grávida.”

O marido acompanhava a gestação com tanta atenção e cuidados que seria capaz de descrever o crescimento diário da barriga, daquele instante até o nascimento, previsto para ocorrer um dia antes do último dia. Aliviada pelo efeito que

o filho tivera no espírito do marido, que agora aceitava até com certa felicidade seu destino inelutável, a esposa suportou as dores, os enjoos e os desconfortos, que aumentavam com o passar das semanas. No último dia antes de completar-se o ano que lhes havia sido anunciado, o homem realizaria normalmente o parto, com o auxílio do marido. O marido agradeceu efusivamente o sucesso do parto a aquele que no dia seguinte os mataria, e levou o recém-nascido ao banheiro para lavá-lo, após tê-lo deixado por alguns instantes no colo da mãe. Depois da tensão das últimas horas, a água quente despencando sobre a louça e o choro da criança produziram um ruído agradável e contínuo. A mãe, debilitada, assim que o marido saiu, pediu com voz fraca ao homem:

“Por favor, amanhã não conte nada a ele...”

“Eu lhes havia prometido”, o homem respondeu com voz que transmitia confiança, “que durante o tempo em que estivessem aqui nada lhes faltaria, e que estariam con-fortáveis. Não se preocupe... Eu não direi nada. Amanhã, apenas os matarei, os dois.”

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Estevão Azevedo é editor e escritor, autor dos livros de contos O terceiro dia e O som de nada acontecendo (Edições K) e do romance Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2009.

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