Um Romance

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O leitor tem um instantinho? Também perdeu o comboio, como eu, e agora está aqui a fazer horas? Então deixe-me contar-lhe uma história. Juro que vai valer a pena. Vai ser a mais linda história que alguma vez leu. Enfim, talvez não a mais linda. Talvez nem seja linda sequer. Mas o leitor achá-la-á linda, e levá-la-á consigo, junto ao coração, como eu a tenho trazido junto ao meu.Esta aventura foi antes dos telemóveis. Não muito antes, mas um antes algum antes.

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão |  João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa

Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho

Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado

 JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl |  João Barreiros | Raquel Ochoa |  João Bonifácio 

David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira

Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo  | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN 

A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

 Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Rui Zink

Título: Um Romance

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto

Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-11-2

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento

expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o

arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no

Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

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Rui Zink 

Nasceu em Lisboa, em 1961. Escritor, tradutor e professor no Departamento

de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa, tem mais de duas dezenasde obras publicadas. Algumas delas traduzidas para inglês, alemão, hebraico, japonês,

romeno, italiano, sérvio, croata e francês.

Entre romances, novelas, livros de contos e novelas gráficas, podemos destacar Hotel

Lusitano (1987 – novela de estreia), A Realidade Agora a Cores  (1988), Homens-Aranhas  

(1994), Apocalipse Nau  (1996), O Suplente (1999), Os Surfistas  (2001), O Anibaleitor

(2006), O Destino Turístico (2008 — Prémio Ciranda), A Arte Suprema  (1997 — Prémio

Melhor Livro Amadora BD) e Rei (2007; em coautoria com António Jorge Gonçalves).

Recebeu o Prémio do P.E.N. Clube Português, pelo romance Dádiva Divina  (2005)e, recentemente, viu um trecho de O Destino Turístico ser integrado na antologia Best

European Fiction 2012 .

Os seus mais recentes títulos são O Amante é Sempre o Último a Saber  (2011), Luto pela

Felicidade dos Portugueses  (2012) e A Instalação do Medo (2012).

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Um Romance— • —

Rui Zink

O leitor tem um instantinho? Também perdeu o comboio, como eu, e agora está

aqui a fazer horas? Então deixe-me contar-lhe uma história. Juro que vai valer a

pena. Vai ser a mais linda história que alguma vez leu. Enfim, talvez não a mais lin-

da. Talvez nem seja linda sequer. Mas o leitor achá-la-á linda, e levá-la-á consigo,

 junto ao coração, como eu a tenho trazido junto ao meu.

Esta aventura foi antes dos telemóveis. Não muito antes, mas um antes algum

antes. Nos anos 80, salvo erro. Num restaurante que ficava ao lado dum cinema,

quarta ou quinta à noite, eu tinha ficado de jantar com o Aristides antes do filme, mas

ele estava mais atrasado que de costume. Para fazer tempo pus-me a olhar à volta,

e acabei por me interessar por um parzinho na mesa ao lado, nervositos pela adivi-

nhação mútua do que, para mim, é o ponto de rebuçado dos encontros amorosos: a

noite em que quase de certeza. A noite em que.

De resto, nem seria preciso o meu olhar treinado para perceber que era um jantar romântico. Homem e mulher, nos trinta e poucos. Ela: bonita, ar enxuto. Ele:

pãozinho meio-sal. As feromonas tinham sido inventadas há pouco mais de vinte

anos, mas um escritor não precisa da ciência para saber o que vê.1 Tensão óbvia,

romance anunciado. Aperaltados, sobretudo ela. Jantar romântico. O programa

da época, decerto: jantar —> cinema —> beijo. O meu diagnóstico certeiro apenas

admitia uma dúvida: se, por inaceitável incúria, adiariam a coisa para ainda mais um

1 Por Peter Karlson e Adolf Butednant (cf. Wikipédia)

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assalto (mais uma corrida, mais um encontro) antes do apito final.

Falavam baixo, como se faz nestes casos. Felizmente, além de olhos para ver e

cabeça para matutar, o observador atento que eu sou foi sobredotado com orelhas

de oiro.

“Desculpa, Carolina”, disse ele. “Mas acho que não podemos...”

Fiquei banzado. Ele disse isto com um ar seriíssimo, a garganta mais presa que

numa cela da Pide. Daquelas vozes que uma pessoa faz quando tem algo de excéssive-

ment grrrave  para dizer.2 

Carolina estremeceu. O que pode uma mulher fazer, quando escuta uma coisa

destas? “Desculpa, acho que não podemos...”

Não haveria outra forma de o imbecil dizer aquilo? Desculpa, filha, o que houve

entre nós acabou . Nem outro local?

Felizmente (as mulheres nisto são incríveis), se Carolina por um momentoperdeu o equilíbrio, logo o recuperou:

“O que queres dizer com isso, Artur?”

Foi a vez de ele engolir em seco. Pigarrear. Coçar a cabeça. Etc.

“Bem…”

Este Artur (e tinha mesmo cara de Artur, o pobre) devia saber que ia ser difícil.

E eu fiquei desapontado com o meu olhar treinado. Pensava que estavam ainda na tal

noite e, afinal, pelos vistos, iam já no descerrar da cortina cinzenta que, mais cedo ou

mais tarde, se abate sobre as coisas de amor. Mas logo me recompus, ao perceber odilema de Artur: era evidente que ele não queria rejeitá-la, pelo contrário, amava-a

(era visível a olho nu, ou mesmo vestido), desejava-a (oh, se a desejava), estava apa-

nhadinho por ela (ai estava, estava). O problema era que. O problema...

Enfim, qual era o problema?

Artur foi salvo pelo gong, porque os pratos vieram. Para ela cannelloni. Para ele

lasagna . Uma escolha apropriada, pareceu-me.

“Carolina, não quero fazer isto pior do que já está…”

E Artur tirou uma garfada da sua lasagna . Houve um lado bom e um lado maunesta garfada. O lado bom é que era um truque eficaz para ganhar tempo, protelar

a explicação obrigatória que, mal explicada, só o levaria a embrulhar-se mais. O

lado mau é que aquela não era ocasião para ocupar a boca com outra coisa que não

palavras. Palavras de preferência doces, carinhosas, compreensivas. E compreensí-

 veis, já agora, se não fosse muito incómodo para o estimado cavalheiro. Palavras ou

um beijo. Um beijo suave, nos lábios, dado por sobre mesa e copos e pratos.

2 O leitor não sabe o que era a Pide? Eu agora não tenho tempo para explicar, mas posso dizer

onde era: no sítio onde agora é aquele condomínio giro, na António Maria Cardoso, ao Chiado.

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Num ápice, não me pergunte como, que um mágico nunca revela os seus

segredos, fiquei a saber tudo. Havia dois meses que se encontravam com crescente

frequência. No caso dela isso implicava um grande esforço logístico, pois tinha dois

filhos pequenos. Ainda não era o tempo dos computadores nem da internet nem

do facebook, mas já então virara moda o divórcio com as crianças ainda pequenas.

As teorias variavam: a crise dos dois anos, a crise dos cinco anos, a crise dos...

Uma análise comezinha à realidade provaria, suponho, que a crise é permanente.

Sempre foi mais fácil destruir do que construir. Criticar do que fazer. Ou falhar uma

promessa — “amar-te-ei para sempre” — do que levar a bom porto essa ingénua jura.

Um dos muitos encantos de Carolina era a franqueza. Um par de vezes tomara ela

própria a iniciativa e convidara Artur a sair. Mostrando assim, com frontalidade, o

seu interesse por ele. Mais frontal só esfregando o fio dental no focinho dele. Só que,

à época, fio dental era apenas um cordão para limpar os dentes.Tinham já ido a um cinema. Dado um passeio. Jantado fora. Ido a outro cinema.

De novo jantado fora. Ido ao teatro. Naquele tempo ia-se ao teatro, eu sei, é difícil

de acreditar. O leitor sabe o que significava nos anos 80 um homem e uma mulher

“jantarem fora”? Havia (não sei se ainda há, hoje saio pouco) toda uma diferença

entre “almoçar” e “jantar”. Não se ia para um jantar de ânimo leve, não senhora! Um

 jantar a dois, sobretudo se repetido, era toda uma promessa.

Aliás, pensando bem, quase sempre fora Carolina quem tomara a iniciativa.

Mulher divorciada, ora aí está. Mulher fora de jogo que quer regressar ao jogo. Nadade mais justo. Ela queria voltar ao jogo, e o jogo também queria voltar a ela. E por

que não? Tinha direito. Era jovem, bonita, inteligente. E mesmo que não fosse —

teria direito à mesma. A jogar o jogo. O problema era que, pelos vistos, escolhera o

parceiro errado para o jogo. Este Artur... Só à chapada.

Tenho uma teoria: são sempre as mulheres que escolhem os homens . Tenho também

outras teorias, e esta nem sequer estou seguro de que seja minha, mas o importante

não é isso. O importante é que faz sentido. Os homens seduzem as mulheres? E

desde quando? Confesso que nunca vi, nem na vida que vivi nem nas que li (e muitomenos nas que escrevi), uma mulher “ser escolhida” por um homem. O contrário

sim, e com assustadora frequência. Este caso é apenas mais um exemplo concreto.

Mas eu, claro, sou suspeito. Não é só a beleza que está no olhar de quem vê, é

também o sentido da vida.

Carolina, embora estivesse uns furos acima daquele panhonhas, queria Artur.

Escolhera-o. E, dava agora conta disso à minha frente enquanto eu esperava o

Aristides, ela cometera o erro de pensar que também fora escolhida por ele.

Erro de cálculo ou de apreciação?

Os convites dela, por exemplo. É certo que uma vez Artur se esquivara. “Hum…

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amanhã tenho uma reunião importante.”

Mas não se esquivara por aí além. Ela pensara: é tímido ou está a fazer-se caro. E

até achara graça: um homem feito a comportar-se como uma menina coquete. Tinha

o seu lado querido.

Tampouco ele podia argumentar inocência. Quem é que ainda a semana passada

havia dito: “Carolina, bailado Gulbenkian amanhã? Tenho dois bilhetes.”3 (Ela não

pôde, tinha imensa pena porque queria imenso ir, mas dum dia para o outro não

conseguia babysitter .)

Ora bem. Caída a máscara do completo anjinho. Até porque...

Ela era linda, de morrer. De morrer por ela.

Então por que não morria o desgraçado? Qual era o problema dele?

Calma, leitor, já lá vamos. Quem tem pressa vê televisão.

Conheciam-se vagamente há muitos anos. Vagamente é a palavra. Já quando

andavam na faculdade se sorriam — mas à distância. Timidez dele, que atingia níveis

estratosféricos de incompetência quando ficava enlevado, timidez também dela,

embora no Técnico as raparigas nunca fossem tão prejudicadas por esse óbice. Per-

tenciam ambos ao mesmo clube partidário, nos anos 70 tinham ido às mesmas festas,

 já então ele a achava “muito gira”. Mas era trinta cães a um osso, branca de neve e

os setenta engenheiros informáticos. (Estou a brincar, ainda não havia Engenharia

Informática naquele tempo.) Ainda Artur ponderava como sacar a arma do coldre, já

o outro tinha puxado o gatilho. E dava para ver que, a menos que o namorado fosse

parvo, aquilo ia durar até ao fim dos tempos.

O namorado de Carolina era tudo menos parvo. A prova? Tinha-a catrapiscado,

não tinha?

Depois, seguiu-se o percurso clássico. Carolina e o namorado acabaram por ir

 viver juntos e o casamento lá surgiu. Casaram por portuguesíssimas razões: inércia

e sentido prático. Por um lado a influência dos pais, que os subornaram com os

habituais utensílios domésticos e prendas em dinheiro. E foram também incapazes

de perceber que “dar uma alegria à família e às tias” não é razão para ir à igreja dizerdisparates como “para o melhor e para o pior, na pobreza e na riqueza, até que a

morte vos separe”. Mais ridículo só a do “amor para sempre”. Por amor de Deus!

Quem quer amor para sempre compre um cão.

As pessoas têm uma relação muito curiosa com os problemas: acreditam que,

como as doenças, eles se curam a si próprios se dermos “tempo ao tempo”. O problema

é que: nem sempre, nem sempre.

3 Sim, leitor, acredite se quiser, a Fundação Gulbenkian teve em tempos uma companhia de bailado (1965-2005).

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Depois tiveram um filho, já com algumas histórias pelo meio. Do marido,

sobretudo. O costume. Eu sei, leitor, é difícil acreditar, mas naqueles tempos era

quase sempre o marido o primeiro a baixar a guarda.

E, já em período de descontos, a bronca de alguidar estala. Um dia, o marido volta

suspeitosamente tarde. Carolina está acordada e em furor alcoólico. Há discussão

da grossa, o marido promete deixar a outra, Carolina dá-lhe um estalo, ele dá-lhe

outro a ela e, estúpidos, fazem “as pazes” no sofá da sala. Oito meses depois, com

Carolina gravidíssima, entra em cena nova namorada do marido, mais implacável

e decidida que as anteriores. “A tua mulher ou eu, escolhe.” A namorada era mais

 jovem, Carolina parecia um pato a andar. O marido escolheu bem.

Agora, o ex-marido há mais de dois anos fora de jogo, ali estava Artur no jantar

íntimo a dois. E Carolina também no jantar íntimo a dois. Bonita e desejável, eu e omeu compincha Deus somos testemunhas. Tinham-se tropeçado na Rua Garrett, rido

muito, nervosos e felizes, combinado voltar a encontrar-se. E, milagre, tinham-se

encontrado. Para espanto de Artur finalmente ela reparava nele; ele que, no fundo,

estivera sempre ali. Há muito tempo que estava ali, no banco de suplentes, como um

candeeiro, um cinzeiro, um abajur.

Ele agora parecia diferente. Mais sério, mudado, com bom ar. Parecia um gestor

de empresas, embora (ele explicou) fosse apenas adjunto do adjunto de um presiden-

te de um qualquer instituto criado especificamente para sugar a anunciada mina da

CE.4 Subtilmente ela conseguiu saber que não, ele não estava “com ninguém”. Sim,

também ele saíra de uma relação que correra mal e estava livre como um passari-

nho. Não um daqueles passarinhos que estão em gaiolas. Os outros. Também não

dos que vão ao chão com uma fisga. Dos outros. O rosto dela quando ele disse que

estava livre valia por dez cartazes à beira da estrada. Mas nem assim, em todas estas

semanas de encontros, ele avançara alguma vez para o boca-a-boca que, segundo

uma lenda milenar, salva vidas.

E agora aqui estavam, neste pequeno restaurante italiano, falando em voz baixa

(sotto voce ) e sendo extremamente polidos e palermas um com o outro. Um restau-rante sueco seria mais adequado à polidez dos dois, mas toda a gente sabe que a

realidade nunca teve grande sentido estético. Que diabo, ela estava livre, disponível

— e queria-o. Ele também a queria. Então cadê o problema?

O problema era. Ai, o problema. O problema. Ai.

“O que queres dizer, Artur?”

“Desculpa. Mas... não pode haver nada entre nós.”

4 “Fundos Sociais Europeus”. Bons tempos. Só não fez dinheiro quem não quis.

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E Carolina, desentendida ou esperta ou desesperada, fazendo-se desentendida:

“O que queres dizer com isso, Artur?”

O estremecer no lábio inferior indiciava que ela percebia, percebia muito bem o

que ele queria dizer com aquilo.

Artur fez um esgar. Olhou para a lasagna , mas a lasagna   não o socorreu. Era

difícil dizer o que tinha a dizer. É sempre difícil dizer uma coisa difícil de dizer.

É que há, ou pelo menos havia, uma tabela na cadeia alimentar. As mulheres conhe-

cem-na bem.

As Mulheres Separadas são desclassificadas a) quando têm filhos, b) à medida

que os anos passam. De certo modo, é um pouco como aqueles atletas de alta com-

petição que brilham nos grandes clubes mas, depois, fazem 30 anos e perdem valor

de mercado e acabam a jogar em equipas de terceira divisão — ou até mesmo no

Sporting. Se der tempo ao tempo, qualquer homem pode dizer de uma mulher: “Elaestá no papo.”

(Eu por exemplo tenho a Angelina Jolie debaixo de olho. Só mais uns anos, a ver

se não me cai direitinha nos braços. Aposto vinte euros consigo, leitor. Ah, prefere

dólares. Para leitor, você até bastante sensato, caro leitor.)

Tempo, os homens têm tempo — todo o tempo do mundo. Já as mulheres, que se

cuidem: o tempo corre contra. Tempo & Filhos — piores para a classificação na geral

que ser apanhado por doping  para um ciclista. A treta da Música no Coração funciona

porque quem tinha as sete crianças era o canastrão do capitão von Trapp! Fosse JulieAndrews a mãe viúva dos sete anões e nunca se safaria, nem com todos os dó ré mi

sóis do mundo. Vá por mim, leitor, que eu sou viajado e a minha memória voa mais

alto que o Dumbo.

Artur: “Acho melhor para nós...”

Petrificada, Carolina continuou a olhar para Artur. Ele quase ficou com raiva.

Se ao menos desviasse os olhos, por um momento que fosse. Apeteceu-lhe gritar:

“Olha, atrás de ti, um pássaro! Um avião! O super-homem!” Ou: Um homem que não

se assusta com uma mulher linda e enamorada com dois filhos pequenos! Mas não gritou nada, Artur. Limitou-se a concluir a frase:

“Sabes... Acho... Acho melhor sermos apenas bons amigos do que... maus

amantes.”

Pronto, disseste-a toda. Agora já podes sentar-te ao colo da titi, Artur, já podes

pedir o gelado, já podes levar a taça para casa.

Carolina poisou os talheres, e isso fez ruído — o embater do aço inoxidável na

borda do prato de esmalte. Ele falara baixo, discreto, mas ela tinha a certeza absoluta

de que estava toda a gente a olhar para eles. Toda a gente não sei, mas eu pelo menos

estava. Ambos tinham as orelhas coradas. “Maus amantes? Que disparate está para

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aí a dizer, Artur? Não seja ridículo. Quem é que falou em tal coisa? Estamos apenas

a ter um jantar de amigos, é tudo. Não faça figuras tristes, Artur.”

Ele temia que ela dissesse isto, tirar-lhe o tapete debaixo dos pés, fazer batota,

fingir que não percebia que estavam a jogar, a jogar o jogo. Temia e, ao mesmo

tempo, desejava. Porque, pensando bem, até seria o melhor se ela fizesse isso. Caso

ela se fingisse desentendida, seria um golpe baixo e isso tornaria mais fácil a fuga.

Caso ela se fizesse de parva Artur teria toda a legitimidade para se irritar (com a

baixeza dela) e, destarte, a fuga punitiva ficaria Inteiramente Justificada.

Só que, azar o dele, Carolina apenas se encolheu, dorida. Murmurando, certeira:

“É por causa das crianças?”

Artur ficou desarmado. Ná, como podia ela pensar isso dele? Não. Claro que não!

“N-não. C-como podes dizer isso?”

Quando estamos na berlinda, transformamo-nos todos em entrevistadoreshábeis, clones de Maria Elisa e José Rodrigues dos Santos. Nada como passar a bola

ao adversário para ganhar tempo.

“C-como podes dizer isso, Carolina?”

Carolina baixou a cabeça:

“Quase parece que tenho lepra...”

Lepra não, putos, pensou ele, sem querer. Ainda bem que não o disse, apenas

o pensou. Puxou da calculadora e, sim, contabilizou as razões por que não se queria

“envolver” com a mulher que tinha secretamente desejado durante mais de quinze anos.

1. Não se queria comprometer;

2. Não queria magoá-la/magoar-se;

3. Não queria apaixonar-se;

4. Estava “bem” como estava ( flirts  ocasionais q.b., mas não com uma pessoa

que “respeitava” tanto);

5. não queria perdê-la, gostava demasiado dela, e uma história com ela seria

meio caminho andado para a perder;6. Não queria voltar a sentir ciúmes nem a passar por todos aqueles horrores

que, pitorescos, enfeitam o Amor e a Paixão quando combustam juntos;

7. Não queria, não queria, não queria...

A ordem das alíneas era arbitrária, mas o resultado sempre o mesmo. Não dava .

Podia dar, podia ter dado noutra altura, noutro tempo, mas agora não dava. Não

dava não dava não dava não dava.

E este jantar devia ser, concluíra ele, isso. Uma forma elegante e simpática de

pôr fim às coisas. Uma forma simpática e elegante de pôr fim às coisas antes que

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fossem longe demais.

“Mas sabes que gosto muito de ti, Carolina... Quero continuar a ser teu

amigo... Se me deixares.”

O que se diz nestas alturas? Se o leitor souber, ligue-me para a extensão 214, nohorário de expediente normal. Dão-se alvíssaras ao mais avisado conselho.

O jogo é muito bonito. Mas o jogo é também um jugo. Pensando estar a jogar em

liberdade, estamos condenados a combinatórias limitadas.

E quanto a eles, ao nosso casalinho? Bem, quanto a eles, nada. Carolina e Artur

nunca chegaram a ser Carolina & Artur . Acabaram o jantar calma e friamente, enfim,

o mais calma e friamente que as circunstâncias permitiam. Artur quis pagar (era o

mínimo) mas Carolina insistiu em que fosse a meias. Nessa época ainda não havia

telemóveis, mas já havia a noção de que o homem não tinha de “pagar o jantar”,sobretudo se sub-reptícia estivesse a sugestão de que isso compraria uns centíme-

tros mais de proximidade de cama. Neste caso, da parte de Carolina talvez fosse

o contrário. A noção de que, neste específico caso, deixar Artur pagar o jantar

comprava ao burgesso a fuga cobarde da Cama Anunciada.

Carolina bem que poderia ter dito: “Não te preocupes, idiota, não quero com-

promissos. Só gostava de dormir contigo por uma vez que fosse. Sabes há quanto

tempo durmo sozinha?”

Mas Artur sabia — e nisto dou-lhe inteirinha razão — que as mulheres mentem

sempre. Começam por dizer que é apenas sexo casual e depois tramam-nos:

“Camarada, selámos o acordo sagrado, agora somos um até prova em contrário.”

Porque as mulheres sabem que, mesmo casual, o sexo é sempre de alguma forma

o portal de um templo sagrado. O primeiro passo de uma peregrinação a meias.

Algumas, embrutecidas, esqueceram isso. Mas ao menos isto Artur intuía bem,

mesmo na sua santa ignorância: que, o mais das vezes, “queca duma noite só” não

 vale a pena. Nunca, sobretudo, quando o Potencial de Amor é grande. Digo isto sem

grande alegria. Tomara eu que fosse ao contrário.5 

Carolina e Artur despediram-se e ficaram de se ver “um dia destes”. Já lá vão mais de vinte anos. É triste mas, claro, não é letal. Nenhum deles morreu

do desgosto. Carolina acabou por encontrar um bimbo qualquer e, depois desse

bimbo, outro bimbo, outro bimbo. Com um deles, de quem se divorciou há uns

5 Sim, sim, os amigos perguntam-me: Rui, por que quando escreves histórias de amor só falas de ca-

sos mal resolvidos? E eu não respondo mas se calhar devia responder: porque é a história da minha vida.

É o que tenho para contar, e uma pessoa, por mais histórias que invente, só tem a sua história para con-

tar. As histórias servem para deitar contas à vida, e que outras contas pode uma pessoa fazer senão as suas?

É bonito? Não, não é bonito. Mas é assim, tem de ser assim, não pode senão ser assim.

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tempos, até teve outro filho, que qualquer dia está a entrar para a faculdade. Linda

como era, não houve problema. Bastou baixar ainda mais o seu grau de exigência.

Artur também acabaria por se perder por aí e ser feliz para sempre.

É triste mas, de facto, não é letal. As histórias de amor são como as tartarugas-

-bebé, a maior parte morre na praia, nem chega a entrar na água. E esta tem até um

pormenor cómico: é que nem um beijo sequer chegaram Artur e Carolina a dar.6

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

6 O leitor não está contente com a história? Queria sangue? Miséria, hoje todos querem sangue! Está bem,

eu dou-lhe sangue. Lembra-se do Aristides, aquele amigo de quem eu estava à espera? Pois bem, ele afinal não se

atrasou. Foi atropelado frente ao restaurante. E, salvo erro, por um leitor com pressa de chegar a tempo a um filme

de porrada no cinema ao lado. Pronto, mais satisfeitinho?