UM SENTIDO PARA A VIDA

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© Antropologia, Ética e Cultura 260 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Anexo 1 UM SENTIDO PARA A VIDA Palestra realizada em 20 de novembro de 1997 na Federa- ção do Comércio do Estado de São Paulo, onde Frei Betto, um dos maiores teólogos e intelectuais brasileiros, fala do papel da ciên- cia, da educação e da religiosidade no mundo moderno. Minha intenção é falar sobre o momento que estamos viven- do, momento confuso em termos de perspectiva do futuro. A pri- meira evocação que faço é da pintura de Michelangelo na Capela Sistina, “A criação de Adão”, em que a figura de Deus, recoberto de mantos e com a barba longa, estende o dedo para Adão. Ao mes- mo tempo em que Adão, como símbolo da humanidade, é atraído em direção à Terra, ele estende o dedo na direção do Criador, es- pécie de premonição nostálgica de que é preciso não perder o con- tato com a fonte, com a raiz, que é Deus. Michelangelo foi genial, porque é muito difícil compreender o momento em que se vive. É fácil analisar os momentos depois que eles passaram. O artista, com sua intuição, com seu talento, tem o dom de captar o momen- to, que depois a epistemologia e a filosofia tentam explicar. O que acontecia naquele momento da “descoberta” da Amé- rica, da “descoberta” do Brasil? A passagem. Diria que não estamos vivendo uma época de mudanças. Estamos vivendo, hoje, uma mudança de época. A última mudança de época foi justamente na “descoberta” da América, quando o Ocidente passou do período medieval para o moderno. A pintura de Michelangelo expressa, com genialidade, essa chegada de um tempo em que o conheci- mento, a epistemologia, se desloca de uma perspectiva teocên- trica para uma perspectiva antropocêntrica. A rainha das ciências, durante mil anos, no período medieval, foi a teologia. A rainha das ciências, da modernidade é a física. O período medieval se base- ava na fé; o moderno, na razão. O período medieval se baseava

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Anexo 1UM SENTIDO PARA A VIDA

Palestra realizada em 20 de novembro de 1997 na Federa-ção do Comércio do Estado de São Paulo, onde Frei Betto, um dos maiores teólogos e intelectuais brasileiros, fala do papel da ciên-cia, da educação e da religiosidade no mundo moderno.

Minha intenção é falar sobre o momento que estamos viven-do, momento confuso em termos de perspectiva do futuro. A pri-meira evocação que faço é da pintura de Michelangelo na Capela Sistina, “A criação de Adão”, em que a figura de Deus, recoberto de mantos e com a barba longa, estende o dedo para Adão. Ao mes-mo tempo em que Adão, como símbolo da humanidade, é atraído em direção à Terra, ele estende o dedo na direção do Criador, es-pécie de premonição nostálgica de que é preciso não perder o con-tato com a fonte, com a raiz, que é Deus. Michelangelo foi genial, porque é muito difícil compreender o momento em que se vive. É fácil analisar os momentos depois que eles passaram. O artista, com sua intuição, com seu talento, tem o dom de captar o momen-to, que depois a epistemologia e a filosofia tentam explicar.

O que acontecia naquele momento da “descoberta” da Amé-rica, da “descoberta” do Brasil? A passagem. Diria que não estamos vivendo uma época de mudanças. Estamos vivendo, hoje, uma mudança de época. A última mudança de época foi justamente na “descoberta” da América, quando o Ocidente passou do período medieval para o moderno. A pintura de Michelangelo expressa, com genialidade, essa chegada de um tempo em que o conheci-mento, a epistemologia, se desloca de uma perspectiva teocên-trica para uma perspectiva antropocêntrica. A rainha das ciências, durante mil anos, no período medieval, foi a teologia. A rainha das ciências, da modernidade é a física. O período medieval se base-ava na fé; o moderno, na razão. O período medieval se baseava

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na contemplação das verdades reveladas; o moderno, na busca da compreensão da mecânica deste mundo e no pragmatismo, na transformação deste mundo.

Quando os camponeses medievais preparavam o campo, as-pergiam água benta e ainda pagavam aos padres pela água com-prada. Até que apareceu um sujeito, que não era cristão, com um pozinho preto, dizendo: “Ponham isso na terra, e irão produzir mais do que com a água benta dos padres”. De fato, o adubo re-sultou numa produtividade muito maior do que a água benta. Isso criou uma crise de fé no fim da Idade Média. Por quê? Porque a fé medieval, como muitas vezes a nossa fé hoje, é uma fé sociológi-ca, que tem como anteparo nossa compreensão do mundo. Uma vez que essa compreensão é mudada, a fé desaba. Aliás, muitas vezes passamos por crises espirituais que, na verdade, não deve-riam ser entendidas assim, mas como crises de cosmovisões ou de mundividências que sustentam nossa maneira de compreender a experiência da fé.

Descartes e Newton

A modernidade aparece, primeiro, com o grande movimento da globalização que foram as navegações ibéricas. Falamos hoje em globalização como se fosse novidade. Mas, na Escola de Sagres, já se falava em globalização, com outras palavras. E tanto globaliza-ram que conseguiram abarcar outras regiões do planeta, embora Colombo tenha morrido sem saber que havia chegado à América. Morreu convencido de que tinha alcançado Cipango, nome que se dava ao Japão. As descobertas marítimas, a criação das univer-sidades, principalmente da Sorbonne, que é do século 12, e da Universidade de Bolonha, e as corporações marítimas, que são as matrizes dos sindicatos, foram três fatores que, de certa forma, prepararam o advento da modernidade. Todos nós somos filhos da modernidade. Nossa estrutura de pensamento é moderna, mas nem sempre foi assim, e nem em toda parte do mundo é assim.

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Qual é a característica da modernidade? São duas pernas: a filosofia de René Descartes e a física de Isaac Newton. Descartes, com o “Penso, logo existo”, mostrou que a razão é capaz de deci-frar os enigmas do conhecimento. Já contemporaneamente a ele, ou um pouco antes, um acontecimento marcou decisivamente a introdução da visão moderna: a astronomia de Nicolau Copérnico, depois complementada por Galileu Galilei. Copérnico fez algo de revolucionário, a ponto de hoje se falar de revolução copernicana, porque até então as pessoas olhavam o mundo com os pés na Ter-ra. Copérnico fez o inverso: como será a Terra se eu me imaginar com os pés no Sol? A partir dessa mudança, ele teve uma com-preensão completamente diferente do universo, mas só ousou partilhá-la em seu leito de morte, com medo da Inquisição. Depois veio Galileu e acabou com a idéia de que a ciência é baseada no senso comum. Detalhe: o que Galileu constatou cientificamente no século 17, Eratóstenes já havia comprovado na Grécia, três sé-culos antes de Cristo. Eratóstenes, astrônomo grego, afirmava que a Terra é redonda e gira. Ele teve o cuidado de colocar estacas entre duas cidades e medir a incidência do Sol sobre essas estacas, constatando que a sombra que o Sol projetava comprovava que a Terra era redonda e gira. Mas Eratóstenes não tinha lobby suficien-te para fazer prevalecer sua opinião. O mais fantástico é que ousou medir a cintura da Terra, e chegou à conclusão de que ela tinha 39 mil quilômetros. No século 20, a ciência constatou que são 40.008 quilômetros.

A idéia de que vivemos num planeta, que não é o centro do universo, foi extremamente desconfortável para a Igreja, primeiro porque, na Bíblia, consta que Josué parou o Sol. Se a palavra de Deus afirma que Josué parou o Sol, como um cientista ousa afir-mar que não é o Sol que gira, mas é a Terra que gira em torno do seu próprio eixo e em torno do Sol? E depois, diziam a Galileu, o Sol nasce no leste, passa sobre nossas cabeças, desce no oeste, durante a noite caminha por baixo da Terra e, de repente, renasce novamente no leste. É ele que gira. A grande revolução que intro-

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duz a modernidade foi provar que a ciência não é o que parece, mas o que se comprova pela experiência e pela pesquisa.

Descartes levou isso ao plano filosófico. Ele tanto influenciou a modernidade que ainda hoje nossa ciência e nossa chave de co-nhecimento são profundamente cartesianas. O exemplo mais ób-vio é a medicina. Você vai ao médico, tem um problema cardíaco e ele receita um remédio muito bom para o coração. O resultado é o aparecimento de um pequeno problema colateral no intesti-no, mas para o coração o medicamento é ótimo. Se o problema é intestino, você toma um outro remédio, que vai provocar uma pequena insônia, mas não se preocupe. Ou vai ao médico do es-pírito, o terapeuta, o psicanalista, e alguns nem sequer lhe esten-dem a mão porque não pode haver contato físico. Mas o médico do corpo, que manda fazer uma série de exames, nem sempre tem o cuidado de perguntar sobre sua história familiar, seus hábitos, como é o seu cotidiano, o que você come. Ou seja, a cultura mo-derna é tão cartesiana, tão fragmentada, sem percepção do todo, que não temos, como na China e no Tibete de antigamente, o mé-dico da pessoa, nós temos o médico do detalhe. Na China antiga você pagava o médico enquanto tinha saúde. Ficando doente, ele tinha que tratá-lo de graça, porque a responsabilidade do médico é assegurar sua saúde. Nós pagamos o médico quando ficamos doentes. Então ele não se sente propriamente responsável pela preservação de minha saúde.

A segunda perna da modernidade é a física de Newton, que imaginou o universo como um grande relógio, sendo Deus o relo-joeiro. Como os nossos relógios, o universo possui uma mecânica interna. No meu relógio os ponteiros coincidem com o movimento do tempo pela razão dessa mecânica interna. Não preciso dar cor-da a cada minuto no meu relógio, nem preciso mover com o dedo os ponteiros para que haja essa coincidência. Então Newton con-cluiu que o universo também possui leis endógenas: quanto mais conseguimos decompor as coisas em seus mecanismos internos, melhor vamos conhecer essas coisas. Resultado: toda a ciência da

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modernidade é uma ciência da decantação, da decomposição, da fragmentação. Ninguém escapa disso. A física se tornou a rainha das ciências porque conseguiu provar que os fenômenos não acon-tecem por acaso, mas possuem leis. Podemos não entender essas leis. Os índios pueblos, no México, acreditavam, antes da chegada de Colombo, que o Sol nascia graças aos ritos que eles promoviam todas as madrugadas. Acredito que os índios pueblos nunca te-nham se arriscado a dormir até mais tarde, com medo de o univer-so ficar escuro. Newton acharia graça nessa história, porque ele dizia: “Independentemente da minha vontade, o Sol vai nascer to-dos os dias, pelo fenômeno da rotação da Terra”. No fim do século 17, um astrônomo inglês chamado Edmund Halley viu um cometa cruzar os céus de Londres e passou a noite debruçado sobre sua escrivaninha fazendo cálculos. No dia seguinte, reuniu a comuni-dade científica e previu: “Dentro de 77 anos, aquele cometa, que ontem à noite atravessou os céus de Londres, voltará a passar”. Muitos acharam que Halley tinha ficado louco: como alguém, sem nenhum instrumento capaz de captar o movimento dos astros, fe-chado em sua casa, pode afirmar, com tamanha segurança, que aquele astro brilhante vai voltar exatamente dentro de 77 anos? Mas a comunidade científica o levou a sério e, efetivamente, em 1759, 77 anos depois (Halley já tinha morrido), o cometa que leva hoje seu nome atravessou de novo os céus de Londres. Foi a gló-ria da razão. Ou seja, se a razão é capaz de prever com tamanha exatidão o movimento dos astros, é capaz de reequacionar todos os problemas humanos. Aí vem o Iluminismo para dizer: o que não é racional não é real. A religião, então, passou a escanteio total, como pura superstição.

A natureza somos nós

A modernidade se construiu com a supervalorização da ra-zão, com a capacidade de transformar o todo nas suas partes. Mas, muitas vezes, vendo as árvores sem perceber a floresta. E, no fim de cinco séculos de modernidade, qual é o saldo que temos? La-

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mentavelmente, não é dos mais positivos. É por isso que se fala em crise da modernidade. Primeiro, graças ao avanço da ciência e da tecnologia, temos hoje capacidade bélica para destruir o pla-neta pelo menos 30 vezes e não chegamos à capacidade humana de salvá-lo uma vez. Lamentavelmente, temos hoje 5,8 bilhões de pessoas no planeta, das quais cerca de 2 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza. Esse é um primeiro fenômeno.

Segundo a FAO (Food and Agricultural Organization), temos produção de alimentos suficiente para 10 bilhões de pessoas e, conforme a própria FAO, o Brasil é um país privilegiado porque é o único que tem potencial para colher três safras por ano. Com di-mensões continentais, não é afetado por nenhuma catástrofe na-tural. Não tem vulcão, não tem deserto, não tem terremoto, não tem furacão, não tem geleiras, não tem zonas inabitáveis, como a China, que é apenas 1 milhão de quilômetros quadrados maior do que o Brasil, mas é habitável só em 16% do território.

Outro fenômeno: não superamos os conflitos regionais in-ternacionais. Ainda somos uma humanidade guerreira. E há tam-bém o fenômeno da destruição do meio ambiente. A razão instru-mental, característica da modernidade, fez com que, ao usarmos a natureza, nós a destruíssemos. Só que a natureza se vinga. Não é que a natureza se vinga porque está raivosa, mas porque não há, ao contrário do que supunha a modernidade, diferença entre nós e a natureza. Nós somos seres da e na natureza, fazemos a nature-za, fazemos a nós e ao nosso próprio corpo. E agora começamos a sentir os reflexos disso.

Mais: a modernidade está em crise porque as quatro gran-des instituições, nas quais ela se apoiou, estão em crise: família, Igreja, escola e Estado. Sabemos que os modelos antigos não estão vigorando mais. Alguns, numa atitude saudosista, querem ainda manter ou trazer à atualidade aquilo que foi bom no passado. Não é fácil, porque há novos paradigmas sendo forjados nisso que hoje os filósofos já chamam de pós-modernidade.

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A crise da família é a crise das relações de gênero – ou seja, uma vez que o patriarcalismo começa a fracassar, a emancipação feminina se afirma e novos papéis sexuais, como o dos homosse-xuais, se desclandestinizam. Isso nos obriga a encarar a questão da família e das relações de gênero por uma outra ótica. Segundo, a Igreja. As igrejas históricas contavam com o anteparo do consenso social. Isso não acontece mais. Vivemos numa sociedade pluralista, uma sociedade onde as crenças são tão variadas quanto possível e não têm mais força para se impor como uma espécie de teologia com anteparo estatal, como aconteceu no período medieval ou mesmo na ascensão dos Estados modernos na Europa, que sus-tentaram o protestantismo. Martinho Lutero só não foi parar na fogueira da Inquisição graças aos príncipes europeus, que estavam interessados em romper com a tutela do Vaticano. E os Estados europeus só adquiriram autonomia porque buscaram legitimação religiosa no protestantismo nascente. Tivesse o papa assegurado sua hegemonia, Lutero teria ido para a Inquisição, como os albi-genses e tantos outros. A hegemonia católica sobre a Europa teria se mantido, e possivelmente o protestantismo, pelo menos naque-le momento, não teria se expandido com a força que teve.

Hoje, essa crise é provocada pelo fenômeno da globalização, que faz com que o mundo se transforme numa pequena aldeia, de tal maneira que as várias modalidades de crenças religiosas pos-sam ser intimamente conhecidas por povos entre os quais elas não têm raiz, como é o caso do budismo ou do islamismo.

Massa disforme

A escola está em crise, porque nada é mais cartesiano e newtoniano do que a escola. Se os paradigmas da modernidade entram em crise, a escola também entra em crise. E por que a es-cola entra em crise? São Tomás de Aquino tem uma frase de que gosto muito: “A razão é a imperfeição da inteligência”. Ou seja, a inteligência vem de intus leggere (ser capaz de ler dentro). Há pes-

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soas analfabetas que são sumamente inteligentes. Inteligir uma situação não depende propriamente de cultura, depende de sen-sibilidade, de intuição, daquilo que a Bíblia chama de sabedoria. E hoje constatamos que a escola nos torna cultos, mas não nos torna necessariamente inteligentes. Passei 22 anos nos bancos escolares, e a escola nunca tratou dos temas limites da vida, nun-ca falou de experiências pelas quais passamos, se não por todas, pelo menos pela maioria, nunca falou de doença, nunca falou de fracasso, nunca falou de ruptura de laços afetivos, nunca falou de dor, nunca falou de morte, nunca falou de sexualidade e, se fa-lou de religião, não falou de espiritualidade. Ou seja, temos uma escola tipicamente cartesiana, barroca. É como aqueles anjos das igrejas de Minas Gerais e da Bahia, que só têm cabeça, o resto é uma massa disforme. Nossa escola cartesiana acha que devemos saber como são os conceitos da física, mas saímos da escola sem saber consertar automóvel, televisão, geladeira, pregar um botão na camisa, cozinhar um ovo, fazer café. Não somos preparados para prestar primeiros socorros, para fazer coisas absolutamente triviais do nosso cotidiano, porque a escola separa a cabeça das mãos, não nos abarca na totalidade, na formação do ser como tal para a vida. Ela dá instrumentos de compreensão e modificação da natureza, que constituem a cultura, mas não propriamente de uma interação com a natureza.

Por fim, o Estado. O Estado hoje, devido à globalização e ao papel que os grandes conglomerados empresariais desempenham no mundo, é parceiro de um projeto de desenvolvimento, mas não é mais o fator determinante desse projeto. A transnacionalização da economia rompe com as fronteiras nacionais, questiona o con-ceito de soberania e traz um momento de crise. Isso porque a glo-balização é inevitável, os meios de comunicação transformaram o mundo numa pequena aldeia. Minha avó, em São João Del Rei, via pela janela de sua casa o mundo se transformar a cada dez ou 15 anos. Hoje, a janela pela qual vemos as mudanças do mundo é a telinha da televisão. Se para a minha avó as mudanças levavam dez

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anos, para nós elas acontecem em dez segundos. Essa aceleração das mutações mexe profundamente com nossos valores tradicio-nais e tem reflexos sérios do ponto de vista dos paradigmas da modernidade.

Quais são os setores mais atingidos por essa crise? Na mo-dernidade, falava-se em desenvolvimento. Encíclicas papais e po-líticos falavam disso. O conceito de desenvolvimento tem uma di-mensão ética. Hoje a palavra é modernização, cujo conceito tem uma dimensão mais tecnológica, no qual nem sempre se inclui o bem-estar de todos, como no conceito de desenvolvimento. Aliás, já não existem projetos de países ricos para o desenvolvimento de áreas pobres do mundo. Falávamos em produção. Hoje falamos em especulação. O mundo virou um cassino global (está aí a cri-se das Bolsas), em que dinheiro rende dinheiro. Há mais dinheiro virtual do que real. Falávamos em trabalho; o trabalho era, na mo-dernidade, o fator de identificação do ser humano. Hoje, fala-se de mercado, quem está e quem não está no mercado. A Bíblia, lida por certa ótica, diz que o trabalho é um castigo: “Comerás o pão com o suor do teu rosto”. Viviane Forrester, em Horror econômico, lembra que, hoje, o trabalho é uma bênção: “Feliz de quem tem um trabalho”.

Minha geração deve ter sido a última que teve o luxo de ter vocação. A gente chegava aos 15 anos perguntando: “Qual será a minha vocação?” É muito difícil achar um jovem, hoje, que este-ja terminando o curso colegial e fale em vocação, tenha idéia de qual é a sua vocação. Trabalho na Pastoral Operária. Há dez anos, via muitos operários dizerem: “Eu tenho profissão”. No meio ope-rário há uma diferença entre aquele que tem profissão e o que não tem. Hoje, profissão também está ficando um luxo. A questão é a seguinte: como faço para ter um emprego? Antônio Ermírio de Moraes, certo dia, disse na televisão: a empresa dele tinha, há dez anos, 62 mil funcionários, hoje tem 40 mil. Quando cheguei a São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Volkswagen tinha 45 mil funcionários e fabricava 750 veículos por dia. Hoje produz 1,25

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mil diariamente, com 25 mil funcionários. A Benetton inaugurou em Milão, na Itália, uma máquina de confecção automatizada e, no dia seguinte, despediu 3 mil funcionários. Estamos vivendo um processo angustiante de avanço tecnológico sem uma reflexão, não digo nem política, porque a questão é muito mais ampla, uma reflexão sobre a questão do trabalho, do emprego, das condições sociais geradas pela globalização. Eu faria até um paralelo: é como querer ganhar a guerra. Você pode ganhar a guerra com a bomba atômica, como afinal se ganhou a Segunda Guerra em Hiroshima e Nagasaki. O custo humano, porém, é muito grande. Será que ele não pode ser evitado? Será que não podemos ganhar a guerra do desenvolvimento tecnológico e científico com menos custo para as pessoas?

Educação televisiva

Falávamos em bem comum. Essa expressão está sumindo até dos documentos da Igreja. Hoje, falamos em tecnologia de ponta. Falávamos em nação, hoje falamos em globalização. Falávamos em cultura. Hoje, de tal maneira os veículos de cultura estão atrelados à publicidade que estamos tendo menos cultura e mais entrete-nimento. A sensação que tenho, depois de passar uma semana vendo a televisão brasileira, é de ter ficado mais pobre espiritual-mente, sobretudo no domingo, que é o dia nacional da imbeciliza-ção geral. Na segunda-feira, a gente tem ressaca moral, precisa de um tempo para se refazer, depois de ver o ser humano sendo tão degradado, ridicularizado e ainda com um toque de humor.

Vivemos uma esquizofrenia social. De um lado, queremos defender os nossos valores religiosos, morais etc., e, de outro, te-mos, dentro de casa, uma pessoa da família, eletrônica – a telinha –, que não foi convidada, não pede licença, não dialoga e nos im-põe valores que nem sempre conferem com os nossos. É a história da minha cunhada, que me disse: “Betto, fui aluna de colégio de freira, por isso paguei muitos anos de análise para me livrar da idéia de que tudo é pecado. Espero que meus filhos, quando adul-

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tos, escolham se querem ou não ter uma religião, mas não preten-do ensinar-lhes nenhuma religião”. Eu lhe disse: “Você, como mãe, tem todo o direito de fazer essa opção. Mas, como pessoa, não tem o direito de ser ingênua. Ou você educa ou a Xuxa educa. Não pense que existe neutralidade. Se você não educar, a televisão vai ensinar a seus filhos o que é bem, o que é mal, o que é certo, o que é errado, o que é justo, o que é injusto”. É uma questão de opção.

Falávamos em valores, hoje falamos de sucesso. E introduzi-mos cada vez mais na linguagem e na prática a idéia da competiti-vidade. Às vezes, faço treinamento de recursos humanos em em-presas, e os treinamentos são interessantes porque não se trata de fazer palestras, trata-se de captar o pano de fundo da cultura da empresa. Um dos detalhes mais interessantes é o seguinte: os fun-cionários de uma mesma empresa praticam entre si a competitivi-dade. A idéia da competição com outras empresas é internalizada de tal maneira, que a coisa emperra porque a competitividade está lá dentro, onde deveria haver cooperação. A competitividade vai entrando de tal forma que as pessoas já não sabem estabelecer um nível mínimo de cooperação.

Falávamos de realidade, hoje falamos de virtualidade. A re-alidade virtual é positiva, do ponto de vista da interação no pla-neta, que se transforma numa pequena aldeia, mas perigosa do ponto de vista da abstração dos valores. Em outras palavras, do meu quarto no convento no bairro das Perdizes, em São Paulo, posso ter um amigo íntimo em Tóquio, mas não quero nem sa-ber o nome do vizinho de porta. Então sou um amigo virtual. Há até o sexo virtual, por computador, que está trazendo um proble-ma para a teologia moral: o adultério virtual. Sofremos o risco de entrar numa concepção de virtualidade que nos leva a falar em cidadania e continuar jogando lata de refrigerante e cerveja pela janela do carro, invadindo a faixa de pedestre etc. Vamos criando toda uma linguagem que é virtual e não tem incidência no real. Na vida real, ficamos cada vez mais agressivos, mais violentos, mais competitivos.

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Falávamos em história. Esse é outro fator da crise da moder-nidade: estamos perdendo a idéia do tempo como história. Daí a dificuldade das novas gerações de construir um projeto. Nossa geração foi educada pela literatura e não pela televisão. Somos a última geração literária da humanidade. O que isso muda? Quem foi educado pela literatura percebe o tempo como passado, pre-sente e futuro, como projeto. A televisão rompe a historicidade do tempo e introduz a circularidade. Ao mesmo tempo que vejo na metade da tela Ayrton Senna vivo, na outra metade vejo-o morto. Então, na cabeça das novas gerações não há história. Daí a dificul-dade de seu filho ou de seu neto fazerem projeto. A geração deles é tudo “aqui e agora”. Por que hoje não se fala em QI, mas em inte-ligência emocional? Porque muitas empresas constatam que seus executivos, do ponto de vista do QI, são geniais, mas são garotões, emocionalmente infantilizados, e isso afeta profundamente sua relação com as pessoas, na medida em que hoje há um processo de perenização da juventude, o que é saudável de um lado e peri-goso de outro.

As pessoas malham muito o corpo, mas esquecem de malhar o espírito. Não tenho nada contra o fato de malhar o corpo. Mi-nha preocupação é a seguinte: como é que se malha o espírito? A cidade de Ribeirão Preto (SP), em 1960, tinha seis livrarias e duas academias de ginástica; hoje tem 60 academias de ginástica e seis livrarias. Como se resolve isso?

Por fim, estamos perdendo, na crise da modernidade, a idéia da contextualidade das coisas, ou seja, que tudo está relacionado com tudo – que é o novo paradigma holístico. Não há eu de um lado e a natureza de outro. Todos somos frutos da evolução do universo. Cada um de nós tem 15 bilhões de anos. Foram preci-sos 15 bilhões de anos de evolução para que o universo um dia se singularizasse na sua pessoa. Enquanto não existíamos, enquanto não existia o ser humano (a menos que haja vida inteligente em outro planeta. Até acredito que sim, mas tendo captado nossas transmissões de TV eles chegaram à conclusão de que na Terra não

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há vida inteligente, e, então, não convém se aproximar, não vale a pena o esforço), o universo era cego, não sabia que era belo. Então o universo criou a nós, que somos seus olhos e sua mente. Atra-vés de nós o universo sabe que é belo e, por isso, o chamamos de cosmo, que tem a mesma raiz grega da palavra “cosmético”, aquilo que traz beleza.

Um sentido para a vida

Esse paradigma holístico que a pós-modernidade procura reatar – os gregos de certa maneira tinham isso – vai nos dando a dimensão de que, na natureza, há mais cooperação do que segre-gação, do que seleção, como o neodarwinismo tanto defende. E na sociedade também esse processo de cooperação deve prevalecer sobre a competição.

A holística, hoje, nasce da emergência do fenômeno ecológi-co, mas se estende para o campo social e filosófico. Dentro disso, há uma percepção das pessoas a respeito dos limites da razão e há um certo cansaço do racionalismo. Isso leva a um fenômeno novo, que é a emergência da espiritualidade. Hoje, em qualquer livraria de qualquer país, a literatura religiosa, esotérica e espiritualista tem uma grande aceitação. Isso significa que as pessoas estão fi-cando mais religiosas? Não necessariamente. É que as pessoas es-tão ficando saturadas de tanto racionalismo. Elas estão buscando algo que o consumismo não oferece, um sentido para a vida. Ou seja, não posso encontrar o sentido para minha vida no automóvel novo que comprei ou na lata de cerveja que bebo. E a modernida-de, com o excessivo racionalismo e o processo de secularização, foi clandestinizando a questão do sentido: por que vivo, qual a razão desta minha única experiência de ser no mundo, neste breve espa-ço dos meus anos de vida? A sede de sentido é que explica a busca desenfreada de religiosidade. Somos o único ser aberto à trans-cendência, o único ser que tem fome de Deus. Um cavalo está na sua plenitude eqüina; uma samambaia, no canto da sala, deve nos olhar com muita pena, dizendo: “Coitados, ainda têm que traba-

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lhar, viver emoções atribuladas. Eu estou aqui na minha plenitude vegetal, preciso apenas de um pouco de água e sol”.

É aí que entra o desafio que se apresenta para nós hoje: como resgatar a espiritualidade? Quando falo em espiritualida-de, falo em algo que vai além das religiões institucionais. Estou falando em como resgatar a subjetividade humana, como resga-tar os valores da subjetividade, como voltar a uma cultura onde o trabalho, o pragmatismo ceda lugar à contemplação, à reflexão, à sabedoria, ao aprofundamento dos valores. Como restabelecer vínculos humanos que estão se perdendo com a aceleração da tec-nologia? Às vezes brinco dizendo que sonho escrever uma peça de teatro sobre uma família que vive numa casa no campo, onde o acesso à cidade mais próxima não é fácil. De repente, a luz acaba nessa casa e, por uma semana, ninguém pode ver televisão. O que aconteceria nessa família obrigada pela circunstância a dialogar entre si? É capaz de o pai falar para a filha: “Mas, moça, como é que você se chama mesmo?” Enfim, isso para mostrar que há uma sede de recuperação desses valores. Se não abrirmos esses espa-ços, corremos o risco de tê-los como núcleos fundamentalistas de retrocesso. Quando as coisas não encontram espaço na cidade, na polis, elas surgem, como contestação, de uma maneira fundamen-talista, sectária, perigosa (disponível em: <http://www.miniweb.com.br/cidadania/Temas_Transversais/sentido_vida.htm>. Acesso em: 12 ago. 2010).

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ANEXO 2EU ETIQUETA

Carlos Drummond de AndradeEm minha calça está grudado um nomeQue não é meu de batismo ou de cartórioUm nome... estranho.Meu blusão traz lembrete de bebidaQue jamais pus na boca, nessa vida,Em minha camiseta, a marca de cigarroQue não fumo, até hoje não fumei.Minhas meias falam de produtosQue nunca experimenteiMas são comunicados a meus pés.Meu tênis é proclama coloridoDe alguma coisa não provadaPor este provador de longa idade.Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,Minha gravata e cinto e escova e pente,Meu copo, minha xícara,Minha toalha de banho e sabonete,Meu isso, meu aquilo.Desde a cabeça ao bico dos sapatos,São mensagens,Letras falantes,Gritos visuais,Ordens de uso, abuso, reincidências.Costume, hábito, permência,Indispensabilidade,E fazem de mim homem-anúncio itinerante,Escravo da matéria anunciada.Estou, estou na moda.É duro andar na moda, ainda que a modaSeja negar minha identidade,

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Trocá-la por mil, açambarcandoTodas as marcas registradas,Todos os logotipos do mercado.Com que inocência demito-me de serEu que antes era e me sabiaTão diverso de outros, tão mim mesmo,Ser pensante sentinte e solitárioCom outros seres diversos e conscientesDe sua humana, invencível condição.Agora sou anúncioOra vulgar ora bizarro.Em língua nacional ou em qualquer língua(Qualquer principalmente.)E nisto me comparo, tiro glóriaDe minha anulação.Não sou – vê lá – anúncio contratado.Eu é que mimosamente pagoPara anunciar, para venderEm bares festas praias pérgulas piscinas,E bem à vista exibo esta etiquetaGlobal no corpo que desisteDe ser veste e sandália de uma essênciaTão viva, independente,Que moda ou suborno algum a compromete.Onde terei jogado foraMeu gosto e capacidade de escolher,Minhas idiossincrasias tão pessoais,Tão minhas que no rosto se espelhavamE cada gesto, cada olharCada vinco da roupaSou gravado de forma universal,Saio da estamparia, não de casa,Da vitrine me tiram, recolocam,Objeto pulsante mas objetoQue se oferece como signo dos outrosObjetos estáticos, tarifados.Por me ostentar assim, tão orgulhoso

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© Antropologia, Ética e Cultura276

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De ser não eu, mas artigo industrial,Peço que meu nome retifiquem.Já não me convém o título de homem.Meu nome novo é Coisa.Eu sou a Coisa, coisamente.

Fonte: disponível em: <http://www.pensador.info/frase/MjAyODM0/>. Acesso em: 9 ago. 2010.