Um Sorriso Negro_Renato Noguera in O Samba e a Filosofia_2014
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“Um sorriso negro”: Dona Ivone Lara e
a ética de filosofar com o tamborim
Renato Noguera
1- Considerações primeiras; 2- O samba e a filosofia; 3- Dona Ivone Lara
como figura estética, seus perceptos e seus afetos; 4– Polifonias
heterográficas; 5 – Sorriso Negro como conceito filosófico afroperspectivista;
6 – Sambasofia/sambafilia e a ética do tamborim; 7- Conclusões parciais;
Referências.
“Um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade”
(Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portela)
1 – Considerações primeiras para esquentar os tamborins
Por um lado, o som do samba cantado por Dona Ivone Lara é razão para a
composição deste capítulo. Por outro, as sonoridades da filosofia de Deleuze. Sem
dúvida, o samba é um voo que produz belas vertigens mesmo se for raso. O samba é
uma manifestação artística negra plantada e colhida em território brasileiro. Ou ainda,
uma reterritorialização africana que fez do samba um acontecimento inusitado que
ecoou de corações das pequenas Áfricas baianas, cariocas, quilombolas e das rodas
regadas com alegria de cantar em coro. Ora, o termo “samba” deriva de semba, uma
palavra do tronco linguístico banto que:
(...) entre os quiocos (chokwe) de Angola, é verbo que significa cabriolar,
brincar, divertir-se como cabrito. Entre os bacongos angolanos e conguenses,
o vocábulo designa uma espécie de dança em que um dançarino bate o peito
contra o outro. E essas duas formas da raiz multilinguística semba – rejeitar,
separar, que deu origem ao quimbundo di-semba, umbigada –, elemento
coreográfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes,
que inclui (...) outras formas de dança (LOPES, 2003, p. 14).
Nós não queremos fazer aqui uma genealogia e uma historiografia do samba.
Mas, autores como José Ramos Tinhorão (1997; 1998), Nei Lopes (2003), Sérgio
Cabral (1990), Hermano Vianna (1995) entre outras e outros, ajudam a entender um
pouco dos mapas de produção e emergência desse gênero musical, coreografia,
espetáculo, signo nacional ou qualquer outro adjetivo que possamos lhe dar. Sem
dúvida, alguns de seus textos são alvos de nossas leituras, análises e servem até hoje
como interlocutores quando empreendemos o exercício filosófico afroperspectivista da
sambafilia e do sambasofia. Termos aos quais voltaremos mais adiante.
Nós vamos mencionar ligeiramente apenas o jornalista e crítico musical
Tinhorão (1997; 1998), polemista de mão cheia que, pelo seu tom iconoclasta, parece
atrair admiração e objeção com a mesma intensidade. Em linhas gerais, Tinhorão pintou
um cenário em que o samba (um gênero autenticamente popular da música brasileira de
irrefutável protagonismo negro e da classe trabalhadora) foi indevidamente apropriado
pela classe média branca, principalmente nas décadas de 1930, o grupo de Vila Isabel, e
nos anos 1950, pelo movimento bossa novista que o desfigurou ainda mais com a
mistura com o jazz. Ora, Tinhorão passou a atrair desde então muitos adversários no
campo da crítica musical. Não é nosso escopo alongar e desenvolver as suas críticas;
basta registrar aqui a tese da expropriação cultural.
Nós podemos trazer uma comparação muito inusitada para boa parte de quem lê
este capítulo. O discurso de Tinhorão, guardando as devidas proporções, equivaleria, em
termos filosóficos, à tese de James (2005) em seu livro “Stollen Legacy” segundo a qual
os gregos aprenderam filosofia com os egípcios e fizeram algumas adaptações sem citar
devidamente as fontes. No livro publicado pela primeira vez em 1954 James, entre
outras coisas, comenta que Pitágoras estudou no Egito.
Pois bem, a analogia tem um esquema muito simples, o samba está para a
filosofia assim como a população negra brasileira está para os egípcios e o continente
africano. Por outro lado, a classe média branca brasileira “representa” os gregos e o
continente europeu. Ora, esse modelo foi o nosso ponto de partida. Samba e filosofia
como produções afroperspectivistas (adiante adentraremos longamente nesse conceito).1
Nós não vamos entrar diretamente nessa polêmica. Esse ligeiro preâmbulo serve
apenas para trazer um pouco das afrografias2 filosóficas que serão descortinadas pelo
samba que se tornou um marco na carreira de Dona Ivone Lara. Ou ainda, serve para
trazer o tom das provocações e arranjos que esperam o(a) leitor(a). Afinal, podemos até
parafrasear Nietzsche (2001) que fez uma declaração de guerra, levantando o martelo
como instrumento de escrita. Se Nietzsche, filósofo que está no elenco principal de
nossos interlocutores, foi enfático ao dizer que o martelo falava na sua destruição
criativa dizendo: “Todos os criadores são duros” (idem, p. 102). Nós aqui dizemos,
todos os criadores têm ritmo. Porque aqui não é o caso de declarações de guerra,
1 Para os que alimentam curiosidade sobre esse ponto, confessamente polêmico, sugerimos conferir nosso
artigo a esse respeito (Noguera, 2013). 2 O termo afrografia foi tomado emprestado de Leda Martins (1997).
tampouco de tratados de paz; antes, a assunção das multiparcialidades3 próprias do
exercício do convívio. Neste sentido, nossa declaração é propor uma filosofia que toque
tamborim, repique, cuíca e pandeiro. Neste sentido, aventar essas ideias controversas,
inusitadas e, porque não dizer, polêmicas ajuda a esquentar os tamborins.
2 – O samba e a filosofia
“O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem
deslizar um no outro, a tal ponto que as certas extensões de um sejam ocupadas por
entidades do outro” (DELEUZE ; GUATTARI, 1992, p. 89). Esses autores dizem que a
filosofia pensa por conceitos trazidos por personagens conceituais dentro de um plano
de imanência; enquanto a arte faz a mesma coisa através de afetos e perceptos que as
figuras estéticas fazem bailar dentro de um plano de composição. A relação entre a arte
e a filosofia aqui deve ser entendida dentro de uma perspectiva bem específica. Em “O
que é a filosofia?” (DELEUZE; GUATTARI, 1992), encontramos a definição de
filosofia como criação de conceitos. O que se dá por meio da instalação de um plano de
imanência
Nós vamos tratar de samba e de filosofia afroperspectivista, vamos nos deter nas
maneiras como os planos passam um pelo outro. O trabalho que temos feito se
denomina afroperspectividade ou ainda filosofia afroperspectivista. Esse
encaminhamento filosófico dialoga com o samba, a capoeira, o Ifá, o jongo, entre outros
elementos culturais africanos reterritorializados no Brasil.
A definição mais sucinta da afroperspectividade é que se trata de uma atividade
filosófica que se ocupa das coreografias do pensamento africano e seus diálogos,
desdobramentos, bifurcações e encruzilhadas (NOGUERA, 2011). Um exercício que
tem como inicio o reconhecimento da filosofia como atividade pluriversal. Ou seja, não
se trata de entender as produções em termo de universal e local ou regional (RAMOSE,
2011). Mas compreender que todo universal é um regional tomado como cânone. Em
outros termos, reivindicar a pluriversalidade da filosofia significa dizer que nenhuma
perspectiva particular tem “direito de se impor como a primeira e única experiência,
conhecimento e verdade se encaixam e se tornam válidos para todos os outros seres
3 Esse termo foi objeto de uma entrevista dada pelo grupo Mídia Ninja ao programa Roda Viva em
05/08/2013.
humanos” (RAMOSE, 2011, p. 11), rechaçando outras perspectivas particulares. A
pluriversalidade traz um raciocínio simples para o debate, o “reconhecimento da
particularidade como um critério válido para toda ou para nenhuma filosofia” (Idem).
Neste sentido, significa dizer que toda filosofia é particular e que nenhuma tem “direito”
a ser eleita como universal diante de outras que sejam locais. Visto isso, vale dizer que a
afroperspectividade além de primar pela pluriversalidade também se entende como
polirracional. Este conceito na acepção usada pelo filósofo ugandense Masolo (2010)
diz respeito às múltiplas plataformas de racionalidade que os seres humanos são capazes
de construir, aprender e utilizar.
3. Dona Ivone Lara como figura estética, seus perceptos e seus afectos
O disco lançado em 1981 chamado “Dona Ivone Lara, sorriso negro” é a fonte
para os conceitos que pretendemos de modo afroperspectivista fazer circular entre
nossos(as) ouvintes. Ou melhor, entre nossas(os) leitoras(es). Neste trecho do capítulo
aproveitamos para fazer um pedido, leiam ouvindo a música.
Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio é luto
Negro é a solidão
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade
Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade (SANTOS, 2010, p.135-136).
A escritora Katia Santos (2010) é autora de uma biografia muito singela e
penetrante sobre Dona Ivone Lara. Num dado momento ela se refere à repercussão de
“Sorriso Negro” na interpretação de nossa figura estética/personagem conceitual.
Esta é uma música tão emblemática para os negros brasileiros que é,
inclusive, usada na Igreja do Rosário dos Pretos, de Salvador, Bahia,
nas missas das terças-feiras. Tive a oportunidade de presenciar um
desses serviços e posso garantir que é muito tocante ver, na igreja, as
pessoas se abraçando enquanto cantam o refrão que diz que um abraço
negro traz felicidade. Nesse momento, todos recebem o abraço negro
de felicidade que as pessoas têm para ofertar, independentemente da
cor da pele de quem dá e recebe o abraço. É um momento realmente
muito bonito. E a gravação que ouvimos ecoar na igreja é a voz de
Dona Ivone Lara, acompanhada pela percussão do bloco afro Ilê Ayê
e pelo Coral do Rosário (SANTOS, 2010, p. 136).
Para Deleuze e Guattari (1992), as figuras estéticas são potências, forças
criadoras que fazem emergir os perceptos e afetos, os quais, por sua vez, podem ser
muitas vezes coextensivos aos conceitos filosóficos. Pois bem, o nosso entendimento
aqui é que o samba “Sorriso Negro” – trilha sonora deste capítulo – traz perceptos, isto
é, situações vividas e/ou imaginadas pelo artista que tratam de um tipo de devir negro
como sinônimo de resistência e luta por liberdade. Os afetos dizem algo semelhante, são
os modos de sentir e existir dos que são atravessados pela música. Nesse caso, o
atravessamento e a vivência da arte trazem em si a reconciliação, o abraço como
ocorrência que dá o sentido da liberdade. O sorriso negro é um conjunto de perceptos e
afetos que descortina uma história que não é o registro de uma biografia. Se, em termos
afroperspectivistas, podemos dizer que Dona Ivone Lara é mais do que a mulher negra,
criada no Morro da Serrinha, localizado no majestoso bairro de Madureira, no Rio de
Janeiro. Dona Ivone Lara enquanto figura estética/personagem conceitual difere de
Yvonne da Silva Lara - cuja certidão de nascimento consta: 13 de abril de 1921, filha de
João da Silva Lara, músico virtuoso no violão de sete cordas e, da crooner de rancho
carnavalesco Emerentina Bento da Silva (SANTOS, 2010). Dona Ivone Lara é artista,
compositora e intérprete. Importante dizer que mesmo não sendo autora de “Sorriso
Negro” foi a responsável pela sua consagração.
Nos termos de Deleuze e Guattari (1992), a arte é um bloco de sensações. No
campo musical, o samba pode ser tomado como um conjunto de blocos de sensações,
uma reunião de perceptos e afetos. “Sorriso Negro” é um desses blocos. Os perceptos de
desse samba foram arrancados das percepções, isto é, são mais do que o ritmo
sincopado, dançante entremeado por uma letra que trata da liberdade e alegria de
sorrisos e abraços negros. Ou seja, se trata de um acontecimento que nos dá a
possibilidade de enxergar o mundo por outro prisma, uma afroperspectiva que, além da
aparente inflexão e inversão do termo “negro”, faz da negrura uma potência. Em
paralelo, o samba retira os afetos das sensações. Eles ultrapassam a relação entre
espectador/ouvinte/pessoa que dança e samba.
Os afetos afroperspectivistas trazem um modo de existir e viver que faz do
negro, a raiz da liberdade. Sorriso negro é samba, arte e, ao mesmo tempo, filosofia.
Uma filosofia afroperspectiva, ou ainda, a capacidade de filosofar com o tamborim –
que foi mencionada no inicio desse capítulo e será retomada adiante. “Sorriso negro” é
um passaporte para estados de vida inéditos, a vibração do refrão é contagiante. A
saturação, a capacidade de levar uma sensação ao extremo, é explorada através da
presença do “negro” em todas as frases. Negro é um devir que se dá na sua máxima
potência. O enlace, isto é, junção inusitada de “emprego” com “sossego”, “luto”,
“saudade” com “inspiração”, “destino” e “amor”, isto é, sensações aparentemente
opostas e contrastantes como coextensivos, semelhantes e vizinhas. A distensão também
aparece na letra da música e na própria melodia, uma sensação sai do seu lugar comum,
“negro” que em muitos dicionários e usos ordinários aparece associado a coisas ruins,
emerge como raiz da liberdade e razão para uma vida imersa em alegria.
(...) a primeira aparição pública dessa música também causou
comoção geral, pelo contexto em que foi apresentada. Conta Dona
Ivone que estava em São Paulo, num show de celebração de 13 de
maio, e “todo mundo elevando os escravos, essa coisa toda”. Nesse
momento ela cantou “Sorriso negro”, foi o maio sucesso, e desde
então a música se transformou numa espécie de hino (SANTOS, 2010,
p. 137).
O caráter de hino não torna a música ordinária, pelo contrário, se trata de um
hino de desbanalização do real. O que faz seus perceptos e afetos serem coextensivos a
um conceito filosófico. A audição desse samba nos lança num turbilhão de
acontecimentos inusitados, a liberdade que floresce de uma raiz negra só se torna viável
por conta de uma afectoesfera própria da roda de samba. Por afectoesfera, nós
entendemos um espaço criado através do compartilhamento de afetos, isto é, um lugar
que se habita por hábitos que ligam as pessoas às mesmas sensações. A afectoesfera das
rodas de samba, embaladas pelo som de “Sorriso Negro”, são modos de ser, existir e
sentir de samba.
Em eventos como o que foi descrito anteriormente por Katia Santos (2010), ou
ainda, em rodas de samba como a do Buraco do Galo4, percebemos a peculiaridade do
samba, as polifonias heterográficas que atravessam todo o ambiente. Pois bem, são
4 A roda de samba do Buraco do Galo é muito tradicional, iniciada em 2001, fica no bairro de Oswaldo
Cruz – localizado no subúrbio carioca na mesma região que a Escola de Samba Portela.
essas polifonias heterográficas que interessam duplamente, enquanto arte e enquanto
filosofia.
4- Polifonias heterográficas
O que a expressão polifonia heterográfica quer dizer? Sem dúvida, ela não é
óbvia. Ela remete à afectoesfera das rodas de samba, dos encontros de mbambas
(bambas), palavra em quimbundo que significa experts, exímios ou mestres. Ora, nosso
entendimento sugere que afectoesfera, o espaço que compartilhamos na roda de samba,
o lugar de circulação de afetos sambistas, modos de ser em que a tristeza que assola
uma vida se torna razão para celebrarmos o instante, é palco para polifonias
heterográficas! Primeiro, polifonia porque são, literalmente, muitas vozes na roda de
samba. Afinal, é menos importante que uma pessoa cante com bela extensão vocal do
que a emergência do coro de vozes coletivamente agrupadas. Neste sentido, é mais
decisivo conhecer a letra do samba para que as vozes se misturem indistintamente. O
canto não é da classe solo, exercício individual de encantamento de uma plateia. Mas, a
plateia canta, porque o mais importante é que todos vivam a afectoesfera. Não se tratam
mais de espectadores que margeiam um ou mais artistas. Todas as pessoas se tornam
coristas, a polifonia está instalada. Com essa polifonia temos a “escrita”, uma
heterografia, uma escrita de diferentes texturas, pessoas e perceptos. É sabido que um
samba enredo tem muitos(as) autores(as), justamente porque a melodia, cada frase
musical, os arranjos e a letra são costurados por diferentes mãos. José Barbosa da Silva
que ficou conhecido como Sinhô deixou frase célebre, “samba é como passarinho: é de
quem pegar”. Sinhô queria dizer que a produção de um samba era feita de diversas
percepções. Um tipo de perceptoesfera – zona em que os perceptos se descolam da
percepção – com imaginações e vivências de várias pessoas que se cruzam e tocam sem
pertencer a esta ou aquela.
Dona Ivone Lara fez com “Sorriso Negro” um mergulho na perceptoesfera que
colidiu (com)/atravessou Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portela. Dona Ivone
Lara foi capaz de fazer uma ressonante afectoesfera com sua voz de mãos dadas às
vozes que se lançam imediatamente no seu encalço quando sentem sua presença.
Portanto, esse samba cantado por Dona Ivone é uma resistente polifonia heterográfica.
Uma bela e penetrante obra de arte que desliza pela filosofia que faz conceitos ao toque
do repique, do tamborim, do pandeiro e do cavaquinho.
5. “Sorriso Negro” como conceito filosófico afroperspectivista
A voz de Dona Ivone Lara é polifônica e heterográfica porque ela traz à cena
vozes de corpos que historicamente foram situados às margens. É importante salientar
que Dona Ivone Lara não é a voz da “representação”. Ela não fala exatamente por um
grupo, não se trata de uma eleição dentro de jogos democráticos que possibilitam a
participação igualitária num fórum de debates filosóficos. Ela é a expressão de um
modo de vida que não se encerra nela; mas, existe, atravessa e insiste em outros corpos.
Ora, sem adentrar longamente na história do samba, concordamos que o seu
protagonismo foi e continua sendo da população negra. Nesse sentido, o samba é uma
expressão que dá relevo e destaque às vozes que ficavam silenciadas. Nós estamos
falando de restrições sociais, étnico-raciais que impediam principalmente a população
negra de ser identificada como parte integrante da sociedade brasileira. Pois bem, o
samba se tornou um dos maiores signos brasileiros. Aqui não cabe tratar detidamente
desse tema, mas é oportuno dizer que diante desse cenário, o samba subverteu uma
(certa) ordem e passou de marginal a símbolo da identidade nacional. O samba pode ser
entendido como um gênero de expressão da vida, um modo de resistir e insistir que se
constitui por meio de afetos e perceptos negros. Dona Ivone Lara é uma maneira de ser
desses afetos e perceptos negros, uma figura estética, uma personagem conceitual que
traz um conceito composto: sorriso negro.
Ora, Dona Ivone Lara é “retrato” de um projeto filosófico (afroperspectivista).
Caso leitoras(es) se questionem sobre o caráter filosófico de Dona Ivone Lara, aqui
entendida como personagem conceitual, é preciso dizer que “classificamos” a filosofia
para além da certidão de nascimento grega, dos certificados europeus e do portfólio
ocidental. Filosofia é percebida como atividade pluriversal, policêntrica, gestada e
parida em diferentes escolas de diversos lugares do mundo.
A filosofia que aqui se apresenta propõe um pensamento que se movimenta
baseado em coreografias, um pensamento que expõe conceitos feitos de percussão, em
rodas de samba [rodas de filosofia5]. Ora, se foi dito, por meio de batuques deleuzeanos,
que ela desliza através da arte. É preciso especificar seus contornos. O sorriso negro é
um conceito composto. O termo negro, como foi aventado antes, não passa por uma
mera inversão. Não se trata somente de positivar negro na contramão dos clichês que
associam a cor negra ao caos, desastre e tristeza. Ora, o lugar-comum estagnado e
monográfico das vozes sem “boca” diz coisas como: “fome negra”, “lista negra”,
“passado negro” e similares, sempre colocando “negro” como adjetivo ruim, nefasto.
Pois bem, o movimento coreográfico do pensamento afroperspectivista faz novas
composições com “sorriso” e “negro”. Para isso, precisamos explicitar um pouco
melhor o que entendemos por filosofia afroperspectivista.
A filosofia afroperspectivista está assentada sobre uma imagem do
pensamento que pode ser apresentada em três teses básicas: 1ª) Pensar é
movimentação, todo pensamento é um movimento que ao invés de buscar a
Verdade e se opor ao falso, busca a manutenção do movimento; 2ª) O
pensamento é sempre uma incorporação, só é possível pensar através do
corpo; 3ª) A coreografia e o drible são os ingredientes que tornam possível
alcançar o alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento.
Paralelamente, em linhas simultâneas, os postulados da imagem
afroperspectivista do pensamento tem seus próprios postulados: 1º) corpo
singular, vontade de diferença e a natureza de fluxo do pensamento; 2º) Ideal
da imanência, dissenso como efeito da imanência; 3º) Simulacro da
experimentação, a dissolução interessante e o desinteressante como casos da
designação; 7º) A modalidade dos arranjos, os desafios são definidos a partir
das possibilidades de coreografias, dribles e cadências das movimentações
resolução; 8º) O resultado do saber, o aprendizado como resultado da
insubordinação diante da imobilidade, o ensaio como modo de produzir o
pensamento como um conjunto de coreografias e dribles sempre inéditos para
cada desafio (NOGUERA, 2011, p. 6-7).
Em resumo, a filosofia afroperspectivista nos propõe um pensamento capaz de
gestar e parir movimentos festivos. A celebração é um tipo de exercício contínuo que se
confronta com o próprio desespero, antagonismos e multiparcialidades que integram a
vida. Ora, nesse bojo: sorriso negro é uma expressão conceitual que faz de “negro(a)”
adjetivo de amor, sucesso, liberdade, união, felicidade; mas, não se atém à inversão,
tampouco propõe uma reflexão que se reduza à inflexão, mudança de lugar dos termos
de um movimento que busque o seu oposto. Não é apenas dizer: “‘Negro(a)’ era coisa
ruim; agora, dizemos: é uma coisa boa”. Sem dúvida, esse é um dos movimentos. Mas,
está para além da inversão simples.
5 A expressão conceitual roda de filosofia é bem específica da afroperspectividade. Ela remete à ideia de
que fazer filosofia é uma atividade heterográfica, polifônica e multifacetada que se faz na companhia de
vários intercessores. A roda de filosofia funciona nos moldes do partido alto.
Na letra cantada emblematicamente por Dona Ivone Lara, a frase “negro é a raiz
da liberdade” deve ser ouvida (lida) em seus interesses filosóficos afroperspectivistas.
Nesta jornada, o africano-americano Clyde Ford (1999) nos dá um belo tom para uma
entrada bem afinada. Ele traz um campo semântico mais vasto para compreendermos os
sentidos de “negro”, inclusive num estudo filológico. Em diversos mitos africanos, Ford
enegrece – intensifica a compreensão por meio de uma justificativa bem formulada – o
campo semântico do termo “negro” trazendo uma ideia que pode parecer inédita para
uma parcela significativa de ouvintes, ou melhor, de leitoras(es). Conforme Ford, o
termo niger que é de origem latina deriva de uma raiz semítica ngr – uma palavra
semita – com
o significado poético de ‘água que corre areia adentro’. Ela se refere
especificamente ao rio Níger, cujo estranho curso, em forma de U, deve ter
convencido os antigos viajantes de que o rio terminava nas areias do deserto.
Então, acrescentamos agora esse significado à lista de acepções de negro e
preto: povo da água que corre areia adentro – uma imagem maravilhosa do
poder transformador da água em trazer vida à terra árida (FORD, 1999, p.37-
38)
O significado de “negro(a)” também pode ser encontrado nos termos kmt e
melan, o primeiro é egípcio; o segundo, grego. Ambos remetem à terra fértil e
responsável pela fertilidade e florescimento que estão simbolizados pela cor escura da
terra. Em grego a palavra melan está ligado à deusa Melanto, dona da terra fértil, a
negrura responsável pelo poder de fazer germinar frutos da terra.
Outro sentido viável está na ideia de submergir para alimentar a existência de
sonho. Este sentido está presente na noção de “sol poente, simbolizando a imersão da
consciência humana no sonho e na esfera do inconsciente, ou como as águas trazem
vida a áreas estéreis” (Idem, p. 38). Em vocábulos africanos do tronco linguístico banto,
encontramos uma raiz comum para negro(a) nas línguas kimbundu (quimbundo),
kikongo (quicongo), nbundu (umbundu) e chowke (tchwoke), a saber: domb. Por
exemplo, em kimbundu a palavra é kiamdomb; na língua kikongo, o termo é ndombe.
As três palavras – domb, kiamdomb e ndombe – significam negro. Ao mesmo tempo, o
radical “domb” está associado à ideia de louvor. A linguista Yeda Pessoa de Castro
explicita isso ao analisar a palavra candomblé.
O termo candomblé, averbado em todos os dicionários portugueses para
designar os chamados cultos afro-brasileiros na Bahia (como macumba no
Rio de Janeiro, e xangô em Recife), vem do étimo banto "ka-n- dómb-íd-é >
kà-n-dómb-éd-é > ka-n-dómb-él-é", derivado nominal dever- bal de "kù-
lómb-à > kù-dómb-á, louvar, rezar, invocar, analisável a partir do protobanto
"kòdómb-éd-á", pedir pela intercessão de. Logo, candomblé é igual a culto,
louvor, reza, invocação, sendo o grupo consonantal -bl- uma forma brasileira,
de vez que não existe nenhum grupo consonantal em banto (PESSOA DE
CASTRO, 1983, p. 83-84)
Com efeito, negro(a) circunscreve vários sentidos; mas, pelo que foi exposto
converge para as ideias de fértil, de invocação do sagrado, de nutrição e aumento das
forças. Neste sentido, sorriso negro é uma invocação astuta, um mergulho no poente que
figura como condição de possibilidade do sonho, isto é, restauração. Esse movimento de
restauração da existência se dá pelo canto. Pelo ritmo da intercessão buscado numa vida
de re-existência, isto é, resistir como reinvenção cotidiana. Uma reinvenção que passa
pela consagração cotidiana da vida como festa.
6. Sambasofia/sambafilia e a ética do tamborim
Pois bem, depois do que foi dito. Como estabelecer uma “ética de filosofar com
o tamborim” (parte do subtítulo deste capítulo)? Ora, foi dito que o tamborim figura
aqui como o martelo de Nietzsche, instrumento de nossa escrita. Antes de tratarmos da
ética do tamborim que nos foi suscitada pela escuta de “Sorriso Negro”, vamos retomar
a afroperspectividade.
Nós explicamos a filosofia afroperspectivista em sua inspiração deleuzeana, isto
é, para a pergunta: “qual a melhor maneira de seguir grandes filósofos, repetir o que eles
disseram, ou então fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que
mudam necessariamente?” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 41). A resposta foi um
sonoro, criar conceitos ouvindo o samba “Sorriso Negro”! Neste momento, próximo das
conclusões parciais, vale a pena enegrecer que a afroperspectividade, assim como o
samba, é uma cruz, isto é, ao mesmo tempo, os sinais de somar e de multiplicar. O que
isso significa? Muito simples são duas ruas e quatro linhas de fuga: a encruzilhada.
Da esfera do rito e, portanto, da performance, é lugar radial de centramento e
descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e
alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e
convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de
linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz
de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos. (MARTINS, 1997,
p. 28).
Sambasofia e sambafilia são modos de filosofar com (de) samba. Os dois termos
só ganham sentido juntos. Sambasofia é um saber de semba. Em outros termos, saber
separar e saber dançar. O separar é entendido como um movimento, o separar os pés, os
passos e refazer os passos. Sambafilia é se tornar amante dessa dança, do cabriolar.
Importante sublinhar que se trata de uma dança do pensamento em que o corpo é a
faculdade de pensar que raciocina pelos passos, por meio de coreografias. Dito em
outras palavras, sambasofia e sambafilia compõe um quadro, são dois conceitos que
funcionam articulados.
Cabe aqui uma digressão, Batman e Robin; São Cosme e São Damião; Faísca e
Fumaça; Milionário e Zé Rico são exemplos de duplas. Elas funcionam juntas e seus
nomes são ditos atrelados. Com sambasofia e sambafilia se dá o mesmo. De um lado, a
sabedoria do samba. Do outro, a amizade do samba. Os dois conceitos convergem para
uma estética, uma política, uma ética, uma metafísica, uma lógica, uma história da
filosofia. Neste escrito vamos nos ater à ética. A sua composição se dá por meio de
aforismos. A ética de tamborins por meio do sorriso negro em versos abaixo:
Sambasofia e sambafilia
O samba como matéria prima da filosofia, se transforma em sabedoria e amizade. O
saber é o gosto pelo canto e pela dança do(no) pensamento. A amizade é multiplicação e
soma de encruzilhadas, linhas em que a coreografia se agita e faz presente. Em poucas
palavras, sambasofia e sambafilia são uma maneira de fazer/escrever a filosofia
afroperspectivista, primando pelo ritmo e pelo formato de aforismo/letra de música. Ou
ainda, letras filosóficas musicadas para rodas de filosofia. Um tipo de encontro que
pretende promover o pensamento filosófico na atmosfera tradicional da roda de samba.
Ética
A definição advinda das rodas de filosofia realizadas pelo projeto afroperspectivista não
são inéditas. Tratar de ética é passar a limpo o rascunho das multiparcialidades de cada
dia, assumindo os riscos do poliamor próprio aos dilemas de re-existir. Em poucas
palavras, a ética é um aspecto da filosofia afroperspectivista que se ocupa das
composições referentes às atuações nas rodas da vida, suas cobranças e suas delícias.
Portanto, ética aqui é o exercício de produzir afrocartografias – mapas
afroperspectivistas – para facilitar a circulação de corpos, ideias, perspectivas e valores
dentro dos mais variados circuitos.
Tamborim
O tamborim é peculiar, típico instrumento de percussão das escolas de samba. Uma mão
segura com a pegada hangloose (sinal típico de surfistas que ficou popularizado nos
anos de 1980 e 1990), a outra mão, de posse da baqueta, faz o “desenho” do samba: os
traços que serão pintados com outras texturas sonoras. Tamborim é mais do que uma
metáfora, é tido como instrumento de escrita filosófica. Ora, a escrita que precisa de
ritmo e concentração, que desenha as marcas por onde outras sonoridades serão
assentadas. Uma escrita filosófica de tamborim é a base para o samba que virá.
Ética de tamborins e “Sorriso Negro”
Falar de uma ética de tamborins a partir de “Sorriso Negro” é um desafio. O mesmo tipo
de enfrentamento que ocorre quando partideiros versam em rodas de partido alto. É um
exercício de encantamento. Não se trata de comunicar e informar, ainda mais numa
sociedade excessivamente informada. O que a ética pretende é encantar. O argumento
está no registro do encantamento, não se pretende convencer ou converter outras
pessoas à nossa parcialidade. Mas deixá-la encantada com o modo de ser que o “sorriso
negro” provoca com seu enegrecimento, seu fazer sonhar acordado numa louvação
laica. Com isso, a ética quer fazer que outras pessoas frequentem esse “Sorriso Negro”
ainda que as multiparcialidades estejam em guerra declarada. Não se trata de bandeira
branca ou de firmar ataques, mas de compartilhar o festejo que nossa parcialidade
afroperspectivista faz do samba da vida.
7- Conclusões parciais
Primeira conclusão parcial: uma ressalva. Depois de ter tocado tamborim ao som
de “Sorriso Negro” sob o timão de Dona Ivone Lara, nossa caminhada nos deixou
exaustos. Mas ainda com fôlego para a explicação primeira, o uso da primeira pessoa do
plural. O vocábulo “nós” aqui é resultado dos nós atados e desatados que fazem de
quem escreve um devedor dos ancestrais africanos que fizeram samba e filosofia. A
escrita deste capítulo é herdeira de aulas de percussão e de possibilidades que se
inscrevem numa formação que reuniu a academia e as rodas e escolas de samba. Eu
tenho formação em filosofia, graduação, mestrado e doutorado. Mas, fui formado nas
rodas de samba dos tradicionais bairros de Oswaldo Cruz e Madureira e nos ensaios das
escolas de samba Portela (escola do coração) e Império Serrano (sem contar a filiação
familiar: sou sobrinho neto de Mestre Fuleiro, um dos fundadores da tradicional escola
de samba de Madureira). Se eu fosse apenas doutor em filosofia pela UFRJ nunca seria
capaz de redigir esse texto. Por isso, fiz questão de escrever ouvindo “Sorriso Negro”
todo o tempo, além de ensaiar o toque do carreteiro no meu tamborim sempre que as
ideias me faltavam.
Por fim, uma recomendação: ouvir a música “Sorriso Negro” e tocar tamborim
na busca da afectoesfera suscitada de modo imperativo por Dona Ivone Lara –
entendida como figura estética/personagem conceitual – que nos dá como presente e
dádiva um conceito de negro(a) como um mergulho no infinito da noite, território
privilegiado para nutrição do pensamento. Um conceito que descortina a construção da
ética do tamborim, a emergência do encantamento da multiparcialidade dentro do
modelo de roda de filosofia. Com efeito, a conclusão mais unânime, escutar o samba
“Sorriso Negro” e se deixar encantar pelos tamborins na busca de uma ética que
reconheça que as divergências entre valores e perspectivas, pode não ser razão para a
paz. Mas talvez no lugar da guerra: o encantamento de festejar no quintal dos outros,
uma possível trégua.
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