Um Tratado Sobre o Amor de Deus, por Bernardo de Claraval

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UM TRATADO SOBRE O AMOR DE DEUS

BERNARDO DE CLARAVAL

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Traduzido do original em Francês

Livre Ou Traité de Saint Bernard Sur L’amour De Dieu.

Bernard de Clairvaux

Via: Abbaye-Saint-Benoit.ch

Tradução e revisão do original em Francês por Jocelyne Forrat

Revisão ortográfica por Camila Almeida

Capa por William Teixeira

1ª Edição: Julho de 2015

Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas usadas nesta tradução são da versão Almeida

Corrigida Fiel | ACF • Copyright © 1994, 1995, 2007, 2011 Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

Traduzido e publicado em Português pelo website oEstandarteDeCristo.com, sob a licença Creative

Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International Public License.

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Breve Apresentação

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus que é

Amor, o Todo-Amorável! (2 Coríntios 1:3; 1 João 4:8, 16). Mui gratos a Deus, apresentamos mais

esta tradução que Ele mesmo em graça, misericórdia e amor nos tem concedido. Trata-se do

Clássico Tratado Sobre o Amor de Deus, pelo piedoso Bernardo, Abade de Claraval, o “doutor

língua de mel”.

A obra em si constitui um dos maiores escritos Cristãos sobre o tema, assim como a túnica de Jesus

era tecida toda de alto a baixo e não tinha costura (João 19:23), assim podemos dizer que este

tratado é todo tecido de alto a baixo por uma pena mui piedosa e sábia, e por um coração em

ardente amor a Deus, sem costura ou remendo da tão abominável corrução moral e desejo de

poder, avareza e hipocrisia, tão comum nos seus dias.

Quanto ao autor, Bernardo viveu na Idade das Trevas, mas podemos definir sua vida com o nome

do monastério por ele fundado: Clairvaux (Claraval), que significa “Vale Límpido” ou “Vale da Luz”.

Apesar de ser um Abade da Igreja do anticristo, o Papa, e de lhe serem atribuídas muitas histórias

mirabolantes pela tradição papista, além de muita veneração e apreço, Bernardo é tido em alta

estima e consideração pelos protestantes, sobre isto Steven Lawson escreve:

O ensino de Bernardo foi profundamente apreciado por Lutero e Calvino. Este último via Bernardo como

o maior testemunho em prol da verdade entre o sexto e décimo sexto século. Já Lutero saudava

Bernardo como um homem de admirável santidade e o considerava como um dos melhores santos

medievais. Charles Spurgeon concordou com Lutero, dizendo: “São Bernardo foi um homem que

admiro em grau máximo, e o tenho como um dos escolhidos do Senhor”. Ele continuou dizendo que

Bernardo era “um dos homens mais santos e humildes”, o qual, “parece cair em delírio de amor quando

fala de seu divino Mestre”.1

O nosso maior desejo com esta publicação, para nós mesmos e para vocês que pousarem os olhos

nestas linhas, é que esta obra contribua para que possamos conhecer e amar ao Deus que nos

amou primeiro, pois sem dúvida o maior pecado é a quebra do maior mandamento e a causa do

pouco amor é falta do vero conhecimento de Deus, pois aquele que mais conhece a Deus, mais

ama (1 João 4:8). Oh! que possamos conhecer e amar “Àquele que nos amou, e em seu sangue

nos lavou dos nossos pecados” (Apocalipse 1:5). Faz assim Senhor, por Cristo. Amém!

Editores EC,

16 de junho de 2014

______________

[1] LAWSON, Steven J. Reformador Monástico. Último Monástico: Bernardo de Clairvaux. Cap. 16. Pág. 399-423. In: LAWSON,

Steven J. Pilares da graça. Longa linha de Vultos Piedosos. Vol. II. Tradução: Valter Graciano Martins. São José dos Campos, São Paulo:

Editora Fiel, 2013.

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Um Tratado Sobre O Amor De Deus Por Bernardo de Claraval

Prefácio

Ao mui ilustre senhor, Haimeric, cardeal-diácono e chanceler da Igreja Romana, Bernardo,

abade de Claraval; vivo para o Senhor e morto em Cristo.

Até agora vocês estavam acostumados a me pedir orações, e não me propunham assuntos

a tratar. Não que eu me sinta mais habilidoso para um do que para o outro; mas ao menos

as orações convêm melhor à minha profissão, senão da forma como cumpro os deveres;

mas quanto às questões a serem resolvidas, me parece que, para tratá-las, são necessárias

duas coisas que, na verdade, me fogem completamente, isto é, quero falar em espírito e

precisão. No entanto eu percebo — com prazer, eu confesso — que vocês deixaram de

lado as coisas da carne pelas do espírito, mas vocês deveriam ter se dirigido a alguém que

oferecesse mais recursos do que eu. Esta desculpa, é verdade, é comum às pessoas

capazes e igualmente às que não o são, e não é nada fácil saber se provém da modéstia

ou da incapacidade, enquanto não tenha sido tentado em esforços no sentido solicitado.

Portanto, vos peço receber o que me permite a minha mediocridade, pois não quero,

permanecendo em silêncio, me fazer passar por um sábio. Todavia não tenho a intenção

de satisfazer todas as vossas perguntas, eu responderei apenas, conforme a inspiração

dada por Deus, àquela que vocês me fizeram sobre o amor de Deus; é a mais doce a ser

estudada, a menos perigosa a ser tratada e a mais útil a ser ouvida; guardem as outras

para os mais habilidosos do que eu.

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CAPÍTULO I

Porque e como amar a Deus?

1. Vocês querem então saber de mim por qual motivo e em que medida nós devemos amar

a Deus? Pois bem, eu vos direi que o motivo do nosso amor por Deus, é Ele mesmo, e que

a medida deste amor é amar sem medida¹. É explícito o bastante? Sim, talvez, para um

homem inteligente; mas eu tenho que falar aos sábios e aos ignorantes, e se eu falei o

suficiente para os primeiros, preciso levar em conta os segundos; é, portanto, para estes

que desenvolvo meu pensamento, mergulhando mais fundo. Ora eu digo que temos dois

motivos de amar a Deus pelo que Ele é; não há nada mais justo, nada mais vantajoso. De

fato, esta pergunta: Porque devemos amar a Deus, se apresenta sob dois aspectos: Ou

nos perguntamos a que ponto Deus merece o nosso amor, ou então qual é a vantagem que

vemos em amá-lO; para esta questão dupla, há apenas uma resposta: O motivo pelo qual

devemos amar a Deus é o próprio Deus. E, aliás, se nós colocamos um ponto de vista de

mérito, não há maior do que Deus de ter Se entregado a nós, mesmo sendo indignos; de

fato, o que poderia Ele, tão Deus quanto é nos dar algo que valesse mais do que Ele? Se,

portanto nos perguntamos qual o motivo que temos de amar a Deus, nós buscamos qual o

direito que Ele se deu ao nosso amor, encontramos antes de qualquer coisa que Ele nos

amou primeiro. Ele merece, portanto, que paguemos de volta, principalmente se considera-

rmos Quem é o que ama, quais são os que Ele ama e como Ele os ama. Quem é de fato

Aquele que nos ama? Não seria Aquele a quem todo espírito dá este testemunho: “Tu és o

meu Senhor, a minha bondade não chega à tua presença” [Salmos 16:2]? E este amor em

Deus não seria a verdadeira caridade que não busca seus próprios interesses? Mas a quem

se refere este amor gratuito²? O apóstolo responde: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos

reconciliados com Deus” (Romanos 5:10). Deus nos amou com um amor sem interesses e

Ele nos amou quando ainda éramos Seus inimigos. Mas com qual amor Ele nos amou?

São João responde: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito”

(João 3:16). São Paulo continua: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou,

antes o entregou por todos nós” (Romanos 8: 32); e este Filho diz Ele mesmo, falando dEle:

“Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (João

15:13).

__________

[1] Vemos a mesma coisa em uma carta de Sévère, Bispo de Milève, a santo Agostinho, das quais deste último podemos

ler: “Não há medida intimada ao nosso amor por Deus, visto que a medida com a qual devemos amá-lO é a de amá-lO

sem medida”. Jean de Salisbury imita este trecho escrito por são Bernardo, em seu livro “Polycratique”, liv. VII; capítulo

XI. (Polycrate foi um tirano de Samos de 533 ou 532 a 522 a.C) Anátema, portanto, a Bérenger, o impudente apologista

de Abélard [Abelardo], que ousa permitir-se censurar esta bela expressão do nosso santo Doutor.

[2] Amor gratuito, isto é que não busca seus próprios interesses como citado acima: Algumas edições diferem um pouco

nesta parte em certos manuscritos.

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Eis os direitos do santo Deus soberano, grande e poderoso que Se deu por amor aos

homens pecadores, infinitamente pequenos e fracos. Mas, diremos, se

— É assim para o homem, não é a mesma coisa para os anjos: eu concordo; mas é porque

isto não foi necessário: aliás, Aquele que socorreu os homens na miséria, protegeu os anjos

de uma miséria parecida e se o Seu amor pelos homens lhes permitiu que não permane-

cessem como estavam, Ele, por este mesmo amor impediu os anjos de se tornarem tal qual

nós fomos.

CAPÍTULO II

O quanto Deus merece o amor do homem por causa dos bens do corpo e da alma:

como devemos reconhecê-los; não devemos usá-los contra Aquele que no-los deu.

2. Qualquer um que entendeu o que está escrito acima também vê, eu acho, porque isto é,

por qual motivo devemos amar a Deus. Se isto não é visto pelos infiéis, Deus tem como

confundir a ingratidão deles nos bens, sem contar o quanto preenche o corpo e a alma. Não

é dEle, de fato, que o homem tem recebido o pão que o alimenta, a luz que o ilumina, e o

ar que ele respira? Mas seria loucura contar os bens que eu acabo de declarar inumeráveis

e que me basta citar os mais importantes como o pão, o ar e a luz; se os coloco em primeiro

lugar, não é porque os acho os mais excelentes, pois interessam somente ao corpo, mas

são os mais necessários. Sobre os bens de primeira ordem, é na alma, nesta parte do

nosso ser que vence sobre a outra, que nós devemos procurá-los; são a excelência, a

inteligência e a virtude [...].

3. Estes três bens aparecem cada um sob dois aspectos ao mesmo tempo: a excelência

aparece na prerrogativa própria à natureza humana e no temor que o homem inspirou sem

cessar a todos os seres que vivem na terra; a inteligência, não só percebe a dignidade do

homem, mas entende também que para estar em nós, todavia ela não vem de nós; enfim

a virtude, em sua dupla tendência, nos faz por um lado buscar com fervor e de outro abraçar

com força, uma vez encontrado, Aquele a Quem queremos pertencer. Também de nada

vale a inteligência sem a excelência que pode até prejudicar sem a virtude, como podemos

provar com o seguinte raciocínio: Ninguém pode se gloriar do que tem, se ele não sabe que

o tem; mas se, sabendo, ele ignora que o que ele tem não vem dele, ele se gloria, mas não

o faz em Cristo, e é a ele que o apóstolo diz: “E que tens tu que não tenhas recebido? E,

se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?” (1 Coríntios 4:7) Ele

não diz simplesmente: “Por que te glorias?”, mas ele acrescenta: “Como se não o houveras

recebido” para mostrar que ele é repreensível, não por se gloriar do que tem, mas por se

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gloriar como se não o tivesse recebido. Assim com razão esta glorificação é considerada

vaidade, já que não se apoia no fundamento sólido da verdade. O apóstolo a distingue da

verdadeira glória, dizendo: “Aquele que se gloria glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1:31),

isso é, na verdade: porque Deus é a verdade.

4. Portanto há duas coisas que precisamos saber; primeiro o que nós somos, e depois que

não o somos por nós mesmos; então nós não nos gloriamos de coisa nenhuma, ou a glória

que estaremos nos atribuindo será vaidade; enfim, se nós mesmos não nos conhecemos,

está escrito, nós seremos confundidos com o grupo de nossos semelhantes (Cânticos 1:6-

7). É de fato o que acontece, porque quando um homem digno não conhece nem mesmo

a sua posição, o comparamos com razão, por tal ignorância, aos animais que são como os

companheiros de sua corrupção e de sua vida decadente neste mundo. Portanto, não se

conhecendo a ela mesma, a criatura que a razão distingue dos bichos, começa a se confun-

dir com elas, porque ela ignora sua própria glória que é totalmente interna, cede aos chama-

dos de sua curiosidade e se preocupa somente com sua beleza exterior e sensível; ela se

torna também igual às outras criaturas, porque não sente que recebeu algo a mais do que

elas. Assim é necessário combater a ignorância que faz com que talvez nos subestimemos

mais do que convém. Mas evitemos com mais cuidado ainda esta outra ignorância que leva

a nos atribuir além do que nós temos, como acontece quando nos enganamos em nos

imputar o bem, qualquer que seja ele, que vemos em nós mesmos. Mas o que precisamos

odiar e fugir mais do que estes dois tipos de ignorância, é a presunção pela qual em conhe-

cimento de causa e propósito deliberado nós nos gloriamos do bem que está em nós, como

se viesse de nós, não temendo arrancar de outrem a glória que nós bem sabemos que não

nos é devida pelas coisas que estão em nós, mas que não vêm de nós. No primeiro caso,

nós não nos gloriamos de nada, no segundo nos gloriamos, mas não em Cristo, e no tercei-

ro nós não pecamos mais por ignorância, mas nós usurpamos conscientemente, reivindi-

cando para nós mesmos, o que pertence a Deus. Ora, esta audácia comparada à segunda

ignorância parece tanto mais grave e mais perigosa; se uma desconhece a Deus, a outra o

menospreza; mas comparada à primeira, parece ainda pior e mais detestável, se esta

ignorância nos assemelha aos brutos, esta audácia nos associa aos demônios. Pois apenas

o orgulho, o maior dos males, pode se servir dos bens que ele recebeu, como se ele não

os tivesse recebido, e desviar em proveito próprio a glória que um benfeitor deve achar em

seus benfeitos.

5. Também à excelência e à inteligência é preciso unir o fruto que é a virtude; é pela virtude

que buscamos e possuímos o Autor liberal de todas as coisas, Aquele a quem devemos,

em tudo, render a glória que Lhe pertence; de outra forma seriamos rudemente punidos por

não ter feito o que sabíamos que deveríamos fazer. Por que isso? Porque aquele que age

desta forma, não quis adquirir a inteligência para fazer o bem, mas ao contrário, meditou

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sobre a sua própria iniquidade (Salmos 36:4-5), e ele tentou, como um servo infiel, desviar

e até trazer a proveito próprio a glória que seu excelente Mestre deveria recolher em bens,

sabendo ele mesmo perfeitamente, pela virtude da inteligência, que ele mesmo não era a

fonte. É, portanto, bastante evidente que a excelência, sem a inteligência, é inútil, e que a

inteligência, sem a virtude, nos leva a perdição. Mas para o homem que possui a virtude,

não seria a inteligência maléfica e nem a excelência inútil, ele clama e louva a Deus

simplesmente nestes termos: “Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória,

por amor da tua benignidade e da tua verdade” (Salmos 115:1). O que significa: Senhor,

nós não Te atribuímos nem a inteligência nem a excelência, nós atribuímos tudo ao Teu

nome, porque é dEle que nós recebemos tudo.

6. Mas nós nos afastamos demais do nosso desígnio, querendo provar que mesmo os que

não conhecem a Cristo, sabem bem pela lei natural, pelos bens do corpo e da alma, que

devem amar, também eles, a Deus, por causa do próprio Deus. De fato, para resumir em

algumas palavras o que dissemos acima, qual é o infiel que não sabe que recebeu somente

dAquele que faz o Seu sol nascer sobre bons e também sobre os maus, e faz cair chuva

sobre os santos e também sobre os ímpios, todos os bens necessários à sua vida, dos

quais já falei, como o alimento, a luz e o ar? Qual o homem, tão ímpio quanto seja, que

atribuirá a excelência particular à espécie humana, que ele vê brilhar em sua alma, a outro

a não ser ao que disse em Gênesis: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança”

(Gênesis 1:26)? Quem verá o autor da inteligência em outro que não nAquele que ensina

tudo aos homens? E de que mão pensaria ele receber ou ter recebido o dom da virtude, se

não do Deus das virtudes? O Senhor merece, portanto, ser amado, pelo o que Ele é, pelo

infiel, ainda que pouco O conheça, assim mesmo que não conheça a Cristo; também aquele

que não ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças,

não tem desculpas [...].

CAPÍTULO III

Motivos que os Cristãos têm a mais que os infiéis para amar a Deus.

7. Os fiéis, ao contrário, sabem o quanto precisam de Jesus crucificado, mas mesmo

admirando e recebendo o amor que Ele tem por nós, que está acima de todo entendimento,

não demonstram nenhuma confusão em dar nada além do que eles mesmos, por menor

que sejam, em retorno a uma caridade e a uma condescendência tão grandes; mas é tão

fácil para eles amar mais do que se sentirem eles mesmos mais amados; porque àquele a

quem se dá menos amor, esse o sentirá também bem menos. Os judeus não mais que os

pagãos, não sentem a excitação pelos mesmos aguilhões do amor que oprimem a Igreja e

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fazem com que ela diga: “Eu fui ferido por amor”; ou ainda: “Sustentai-me com passas,

confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor” (Cânticos 2:5) [...] ela vê o Filho

Unigênito do Pai carregando a sua cruz, o Deus de toda majestade atingido por golpes e

cuspidas, o Autor da vida e da glória pregado, traspassado, cheio de opróbrios, dando por

Seus amigos Sua alma abençoada. Vendo tudo isso, ela sente a espada de dois gumes do

amor penetrar mais fundo em seu coração e ela clama: “Sustentai-me com passas,

confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor”. As maças que a Esposa introduziu

no jardim de Seu amado tem prazer em colher da árvore da vida, têm gosto do maná do

Céu e a cor do sangue do Cristo. E então ela vê a morte golpeada até a morte e aquilo que

a fez magnificar o cortejo de seu Vencedor, ela ainda vê este subir triunfante, de debaixo

da terra para sobre a terra e da terra para os céus, seguido de uma grande multidão de

cativos, de modo que somente ao nome de Jesus, todo joelho se dobra nos céus, na terra

e debaixo da terra (Filipenses 2:10). A terra, debaixo da antiga maldição, produzia somente

espinheiros e abrolhos; revigorada, então, por uma nova benção, é coberta de flores. Então

a esposa lembra-se deste versículo: “O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele

confiou o meu coração, e fui socorrido; assim o meu coração salta de prazer, e com o meu

canto o louvarei” (Salmos 28:7), recobra o ânimo com os frutos da paixão que ela colheu

da árvore da cruz, e com as flores da ressurreição cujo perfume delicioso convida o Amado

a renovar as Suas visitas.

8. Enfim ela exclama. “Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito

é verde” (coberto de flores) (Cânticos 1:16). Falando deste leito, ela deixa claro o que

deseja, e, acrescentando que ele está coberto de flores, ela mostra no que estão baseadas

as suas esperanças; não é sobre as vantagens de sua pessoa, mas sobre a atração que

as flores, colhidas em um campo abençoado por Deus, têm para o seu Amado, porque é o

que sentem por Cristo que quis ser concebido e alimentado em Nazaré. Este Esposo

celeste, atraído pelo perfume que emana delas, tem prazer em entrar no quarto do coração,

quando o encontra cheio de frutas e perfumado pelo aroma das flores. E Ele vem apres-

sadamente e tem prazer em habitar na alma que a Ele contempla em meditação, cuidado-

samente dedicada e colhe os frutos de Sua paixão e cultiva as flores de Sua ressurreição.

Ora estes frutos da última colheita, isto é de todos os séculos que se foram sob o império

da morte e do pecado, que amadureceram na plenitude dos tempos, são as lembranças de

Sua paixão. Mas é no esplendor de Sua ressurreição que devemos ver as novas flores dos

novos tempos que a graça faz reflorescer para um segundo verão; no final dos tempos, na

ressurreição real, elas darão inumeráveis frutos: “Porque eis que passou o inverno; a chuva

cessou, e se foi; aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola

ouve-se em nossa terra” (Cânticos 2:11-12). Ela quer dizer, falando assim, que o verão

apareceu com Aquele que fez derreter o gelo da morte para renascer em temperatura

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primaveril de uma nova vida, dizendo: “Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse

21:5). Seu corpo, semeado na morte, refloresceu na ressurreição, e, ao perfume que dEle

emana, vimos logo nos nossos vales e planícies, o que estava árido, morto ou congelado,

cobrir-se de verde, renasce em vida e volta a obter calor.

9. O frescor destas flores. O renovar destes frutos e a beleza deste campo, de onde exalam

os mais doces perfumes encantam também o Pai cujo Filho fez novas todas as coisas, e

lhe inspiram esta exclamação: “Eis que o cheiro do meu Filho é como o cheiro do campo,

que o Senhor abençoou” (Gênesis 27:27). Sim, um campo cheio de flores, pois é de Sua

plenitude que recebemos tudo o que temos. Mas a Esposa, ao se agradar dEle, vem colher

em sua simplicidade flores e frutos para adornar a morada íntima de sua consciência, para

que ao chegar o seu Amado, seu pequeno leito do coração exale os perfumes mais suaves.

Portanto, se nós queremos que Cristo faça repetidamente em nós Sua morada, é preciso

que nossos corações estejam cheios da fiel lembrança da misericórdia e do poder cujas

provas recebemos em Sua morte e em Sua ressurreição. É o pensamento de Davi, quando

disse: “Deus falou uma vez; duas vezes ouvi isto: que o poder pertence a Deus. A ti também,

Senhor, pertence a misericórdia” (Salmos 62:11-12) Jesus Cristo provou superabun-

dantemente, pois após morrer por nós por nossos pecados, Ele ressuscitou para nos

justificar, subiu aos céus para nos proteger, e nos envia o Espírito Santo para nos consolar;

e, mais tarde Ele voltará para a consumação da salvação. Ora eu vejo em Sua morte a

prova da Sua misericórdia, na ressurreição a prova do Seu poder, e em todo o restante eu

as encontro, as duas, reunidas.

10. Se a Esposa pede que a suportemos com flores aromáticas e que a fortaleçamos com

frutos cheirosos, eu acho que é porque ela sente que o amor pode perder calor e força; mas

ela só terá estímulos até ser introduzida no quarto de Seu amado, sentindo-se coberta de

beijos há muito desejados e possa exclamar: “A sua mão esquerda esteja debaixo da minha

cabeça, e a sua mão direita me abrace” (Cânticos 2:6). Mas então ela sentirá e verá por si

mesma o quanto estas provas de amor que Seu Amado lhe dava da mão esquerda, para

assim dizer, pois Ele as dava sem contar nos dias em que estava entre nós, cedem em

doçura aos abraços da sua mão direita e os são inferiores, e ela entenderá as Suas

palavras. “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita” (João 6:63), e ela pene-

trará no sentido destas palavras: “Meu espírito é mais doce que o mel e minha herança ma-

is agradável que o mel nas prateleiras”. Se em seguida dissermos: “A memória de meu

nome passará de séculos em séculos” é para mostrar que os eleitos que ainda têm sede

da presença do Esposo, têm ao menos a lembrança dEle para se consolarem, enquanto

durar este século, durante o qual as gerações passam e se sucedem. Se está escrito:

“Proferirão abundantemente a memória da tua grande bondade” (Salmos 145:7), certamen-

te ouve-se daqueles cujo o salmista disse anteriormente: “Uma geração louvará as tuas

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obras à outra geração” (Salmos 145:4). Portanto os que vivem na terra possuem para si

somente a lembrança do Esposo, e os que nos céus reinam, se alegram de Sua presença;

esta última é a glória dos eleitos que já chegaram à salvação, a outra é a consolação dos

que ainda estão a caminho.

CAPÍTULO IV

Quem são os que acham consolo ao lembrar de Deus,

e são mais puros em sentir amor por Ele.

11. Mas é interessante ver quais são os que encontram consolo ao lembrar de Deus. Não

são os homens corruptos que irritam Deus sem cessar e a quem Ele diz: “Mas ai de vós,

ricos! porque já tendes a vossa consolação” (Lucas 6: 24), mas os que podem clamar com

verdade: “a minha alma recusava ser consolada” (Salmos 72:2); acreditaremos neles volun-

tariamente, se eles acrescentarem com o Salmista: “Mas eu me lembrei de Deus” e en-

contrei gozo nesta lembrança (Salmos 72:3). E de fato, é verdade que aqueles que ainda

não gozam da presença do Amado, olham para o futuro, e que aqueles que desprezam

cavar algumas consolações na torrente das coisas que passam, experimentam coisas

abundantes na lembrança das que duram eternamente. Assim são aqueles que buscam o

Senhor e a face do Deus de Jacó, ao invés de buscar seus próprios interesses. Para aque-

les que suplicam a Deus e buscam a Sua presença com todo desejo, a lembrança é doce;

mas bem longe de saciar a sua fome, ela a faz crescer pelo alimento que deve saciá-los. É

o que antecipa este alimento que diz, falando dele: “Os que comem ainda terão fome”. É

também isto o que diz aquele que disto se alimenta: “eu me satisfarei da tua semelhança

quando acordar [me terás mostrado a tua glória]” (Salmos 17:15). Bem-aventurados os que

têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos (Mateus 5:6). E maldita serás, raça

malvada e perversa, maldito és, povo tolo e insensato, que não amas a sua lembrança e

teme a sua presença! Tens razão em temer, pois agora não queres escapar dos caçadores,

pois “Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concu-

piscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína” (1 Timóteo

6:9); não poderás jamais fugir a esta palavra dura, sim, muito dura e cruel: “Apartai-vos de

mim, malditos, para o fogo eterno” (Mateus 25:41). Quão mais suave e mais doce é aquela

que ouvimos repetir na Igreja, lembrando a paixão: “Quem come a minha carne e bebe o

meu sangue tem a vida eterna” (João 6:54)! O que nos faz dizer: Aquele que honra a minha

morte, e, seguindo meu exemplo mortifica a sua carne sobre a terra, terá a vida eterna; ou

então, se comigo sofres, também comigo estarás no Reino. E, portanto ainda hoje, muitos,

face a estas palavras, se retiram e se afastam dizendo, se não em palavras, mas pelo

comportamento: “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?” (João 6:60-61). Desta forma

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os homens que, ao invés de conservarem seu coração reto e puro e permanecerem fiéis a

Deus, preferiram colocar suas esperanças nas riquezas incertas, não podem agora ouvir

falar da cruz; a simples lembrança da paixão lhes parece um peso esmagador; quanto mais

serão esmagadoras para estes as palavras do juiz: “Apartai-vos de mim, malditos, para o

fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mateus 25:41)? Elas esmagarão, como

uma rocha aquele sobre o qual cairão. Mas os santos serão benditos; com o apóstolo, eles

não têm outra ambição senão “muito desejamos também ser-lhe agradáveis, quer presen-

tes, quer ausentes” (2 Coríntios 5:9). E também ouvirão estas palavras: “Vindes benditos

do meu Pai, etc.”. Será então que aqueles que não guardaram seu coração reto, sentirão,

porém tarde demais, o quão doce e leve é o jugo e o fardo de Cristo, aos quais orgu-

lhosamente retiraram seu coração endurecido, como se se tratasse de um jugo esmagador

e um fardo pesado. Não podeis, ó malditos escravos do dinheiro, gloriar-vos na cruz do

nosso Senhor Jesus Cristo e ao mesmo tempo colocar vossa esperança nos tesouros,

suplicar por fortuna e experimentar o quanto o Senhor é doce; e então com certeza O

temerão muito, quando O verdes, Aquele cuja lembrança não vos pareceu cheia de doçura.

12. E para a alma fiel, ela suspira com todas as suas forças após ter conhecido a Deus, e

descansa suavemente em Sua lembrança; ela se gloria das ignomínias da cruz, enquanto

não pode ver o Senhor face a face. Eis certamente o repouso e o sono que a Esposa, a

colomba de Cristo, experimenta, esperando em meio aos bens que lhes são dados em

herança; ela tem, agora, pela lembrança de Sua inefável doçura, ó Senhor Jesus, as asas

brancas e prateadas da pureza e da inocência, e mais ainda, ela espera estar embriagada

de felicidade quando ela avistar o esplendor em Sua face do ouro [...] e Sua sabedoria

inundar de luz na glória e na felicidade dos santos. Portanto bem certa está de gloriar-se

desde agora e de dizer: “A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua

mão direita me abrace” (Cânticos 2:6). A mão esquerda do Esposo é a lembrança deste

amor do qual ninguém mais pode igualar a grandeza e que O impulsionou a dar a vida por

Seus amigos; Sua mão direita é a visão beatificada que Ele prometeu aos Seus e a alegria

que os embriagará quando gozarem de Sua Divina presença. Não é por acaso que esta

visão Divina e dêitica, esta inestimável felicidade da visão de Deus é representada pela

mão direita, pois é desta mão que é mencionado de forma inefável: “tua mão direita há

delícias perpetuamente” (Salmos 16:11). É por um motivo semelhante que a mão esquerda

é como a sede desta admirável caridade da qual falamos mais acima e da qual não

sabemos realmente nos lembrar; pois é nesta mão que a Esposa recosta a sua cabeça

esperando que a iniquidade passe.

13. Não, não é por acaso que o Esposo coloca Sua mão esquerda sob a cabeça da Esposa,

para que ela possa descansar e repousar o que podemos chamar de cabeça, isto é a

profundidade de sua alma, para que ela não se enfraqueça e não se desvie para os desejos

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carnais deste tempo; pois a embalagem terrestre e corruptível do corpo é um fardo pesado

para a alma e a faz entrar em tristeza, da qual ela precisa sair, levando em consideração

uma misericórdia da qual tínhamos tão pouco direito, um amor tão gratuito e tão bem pro-

vado, uma honra tão inesperada, uma bondade indulgente e uma doçura tão perseverante

e tão admirável. Como pela meditação cuidadosa de todas estas coisas, não se elevaria a

elas o espírito que delas se alimenta, e não se desligaria de todo sentimento ruim? Que

profunda impressão terá sobre ele, e como poderia não lhe inspirar desprezo por aquilo que

podemos gozar somente se renunciarmos a todas estas grandes coisas? É pelo bom aroma

que exalam como tantos perfumes deliciosos que a Esposa se apressa alegremente e se

sente consumida de amor; quando ela se vê tão amada, lhe parece que ama tão pouco,

ainda que fosse ela mesma todo amor, e ela tem razão de assim crer; de fato, que retorno

pode um grão de pó tributar por um amor tão grande vindo de tão alto, quando mesmo se

consumiria ele inteiramente de amor e de reconhecimento? Não foi ela alertada pela Divina

Majestade, não mostrou-Se inteiramente ocupado em salvá-la? Porque “Deus amou o

mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito” (João 3:16). Ora obviamente é de Deus

Pai que falamos aqui, e, quando foi dito: “porquanto derramou a sua alma na morte” (Isaias

53:12), trata-se aqui do Filho; quanto ao Espírito Santo lemos: “Mas aquele Consolador, o

Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos

fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (João 14:26). Portanto Deus nos ama e nos

ama com todo o Seu ser; pois a Trindade toda nos ama, se é permitido expressar assim,

falando do Ser infinito e incompreensível no qual não há partes.

CAPÍTULO V

A obrigação de amar a Deus, particularmente para os Cristãos.

14. Quando pensamos em tudo isto, podemos facilmente compreender porque devemos

amar a Deus e quais os direitos que Ele tem ao nosso amor. Trata-se do infiel? Como ele

não conhece Deus, o Filho, ele está na mesma ignorância em relação ao Pai e ao Espírito

Santo; e da mesma forma que ele não glorifica ao Filho, ele não saberia glorificar o Pai que

O enviou e nem tampouco o Espírito Santo que é um dom do Filho; ele conhece Deus

menos do que nós, portanto não é estranho que O ame menos; todavia, ele não ignora o

fato de que deve a si mesmo inteiramente Àquele de Quem ele sabe que recebeu a vida.

Mas e quanto a mim? Ora, não posso ignorá-lO, não somente Deus me fez um ser sem que

eu o merecesse; não somente Deus supre abundantemente as minhas necessidades, me

consola com bondade e me governa com solicitude, porém, mais ainda, é o Autor da minha

redenção e da minha salvação eterna; Ele é para mim um tesouro e fonte de glória. De fato

está escrito: “Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há

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abundante redenção” (Salmos 130:7), e “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por

seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção”

(Hebreus 9:12); “Porque o Senhor ama o juízo e não desampara os seus santos” (Salmos

37: 28). Ele nos enriquece; de fato, está escrito: “boa medida, recalcada, sacudida e

transbordando” (Lucas 6:38). E ainda em outro escrito: “As coisas que o olho não viu, e o

ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para

os que o amam” (1 Coríntios 2:9). Ele nos enche de glória, pois, segundo o apóstolo: “de

onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso

corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso” (Filipenses 3:20-21)”, e mais:

“Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para

comparar com a glória que em nós há de ser revelada” (Romanos 8:18). “Por isso não

desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se

renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um

peso eterno de glória mui excelente” (2 Coríntios 4:16-17).

15. Que daria eu, portanto, ao Senhor por tudo isto? A razão e a justiça obrigam-me apres-

sadamente a me doar inteiramente Àquele de Quem recebi tudo o que sou, e de consagrar

todo o meu ser em amá-lO. A fé me diz também a ter por Ele um amor tal que eu entendo

melhor o quanto devo estimá-lO mais do que a mim mesmo, pois se herdei de Sua mag-

nificência tudo o que sou, eu Lhe devo também o Seu próprio dom. Enfim, o dia da fé Cristã

não tinha ainda um Deus que se havia encarnado, não havia ainda morrido na cruz e nem

descido ao sepulcro, nem subido aos céus ao lado de Seu Pai; digo, Ele não havia ainda

rompido toda a extensão do Seu amor por nós, deste amor do qual tive a amabilidade de

partilhar mais alto com vocês, o homem já havia recebido a ordem de amar O Senhor seu

Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, isto é, de todo

o seu ser, com todo amor que for capaz, como criatura dotada de força e inteligência. E não

seria de forma alguma uma injustiça da parte de Deus reivindicar Sua obra e Seus dons.

De fato, por que a obra não amaria Aquele que a fez, já que recebeu o poder de amar, e,

por que não O amaria com todas as suas forças se é somente dEle que ela as recebeu?

Adicione a isso tudo que ele foi tirado do nada sem nenhum mérito anterior, para em

seguida ser exaltado; a obrigação de amar a Deus vos parecerá de tanto mais evidente e

seus direitos ao nosso amor tanto mais fundamentados. Aliás, não foi Ele ao extremo em

Suas bênçãos e Suas misericórdias, quando nos salvou, quando éramos semelhantes aos

animais que perecem (Salmos 49:20)? De fato, pelo pecado fomos destituídos do nível de

honra que era nosso, para nos tornarmos semelhantes ao boi que ara no campo, e a

animais desprovidos de razão. Portanto, se devo me doar completamente ao meu Criador,

o que mais não Lhe deveria como meu Restaurador, grande Restaurador? Foi-Lhe muito

menos fácil me restaurar do que me criar; pois, para dar vida não somente a mim, mas a

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toda a criação, dizem as Escrituras “pois mandou, e logo foram criados” (Salmos 148:5).

Mas para restaurar o ser que, com uma única palavra, feito tão completo, quantas palavras

não foram pronunciadas, quantas maravilhas Ele teve que operar, quantos tratamentos

cruéis, ou devo ir mais fundo ainda, quantos tratamentos indignos Lhe foram necessários

sofrer!

“Que darei eu então ao Senhor, em reconhecimento por tudo que fez comigo” (Salmos

116:12)? Quando Ele me criou, deu-me a minha vida: mas a devolveu a mim mesmo quan-

do Se deu por mim; a concedeu-me uma vez, em seguida a devolveu, portanto, por mim,

devo duas vezes. Mas o que darei eu a Deus por Ele? Pois, mesmo que eu pudesse me

dar a mim mesmo mil vezes, que seria isto comparado a Deus?

CAPITULO VI

Recapitulação, sumário dos capítulos anteriores.

16. Reconheçamos então primeiramente em que medida Deus é digno de ser amado, ou

melhor, vamos entender que o deve ser sem medida. De fato, para resumir em poucas

palavras, Ele nos amou primeiro, Ele tão grande e nós tão pequenos; Ele nos amou com

excesso, tal como somos, e sem qualquer mérito nosso; por isso eu disse no começo que

a medida do nosso amor por Deus deve ser sem medida ou exceder qualquer medida; aliás,

já que este amor é imenso, infinito (pois assim é Deus) eu pergunto, quais seriam o termo

e a medida de nosso amor por Ele? Além do mais, o nosso amor não é gratuito; é o paga-

mento de nossa dívida. Enfim, quando é o Ser imenso e eterno, o próprio amor por excelên-

cia, quando se trata de um Deus cuja grandeza é sem limites, a sabedoria incomensurável,

a paz excedendo a todo sentimento e todo pensamento; quando, digo, é um Deus tal que

nos ama, guardaremos em relação a Ele alguma medida em nosso amor? Eu Te amarei,

portanto, Senhor, Tu que és a minha força e meu sustento, meu refúgio e minha salvação,

Tu que és para mim tudo o que pode existir de mais desejável e mais amável. Meu Deus e

meu sustento, eu Te amarei com todas as minhas forças, não tanto quanto mereces, mas

certamente tanto quanto eu puder, se eu não puder o quanto deveria, pois é impossível

para mim amá-lO mais do que todas as minhas forças. Poderei amá-lO mais somente

quando receber o poder da Sua graça, e ainda assim não será o quanto mereces. Teus

olhos veem toda a minha insuficiência, mas eu sei que Tu escreveste no Livro da Vida,

todos aqueles que fazem o quanto podem, mesmo que não façam tudo o que devem. Eu já

disse o suficiente, se não me engano, para mostrar como Deus deve ser amado, e por quais

boas obras Ele mereceu o nosso amor. Eu digo, por quais boas obras, pois por excelência,

quem o poderia entender, quem o poderia expressar, quem o poderia sentir?

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CAPÍTULO VII

Vantagens e recompensas do amor de Deus.

As coisas da terra não podem satisfazer o coração do homem.

17. Vejamos agora quais vantagens existem para nós no amor de Deus. Sim vejamos, mas

que relação entre o que veremos e o que é? No entanto, não podemos nos omitir, se bem

que a nossa visão não pode englobar toda a verdade. Nós nos perguntamos acima por qual

motivo e em qual medida deve-se amar a Deus, e dissemos que esta questão: “por quais

motivos devemos amá-lO” apresenta-se sob dois pontos de vista, pois podemos entender

desta forma, que direitos tem Deus sobre o nosso amor; ou então, que vantagem nós

encontramos em amá-lO? Nós falamos da melhor forma que podíamos, senão de um modo

digno de Deus, dos direitos que Ele possui sobre o nosso amor: faremos o mesmo em

relação às vantagens que encontramos neste amor; pois, se nós devemos amar a Deus,

sem nos preocupar com a recompensa, ainda assim somos recompensados por tê-lO

amado. A verdadeira caridade não pode permanecer sem paga, e, no entanto não é nem

um pouco mercenária, pois não busca seus próprios interesses (1 Coríntios 8:5); o amor é

um movimento da alma e não um contrato; não se pode adquiri-lo em virtude de um acordo,

e também nada adquire por este meio; é totalmente espontâneo em seus movimentos e

nos faz semelhantes a ele: enfim o verdadeiro amor encontra em si mesmo a sua satisfação.

Sua recompensa está no sujeito amado; pois qualquer que seja o sujeito que dizemos amar,

se o amamos em vista de outro, então é este que verdadeiramente amamos e não aquele

cujo coração usa para atingi-lo. Por isso, Paulo não prega o Evangelho para ter o que

comer, mas ele come para poder pregar o Evangelho; pois, o que ele ama não é a comida

que ele obtém, mas o Evangelho que ele anuncia (1 Coríntios 9:18). O verdadeiro amor não

busca recompensa, mas ele merece uma; é certo que não propomos àquele que ama uma

recompensa por seu amor, mas ele merece ser recompensado e o será se continuar a

amar. Enfim, em uma ordem de coisas menos elevadas, excitamos a fazê-las, com promes-

sas de recompensas, não aos que acham que são algo, mas os que se doam com pesar.

Quem jamais teve a vontade de oferecer a alguém uma recompensa para lhe fazer algo

que realmente ansiava fazer? Certamente não damos dinheiro a um homem morrendo de

fome e de sede, para incitá-lo a comer ou beber, e nem a uma verdadeira mãe, para que

amamente o fruto do seu ventre, e não usamos de orações e promessas para incentivar

alguém a cercar a sua plantação, a remoer a terra em volta das árvores ou elevar o muro

de sua casa. Por uma razão mais forte ainda, aquele que ama a Deus, não teria necessida-

de de se sentir atraído por uma recompensa que não seja o próprio Deus; de outra forma

não seria a Deus que ele amaria e sim a recompensa.

18. Está na natureza do homem o desejar, cada um conforme a sua tendência e sua percep-

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ção, o que lhe parece melhor do que aquilo que ele já possui, e de nunca estar satisfeito

com algo que definitivamente não está de acordo com aquilo que ele queria. Citemos alguns

exemplos: Se um homem que tem uma linda mulher, vê uma mais linda, seu coração a

deseja, seu olhar arde em desejo; se ele tem uma vestimenta preciosa, ele deseja uma

mais sumptuosa ainda; e com as riquezas que ele tem, inveja os que têm mais do que ele.

Não é comum vermos homens ricos em terras e em propriedades comprar novos campos,

e, nos seus desejos sem fim, recuar constantemente os limites de seus domínios? Aqueles

que moram na realeza, em vastos palácios, não cessam de acrescentar a cada dia novos

edifícios aos antigos; tomados por uma inquieta curiosidade, não param de construir e

destruir, mudando o que está redondo para fazer quadrado. Se falarmos então de homens

cheios de homenagens, não aspiram eles constantemente com todas as suas forças com

uma ambição cada vez mais difícil de agradar por uma posição ainda mais elevada? Isto

não tem fim, porque em todas estas coisas não conseguimos achar um ponto que seria

propriamente dito o mais elevado e o melhor. Mas deveríamos estranhar que aqueles que

não podem parar enquanto não possuírem o que tiver de maior e mais perfeito, não estejam

nunca satisfeitos com o que for pior ou inferior? Mas o que eu acho insensato acima de

qualquer expressão, é que desejamos sempre aquilo que não poderia jamais, não digo

satisfazer, mas simplesmente adormecer os desejos ardentes. O que quer que seja que

nós possuímos, nós não desejamos menos aquilo que ainda não temos e é sempre em

relação ao que não temos que suspiramos mais e mais. E então o que acontece? O nosso

coração, cedendo aos caprichos variados e enganosos do século, cansa-se inutilmente em

sua corrida e não consegue se saciar; está sempre faminto e de nada vale o que já tem

com aquilo que ainda lhe resta ter; está bem mais atormentado pelo desejo do que lhe falta

do que pela satisfação do que já tem. Não podemos ter tudo e aquilo que temos o

adquirimos somente com esforço, o aproveitamos com temor e tendo a dolorosa certeza de

perdê-lo um dia, mesmo não sabendo qual será este dia. Este é, portanto, o caminho de

uma vontade pervertida que desvia-se do supremo bem; é seguindo esta direção que ela

se apressa em atingir o que a deve satisfazer; ou, melhor dizendo, é nestes desvios que a

vaidade não se deixa vencer e a iniquidade se engana. Se queremos atingir um objetivo

que nos propomos e enfim adquirir aquilo cuja possessão excede a todos os desejos,

porque procurar em tantos outros lugares? Isto é afastar-se do reto caminho, e a morte

chegará bem antes de atingirmos o alvo desejado.

19. Em todos estes desvios se perdem os ímpios que procuram, por um movimento natural,

satisfazer seu apetite e negligenciam, como insensatos, os meios para conseguir o que

querem; quero dizer, o de serem consumados e não consumidos. Ora, eles se consumem

em vãos esforços e não conseguem chegar a uma felicidade consumada; pois, estão mais

afeiçoados às criaturas do que ao Criador, e se voltam a todas elas e as experimentam

umas após as outras, antes de pensar em tentar se dirigir ao Senhor que as criou. É aonde

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chegariam certamente, se pudessem um dia cumprir todos os seus desejos, ou seja, de

possuir todo o universo, menos o seu Autor, e isto se faria em virtude mesmo da lei de suas

concupiscências, que os faz esquecerem do que são, para almejar aquilo que não tem;

senhores de tudo o que está no céu e na terra, não tardariam a considerar tudo isto insufi-

ciente e procurariam por fim Aquele que lhes falta ainda para que tenham tudo, ou seja, o

próprio Deus. E então, finalmente experimentariam o repouso; pois, se não o podemos

achar além deste termo, não saberíamos também sentir a necessidade de ir além; qualquer

um que ali se achasse não poderia deixar de exclamar [...] “Quem tenho eu no céu senão

a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti” (Salmos 73:25)? E mais ainda: “Deus é

a fortaleza do meu coração, e a minha porção para sempre” (v. 26). Eis, portanto, que falei

mais alto, como chegaríamos ao supremo bem, se pudéssemos antes provar de todos os

bens que se encontram abaixo dEle.

20. Mas é absolutamente impossível proceder desta maneira, a vida é curta demais para

isso, falta-nos forças e a quantidade de pessoas que partilham o mesmo caminho é por

demais considerável. Além do mais, qualquer um que queira tentar, de todas as criaturas,

penará inutilmente, pois pelo longo caminho que se propõe a percorrer, não conseguiria

chegar ao fim e experimentar tudo aquilo que deseja ardentemente em suas concupis-

cências. Por que não fazer todas estas tentativas em espírito ao invés da realidade? Seria

mais fácil e mais vantajoso; o espírito recebeu uma atividade e uma perspicácia maiores

que as do coração, precisamente afim de poder estar adiante em tudo, para que o coração

não tenha a imprudência de se apegar ao que o espírito, que vai mais rápido que ele, ainda

não achou útil. [...] Está escrito: “Examinai tudo, retende o bem” (1 Tessalonicenses 5:21),

afim de que o primeiro prepare o terreno ao outro, e que o coração se apegue somente em

consequência do julgamento feito pelo espírito. Não podemos de outra forma subir ao

monte do Senhor (Salmos 24:3) e descansar em Seu santuário, pois é em vão que

possuímos uma alma, isto é, uma alma racional, pois a exemplo dos animais nós a deixa-

mos levar-se por impulso vindo dos sentimentos enquanto a razão se cala e não oferece

nenhuma resistência. Aqueles cuja a razão não esclarece o caminho, nem por isso correm

menos, mas estão fora da reta, e, apesar dos conselhos do apóstolo, não estão correndo

de forma a conquistar a vitória (1 Coríntios 9:24); de fato, quando poderiam obtê-la, se a

querem somente após ter conseguido todo o resto? Seria pegar um caminho cheio de

desvios e engajar-se em um circuito sem fim de querer experimentar de tudo começando

do começo.

21. Não é assim que o justo procede. Ferido pela desaprovação direcionada a todos aque-

les que se engajaram nestes desvios, pois o caminho que conduz à perdição é largo e

frequentado pela multidão, ele prefere o caminho real que não se desvia nem para a

esquerda e nem para a direita, conforme as palavras do profeta; “O caminho do justo é todo

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plano; tu retamente pesas o andar do justo” (Isaías 26:7). De fato, ele toma o caminho mais

curto para evitar sabiamente os longos e inúteis desvios, e ele experimenta uma palavra

tão simples quanto simplificadora, não desejar o que vemos, vender o que temos e o dar

aos pobres, pois, bem-aventurados são certamente os pobres de espírito, porque deles é

o Reino dos Céus (Mateus 5:3); bem sabe ele que todos os que correm no estádio não

chegarão na mesma posição (1 Coríntios 9:24).

Enfim, porque o Senhor conhece e aprova o caminho dos justos (Salmos 1:6), e conhece

também o do pecador que só pode perecer; vale mais o pouco que tem o justo, do que as

riquezas de muitos ímpios (Salmos 37:16), pois, o sábio disse e o insensato o provou “quem

amar o dinheiro jamais dele se fartará” (Eclesiastes 5:10), “Bem-aventurados os que têm

fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mateus 5:6); um espírito reto faz da justiça

seu alimento vital e natural, quanto ao dinheiro, a alma não se alimenta mais do que o corpo

do ar que respira. Se olhássemos para um homem, desesperado de fome, respirar fundo,

aspirando profundamente para matar a fome, o chamaríamos de tolo; assim são aqueles

que pensam matar a fome da alma, quando a preenchem com coisas corporais que lhe dão

de fato, mas o que importa isso para o espírito? Não se alimenta ele mais do que o corpo

com coisas espirituais. “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e tudo o que há em mim

bendiga o seu santo nome” (Salmos 103:1); Ele te dá abundância de bens, e, ao mesmo

tempo, te excita ao bem, te fixa no bem. Ele te provê, te sustenta, te abençoa abun-

dantemente; Ele ascende em ti os desejos, e Ele próprio os incendeia.

22. Eu já disse, o motivo do amor de Deus é o próprio Deus, e estou certo em dizer isto,

pois Ele é de fato a causa ao mesmo tempo eficiente e final do nosso amor. Pois é Ele

quem faz nascer a ocasião para o amor, Ele é que o incendeia e ainda Ele o enche de

desejos. Ele faz com que O amemos, ou melhor, Ele é tal que não tem como não ser alvo

do nosso amor; Ele o é também de nossa esperança: se não esperássemos ter a alegria

de amá-lO um dia, O amaríamos agora em vão. Seu amor prepara e abençoa o nosso. Em

Sua bondade excessiva Ele começa por prover em nós, e então nos cobra merecidamente

de volta, e, futuramente, Ele nos reserva as mais doces esperanças. Ele é rico para todos

os que O invocam; porém, em toda a Sua riqueza, nada é mais valioso do que Ele.

Ele é [...] nossa recompensa, é alimento das almas santificadas e o regaste das que estão

cativas. Se já és para a alma que Te busca uma fonte de felicidade, o que serás, Senhor,

para aquela que Te achou? [...] Falamos sobre a consumação do amor a Deus, falemos

agora quais são os começos.

CAPÍTULO VIII

Nós começamos por nos amar para nós mesmos;

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é por nós o primeiro grau do amor.

23. O amor é um dos quatro [Bernardo reconhecia apenas quatro sentimentos principais: o

amor, o medo, a alegria e a tristeza] sentimentos naturais que todo mundo conhece e que

é por consequência inútil nomear. Ora o que é natural e o que seria justo, seria de, antes

de qualquer coisa, amar o Autor da natureza: também, o primeiro e maior mandamento é

este: “Amarás o Senhor teu Deus” (Mateus 22:37). Mas a natureza é frágil demais e muito

fraca para tal preceito, por isso começa por amar-se a si mesma; é este amor que

chamamos de carnal, e cujo homem se ama antes de qualquer outra coisa e para ele, assim

está escrito: “Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual” (1

Coríntios 15:46). Não é em virtude de um preceito que as coisas acontecem desta forma, é

fato da natureza. De fato, vemos alguém odiar a sua própria carne (Efésios 5:29)?

Mas se este amor, como de costume acontece, tiver muita liberdade, se ele se expandir um

pouco além, se sair do campo da necessidade e se esparramar nos campos da sen-

sualidade, como um rio cujas águas se enchem, e transbordam; de súbito então se levanta

para contê-lo, o dique do preceito que nos ordena “amar o próximo como a si mesmo”

(Mateus 22:39). Nada mais justo, aliás, que aquele que partilha conosco a natureza, partilhe

também os sentimentos da qual ela é a fonte em comum? Se, portanto, é pesado demais

a um homem pensar, não digo às necessidades de seus irmãos, mas aos seus prazeres,

que ele se modere ele mesmo no espaço dos seus próprios; ou então ele seria culpado.

Que pense nele o quanto quiser, contanto que seja para os outros, o que é para si mesmo.

Tais são, ó homem, o freio e a justa medida imposta pela lei do teu ser e da tua consciência

para que não caia na armadilha de tuas concupiscências e não corras para a perdição,

colocando os bens da natureza a serviço dos inimigos de tua alma, ou seja, das paixões.

Mais vale partilhar com teu semelhante, ou seja, teu próximo do que com teu inimigo. Mas

se, segundo o conselho do sábio, o homem renunciar às suas paixões, se contentar, segun-

do a doutrina do apóstolo, com o alimento e as vestes (1 Timóteo 6:8), e se ele se resignar

voluntariamente a amar menos as coisas da carne que combatem contra o espírito (1 Pedro

2:11), ele não terá dificuldade, penso eu, em dar ao seu semelhante ao que ele recusa ao

inimigo de sua alma. Seu amor ficará guardado nos limites da justiça e da moderação, do

momento em que ele consagrar às necessidades de seus irmãos tudo aquilo que recusa

às suas próprias paixões. É assim que o amor pessoal torna-se um amor fraternal, saindo

de dentro pra fora.

24. Mas se, enquanto partilhamos com o próximo, vier a nos faltar o sustento, o que fazer?

Nada além de orar com confiança Àquele que nos dá abundantemente, sem jamais nos

recusar os Seus dons (Tiago 1:5), “Abres a tua mão, e fartas os desejos de todos os viven-

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tes” (Salmos 145:16); pois não podemos duvidar dAquele que não recusa nem mesmo o

supérfluo para a maioria dos homens, vindo de bom grado ao socorro daqueles que estão

necessitados. Pois Ele disse: “Buscai antes o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão

acrescentadas (Lucas 12:31), Ele portanto, se comprometeu a dar o necessário àquele que

restringe o seu supérfluo e ama seu próximo; de fato, isto é buscar primeiro o Reino de

Deus e implorar Seu socorro contra a tirania do pecado de suportar o jugo da pureza e da

sobriedade, ao invés de permitir que o pecado reine em nosso corpo perecível. Ora ainda

é justo partilhar o que recebemos das bênçãos da natureza com aqueles com quem já

dividimos a própria natureza.

25. Mas, para que nosso amor ao próximo seja impecável, é preciso que Deus esteja envol-

vido; é de fato possível amar o próximo verdadeiramente, se não for em Deus? Ora, qual-

quer que não tenha sido instruído em amor, não saberia amar em Deus; é preciso, portanto

começar por amar a Deus, se queremos amar o próximo nEle, de modo que Deus que é o

autor de todos as outras bênçãos, o é também de nosso amor por Ele, eis como não

somente Ele criou a natureza, mas ainda como Ele a sustenta, pois é tal que, após receber

a existência, ainda precisa dAquele que lhe a concedeu e que lhe conserva; se ela pode

somente existir nEle, ela não pode subsistir sem Ele. É para que nos convençamos e que

não nos atribuamos com orgulho as bênçãos das quais lhes somos devedores, que o

Criador, com profunda e salutar intenção, quis que fôssemos sujeitos a tribulações: assim,

se enfraquecemos, Deus vem ao nosso socorro e, salvos por Deus, nós Lhe rendemos a

honra que Lhe convém. É o que diz Ele mesmo: “E invoca-me no dia da angústia; eu te

livrarei, e tu me glorificarás” (Salmos 50:15). Eis porque o homem animal e carnal, que de

início sabia apenas amar a si mesmo, começa, então, mas ainda para ele mesmo, a amar

a Deus, vendo, pela sua própria experiência, que todo o seu poder, pelo menos para o bem,

vem dEle e que sem Ele, ele não pode absolutamente nada.

CAPÍTULO IX

Segundo e terceiro graus do amor.

26. Agora então, o homem já sente amor por Deus, mas ele O ama ainda para si mesmo e

não para Deus. No entanto, existe-lhe alguma sabedoria própria em saber do que é capaz

por ele mesmo e o que ele não pode fazer sem a ajuda de Deus, e de se manter impecá-

vel aos olhos dAquele que lhe conserva todo poder intacto. Mas que o cortejo das tribu-

lações fundamenta sobre ele e o obriga a recorrer a Deus, se ele recebe a cada vez o

socorro que o livra, não deveria ter ele um coração de mármore ou bronze para não ser

tocado cada vez que foi socorrido, pela bondade de seu Libertador e de não começar a

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amá-lO por Ele mesmo e não mais somente pra ele. Pois a frequência das tribulações nos

obriga a recorrer frequentemente a Deus, ora é impossível voltar a Ele frequentemente e

não experimentar dEle, e é impossível experimentar dEle sem perceber o quanto Ele é doce.

Assim acontece que logo somos levados a amá-lO verdadeiramente, muito mais por causa

da doçura que encontramos nEle do que por causa do nosso próprio interesse, de modo

que, a exemplo dos samaritanos dizendo à mulher quem lhes havia anunciado a vinda do

Messias entre eles, “E diziam à mulher: Já não é pelo teu dito que nós cremos; porque nós

mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do

mundo” (João 4:42). Nós também dizemos à nossa carne: agora não é mais por tua causa

que amamos o Senhor, mas porque nós mesmos experimentamos e temos reconhecido o

quanto Ele é doce.

As necessidades da carne são uma espécie de linguagem que proclama em movimentos

de alegria e felicidade, as bênçãos que, por experiência ela reconheceu a grandeza. Quan-

do chegamos neste ponto, já não é mais difícil cumprir o preceito de amar ao próximo como

a si mesmo: pois, se amamos a Deus verdadeiramente, amamos também o que é dEle,

nosso amor é casto e conseguimos nos submeter ao preceito que diz: “ele torna puro o nos-

so coração por obediência e por amor” (1 Pedro 1:22); Ele é justo e nós cumprimos volunta-

riamente um tão justo mandamento, enfim, cheio de encanto e interesse, pois é totalmente

desinteressado. É, portanto, um amor cheio de castidade, já que não se manifesta nem por

gestos e nem por palavras, mas por obras e pela verdade; é um amor cheio de justiça, pois

entrega o tanto quanto recebe. Qualquer um que ama este amor, ama tanto quanto é amado

e busca então somente os interesses de Jesus Cristo, e não os seus próprios interesses,

da mesma forma que Jesus procurou os nossos, ou melhor nos procurou a nós mesmos.

Eis o amor daquele que diz: “Louvai ao Senhor, porque Ele é bom (Salmos 118:1). Aquele

que louva ao Senhor, não somente porque o Senhor é bom para ele, mas simplesmente

porque o Senhor é bom, ama verdadeiramente Deus pelo o que Ele é e não por si mesmo.

Não acontece desta forma para aquele que quem está escrito: “Ele vos louvará quando lhe

tiveres feito o bem”. O terceiro grau do amor é, portanto, de amar a Deus pelo que Ele é.

CAPÍTULO X

O quarto grau do amor é de somente se amar para Deus.

27. Bem-aventurado aquele que pode subir até o quarto grau do amor e que conseguiu se

amar apenas para Deus. “Tua justiça é como as grandes montanhas” (Salmos 36:6); é a

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mesma coisa para este quarto amor, é um monte muito elevado, uma montanha abundante

em pasto e fértil, “Quem subirá ao monte do Senhor” (Salmos 24:3)? Quem me dará asas

como as da colomba, para que eu possa voar até o topo e ali repousar? Um lugar tranquilo,

a morada de Sião. Ah! Quão longo é meu exílio! Quando então se elevará até lá a carne e

o sangue, o barro e o pó de que fui feito? Quando então, embriagado pelo amor de Deus,

minha alma se anulando e não se estimando mais do que um vaso trincado, lançar-se-á

em direção a Deus, se perderá nEle e, sendo um só e mesmo espírito com Ele (2 Coríntios

6:17), quando poderá clamar: “A minha carne e o meu coração desfalecem; mas Deus é a

fortaleza do meu coração, e a minha porção para sempre” (Salmos 73:26)? Santo e bem-

aventurado clamarei, eu que pude algumas vezes, raramente, uma só vez de fato,

experimentar algo parecido durante esta vida mortal, quando na verdade o teria sentido um

só minuto, um só instante e como que às escondidas! Pois não é uma felicidade humana,

mas já a vida eterna de se perder a si mesmo de certa forma, como se não mais existís-

semos, de não ter mais ciência de si mesmo, de estar vazio de si e quase reduzido a nada;

se acontecer a um mortal de subir até este nível, mesmo que só de passagem, assim como

o dizíamos, por um segundo, e por assim dizer, às escondidas, este século mal parece

estar com ciúmes e vem perturbar sua felicidade; este corpo de morte o chama a descer,

as preocupações e necessidades da vida pesam sobre ele fortemente, a corrupção da

carne recusa sustentá-lo, e, acima de tudo, o amor dos seus semelhantes lhe lembra com

grande violência e força, oh pesar! Em voltar, cair em si e clamar. “Senhor, eu que sofro

dos males de uma violência extrema, responda por mim”, ou ainda: “Miserável homem que

eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24)!

28. As Escrituras dizendo que Deus tudo fez para Ele; é preciso que as criaturas se con-

formem e se coloquem, ao menos algumas vezes, no pensamento do Autor. Devemos,

portanto, também entrar neste sentimento e nos render totalmente a Ele, ao Seu bel pra-

zer, não ao nosso [...]. Encontraremos a nossa felicidade bem menos no nosso sustento de

cada dia e nas bênçãos que temos como herança, do que no cumprimento de Sua vontade

em nós; aliás, é justamente o que pedimos todos os dias orando: “seja feita a Tua vontade,

assim na terra como no céu” (Mateus 6:10). Oh puro e santo amor! Oh doce e santa afeição!

Oh, submissão da alma inteira e desinteressada! Tanto mais inteira e desinteressada que

é exemplo de todo retorno a si mesma, tanto mais tenra e doce que tudo o que a alma sente

nessa ocasião é Divino. Chegar neste ponto é ser exaltado. Da mesma forma que uma

gotinha de água junto a uma grande quantidade de vinho parece desaparecer tomando o

gosto e a cor deste líquido; da mesma forma ainda que, na fornalha onde é mergulhado, o

ferro parece perder a sua natureza e mudar-se em fogo; ou ainda como o ar penetrado

pelos raios de sol torna-se em luz e parecer mais alumiar do que ser ele próprio alumiado:

assim acontece para os santos em todos os seus sentimentos humanos; parece que se

fundem e fluem na vontade de Deus. De outra forma, se ficasse ainda algo do homem no

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homem, como poderia ser Deus tudo em todos? Sem dúvida, a natureza humana não se

dissolveria; mas seria diferentemente bela, gloriosa e poderosa. Quando isto se dará? A

quem isto será dado de ver e experimentar? “Quando entrarei e me apresentarei ante a

face de Deus?” (Salmos 42:2)? Senhor meu Deus, falou a Ti meu coração, meus olhos Te

buscaram; esforçar-me-ei, Senhor, em contemplar a Tua Face. Seria-me permitido ver o

Teu santo templo?

29. Em minha opinião, não creio que possamos observar perfeitamente este preceito: “Ama-

rás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu enten-

dimento” (Mateus 22:37), enquanto o coração se vê obrigado a cuidar do corpo, que a alma

não é dispensada de velar em conservá-lo cheio de vida e de sensibilidade no estado

presente, e que sua energia, liberada de todos os sofrimentos, não se apoia sobre a própria

força de Deus, pois, ela não saberia aplicar-se a Deus e contemplar apenas a Sua face

Divina, enquanto ela tem que velar sobre o corpo frágil e infeliz dando-lhe cuidados. Que

não espere, portanto, atingir este terceiro grau do amor, ou melhor, de ser ela mesma

atingida, somente quando estiver revestido de um corpo espiritual e imortal, puro e calmo,

obediente e submisso em tudo ao Espírito, o que só pode ser obra do poder de Deus em

favor daqueles que Ele escolhe e não obra de um homem. Eu digo, portanto que a nossa

alma chegará facilmente a este grau supremo do amor, quando as preocupações ou

caprichos da carne não farão mais obstáculo à sua caminhada rápida e apressada em

direção à felicidade que ela deve encontrar no Senhor. [...] os santos mártires, antes mesmo

que a alma deles deixasse seus corpos vitoriosos, experimentaram ao menos em parte esta

felicidade? Em todo caso é certo que um imenso amor fluía em suas almas, para dar-lhes

forças para exporem suas vidas e desprezar as tormentas. Como eles o fizeram. Não

obstante, não podemos duvidar que os terríveis suplícios que sofreram não tenham

alterado, ou até destruído, a alegria de suas almas.

a) [...] O que para nós está prescrito para esta vida não é, portanto, a perfeição absoluta do

amor, mas o desejo desta perfeição. De maneira que, tanto quanto a fraqueza humana o

permitir, estejamos constantemente ocupados somente com o pensamento, o amor, a união

e a vontade de Deus.

CAPÍTULO XI

O amor perfeito só será partilhado entre os santos após a ressurreição geral.

30. Mas o que pensar das almas que já deixaram seus corpos? Eu creio que estão mergu-

lhadas inteiramente no oceano sem fim da luz eterna e da eternidade luminosa. Mas se

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ainda aspiram, o que não saberíamos negar, em se juntar ao corpo que outrora animaram,

se nutrem o desejo e a esperança, é evidente que não são totalmente diferentes do que

eram, e que ainda lhes resta algo que atrai sem dúvida bem pouco, mas que, entretanto,

atrai a sua atenção. Também, enquanto a morte não for absorvida totalmente em sua vitória,

que a luz eterna não tenha sido invadida de toda parte o domínio da noite e que a glória

celeste não se expanda também em nossos corpos, as almas não podem se lançar e passar

totalmente em Deus, os elos do corpo ainda as retêm aprisionadas, senão pela vida e pelo

sentimento, ao menos por uma certa afeição natural que não lhes deixa nem a vontade e

nem o poder de atingir a consumação Também, até que seus corpos lhe sejam devolvidos,

as almas não experimentarão esta fraqueza em Deus que é para elas a suprema perfeição,

não buscariam esta união se, para elas, tudo estivesse consumado, sem tê-la encontrado;

mas se for um progresso para a alma de deixar seu corpo, é uma perfeição de reavê-lo. Por

fim, “Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos” (Salmos 116:15); se podemos

falar assim da morte, que diríamos da vida, e principalmente desta vida em questão? [...]

Assim, a alma que ama a Deus tira vantagem de seu corpo fraco e enfermo, seja ele morto,

vivo ou ressuscitado; durante a vida, ele produz com ela frutos dignos de arrependimento;

na morte, ele lhe serve para seu repouso, e após a ressurreição, ele concorre à consuma-

ção de sua felicidade. Portanto, ela tem razão de não se achar perfeita sem ele, porque ela

o vê contribuir com ela para o bem de cada um destes três estados.

31. O corpo é para a alma um bom e fiel companheiro: se ele for para ela um fardo, ele é

ao mesmo tempo uma ajuda; quando cessa de ajudá-la, cessa igualmente de pesar sobre

ela; enfim, ele vem ajudar e não é mais um fardo para ela. O primeiro estado é laborioso,

mas útil; o segundo desocupado, mas de forma alguma tedioso, e o terceiro é glorioso. Ou-

çam como o Esposo dos Cânticos convida a alma para esta tripla sucessão: “Amigos meus,

comam e bebam, embriaguem-se, meus tão caros amigos” (Cânticos 5:1). As almas que

ele convida a comer são aquelas que trabalham em seus corpos; teriam elas os deixado

para se repousar na morte, ele as chama para beber, ele se apressa em embriagá-las

quando tornam a eles, e se ele as chama de “caros amigos”, indicando que estão cheias

de amor; porque às primeiras, ele diz apenas: “Amigos”, esperado que aquelas que gemem,

ainda sob o peso de seus corpos [...]. Quanto às que são libertas das entravas do corpo,

lhe são tanto mais caras que adquiriram mais independência e facilidade para amá-lO. Mas,

comparando as almas colocadas em uma ou outra destas condições, ele as tem como

caríssimas, como lhe são de fato para Ele, aquelas que se encobriram com sua segunda

veste reavendo seu corpo na glória, e são levadas a amar a Deus com muito mais liberdade

e alegria que não lhes sobra mais nada atrás delas para retardar ou impedir o impulso. Ora,

não é da mesma forma para nenhum dos dois primeiros casos; de fato, o corpo em um faz

sentir seu peso e cansaço à alma e, no outro, é para ela um objeto de uma esperança onde

se mescla algum desejo pessoal.

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32. A alma fiel começa então por comer seu pão, mas infelizmente! No suor de seu rosto

(Gênesis 3:19); de fato, enquanto ela mora no corpo anda tão somente pela fé, que deve

operar pelo amor, pois sem obras a fé é morta. Ora, são as obras, o seu alimento segundo

o que diz o Senhor: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar

a sua obra” (João 4:34). Quando ela deixou sua carcaça mortal, ela cessa de comer o pão

da dor, e, como no fim da refeição, começa a beber em grandes goles o vinho do amor;

mas uma bebida não desprovida totalmente de misturas, como diz o Esposo de Cânticos,

que diz: “bebi o meu vinho com meu leite” (Cânticos 5:1), porque no vinho do amor de Deus,

a alma deseja reunir-se ao seu corpo, mas ao seu corpo que se tornou glorioso, mistura-se

o leite cheio de mel de um afeto natural: ela já sente bem a influência da brisa do vinho do

amor divino que ela bebe, mas ainda não chega a embriagar-se; o leite misturado ao vinho

tempera a força; a embriaguez confunde o espírito até perder as lembranças de si próprio;

e a alma que pensa da ressurreição futura do corpo que lhe pertenceu, ainda não perdeu

completamente a lembrança de si própria. Mas após ter obtido a única coisa que ainda lhe

falta, o que poderia doravante impedi-la de, de alguma forma, deixar-se a si mesma, para

mergulhar totalmente em Deus, e de parecer ao menos o que lhe é permitido se tornar mais

semelhante a Deus? Podendo então aproximar seus lábios da taça de sabedoria da qual

está escrito: “Que meu cálice transborda” (Salmos 23:5)! Não devemos nos espantar se ela

se embriaga da abundância que está na casa de Deus; livre de toda preocupação no que

lhes diz respeito, ela bebe a grandes goles e tranquilamente, no Reino do Pai, o vinho puro

e novo do Filho.

33. Ora é a sabedoria que dá esta tríplice festa onde serve apenas os manjares de amor;

ela dá pão de comer aos que ainda trabalham, vinho de beber aos que já estão gozando o

repouso e ela serviria embriaguez àqueles que entraram no Reino dos Céus; o que faze-

mos em mesas comuns, ela o faz à sua mesa, e só serve de beber após os convidados

terem se servido de alimento. Enquanto estamos nesta vida, revestidos de um corpo mortal,

nós ainda apenas comemos o pão dos nossos esforços, e só o engolimos depois de ter

exaustivamente triturado entre os dentes; tão somente tenhamos devolvido o último suspiro,

que nós começamos a beber na vida espiritual, onde nos servimos, com um relaxamento

cheio de doçura, a bebida que nos é dada; depois, quando recobramos o nosso corpo devol-

vido à vida, nós bebemos amplamente a embriaguez em uma vida que não deve acabar.

Este é o sentido das palavras do Esposo: “comei, amigos, bebei abundantemente, ó

amados (Cânticos 5:1)! Comam nesta vida, bebam após vossa morte, embriaguem-se após

a ressurreição, vós que então chamo com razão de Meus amados, pois estais embriagados

de amor. Como não o seriam quando são aceitos nas bodas do Cordeiro, sentados à Sua

mesa, bebendo e comendo em Seu reino, enquanto faz aparecer diante de Si a Sua Igreja

cheia de glória, sem mácula e sem rugas, nem coisa semelhante (Efésios 5:27)? Então, eis

que embriaga Seus melhores amigos e os farás beber da corrente de Suas delícias (Salmos

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36:8); pois, durante os vivos e castos abraços do Esposo e da Esposa, há um rio cujas

correntes alegram a cidade de Deus (Salmos 46:4), o que para mim nada mais é do que o

Filho mesmo de Deus, que passa como que servindo Seus convidados (Lucas 12:37) como

prometeu, a fim de que alegrem-se os justos, e se regozijem na presença de Deus, e fol-

guem de alegria (Salmos 68:3). Eis de onde vem esta satisfação, que não é seguida de

desgosto; este ardor insaciável, portanto, calmo e tranquilo de ver; este eterno e incom-

parável desejo de ter, que não tem sua fonte na privação, enfim esta embriaguez sem ex-

cesso, que mergulha e se afoga, não no vinho, mas em Deus e na verdade. A alma chegou,

portanto, para sempre ao quarto grau do amor, quando ama somente a Deus e O ama

unicamente; pois, neste caso, não nos amamos mais para nós, mas para Ele, de modo que

Ele é a recompensa, o eterno galardão daqueles que O amam e O amam para sempre.

CAPÍTULO XII

Fragmento de uma carta aos Chartreux

(religiosos da ordem de São Bruno) sobre o amor.

34. Eu me lembro de ter escrito no passado aos santos religiosos da Chartreuse, uma carta

(a décima primeira), onde eu falava dos graus do amor, e talvez falasse de outras coisas

mais, porém era sempre sobre o mesmo assunto, por isso acho interessante trazer aqui

algumas passagens desta carta, além do que me é mais fácil recopiar o que já escrevi do

que escrever algo novo. Eu digo, portanto que o amor verdadeiro e sincero, que vem

realmente de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera, é aquele que

nos faz amar o bem alheio como o nosso. Porque aquele que ama apenas o que lhe diz

respeito, ou ao menos que ama mais aquilo que lhe diz respeito do que aquilo que diz

respeito aos outros, mostra bem que não tem um amor puro e que não ama o bem para o

bem e sim como que para ele: portanto, ele não pode obedecer ao profeta que lhe diz:

“Louvai ao Senhor, porque Ele é bom” (Salmos 118:1). Talvez ele O louve porque Ele é

bom para ele, mas não Lhe dá a devida glória por Ele ser bom em Si mesmo [...]. Existem

homens que glorificam ao Senhor porque Ele é poderoso; acontece que dão glória porque

Ele é bom para ele; enfim, vemos alguns que celebram em louvores simplesmente porque

Ele é bom. Os primeiros são escravos que estremecem; os segundos, mercenários que

buscam os seus interesses, e os últimos são os verdadeiros filhos que pensam somente no

Pai. Ora, os primeiros e os segundos pensam somente neles, e somente os verdadeiros

filhos não são interesseiros em relação ao Seu amor (2 Coríntios 13:5), e é sobre eles,

penso eu, que foi escrito: “A lei do Senhor é perfeita e refrigera a alma” (Salmos 19: 7); de

fato apenas ela pode mesmo arrancar a alma do amor a si mesma ou ao mundo, para voltá-

la em direção ao amor a Deus, o que evidentemente não saberiam fazer nem o medo e

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nem o amor interesseiro; estes bem podem influenciar na aparência ou na própria conduta,

mas não tocam o coração. É certo que uma alma servidora faz de vez em quando a obra

de Deus, mas como não age espontaneamente, ela persevera em sua insensibilidade. É a

mesma coisa para a alma mercenária; mas, como ela não age com desinteresse, ela evi-

dentemente só cede aos pensamentos de seu próprio interesse. Ainda mais, quando

dizemos próprio, dizemos individualmente e por consequência, limitado; ora, nos escon-

derijos das beiras, dos limites, encontram-se a ferrugem e o lixo. Que a alma servil tenha a

sua lei no temor que a domina, até aceito; que a mercenária a tenha no interesse privado

que a sufoca, quando as tentações da concupiscência a atraem e a levam para o mal; mas

nem o medo e nem o interesse privado é sem tarefa ou, ao menos, não pode converter as

almas, isto só é possível ao amor, que age sobre a vontade.

35. Ora eis em que eu a considero sem mácula, é que ordinariamente ele não reserva para

si nada do que lhe pertence; aquele que não guarda nada para si, dá para Deus, certa-

mente, tudo o que ele tem; ora o que Deus possui não pode estar viciado. Também, esta

lei de Deus sem mácula e sem sujeira não é outra além do amor, que não busca seus inte-

resses, mas o interesse dos outros. Nós a encontramos na lei de Deus, talvez porque ela é

a própria vida de Deus, ou porque ninguém a possui se não a receber de Deus. Não é nada

absurdo dizer que esta lei é a própria vida de Deus, já que eu digo que não é nada além de

caridade. De fato, de onde vem, na suprema e bem-aventurada Trindade esta unidade

inefável e perfeita que é própria dEle? Não seria isto caridade? Portanto, é ela a lei do

Senhor, porque é ela que, se eu posso dizer assim, coloca a unidade na Trindade e a liga

no elo da paz. No entanto, não se deve crer que faço aqui da caridade uma qualidade ou

um “acidente” em Deus; seria dizer, (que Deus me proteja) que nEle há algo que não seja

Ele; ela é a substância de Deus Ele mesmo, não estou dizendo algo novo ou algo inovador,

pois, Deus é amor, segundo o próprio São João (1 João 4:8). Podemos, portanto, dizer,

com razão, que o amor é o próprio Deus e ao mesmo tempo um dom de Deus. O amor

concede amor, a substância, o evento. Quando falo dAquele que dá, eu falo da substância,

e quando eu falo do que é dado, eu falo do evento; ela é a lei eterna, criativa e moderadora

do universo; se todas as coisas foram feitas com peso, número e medida, é por ele que o

foram. Nada existe sem lei, nem mesmo Aquele que é a lei de tudo; é verdade que Ele

tornou-se Ele mesmo a lei que O rege, mas uma lei não criada como Ele.

CAPÍTULO XIII

Da lei da vontade própria e da concupiscência,

que é a dos escravos e dos mercenários.

36. Quanto ao escravo e ao mercenário, são também tanto um quanto o outro uma lei, mas

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não a receberam do Senhor; eles a fizeram por eles mesmos, um não amando a Deus e o

outro não O amando sobre todas as coisas: a lei deles, eu repito, é deles e não a de Deus

na qual ao menos a deles é submissa, pois, se eles puderam fazer cada um uma lei, não a

puderam subtrair à ordem imutável da lei Divina. Aos meus olhos, é fazer uma lei para si

mesmo, que de preferir a sua vontade própria à lei eterna e comum, e, por uma imitação do

Criador, que eu a chamarei de contrária à ordem, reconhecer a si mesmo como mestre,

nem outra regra do que a sua própria vontade, a exemplo de Deus, que é Sua própria lei e

depende apenas de Si mesmo. Infelizmente! Para todos os filhos de Adão, que esta vontade

que inclina e curva nossas testas até nos aproximar do inferno, (“Estou contado com aque-

les que descem ao abismo”) (Salmos 88:4), é um fardo pesado e insuportável. “Miserável

homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?!” (Romanos 7:24)? “Se o

Senhor não tivera ido em meu auxílio, a minha alma quase que teria ficado no silêncio

(Salmos 94: 17). Era sob o peso deste fardo que gemia aquele que dizia: “Se pequei, que

te farei, ó Guarda dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim

mesmo me seja pesado?” (Jó 7:20). Para estas palavras: “para que a mim mesmo me seja

pesado”, queria dizer que ele havia se tornado sua própria lei e até autor desta lei. Mas

quando ele começa a dizer a Deus: “Porque fizeste de mim um alvo para ti”, ele mostra que

não se subtraiu à ação da lei Divina; pois, ainda é próprio desta lei eterna e justa, que todo

homem que recusa submeter-se ao seu doce império torna-se seu próprio tirano, e que

todos os que rejeitam o jugo suave e o fardo leve do amor são forçados a gemer sob o peso

esmagador de sua própria vontade. Assim, a lei Divina fez de um modo admirável, daquele

que O abandona, ao mesmo tempo um adversário e um sujeito; pois, de um lado, ele não

pode escapar da lei e da justiça, segundo aquilo que merece, e do outro, ele não se apro-

xima de Deus, nem de Sua luz, nem em Seu repouso, nem na Sua glória: portanto, ele está

ao mesmo tempo prostrado diante do poder de Deus, e excluído da felicidade Divina. Se-

nhor meu Deus, porque não apagas o meu pecado e porque não fazes desaparecer a minha

iniquidade, afim de que, lançando o peso esmagador de minha vontade própria eu respire

sob o fardo leve do amor, e que, não mais estando sujeito às entranhas do temor servil e

nem às expectativas da ganância mercenária, eu seja levado apenas pelo Teu sopro do

Espírito, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus

(Romanos 8:14)? Quem dará de mim testemunho e me dará a certeza de que eu também

faço parte dos Teus filhos, que a Tua lei é a minha e que eu estou no mundo assim como

estais também? Porque é certo que, quando observamos este preceito do apóstolo: “A

ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque

quem ama aos outros cumpriu a lei” (Romanos 8:8), estamos neste mundo como o próprio

Deus está, e portanto, não somos nem escravos, nem mercenários, mas filhos de Deus.

CAPÍTULO XIV

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Da lei do amor que é para os filhos.

37. Por este caminho, portanto, vemos que os filhos não estão sem lei, a menos que pen-

semos ao contrário, porque está escrito: “a lei não é feita para o justo” (1 Timóteo 1:9). Mas

precisamos saber que existe uma lei promulgada no espírito de servidão, e esta imprime

apenas medo; e que há outra ditada pelo espírito de liberdade, esta inspirando apenas a

doçura. Os filhos não são constrangidos a se submeter à primeira, mas estão sempre sob

o império da segunda. Eis, portanto, em que sentido é dito que a lei não é feita para os jus-

tos, conforme estas palavras do apóstolo: “Porque não recebestes o espírito de escravidão,

para outra vez estardes em temor” (Romanos 8:15); não obstante, como devemos entender,

que não estão sem a lei do amor, conforme este outro trecho: “Vocês receberam o espírito

de adoção, sendo feitos filhos de Deus”. Enfim, escutem, de que maneira o justo diz ao

mesmo tempo, que ele está e não está na lei. “Para os que estão sem lei, como se estivesse

sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo)” (1 Coríntios

9:21). Não é, então, certo dizer: não há lei para os justos; mas devemos dizer: “A lei não foi

feita para os justos”, ou seja, não foi feita para constrangê-los; Mas Aquele que lhes impõe

esta lei cheia de doçura, faz amar e experimentar aos justos que a observam sem

constrangimento. Eis porque o Senhor diz tão bem: “Tomai sobre vós o meu jugo” (Mateus

11:29), como se Ele dissesse: Eu não vos forço a tomá-lo; tome-o se o quiserem; mas, se

não o tomarem, Eu vos digo que ao invés do repouso que Eu vos prometo, achareis apenas

sofrimento e fatiga para a vossa alma.

38. O amor é, portanto, uma lei doce e boa; não só é ele agradável e suave a se levar, mas

ele sabe também deixar leves e doces as duas leis, do escravo e do mercenário; pois, ao

invés de destruí-los, ele os faz observar, segundo o que disse o Senhor: “não vim ab-rogar,

mas cumprir a lei” (Mateus 5:17). De fato, ele tempera a primeira, regulariza a segunda e

adoça a ambas. Jamais o amor seguirá sem temor, mas este temor é bom; ele não se livrará

de todo pensamento interesseiro, mas seus desejos são acertados. A caridade aperfeiçoa

portanto, a lei do escravo, inspirando-lhe um generoso abandono, e a do mercenário,

dando-lhe uma boa direção aos seus desejos interesseiros; ora, este generoso abandono

unido ao medo, não amortece esta última; ele a purifica somente e faz desaparecer o que

ela tem de penoso. Na verdade, não há mais aquela apreensão da punição, cujo medo

servil nunca é isento, mas o amor lhe substitui um casto e filial que subsiste sempre; pois,

está escrito: “o perfeito amor, lança fora o temor” (1 João 4:18), devemos compreender

como se havia banido o medo penoso da punição, do qual dissemos que o medo servil não

é jamais isento. É uma figura comum, que consiste em tomar a causa por efeito. Quanto à

ganância, ela se encontra também perfeitamente acertada pela caridade que se junta a ela,

quando, cessando o desejo do que é mal, ela começa a preferir o que é melhor; ela deseja

apenas o bem para chegar ao melhor ângulo. Quando, pela graça de Deus, chegamos a

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este ponto, amamos o corpo e tudo o que se refere a ele, apenas para a alma, a alma para

Deus e Deus pelo que Ele é.

CAPÍTULO XV

Dos quatro graus do amor, e do estado bem-aventurado dos santos no Céu.

39. No entanto, como somos carnais e nascemos na concupiscência da carne, a cobiça, ou

seja, o amor, deve começar em nós pela carne; mas, se for dirigida pelo bom caminho, ela

avança por graus, sob a conduta da graça e não pode deixar de chegar enfim até a

perfeição, por influência do Espírito de Deus; pois, o que é espiritual não vem antes do que

é carnal, ao contrário, o espiritual vem somente depois; e também, antes de vestir a imagem

do homem celeste, nós devemos começar por vestir a do homem terreno. O homem

começa, portanto, por amar a si mesmo, porque ele é carne e só pode gostar daquilo que

diz respeito a ele próprio; então, quando percebe que não pode subsistir por ele mesmo,

ele começa a buscar, pela fé, a amar a Deus, como um Ser do qual ele precisa. Portanto,

é apenas em segundo plano que ele ama a Deus; e O ama ainda somente para si, não por

Ele. Mas quando, pressionado pela sua própria miséria, ele começou a servir a Deus e a

se aproximar dEle, pela meditação e leitura, pela oração e pela obediência, ele consegue,

pouco a pouco, e se acostuma insensivelmente a conhecer a Deus, e consequentemente;

a achá-lO doce e bom. Enfim, após experimentar o quanto Ele é amável, ele se eleva ao

terceiro grau; então, não é mais para ele que ama a Deus, mas ele ama a Deus pelo que

Deus é. Uma vez chegado neste ponto, ele não vai mais alto e eu não sei se nesta vida o

homem pode realmente chegar ao quarto grau, que é de se amar a si mesmo somente para

Deus. Os que acharam ter conseguido, afirmam que não é impossível; para mim, eu não

creio que possamos chegar um dia a esse ponto, mas não duvido nem um pouco que possa

acontecer, quando o bom e fiel servidor é convidado a partilhar a felicidade de seu Mestre

e a se embriagar das delícias eternas da casa de seu Deus; pois, estando então em um

tipo de embriaguez, ele se esquecerá dele mesmo de alguma forma, perderá o sentimento

daquilo que ele é, e, absorvido inteiramente em Deus, ele se agarrará a Ele com todas as

suas forças e logo será um só espírito com Ele [...] assim que entrasse em possessão da

glória de Deus, ele estaria desprovido de toda enfermidade da carne e não pensaria mais

nelas, e, que tendo se tornado totalmente espiritual, só se ocuparia das perfeições de Deus.

40. Então todos os membros do Cristo poderão dizer, falando deles, o que Paulo dizia de

nosso Chefe: “ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo

agora já não o conhecemos deste modo” (2 Coríntios 5:16). De fato, como a carne e o

sangue não possuirão o Reino de Deus, não nos importávamos segundo a carne. Não que

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a nossa carne não deva entrar um dia, mas só será aceita desprovida de todas as suas

enfermidades, o amor da carne será absorvido pelo do espírito, e todas as fraquezas das

paixões humanas, que existem atualmente, serão transformadas em um poder totalmente

Divino. Então a rede que o amor agora lança neste grande e vasto mar, para pescar toda

sorte de peixes incessantemente, uma vez levados a margem, jogará os ruins para manter

apenas os bons. O amor enche aqui embaixo de toda sorte de peixes, as vastas dobras de

sua rede, porque em se proporcionando a todos, segundo os tempos, atravessando e

partilhando de certa forma tanto a boa como a má fortuna de todos aqueles que ele abraça,

ele se acostumou a se alegrar com aqueles que estão no gozo, e também em derramar

lágrimas com os que estão em aflição; mas, quando ele puxar a rede para a beira mar

eterna, ele rejeitará como peixes ruins, tudo o que ele sofre de defeituoso e conservará

apenas o que pode agradar e cortejar. Então não mais veremos Paulo tornando-se fraco

com os fracos ou preocupar-se por aqueles que se escandalizam, pois, não haverá mais

nem escândalos e nem enfermidades de nenhuma espécie. Também não se deve crer que

ele ainda derramará lágrimas pelos pecadores que não tiverem se arrependido aqui

embaixo: como não haverá mais pecadores, não será mais necessário arrepender-se. Não

pensem então que ele gemerá e derramará lágrimas sobre os que queimarão eternamente

com o Diabo e seus anjos; pois, não haverá mais prantos nem aflições nesta santa cidade,

apenas uma torrente de delícias regadas e que o Senhor ama mais que as todas as tendas

de Jacó; nestas tendas, se experimentamos às vezes a alegria da vitória, nunca estamos

fora de combate e sem perigo de perder a palma com a vida; mas na Pátria não há mais

lugar nem para as derrotas nem para gemidos e lágrimas, como o dizemos em hinos da

Igreja: “Assim os cantores como os tocadores de instrumentos estarão lá e terão perpétua

alegria” (Isaías 61:7). E nem estará em questão a misericórdia de Deus desta estadia onde

doravante só reinará a justiça; e não mais sentiremos compaixão, já que a misericórdia será

banida e a misericórdia não terá mais razão de existir.

Louvado seja nosso Deus por Seu Inefável Amor!

Sola Scriptura!

Sola Gratia!

Sola Fide!

Solus Christus!

Soli Deo Gloria!

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10 Sermões — R. M. M’Cheyne

Adoração — A. W. Pink

Agonia de Cristo — J. Edwards

Batismo, O — John Gill

Batismo de Crentes por Imersão, Um Distintivo

Neotestamentário e Batista — William R. Downing

Bênçãos do Pacto — C. H. Spurgeon

Biografia de A. W. Pink, Uma — Erroll Hulse

Carta de George Whitefield a John Wesley Sobre a

Doutrina da Eleição

Cessacionismo, Provando que os Dons Carismáticos

Cessaram — Peter Masters

Como Saber se Sou um Eleito? ou A Percepção da

Eleição — A. W. Pink

Como Ser uma Mulher de Deus? — Paul Washer

Como Toda a Doutrina da Predestinação é corrompida

pelos Arminianos — J. Owen

Confissão de Fé Batista de 1689

Conversão — John Gill

Cristo É Tudo Em Todos — Jeremiah Burroughs

Cristo, Totalmente Desejável — John Flavel

Defesa do Calvinismo, Uma — C. H. Spurgeon

Deus Salva Quem Ele Quer! — J. Edwards

Discipulado no T empo dos Puritanos, O — W. Bevins

Doutrina da Eleição, A — A. W. Pink

Eleição & Vocação — R. M. M’Cheyne

Eleição Particular — C. H. Spurgeon

Especial Origem da Instituição da Igreja Evangélica, A —

J. Owen

Evangelismo Moderno — A. W. Pink

Excelência de Cristo, A — J. Edwards

Gloriosa Predestinação, A — C. H. Spurgeon

Guia Para a Oração Fervorosa, Um — A. W. Pink

Igrejas do Novo Testamento — A. W. Pink

In Memoriam, a Canção dos Suspiros — Susannah

Spurgeon

Incomparável Excelência e Santidade de Deus, A —

Jeremiah Burroughs

Infinita Sabedoria de Deus Demonstrada na Salvação

dos Pecadores, A — A. W. Pink

Jesus! – C. H. Spurgeon

Justificação, Propiciação e Declaração — C. H. Spurgeon

Livre Graça, A — C. H. Spurgeon

Marcas de Uma Verdadeira Conversão — G. Whitefield

Mito do Livre-Arbítrio, O — Walter J. Chantry

Natureza da Igreja Evangélica, A — John Gill

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Natureza e a Necessidade da Nova Criatura, Sobre a —

John Flavel

Necessário Vos é Nascer de Novo — Thomas Boston

Necessidade de Decidir-se Pela Verdade, A — C. H.

Spurgeon

Objeções à Soberania de Deus Respondidas — A. W.

Pink

Oração — Thomas Watson

Pacto da Graça, O — Mike Renihan

Paixão de Cristo, A — Thomas Adams

Pecadores nas Mãos de Um Deus Irado — J. Edwards

Pecaminosidade do Homem em Seu Estado Natural —

Thomas Boston

Plenitude do Mediador, A — John Gill

Porção do Ímpios, A — J. Edwards

Pregação Chocante — Paul Washer

Prerrogativa Real, A — C. H. Spurgeon

Queda, a Depravação Total do Homem em seu Estado

Natural..., A, Edição Comemorativa de Nº 200

Quem Deve Ser Batizado? — C. H. Spurgeon

Quem São Os Eleitos? — C. H. Spurgeon

Reformação Pessoal & na Oração Secreta — R. M.

M'Cheyne

Regeneração ou Decisionismo? — Paul Washer

Salvação Pertence Ao Senhor, A — C. H. Spurgeon

Sangue, O — C. H. Spurgeon

Semper Idem — Thomas Adams

Sermões de Páscoa — Adams, Pink, Spurgeon, Gill,

Owen e Charnock

Sermões Graciosos (15 Sermões sobre a Graça de

Deus) — C. H. Spurgeon

Soberania da Deus na Salvação dos Homens, A — J.

Edwards

Sobre a Nossa Conversão a Deus e Como Essa Doutrina

é Totalmente Corrompida Pelos Arminianos — J. Owen

Somente as Igrejas Congregacionais se Adequam aos

Propósitos de Cristo na Instituição de Sua Igreja — J.

Owen

Supremacia e o Poder de Deus, A — A. W. Pink

Teologia Pactual e Dispensacionalismo — William R.

Downing

Tratado Sobre a Oração, Um — John Bunyan

Tratado Sobre o Amor de Deus, Um — Bernardo de

Claraval

Um Cordão de Pérolas Soltas, Uma Jornada Teológica

no Batismo de Crentes — Fred Malone

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2 Coríntios 4

1 Por isso, tendo este ministério, segundo a misericórdia que nos foi feita, não desfalecemos;

2 Antes, rejeitamos as coisas que por vergonha se ocultam, não andando com astúcia nem

falsificando a palavra de Deus; e assim nos recomendamos à consciência de todo o homem,

na presença de Deus, pela manifestação da verdade. 3 Mas, se ainda o nosso evangelho está

encoberto, para os que se perdem está encoberto. 4 Nos quais o deus deste século cegou os

entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória

de Cristo, que é a imagem de Deus. 5 Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo

Jesus, o Senhor; e nós mesmos somos vossos servos por amor de Jesus. 6 Porque Deus,

que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações,

para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. 7 Temos, porém,

este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós. 8 Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.

9 Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;

10 Trazendo sempre

por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus

se manifeste também nos nossos corpos; 11

E assim nós, que vivemos, estamos sempre

entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na

nossa carne mortal. 12

De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida. 13

E temos

portanto o mesmo espírito de fé, como está escrito: Cri, por isso falei; nós cremos também,

por isso também falamos. 14

Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará

também por Jesus, e nos apresentará convosco. 15

Porque tudo isto é por amor de vós, para

que a graça, multiplicada por meio de muitos, faça abundar a ação de graças para glória de

Deus. 16

Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o

interior, contudo, se renova de dia em dia. 17

Porque a nossa leve e momentânea tribulação

produz para nós um peso eterno de glória mui excelente; 18

Não atentando nós nas coisas

que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se

não veem são eternas.