Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

6
Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006 72 FI L OSOFIA DO D I RE ITO UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN Ana Paula Repolês Torres Kleber Sales RESUMO Faz uma análise epistemológica da Teo- ria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pro- curando evidenciar até que ponto pode ser ela considerada como positivista. Questiona a concepção de ciência subjacente ao pensamento kelseniano, mais especificamente a influência do positivismo filosófico na definição de seu objeto de estudo, refletida na atribuição ao Direito de uma tarefa meramente des- critiva, como se todo conhecimento fos- se somente a constatação de uma reali- dade que existisse por si só. Demonstra que a própria teoria elaborada por Kelsen mitiga sua opção epistemológica, na medida em que sua argumentação adentra o espaço virtual, admitindo pressu- postos não-advindos da experiência. PALAVRAS-CHAVE Filosofia do Direito; positivismo; Hans Kelsen; empirismo; Teoria Pura do Direito.

description

Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Transcript of Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Page 1: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006

72

FILOSOFIA DO DIREITO

UMA ANÁLISEEPISTEMOLÓGICADA TEORIAPURA DODIREITO DEHANS KELSENAna Paula Repolês Torres

Kleber Sales

RESUMOFaz uma análise epistemológica da Teo-ria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pro-curando evidenciar até que ponto podeser ela considerada como positivista.Questiona a concepção de ciênciasubjacente ao pensamento kelseniano,mais especificamente a influência dopositivismo filosófico na definição de seuobjeto de estudo, refletida na atribuiçãoao Direito de uma tarefa meramente des-critiva, como se todo conhecimento fos-se somente a constatação de uma reali-dade que existisse por si só.Demonstra que a própria teoria elaboradapor Kelsen mitiga sua opção epistemológica,na medida em que sua argumentaçãoadentra o espaço virtual, admitindo pressu-postos não-advindos da experiência.

PALAVRAS-CHAVEFilosofia do Direito; positivismo; HansKelsen; empirismo; Teoria Pura do Direito.

Page 2: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77,, abr./jun. 2006

73

Hans Kelsen, jurista austríaco de ori-gem judaica nascido em 1881, cuja Teo-ria Pura do Direito (1934) será objeto deanálise no atual trabalho, pode ser apre-sentado como um pensador de seu pró-prio tempo, pois ele radicaliza toda umaguinada positivista que vinha sendo rea-lizada desde o século XIX, na medida emque tenta separar do Direito positivo as-pectos que lhe são estranhos, como o Di-reito Natural. O fundador da Escola deViena, da qual participaram grandes juris-tas como Alfred Merkel, Felix Kauffmann eJosef Kunz, entre outros, foi influenciado,quando se encontrava em exílio nos Es-tados Unidos da América, pela EscolaAnalítica Inglesa, mais especificamentepelas idéias de John Austin (1790-1859),haja vista a identidade de objetos deambas as escolas, qual seja, o Direitopositivo, tendo Kelsen levado às últimasconseqüências a teoria austiniana1.

Positivista é o qualificativo normal-mente atribuído à obra jurídica de HansKelsen, porque se considera sua assumi-da pretensão de somente descrever asnormas jurídicas existentes, tomando-aspor coisas existentes, como padrões decomportamento a serem apreendidospelos cientistas do Direito, retirando des-tes a tarefa, reservada à Filosofia do Di-reito, de questionar a própria validadedessas normas, isto é, de emitir juízos devalor com relação ao seu conteúdo. ODireito, nessa perspectiva, descreve ovalorado como justo, ou seja, o valor quefoi objetivado por meio da positivação doDireito, e não o que deveria ter sido oudeveria ser valorado dessa forma2.

Essa separação de tarefas entre a ciên-cia e a filosofia jurídica reflete a própriaconcepção de ciência subjacente ao pen-samento kelseniano, qual seja, o entendi-mento, surgido com o positivismo filosófi-co e especificamente nas ciências natu-rais, de que as ciências trabalhariam como empírico, com a observação dos fatosda realidade, ao passo que a filosofia serestringiria à especulação, à mera erudi-ção3. Pretende-se demonstrar que a pró-pria teoria elaborada por Kelsen mitiga sua

opção epistemológica, pois sua argumen-tação adentra o espaço virtual, admitindopressupostos não-advindos da experiência.

O positivismo jurídico, como métodointerpretativo, na medida em que se voltapara o estudo do Direito positivo, ou seja,para o estudo do Direito criado, posto emuma determinada ordem político-jurídica, émuito mais amplo do que o positivismo emsentido estrito ao qual Kelsen se filia. De fato,desde a antiguidade podemos identificar ju-ristas que se dedicam ao estudo do Direitopositivo, aos comentários das leis então vi-gentes, como os próprios romanos ou osglosadores da Idade Média. Entretanto, so-mente após o surgimento do positivismo fi-losófico de Augusto Comte (1798-1857), opositivismo jurídico chega à reformulaçãodo próprio conceito de Direito, retirandodeste todo resquício metafísico, opondo-seassim às concepções jusnaturalistas, sejamelas de base natural, divina ou racional, quedesde os primórdios serviram para a defini-ção do Direito. A partir de então, o Direito éidentificado à lei, não havendo nada acimadele que funcione como parâmetro de afe-rição de sua justeza.

Na Filosofia positiva de Comte, o co-nhecimento – que seria o positivo, emoposição aos históricos estados teológico emetafísico – caracterizar-se-ia pela elabora-ção de leis tendo em vista a regularidadedos fenômenos. A busca de tais leis, maisespecificamente, das leis naturais, seria feitapela observação, abdicando-se de qualquerpergunta por uma causa última. O espírito,num longo retrocesso, detém-se por fimperante as coisas. Renuncia ao que é vãotentar conhecer e só procura as leis dosfenômenos4 (sic). Tal concepção de ciên-cia, com seu método experimental corres-pondente, e não obstante ter surgido atre-lada às ciências da natureza, foi e ainda élargamente utilizada nas ciências humanas,apesar das especificidades dos fenômenosdestas que, por carregarem consigo umacarga de significações, levam alguns a ques-tionar, tal como o faz Granger5, a própriapossibilidade de considerá-las como ciên-cia. Pergunta-se se é ainda legítimo adotar aconcepção de ciência das ciências naturais

para analisar as ciências do homem, o quenos levaria, como Granger, a considerarcomo arte a história, na medida em que separte do pressuposto de que a singularida-de dos fatos não pode ser contida emmodelos abstratos.

Kelsen é justamente um desses pensa-dores que transpõe o método das ciênciasnaturais para a análise do Direito, acredi-tando ser tal metodologia indispensável parase alcançar a objetividade que o conheci-mento científico do fenômeno jurídico, emseu entender, requereria. Nesse sentido, jáno prefácio à primeira edição da TeoriaPura do Direito, obra que sintetiza todo opensamento do citado jurista, ele assim sepronunciou sobre ela: Há mais de duasdécadas que empreendi desenvolver umateoria jurídica pura, isto é, purificada detoda a ideologia política e de todos oselementos de ciência natural , uma teo-ria jurídica consciente da sua especifici-dade porque consciente da legalidade es-pecífica do seu objeto. Logo desde o co-meço foi meu intento elevar a jurisprudên-cia6, que – aberta ou veladamente – seesgotava quase por completo em raciocí-nios de política jurídica, à altura de umagenuína ciência, de uma ciência do espíri-to. Importava explicar, não as suas ten-dências endereçadas à formação do Di-reito, mas as suas tendências exclusivamen-te dirigidas ao conhecimento do Direito, eaproximar tanto quanto possível os seusresultados do ideal de toda a ciência:objetividade e exatidão7.

Demonstrado o conceito de ciência deque parte Kelsen, conceito cujos limites aptosà apreensão do fenômeno jurídico serão pos-teriormente apresentados e discutidos, restaresgatarmos fragmentos de sua teoria, paraque assim possamos, a partir de dentro, reali-zar uma análise do alcance do pensamentopositivista, bem como do impasse em queeste sempre recai.

Falamos anteriormente sobre a ne-gativa kelseniana de realizar juízosvalorativos sobre as normas jurídicas. Noentanto, tal postura nada mais representado que o método utilizado por Kelsen paraestudar o seu objeto, pois pretende conhe-

Page 3: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006

74

cer o fenômeno jurídico em sua “pureza”, esvaziado de qualquerelemento externo, como aspectos sociológicos, psicológicos, políti-cos ou éticos que estejam a ele conectados. Para assim proceder, oautor tem de definir o objeto da ciência jurídica – a norma – e o fazdistinguindo o Direito da natureza, o mundo do dever-ser, domundo do ser8. A estrutura da norma seria: Se A, deve ser B. Sealguém comete um crime, matando ou roubando, por exemplo,deve ser-lhe aplicada uma sanção. Entretanto, a frustração de talexpectativa punitiva, dentro de certos parâmetros, não faz comque o Direito perca sua normatividade9. Utilizar dinheiro nãocontabilizado em campanhas é crime eleitoral, mesmo quandoos responsáveis por tais práticas não são penalizados.

As leis naturais, por sua vez, apresentam estrutura diferen-te, pois, se a hipótese A acontece, B necessariamente tambémocorre ou ocorrerá (Se A, é – ou será – B). Ilustrativamente, seuma maçã se solta de uma árvore, ela necessariamente cairá nochão. Nessa perspectiva, no Direito vigoraria o princípio da im-putação, segundo o qual uma conseqüência deve ocorrer caso acondição a ela atrelada se verifique, ao passo que, no âmbito danatureza, existiria o princípio da causalidade, que ligaria causa eefeito de maneira necessária10.

Definindo mais detalhadamente a norma jurídica, Kelsen aconsidera um esquema de interpretação do mundo, pois, par-tindo da distinção entre os dois mundos, ser e dever-ser, afirmaque o que interessa ao jurista não são os fatos, mas a significa-ção jurídica a eles atribuída. Por exemplo, a morte de uma pes-soa, um fato natural, pode ter relevância jurídica quando, porexemplo, o falecido deixa bens, devendo então ser aberta suasucessão testamentária. No âmbito penal, uma ação humananão é criminosa por si só, ou seja, é o Direito que lhe atribui talsentido. Nessa perspectiva, Kelsen afirma que o que faz comque um fato constitua uma execução jurídica de uma sentençade condenação à pena capital e não um homicídio, essa quali-dade – que não pode ser captada pelos sentidos – somentesurge através desta operação mental: confronto com o códigopenal e com o código de processo penal11. Entendemos entãopor que milhões de mortes de combatentes inimigos em umaguerra pode criar heróis e gerar condecorações, enquanto mataruma única pessoa pode privar o autor de sua liberdade.

para exigir de alguém qualquer soma em dinheiro. Esse exemploilustra o sistema escalonado de normas tal como desenvolvido porKelsen, pois este considera que a validade de uma norma, ou seja,seu sentido objetivo, decorre de outra hierarquicamente superior,e assim sucessivamente, até se chegar à Constituição. O ato criadorda Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não sósubjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha quenos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua12.

Assim, para garantir o respeito à própria Constituição – namedida em que não se reconhece nenhuma norma positiva, posta,acima dela, apta a dar competência a seus autores, a dar sentidoobjetivo às normas por estes elaboradas –, Kelsen criou a normafundamental , uma pressuposição lógico-transcendental, utilizandoaqui, por analogia, um conceito da teoria do conhecimento deKant13, uma norma que, em última instância, conferiria validade atodo o ordenamento jurídico, ao estabelecer o caráter vinculanteda Constituição. Dessa forma, a norma fundamental surge, tal comoa denominada “constante cosmológica” de Einstein, como um arti-fício mental do autor para tornar coerente e operacional sua teoria,apresentando-se tal norma como a “saída” para as seguintes ques-tões: Se toda norma adquire validade a partir de uma norma supe-rior, de onde adviria a validade da Constituição? Como solucionaro paradoxo de ser a Constituição o fundamento de validade dasdemais normas e não possuir, ela mesma, fundamento? Como“solucionar” essas questões sem romper com sua opçãometodológica, isto é, sem recorrer a elementos externos ao Direitopara justificá-lo, como à natureza ou a Deus?

Antes de retornarmos à influência do pensamento de Kantsobre a teoria kelseniana, o que nos ajudará a delimitar a exten-são da dimensão positivista da obra do citado jurista, devemosesclarecer que papel a Teoria Pura do Direito confere ao Direito.A função do Direito, para Kelsen, é somente descrever as nor-mas jurídicas existentes em determinada ordem jurídico-políti-ca, sem realizar qualquer juízo de valor sobre ela. Nesse sentido,sua função difere da atividade de criação do Direito atribuídaaos órgãos jurídicos, como o legislador, que elabora normasgerais e abstratas, ou o juiz, que aplica o Direito a um caso con-creto, estabelecendo uma norma individual. Na perspectiva doconhecimento jurídico, Kelsen faz uma analogia entre leis natu-rais e proposições jurídicas, entendendo que as normas podemser descritas, como os fatos, por meio da observação empírica; aúnica diferença consistiria na circunstância de não ser aplicávelao âmbito do Direito o princípio da causalidade. As normas en-tão seriam diferentes das proposições hipotético-condicionaiselaboradas pelo Direito, mas somente poderiam ser conhecidaspor meio dessas proposições, que nada mais são do que re -gras , cujo modelo Kelsen buscou na lógica formal – por isso suateoria é denominada de “normativismo lógico”14.

Tais proposições elaboradas pelo Direito, em virtude de nãoterem caráter prescritivo, configuram um quadro de leituras possí-veis das normas, leituras estas que demonstram não existir, se-gundo a teoria tradicional da interpretação, um método que levas-se, anteriormente e em abstrato, a uma resposta correta para cadacaso jurídico, revelando assim a tessitura aberta do Direito e adiscricionariedade do aplicador, na medida em que este poderiaescolher qualquer dos sentidos atribuídos às normas pelo Direito.A discricionariedade atribuída ao aplicador possibilitou a Kelsenadmitir que questões metajurídicas, como fatores morais, éticos,

Kelsen é justamente um desses pensadoresque transpõe o método das ciências naturaispara a análise do Direito, acreditando ser tal

metodologia indispensável para se alcançar aobjetividade que o conhecimento científico do

fenômeno jurídico, em seu entender,requereria.

Prosseguindo em seu raciocínio, o autor em questão pergunta:como distinguir a ordem de um funcionário de finanças e de umgângster para que lhe seja entregue uma determinada quantidade dedinheiro? Ambas as situações nos remetem a um dever-ser, ou seja,trata-se de atos de vontade cujo sentido subjetivo é um dever-ser,mas somente a ordem do funcionário de finanças configura umanorma, haja vista que se fundamenta em outra norma, isto é, em umanorma fiscal. A ordem do gângster não é vinculante porque nãopossui sentido objetivo; nenhuma norma lhe confere competência

Page 4: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77,, abr./jun. 2006

75

políticos etc., influenciassem a decisão dojuiz, sem que restasse comprometida apureza metodológica de sua teoria.

Entretanto, o próprio Kelsen deu umaguinada decisionista na segunda edição daTeoria Pura do Direito, de 1960, quandoadmitiu que o juiz poderia decidir um casosem adotar qualquer das interpretaçõesdisponíveis na moldura elaborada pelo Di-reito e, a partir de então, a única coisa quevincularia o aplicador seria uma norma decompetência, ou seja, uma norma superiorque lhe desse poder para decidir a contro-vérsia jurídica a ele encaminhada para jul-gamento. Nessa perspectiva, Kelsen acabase aproximando do realismo jurídico15, aoafirmar que o juiz cria direito, ou seja, queo Direito pode ser construído na situaçãode aplicação, desprezando-se, de certa for-ma, a própria atividade legislativa.

Feito esse resgate de algumas passa-gens da obra kelseniana, resta pergun-tar-nos sobre o alcance do positivismoem sua teoria. De fato, a tarefa do Direi-to foi pensada a partir de uma concep-ção de ciência advinda do positivismofilosófico, segundo a qual o conhecimen-to deriva da observação dos fatos. Assim,ao Direito caberia somente descrever asnormas jurídicas existentes, elaborandoproposições que funcionariam tal comoas leis naturais. Entretanto, em alguns mo-mentos, a teoria de Kelsen afasta-se des-sa base empírica requerida pelo posi-tivismo, pois, além de recorrer a um pres-suposto lógico-transcendental para tor-nar coerente sua teoria, no caso, a men-cionada norma fundamental , todoo empenho do autor para construir umaciência jurídica autônoma, livre de ele-mentos externos, donde a sua “pureza”,relaciona-se com a indagação sobre ascondições de possibilidade do próprioconhecimento científico do fenômenojurídico, condições essas que configuramum conhecimento a priori, já que nãopassível de demonstração experimental.A Teoria Pura do Direito se propõe, as-sim, a ser uma crítica do conhecimentojurídico, mas uma crítica do conheci-mento que já parte de uma concepçãopré-definida do que seja o conheci-mento científico do Direito16.

Nessa linha, antes de descrever a re-alidade do fenômeno jurídico, a ciênciado Direito, no caso a Teoria Pura do Di-reito, deve partir de um conhecimentoprévio do objeto de análise, por isso é

essencial a definição de Direito positivo17

como direito criado, em oposição às con-cepções jusnaturalistas de Direito, ou, maisespecificamente, a definição de norma ju-rídica. Na verdade, toda observação da“realidade” pressupõe uma escolha teóri-ca prévia, em outras palavras, todo realis-mo epistemológico é sempre enfraqueci-do na medida em que invariavelmenteadentra o espaço virtual18. Lembrando-nos de Sócrates, em toda pergunta estálatente uma resposta. Assim, concordamoscom Michel Miaille ao afirmar que nenhumcientista vai ao encontro da realidade quequer explicar sem “informação”, sem for-mação: e, como veremos, uma idéia fal-sa a de acreditar que a observação é afonte da descoberta. Não se descobresenão aquilo que se estava pronto inte-lectualmente para descobrir 19, 20.

Portanto, essa implicação entre o pon-to de partida de uma descrição científica, orecorte que necessariamente sempre se faze o próprio conhecimento daí advindonada mais revela do que o retorno do su-jeito, recalcado nas teorias – como as debase positivista – que pretendem uma su-posta neutralidade científica, acreditando-se ainda possível um conhecimento desin-teressado. O lema de tais teorias, qual seja,é preciso anular o sujeito para nos atermosàs coisas mesmas e estas melhor nosrevelarem seu em si21, é ilusório, haja vistaque a imbricação recíproca entre sujeito eobjeto faz com que nem mesmo a “realida-de” possa ser apreendida em termosontológicos, sendo sempre construção,caracterizando-se toda análise que delase faça como uma perspectiva, uma ob-servação que apresenta pontos cegos,conforme Niklas Luhmann22.

Na perspectiva do conhecimento jurídico, Kelsen faz umaanalogia entre leis naturais e proposições jurídicas,entendendo que as normas podem ser descritas, como osfatos, por meio da observação empírica (...)

podendo se apresentar como uma partículaou uma onda. Nem mesmo a natureza é hojetão natural assim, basta observamos que asmodificações climáticas que têm provocadodegelo nos círculos polares, diminuição ouaumento do índice pluviométrico em deter-minadas regiões etc. são fruto de uma inte-rferência humana, de um “avanço” no domí-nio da natureza.

Até mesmo Kelsen teve de admitir quea complexidade do Direito moderno é in-capaz de ser apreendida e traduzida emleis, ressaltando assim a abertura interpre-tativa do Direito para situações futuras,porém o fez a custo de, implicitamente,negar seus pressupostos epistemológicos,ao afirmar que o dever-ser descrito peloDireito seria substituído pelo ser, pela deci-são do aplicador. O único problema é nãopodermos entender essa tessitura abertado Direito como uma questão de simplesescolha do magistrado na situação concre-ta ou como discricionariedade. Se assim ofizéssemos, não teríamos como justificar queos cidadãos devem obediência às leis, pois,se nem mesmo os aplicadores oficiais odevem, por que eles seriam diferentes?

Dessa forma, se a obra de Kelsen foiimportante para delimitar o âmbito da ciênciajurídica, que Kant já havia tentado23, seu pen-samento apresenta limites para a compreen-são do Direito moderno, na medida em quetende a um puro formalismo, abrindo espaçopara que se atribua qualquer conteúdo àsnormas jurídicas, o que o levou a considerarcomo juridicamente aceitável a experiência na-zista. Em outra perspectiva, partindo da vira-da hermenêutico-pragmática, com autorescomo Gadamer e Habermas, podemos com-preender a importância do contexto para aprópria atribuição de sentido às normas jurí-

Nesse entendimento, questiona-se a uti-lização de métodos das ciências naturais parao trabalho das ciências do espírito, mais espe-cificamente a pretensão de objetividade típicadas ciências naturais, pois a concepção deuma ciência neutra foi problematizada, inclu-sive pelas disciplinas que lidam com os fenô-menos da natureza, como a Física, ao enuciar,por exemplo, que as propriedades da luz de-pendem do modo como ela é observada,

dicas. Assim, têm de ser abandonadas postu-ras unilaterais, como a de Kelsen, que privile-gia a forma, ou, por exemplo, a de Carl Schmitt,que, contrariamente, despreza a Constituiçãoescrita, considerando-a como “ideal”, dandopreferência ao conteúdo, às decisões políticasfundamentais de um povo, para se reconhe-cer a necessária complementariedade entretexto e contexto, ideal e real, global e local,enfim, entre forma e matéria.

Page 5: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006

76

REFERÊNCIAS1 Kelsen fez um balanço das continuidades e descontinuidades entre a

jurisprudência analítica e a Teoria Pura do Direito. Nesse sentido, ver:KELSEN, Hans. The Pure Theory of Law and Analytical Jurisprudence.Harvard Law Review, n. 55, p. 44-70, 1941-1942.

2 Sobre tal questão, esclarecedoras são as palavras de Elza MariaMiranda Afonso: mesmo tendo como objeto as normas jurídicas, aciência do Direito não pode apreciar os valores que elas contêm.AFONSO, Elza Maria Miranda. O positivismo na epistemologia jurídi-ca de Hans Kelsen. 1984. (Tese de Doutrado) – Faculdade deDireito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1984.p. 220. Na verdade, a Teoria Pura do Direito somente admite valoraçãodos fatos e não das normas, pois afirma que the behavior thatconforms to the norm has a positive value, the behavior that doesnot conform, a negative value. The norm that is regarded asobjectively valid functions as a standard of value applied to actualbehavior. KELSEN, Hans. Norm and Value. California Law Review, n.54, p. 1.624, 1966.

3 Temos assim duas categorias diversas de definições do Direito, quepodemos qualificar, respectivamente, como definições científicas e de-finições filosóficas: as primeiras são as definições fatuais, ou avalorativas,ou ainda ontológicas, isto é, definem o Direito tal como ele é. Assegundas são definições ideológicas¸ ou valorativas, ou deontológicas,isto é, definem o Direito tal como deve ser para satisfazer um certovalor. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia doDireito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 138.

4 MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Porto: Ed. Sousa & Almeida, 1959. p. 339.5 GRANGER, G. Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo: USP, 1994. p.85.6 Cabe ressaltar que o termo “jurisprudência” aqui aparece como sinônimo

de ciência do Direito, sendo tal esclarecimento importante porque na searajurídica também se atribui a tal significante o sentido de decisões reiteradasde um tribunal.

7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. SãoPaulo: Martins Fontes, 1996. p. 11. (Grifos nossos)

8 Nota-se aqui, como em outras passagens da obra kelseniana, uma nítidainfluência de Kant. Esclarecedora é a seguinte passagem de Miguel Realesobre Hans Kelsen: Há em toda sua obra as idéias fundamentais, de fontekantista, de que ‘o conhecimento científico não pode ir além do dualismode natureza e espírito, de realidade e valor, de ‘ser’ e ‘dever-ser’; que ‘nãoé possível deduzir um valor da simples verificação de um fato, ainda quandofreqüente e normal. REALE apud AFONSO, op. cit., p. 17.

9 Apesar de Kelsen afirmar que a validade, a existência de uma normaindepende de sua eficácia, pois admitir o contrário seria reduzir o Direito, odever-ser, ao ser, o próprio autor admite que um mínimo de eficácia éessencial para a própria validade das normas jurídicas, o que representauma ruptura de seu pressuposto epistemológico, na medida em que a “pu-reza” do Direito é relativizada pela introdução dessa dimensão sociológica.Sobre o tema, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Interpretaçãocomo ato de conhecimento e interpretação como ato de vontade: a tesekelseniana da interpretação autêntica. Revista de Direito Comparado, BeloHorizonte, v. 1, n. 1, p. 223, jul. 1997; MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander.Sobre a interpretação jurídica. Revista de Direito Comparado, Belo Hori-zonte, v. 3, p. 429, maio 1999.

10 Há autores, como Emile Durkheim, que aplicam o princípio da causalidade àanálise dos fenômenos sociais, mais especificamente em seu estudo sobreo suicídio, em que o fundador da sociologia procura relacionar os fatos,atentando para a sucessão destes e erigindo leis para sua explicação, man-tendo-se assim refém do antes e do depois, o que o leva a projetarsombras, dessa forma, sobre a interação entre os fenômenos, ou seja, sobrea dimensão de simultaneidade que a atividade de compreensão tambémrequer. Uma análise pormenorizada da estratégia discursiva de Durkheim,evidenciando os limites da explicação causal, pode ser encontrada em:DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas – tomo 1:positivismo e hermenêutica – Durkheim e Weber. São Paulo: Loyola, 2004.p. 116-119.

11 KELSEN, Teoria pura..., op. cit., p. 4.12 Idem, p. 9. (Grifo nosso)13 Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia

a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis natu-rais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direitopergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível aautoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido sub-jetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetiva-

mente válidas descritíveis em proposições jurídicas? KELSEN, Teoriapura..., op. cit., p. 225.

14 Sobre o tema, esclarecedora é a seguinte passagem: E as normas sãoconcebidas – já no campo epistemológico – como categorias lógicasque pertencem não ao campo do ser mas do dever-ser. AFONSO, op.cit., p. 27. (Grifos nossos). Nesse sentido, parece-nos haver na teoriakelseniana uma certa influência do Círculo de Viena, um grupo defilósofos, matemáticos e economistas que, na década de 1920, empre-endeu um esforço para elaborar uma concepção científica do mundo,isto é, afastada da metafísica e da teologia, utilizando a lógica comolinguagem unificadora das ciências. Uma análise sucinta do Círculo deViena, também denominado de “empirismo lógico”, pode ser encontra-da em: MAGALHÃES, Theresa Calvet de. Filosofia analítica: deWittgenstein à redescoberta da mente. Belo Horizonte: MovimentoEditorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1997. p. 3-34. Sobre onormativismo lógico de Kelsen, conferir: MACHADO, Edgar da Mata.Elementos de teoria geral do Direito. 4. ed. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 1995. p. 150-154.

15 Realismo jurídico é uma corrente de pensamento do Direito queressalta a natureza política do juiz, na medida em que entende estecomo criador de direito novo quando da decisão de um caso concre-to, não apresentando o magistrado, desta forma, qualquer compro-misso com o passado do ordenamento jurídico em questão. Sobreo realismo jurídico, principalmente o norte-americano, ver: SCHWARTZ,Bernard. Direito Constitucional americano. Trad. de Carlos Nayfeld.Rio de Janeiro: Forense, 1966. O realismo jurídico é qualificadocomo positivismo jurídico em sentido genérico, pois, tal como opositivismo jurídico em sentido estrito, como o de Kelsen, ele secaracteriza por uma abordagem avalorativa do Direito, em oposiçãoao jusnaturalismo, adquirindo um caráter puramente formal ao ficarem aberto qual seria o conteúdo do Direito. Sobre a conceituaçãode positivismo jurídico em sentido genérico e estrito, ver: BOBBIO,op. cit., p. 142-146.

16 AFONSO, op. cit., p. 24. (Grifos nossos).17 A Teoria Pura do Direito de Kelsen, dessa forma, além de ser uma teoria

do conhecimento, apresenta-se como uma ciência do Direito. Em decor-rência dessa identificação, o objeto da Teoria Pura do Direito torna-se omesmo objeto da ciência do Direito. E esse objeto é o dado da realidadejurídico-empírica, o Direito positivo. AFONSO, op. cit., p. 24.

18 A dimensão virtual está presente na obra de Kelsen por meio da lógica ,e não das matemáticas. Estas se caracterizam por tradicionalmenteserem o instrumento de criação de mundos possíveis. Kelsen utiliza amatemática qualitativa para designar o sistema escalonado de normas,referindo-se a uma pirâmide normativa, cujo ápice seria a Constituição,mas tal recurso somente possui uma função heurística, não sendoconstitutivo de sua teoria. A presença da lógica na Teoria Pura do Direitojá foi mencionada ao longo do artigo, basta lembrarmos as proposiçõesjurídicas como categorias lógicas e a norma fundamental como umpressuposto lógico não passível de comprovação empírica.

19 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Ed. Estampa,1989. p. 30.

20 Nessa linha, a descoberta da teoria da relatividade por Newton só foipossível em virtude de um referencial teórico prévio, ou seja, deve-se à elaboração do que se costuma chamar de “síntese newtoniana”.O primeiro passo de Newton foi realizar na imaginação o que ahistória não pudera realizar: unir Kepler e Galileu. Mais exatamen-te, unir uma metade de Kepler e uma metade de Galileu, e repeliras metades redundantes. KOESTLER apud AFONSO, op. cit., p. 213.

21 DOMINGUES, op. cit., p. 646. (Grifos nossos)22 Ao assumir a auto-implicação cognitiva de toda forma de conhecimento, ou

seja, que toda descrição é criação de realidade, Luhmann tem como pres-suposto que o sujeito que observa não é capaz de enxergar a si mesmo, porisso sua observação sempre implicará uma latência, um ponto cego. Sobreo tema, ver: LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società. 5.ed. Milano: Franco Angeli, 1993. 400 p. e CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena;BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Guada-lajara: Universidad Iberoamericana, 1996. 191 p.

23 Apesar de Kant ter pretendido conferir independência à ciência doDireito, separando Direito e moral, ao se preocupar com questões dejustiça, o filósofo em questão acaba por retornar ao Direito natural, ouseja, introduz no Direito aspectos que lhe são estranhos, aspectos estesque tornam implausível sua autonomia. Sobre a questão, conferir: AFON-SO, op. cit ., p. 28-43.

Artigo recebido em 20/2/2006.

Page 6: Uma análise epistemológica da teoria pura do direito

Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77,, abr./jun. 2006

77

ABSTRACTThe authoress proposes an epistemological analysis of

Hans Kelsen’s Pure Law Theory, probing to which extent it maybe considered as positivist. She questions the underlyingconception of science pertaining to the Kelsian thought, morespecifically the influence of the philosophical positivism on thedefinition of its object of study, reflected on the attribution toLaw of a simply descriptive task, as if all knowledge were merelya verification of a reality that existed by itself.

She demonstrates that the very theory elaborated by Kelsenmitigates his epistemological option, since his argument reachesthe virtual field, admitting presuppositions that do not arisefrom experience.

KEYWORDSPhilosophy of Law; positivism; Hans Kelsen; empiricism;

Pure Law Theory.

Ana Paula Repolês Torres é mestre em Direito Constitucional pelaFaculdade de Direito da UFMG.